4º Relatório do Observatório sobre Crises e Alternativas
A nova questão da habitação em Portugal:
Uma abordagem de Economia Política
Ana Gago, Ana C. Santos (Coord.), André Carmo, Agustin Cocola-Gant, Jorge Malheiros, Luís Mendes, João Pedro Ferreira, João Fontes da Costa, José Reis, Raquel Ribeiro, Rita Silva, Nuno Baetas da Silva, Nuno Serra, Nuno Teles e Tiago Castela
Intervenção de José Reis
Coordenador do Observatório sobre Crises e Alternativas
22 de janeiro de 2019.
Fundação Calouste Gulbenkian (FCG)
Saúdo a todos os presentes. Saúdo a FCG e agradeço o apoio continuado que tem dado às atividades do Observatório sobre Crises e Alternativas, que inclui receber-nos regularmente nesta casa, onde cumprimos a “rotina”, que para nós se tornou essencial, de virmos aqui apresentar, no momento da sua preparação final, antes da publicação, o Relatório do Observatório.
Falo-vos como Coordenador do Observatório sobre Crises e Alternativas e quero aproveitar a primeira intervenção pública que faço nessa condição para deixar expresso o meu reconhecimento a quem esteve no centro da sua criação e sublinhar a enorme inteligência com que se assegurou a sua consolidação e desenvolvimento. É ao Manuel Carvalho da Silva, coordenador desde o início e até há pouco tempo, que me dirijo, sublinhado como a sua ação foi crucial para todo o trabalho aqui desenvolvido. E incluo todos aqueles que formaram o “pilar” que fez do Observatório uma estrutura principal do Centro de Estudos Sociais. Continuamos todos juntos e é desse modo que vamos prosseguir este projeto da melhor maneira.
Devo uma saudação muito especial à minha colega Ana Cordeiro Santos, que dirigiu com a sua elevada competência os trabalhos que formam este relatório. Cumprimento igualmente o Jorge Malheiros, meu colega do Instituto de Geografia e Ordenamento do Território da Universidade de Lisboa, que estabeleceu com o CES a parceria em que assenta o projeto FINHABIT - Viver em Tempos Financeiros: Habitação e Produção de Espaço no Portugal Democrático, que originou este relatório. Dirijo também um grande agradecimento a Helena Roseta e Ana Drago, que nos ajudam como comentadoras das comunicações que aqui vão ser apresentadas.
Os Relatórios são os trabalhos mais longos que integram a atividade do Observatório e completam a produção mais sistemática de Barómetros e Cadernos. Este é o 4º Relatório. Os três anteriores foram, no pico da crise, sobre Economia Política do Retrocesso, para retratar os mecanismos mais gravosos que se estavam a impor e os grandes dilemas que estavam a impender sobre a sociedade portuguesa, quando se atacou o Estado, o trabalho e as expectativas dos portugueses. O segundo foi para dilucidar bem o contexto e o mecanismo que determinava a economia política da austeridade, a financeirização. O terceiro, antes do que agora apresentamos, foi sobre o trabalho...
Vamos falar hoje de habitação, um tema trazido para o centro da discussão por muitas e diversas razões. Em primeiro lugar, porque ao longo dos últimos 40 anos se desenvolveu em Portugal um modo de acesso à habitação centrado no crédito para compra de casa própria que fez da habitação a razão principal para a relação das famílias com a banca e o mundo financeiro (e isso teve um enorme significado, que não é apenas o de ¾ das famílias viverem em casa própria). Em segundo lugar, porque há nos dias de hoje mudanças radicais a atingir o imobiliário, com substituição do papel central cumprido por aquela procura dos particulares pela procura externa, através de novos atores internacionais, onde imperam os fundos financeiros. Se bem que presta um serviço essencial para o bem-estar das pessoas, o imobiliário está a converter-se, em alguns contextos muito precisos, num ativo financeiro dotado de grande liquidez, facilmente transacionável e porventura alvo de especulação (e nisto reside um significado ainda maior do que aquele que apontei há pouco). A liberalização e a intensa mudança das relações de força de que a troika e o governo anterior se encarregaram, em desfavor dos inquilinos e da estabilidade do acesso à habitação, precedeu este quadro e o próprio Estado – cuja ação se dirigiu sempre à facilitação da tendência emergente e nunca à promoção direta de habitação – junta agora às bonificações e aos benefícios fiscais a criação de um quadro regulatório favorável aos novos instrumentos financeiros e a novas formas societárias, num contexto em que os preços sobem de forma não consonante com a evolução dos rendimentos de quem procura uma casa. Torna-se assim legítimo falar da possibilidade de uma bolha e dos riscos que daí resultam para a banca e para os patrimónios familiares, cujo valor pode descer abruptamente.
É de tudo isto que este relatório trata. Mas fá-lo sabendo que a provisão de habitação em Portugal é uma moeda com as suas duas faces.
Em Portugal há, na verdade, vários sistemas de provisão de habitação. Atendendo ao peso maior ou menor que têm os encargos para os particulares, identifiquei quatro. E só num deles é que o peso desses encargos é muito expressivo, pois mais de metade das famílias (em muitas situações muito mais de metade) suporta um ónus de encargos financeiros com a casa própria. É neste espaço onde, salvo exceções, o arrendamento corresponde a ¼ ou menos das habitações, que a financeirização encontra expressão significativa e que agora ganham intensidade as novas tendências e os novos atores. Este sistema de provisão de habitação corresponde sobretudo à Área Metropolitana de Lisboa (AML) e, muito parcialmente, a alguns concelhos da Área Metropolitana do Porto (AMP). No total, são 29 concelhos, mas vivem neles, é certo, mais de 4 milhões de pessoas. Mas é também aí que está a afluir população, concentrando-se neste espaço à medida que sai de todo o resto do território nacional. Isto devia fazer-nos pensar...
