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2019-10-28
A Crise de 69 – Aprendizagem da mudança

Logo a seguir à Revolução dos Cravos, a Crise Estudantil de Coimbra em 1969 foi, sem dúvida, para a geração de estudantes que nela participou, o evento mais marcante da sua experiência de vida.

Vale pena salientar as profundas diferenças que existiam no Portugal de há cinquenta anos, um país pobre e atrasado, mergulhado desde há muito numa ditadura brutal e retrógrada, uma das mais longas do mundo, aparentando, para a generalidade da população, um poder distante, imutável e eterno.

A queda da cadeira de Salazar, em Agosto 68, e a sua substituição por Marcelo Caetano, um delfim do regime, criara uma sebastiânica esperança de mudança, a chamada “Primavera Marcelista”.

O ano de 1969 foi, também por isso, um ano invulgar. Explorando a fragilidade do momento, logo nos primeiros meses, num país pouco industrializado em que qualquer protesto era duramente reprimido, mais de cem mil operários entram em greve.

Em Maio iria acontecer o II Congresso da Oposição, em Aveiro, e, em Outubro, “eleições” para a Assembleia Nacional, uma farsa para “inglês ver” aproveitada pelos democratas para agitarem as consciências.

Durante a ditadura, só uma pequena elite de filhos das famílias mais abastadas (com raras excepções) chegava à Universidade, havendo a consciência de que, acabar o curso, ou até a simples frequência de alguns anos de Faculdade, dariam acesso a um nível de vida aceitavelmente confortável e seguro, bem acima do que podiam esperar a generalidade dos portugueses.

Mas esse horizonte profissional, mais seguro e muito diferente do actual (com desvalorização e precarização do trabalho de jovens licenciados ou doutorados), tinha, para os estudantes universitários dos anos sessenta, pesadas condicionantes em que se arriscava tudo:
A primeira, já vinha de longe: a obrigatoriedade dos futuros quadros do país se “portarem bem”, isto é, de apoiarem ou aceitarem ordeiramente as ideias e ordens da ditadura vigente, obcessivamente antidemocrática e assente num anticomunismo primário que abarcava tudo o que pudesse ter algum cheiro a contestação ou a ideologia “progressista”.

Quanto a questões de género, a discriminação era a regra, com o lugar da mulher em casa, voluntária ou involuntariamente definida como “fada do lar”, por aceitação dos hábitos morais e religiosos, ou, se necessário, à força, realizada na obediência ao marido que se encontrava plasmada na lei.

Para os rapazes, outro decisivo condicionamento era a Guerra Colonial (o termo “colonial” era absolutamente proibido e dava direito a prisão…), desencadeada em Angola em 1961, depois da perda da “India portuguesa”, e rapidamente estendida à Guiné e a Moçambique.
A “Guerra do Ultramar”, que mobilizou sucessivas gerações de jovens por um período que chegava a quatro anos de serviço militar, consumia 40% a 50% da riqueza nacional e causou mais de uma dezena de milhar de mortos e uma centena de milhar de feridos só do lado português, calculando-se que as vítimas nas populações das colónias atingiram um número dez vezes maior (sem contar com as sequelas psíquicas).

O serviço militar era, na altura, um muro onde embatia qualquer projecto de futuro dos jovens, repercutindo-se em todas as vertentes da vida - do emprego ao namoro, da liberdade de viajar à ajuda à família -, somando os desertores à emigração dos que fugiam à miséria (Paris era a “segunda cidade do país” com um milhão de portugueses).

A resistência dos estudantes das três universidades do país a esse dilemático destino acentuou-se durante as chamadas “crises” de 1962 e de 1965, reprimidas com castigos e expulsões dos seus mais destacados dirigentes, alguns dos quais se viram forçados a fugir para o estrangeiro.

A sucessivas vagas de protesto culminariam em 1969, em Coimbra, com o grande movimento de greve a aulas e a exames desencadeado pelo “subversivo” pedido da palavra pelo Presidente da Associação Académica de Coimbra (AAC) durante a cerimónia de inauguração do novo edifício das Matemáticas, a que se seguiu a sua prisão e o castigo de alguns dirigentes estudantis.

Procurando nos recantos da memória, as marcas de um dos acontecimentos mais importantes dos meus verdes anos, escrevi recentemente num artigo para a revista online AbrilAbril:

“O enfrentamento que constituiu a greve aos exames em 69, quando o risco de perda do ano e por vezes do curso, com automática mobilização para a guerra, eram então postos em cima da mesa de muitos dos que não queriam trair a vontade da imensa maioria expressa em Assembleia Magna, representou um sacrifício colectivo que mudou a academia e a cidade para sempre.
A alegria que impregnou a luta e a dignidade conquistada marcou indelevelmente os que viveram essa época e foram muitos e inesquecíveis os momentos de fraterna emoção que afloraram no meio dos obstáculos vencidos.”

E os obstáculos da greve aos exames eram muitos, desde a perda de bolsas ou de outros benefícios, às consequências já descritas de mobilização para a tropa com perda do ano ou talvez do curso, sem diminuir a importância dos sentidos por muitos estudantes em casa, pressionados para furarem a greve pelos pais, mais preocupados com o atraso nos estudos do que com a solidariedade com os colegas ou com a razoabilidade do protesto contra o regime (que, em alguns casos, apoiavam).

Mas quanto maiores eram os sacrifícios, mais se reforçava o espírito de unidade da academia, irmanada na luta pela dignidade e pela justiça em que todos encontravam o conforto e a alegria de uma vivência até aí desconhecida.

