Pluralismo médico:
configurações estruturais, racionalidades e práticas
sociais
Nesta comunicação buscamos apresentar aos interessados uma reflexão sobre os perigos recentes de desumanização das práticas médicas face à ascensão de um movimento utilitarista e especulativo importante cujos efeitos nefastos foram agravados a partir da globalização. A desumanização implica dizer que os valores propriamente humanos passam a ser relegados a segundo plano por uma nova moral médica que valoriza prioritariamente o ganho econômico e a inovação tecnológica (que justifica novos poderes e mais lucros). Tais tendências desumanizantes se aceleraram com a entrada de capitais especulativos no campo médico e ,também, com a crise do Estado-providência, mas suas raízes se estendem a períodos anteriores, desde o nascimento da clínica médica, há dois séculos atrás (nascimento muito bem descrito por Michel Foucault). Deve-se lembrar, contudo, que semelhante processo desumanizante não ocorre de modo homogêneo a nível planetário, dependendo de como o efeito-global impacta os diversos contextos políticos nacionais. Assim, deve-se registrar - no lado contrário à desumanização - a existência de movimentos favoráveis à humanização das práticas médicas, podendo ser lembrado o SUS (Sistema Único de Saúde) no Brasil. As reflexões aqui esboçadas são uma amostra de uma pesquisa que durou cinco anos e que foi publicada num livro intitulado Contra a desumanização da medicina: crítica sociológica das práticas médicas modernas (Editora Vozes, Petrópolis, 2003). Saúde e bem-estar : o que significa 'viver saudável'?
A modernidade multiplica as oportunidades e força os indivíduos
a fazer opções (Giddens,1990). O(s) risco(s) é parte
integrante da sociedade moderna (Beck, 1998). A regulação
social dirige-se às atitudes e às práticas por penetração
das consciências individuais (Foucault 1976). A saúde é
um recurso que os indivíduos devem promover, nomeadamente pela
adopção de estilos de vida saudáveis e pela participação
na vida da comunidade (WHO 1986). Os estilos de vida são 'modelados'
pelo habitus de acordo com a posição na estrutura individual
(Bourdieu, 1979). A vida moderna interiorizou o 'dever de saúde'
(Herzlich et Pierret 1984). A formação do psicóilogo e a manutenção
do mito da neutralidade: o caso da reforma psiquiátrica No Brasil, o Ministério da Saúde (MS), ao propor uma política
de saúde mental, afirma como meta a substituição
do enclausuramento nos hospitais por uma assistência comunitária,
apresentando como consenso a idéia de que o lugar mais adequado
para tratar problemas de interação humana é exatamente
onde eles acontecem. Ao mesmo tempo, sancionar sobre a reversão
do sistema e redirecionar as verbas do MS para outra modalidade de atenção
para os que convivem com a experiência da loucura, traz em si muitos
questionamentos. A efetivação da Reforma Psiquiátrica
requer agilidade no processo de superação dos hospitais
psiquiátricos e a concomitante criação da rede substitutiva
que garanta cuidado, proteção, promoção, prevenção,
assistência e recuperação em saúde mental.
Ações que potencializem a autonomia e a cidadania, superando
a relação de tutela e as possibilidades de reprodução
de institucionalização. Por outro lado, delineamos o percurso
do Movimento da Reforma Sanitária e estruturação
do Sistema único de Saúde côo uma possibilidade da
saúde se tornar um direito e cidadania. Procuramos enfocar os princípios
que sustenta as ações comunitárias por meio da estratégia
do Programa Saúde da Família. Para que esse sonho se concretize
teremos que superar muitos obstáculos, dos quais destacamos dois
deles: os preconceitos sociais contra a loucura e a resistência
dos setores psi, que tendem a encarar transformações como
ameaça. Teremos também que suplantar a lógica do
silenciamento da loucura, a dificuldade da escuta para além da
simples descrição dos sintomas e a mudança na concepção
de produtividade para além do quantitativo. Será necessário
também resgatar o compromisso social dos profissionais de saúde
e a dimensão transformadora deste compromisso. Portanto, é
primordial articular uma visão crítica capaz de produzir
novos fazeres. Para isso, faz-se necessário alterar substancialmente
a formação dos profissionais que continuam sendo preparação
para "as velhas práticas". Ou seja, as mudanças
ocorridas no setor de saúde não podem continuar passando
às margens da formação profissional dos psicólogos
e profissionais de saúde brasileiros. É impossível
manter-se em silêncio sobre essa questão nas agências
formadoras de profissionais. O trabalho em questão constituiu-se
como um estudo de natureza qualitativa, tomando como analisadores um serviço
substitutivo de assistência mental e um programa de saúde
da famílias. Optou-se por estar ouvindo os usuários destes
serviços e analisando o conteúdo de suas imagens, valores,
histórias e relações, além de proceder entrevistas
com os técnicos e gestores sobre as mais diversas formas de violências
ainda mantidas sob a égide da atenção psicossocial.
Pudemos observar desde vestígios de um modelo dito anterior, que
já deveria estar suplantado até a existência de práticas
que podem ser configuradas como tão ou mais autoritárias
que as do modelo ultrapassado, ainda que esculpida sob outras vestes.
Pudemos finalizar o estudo, sinalizando como a formação
tem papel fundamental na manutenção destas práticas,
seja quando perpetua a noção de uma neutralidade científica,
quando não impulsiona os novos profissionais a lançarem
o olhar sobre suas implicações éticas e políticas
e até mesmo quando fecha os olhos a um tecnicismo acrítico
que, em nome do que é considerado melhor para o outro, faz manter
em vigor as mesmas práticas da qual muitas vezes nos queixamos.
Chamamos a tenção para a importância da formação
em Psicologia voltar-se para esta problemática, contribuindo para
a concretização cotidiana do postulado constitucional da
"Saúde como direito de todos", lembrando o compromisso
social da psicologia e o necessário engajamento dos psicólogos
como parte dos profissionais de saúde e chamando-os a um protagonismo
social que nos impõe a urgência de refletir sobre nosso lugar
e nosso fazer como profissionais da saúde. |
||
Clique no botão do lado direito do seu rato para imprimir | ||