Mal progredimos no território, saindo da AML, não é difícil encontrar o oposto, isto é, o sistema de provisão de habitação em que o peso dos encargos financeiros já só onera uma pequena parte (25% e em muitos municípios significativamente menos) das famílias que vivem em casa própria, sendo o arrendamento pouco mais do que marginal. As razões para isso são, evidentemente, muitas e não cabe aqui analisá-las. Mas trata-se de situações que estão claramente para lá da presença de lógicas financeiras. Nos concelhos em que isto acontece vivem 900 mil pessoas, o que equivale a mais de metade da AMP. São pequenos meios, geralmente em regressão demográfica. Mas muitos são concelhos onde ainda subsiste atividade económica estruturada. Não são simples paisagem. Eles não são é um espaço para o qual pareça haver um lugar positivo explícito e voluntarista na organização do país. O facto de ali haver um património imobiliário que serve as pessoas e não a banca não parece interessar ao modo como concebemos a organização do país.
Pelo meio, entre estes dois sistemas opostos, há situações intermédias mas sempre equivalentes a provisão de habitação sem peso maioritário do ónus financeiro. E se estou a falar do que fica no meio da concentração metropolitana e dos pequenos meios, compreender-se-á que estou a falar de muita coisa no país, incluindo uma boa parte do nosso sistema urbano. Se no sistema mais imbricado nos processos financeiros estão mais de 4 milhões de pessoas, nestes outros estão quase 6 milhões. É por isso que 53% das famílias que no Continente vivem em casa própria não tem atualmente encargos com a sua aquisição. Mas também aqui não creio que se esteja a atribuir a estes espaços um lugar estrutural importante no modo como se concebe e organiza o país. É aqui que é também importante que pensemos, a partir da habitação, nos caminhos que Portugal está a percorrer do ponto de vista da sua organização territorial.
O que me parece cada vez mais claro é que a concentração metropolitana de pessoas e ativos económicos, mais precisamente a concentração na AML, pela sua intensidade, pelo facto de estar desacompanhado de qualquer outro com significado relevante, se está a tornar no único mecanismo territorial visível de organização do país. Não creio que seja exagero considerar que este modelo unipolar é uma originalidade da nossa contemporaneidade. Nunca, como até agora, o desenvolvimento de Lisboa ocupou a cena toda. Houve sempre outros processos, diferentes mas reais, que “equilibraram o barco” e que, aliás, serviram de compensação para que as crises socioeconómicas lisboetas ficassem como crises locais e não se generalizassem a todo o país. Mas hoje o país como um todo é um território fragilizado, deslaçado, e eu receio muito que, quando a crise lisboeta chegar, a capital não encontre esteios que a ajudem. Quando isso acontecer, parece razoável pensar que o imobiliário e a habitação terão um lugar principal nos problemas que venham a surgir.
Este país afluente, contraposto ao país em perda e até a um país que desenvolve um enorme esforço; este país, onde há concelhos que de 2001 para cá aumentaram a sua população em 20, 30 e até 40% (estou a referir-me a concelhos da AML) enquanto outros no país definham, é um campo apetecível para a modalidade de provisão de habitação determinada pela banca e pelos mundos financeiros.
A habitação é, portanto, uma questão essencial pelas razões que sabemos desde há muito. Mas eu queria deixar aqui a nota de que ela é também uma questão crucial para discutirmos o modo com concebemos o país e como o estamos a organizar.
Quando, como fizemos a propósito da habitação, olhamos o país inteiro, e vemos a importância que tem ao longo de grandes espaços regionais um património imobiliário que as famílias habitam sem já terem grande expressão os encargos financeiros; quando ao mesmo tempo vemos como as dinâmicas se concentram onde esse património não apenas tem encargos elevados para as famílias como para aí se dirigem novos atores que disputam o imobiliário como ativo financeiro – quando fazemos isto, têm-se a sensação que não apenas se está a desperdiçar uma boa parte do país como que algo parece errado quanto ao modo como concebemos Portugal do ponto de vista territorial.
Imaginemos – a imaginação é livre – que o país se reencontrava consigo mesmo e não apenas com Lisboa. Imaginemos que havia processos de desenvolvimento do país que davam valor aos pequenos meios, ao sistema urbano e às cidades médias, que isso recentrava a população que temos de forma diferente, não concentrada. Imaginemos que nisso se levava em conta o conjunto do capital imobiliário que assegura a provisão de habitação segundo várias modalidades e não só segundo a que está financeirizada. Imaginemos tudo isto e talvez o país fosse menos vulnerável de que hoje é.
Mas a imaginação e a realidade estão frequentemente a grande distância e, por isso, o que temos de encarar são as diversas vulnerabilidades que nos devem preocupar quando pensamos no Portugal de hoje. E exemplos de vulnerabilidades não faltam por aí e todos os dias há alguma coisa que o relembra. Afinal, é de uma delas que vamos aqui tratar hoje. É por isso que proveito para vos dizer que o próximo relatório do Observatório, depois deste sobre habitação, deverá ter como tema vulnerabilidades. As vulnerabilidades de diversa ordem que atravessam o país e que queremos analisar do ponto de vista da economia, do território, da vida no trabalho ou das constrições que rodeiam a ação pública.