A revolta avançou com a força de uma onda que invade a margem e vence obstáculos, ultrapassando as ameaças e o risco da falta aos exames em Junho - Julho, impregnando os grevistas de um exaltante sentimento onde se misturava a generosidade e a vontade de serem protagonistas da mudança.

E foram inúmeras as expressões de criatividade dos estudantes, com performances de teatro, convívios musicais, pinturas, desenhos e caricaturas impregnadas de humor, que se perpetuaram como símbolos intemporais da Crise.

Essa mesma vitalidade criativa aflorou também em formas originais de boicote à realização de aulas e exames, espalhando, nas salas, garrafinhas de mau-cheiro ou bombinhas de fumo preparadas pelos colegas das “Químicas”, enquanto se furavam pneus dos jipes da GNR com pregos que deslizavam ao longo das calças saídos de bolsos rotos, ou se multiplicavam manobras de diversão, como manifestações-minuto que estalavam tão depressa como desapareciam em diversos lugares da cidade (enquanto se pirateava a rádio da polícia), ou chamadas falsas que confundiam e bloqueavam os táxis, uma das formas de transporte mais utilizados pelos fura-greves para tentarem atravessar a “linha da frente” onde os estudantes enfrentavam a GNR e a polícia.

Por tudo isso, para além do evidente significado político da luta de uma academia contra um regime ditatorial que a oprimia, a Crise de 69 foi um tempo de aprendizagem e profunda mudança dos que nela participaram, um sopro de modernidade e confiança que atirou às urtigas velhos e caducos preconceitos, abrindo portas a uma maior consciência social e politica da academia.

Mas após o auge do primeiro semestre, a “ressaca” não deixou de se manifestar nos últimos meses de 69 (com o encerramento da Associação, a proibição de Assembleias Magnas, o regresso aos exames e o afastamento dos dirigentes castigados ou enviados para a tropa), afectando os que mais emocionalmente tinham apostado numa vitória total do movimento estudantil, pensando na completa cedência ou até na queda do regime.

Obviamente, esses eram objectivos irrealistas que poucos ousavam formular de viva voz, mas que nem por isso deixavam de pairar na mente dos menos esclarecidos sobre a real correlação de forças em jogo: “Agora vai haver depressões e os organismos de teatro vão-se encher!” - disse-me então um colega mais velho, baseado na sua experiência de dirigente na crise de 62.

E foi o que aconteceu no final de 69 e princípios de 70, mergulhando alguns dos estudantes mais activos no desânimo, levando outros a procurarem no TEUC (Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra) ou no CITAC (Circulo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra) uma alternativa para a sua frustração, que algumas vitórias conseguidas não conseguiam mitigar.

Contudo, logo em Março-Abril de 70, conseguida a reabertura da AAC e a eleição de uma nova Direcção,  seguidas pela manifestação de um milhar de estudantes frente ao Teatro Gil Vicente (reprimida com balas reais deixando um ferido grave em perigo de vida ) em resposta a uma provocação da extrema-direita, o caracter massivo do protesto estudantil voltou a afirmar-se, agora politicamente mais amadurecido.

E em 1971, desfeita a ilusão da “Primavera Marcelista”, uma nova vaga de protesto estudantil levou a outro pico de violência repressiva.
A AAC foi de novo encerrada, a polícia de choque carregou dentro das Faculdades e dezenas de estudantes foram presos pela PIDE em Caxias, sete dos quais duramente torturados e posteriormente julgados pela sua actividade política no Tribunal Plenário do Porto.
As sequelas desse período reflectiram-se mais directamente nos sujeitos às sevícias da PIDE, que levaram, ainda na prisão, à tentativa de suicídio (mais tarde consumado) de um dos dirigentes estudantis e a danos psíquicos permanentes em outra colega também vítima de tortura.

Até à Revolução dos Cravos, com a AAC encerrada, a luta estudantil continuou com diversas expressões, mas os estudantes de Coimbra eram então já muito diferentes. A Crise, para além dos sacrifícios a que obrigou, tinha trazido uma inigualável experiência de fraternidade, solidariedade e comunhão de objectivos, que só com o 25 de Abril se voltariam a sentir.

Os ensinamentos e valores adquiridos através da estimulante participação num grande movimento colectivo pela afirmação da dignidade e da participação democráticas, são difíceis de transmitir a quem nunca os viveu.

Como recentemente afirmou João Botelho, conhecido realizador de cinema, então estudante e autor de alguns dos melhores desenhos da Crise de 69, (entrevista em 13-5-19 na SIC Notícias), a melhor forma de combater a exploração, o racismo, a xenofobia e a ascensão da extrema-direita e do fascismo na Europa ou nos Estados-Unidos, é o “sentimento do ser colectivo”, “o respeito pelo outro”, o combate ao individualismo do “eu, eu, eu sou melhor que os outros!”.

Foi esse “sentimento do colectivo”e o orgulho de a ele pertencer que constituiu o grande trunfo da Crise de 69. Foi ele que mudou mentalidades e superou obstáculos. E é essa construção da realização pessoal através dessa comunidade com “o outro” na defesa dos direitos universais a uma plena cidadania, que deve ser transportado para contruir um futuro melhor nos dias de hoje.


Jorge F. Seabra -  Membro da Direcção Geral da AAC no seguimento da crise de 69 (preso e mantido encarcerado em Caxias, como consequência da luta estudantil)