Este livro pretende contribuir para o
aprofundamento do debate sobre a ciência enquanto forma de conhecimento
e prática social. O conhecimento científico é hoje a forma oficialmente
privilegiada de conhecimento e a sua importância para a vida das
sociedades contemporâneas não oferece contestação. Na medida das suas
possibilidades, todos os países se dedicam à promoção da ciência,
esperando benefícios do investimento nela. Pode dizer-se que, desde
sempre, as formas privilegiadas de conhecimento, quaisquer que elas
tenham sido, num dado momento histórico e numa dada sociedade, foram
objecto de debate sobre a sua natureza, as suas potencialidades, os
seus limites e o seu contributo para o bem-estar da sociedade. De uma
forma ou de outra, a razão última do debate tem sido sempre o facto de
as formas privilegiadas do conhecimento conferirem privilégios
extra-cognitivos (sociais, políticos, culturais) a quem as detém. Só
assim não seria se o conhecimento não tivesse qualquer impacto na
sociedade, ou, tendo-o, se ele estivesse equitativamente distribuído na
sociedade. Mas não é assim.
Por um lado, só existe conhecimento em sociedade e, portanto, quanto
maior for o seu reconhecimento, maior será a sua capacidade para
conformar a sociedade, para conferir inteligibilidade ao seu presente e
ao seu passado e dar sentido e direcção ao seu futuro. Isto é verdade
qualquer que seja o tipo e o objecto de conhecimento. Mesmo que a
natureza não existisse em sociedade - e existe - o conhecimento sobre
ela existiria. Por outro lado, o conhecimento, em suas múltiplas
formas, não está equitativamente distribuído na sociedade e tende a
estar tanto menos quanto maior é o seu privilégio epistemológico.
Quaisquer que sejam as relações entre o privilégio epistemológico e o
privilégio sociológico de uma dada forma de conhecimento - certamente
complexas e, elas próprias, parte do debate -, a verdade é que os dois
privilégios tendem a convergir na mesma forma de conhecimento. Esta
convergência faz com que a justificação ou contestação de uma dada
forma de conhecimento envolvam sempre, de uma maneira mais ou menos
explícita, a justificação ou contestação do seu impacto social.
Desde o século XVII, as sociedades ocidentais têm vindo a privilegiar
epistemológica e sociologicamente a forma de conhecimento que
designamos por ciência moderna. Quaisquer que sejam as relações entre
esta ciência e outras ciências anteriores, ocidentais e orientais, a
verdade é que esta nova forma de conhecimento se auto-concebeu como um
novo começo, uma ruptura em relação ao passado, uma revolução
científica, como mais tarde viria a ser caracterizada. Desde então, o
debate sobre o conhecimento centrou-se na ciência moderna, nos
fundamentos da validade privilegiada do conhecimento científico, nas
relações deste com outras formas de conhecimento (filosófico,
artístico, religioso, etc.), nos processos (instituições, organizações,
metodologias) de produção da ciência e no impacto da sua aplicação. O
que distingue o debate moderno sobre o conhecimento dos debates
anteriores é o facto de a ciência moderna ter assumido a sua inserção
no mundo mais profundamente do que qualquer outra forma de conhecimento
anterior ou contemporânea: propôs-se não apenas compreender o mundo ou
explicá-lo, mas também transformá-lo. Contudo, paradoxalmente, para
maximizar a sua capacidade de transformar o mundo, pretendeu-se imune
às transformações do mundo.
Nos termos da consciência de si próprios que a ciência e os cientistas
tenderam, dominantemente, a formar desde os tempos da revolução
científica até um período muito recente, o privilégio epistemológico
que a ciência moderna se arroga pressupõe que a ciência é feita no
mundo, mas não é feita de mundo. A ciência intervém tanto mais
eficazmente no mundo quanto mais independente é dele. A ciência opera
autonomamente segundo as suas próprias regras e lógicas para produzir
um conhecimento verdadeiro ou tão próximo da verdade quanto é
humanamente possível. A verdade consiste na representação fiel ou, pelo
menos, o mais aproximada possível da realidade que existe,
independentemente das formas que assume e dos processos através dos
quais é produzido o conhecimento que se tem dela. Uma vez criadas e
estabilizadas as condições institucionais que garantem a autonomia da
ciência, tal verdade e tal representação não estariam sujeitas ao
condicionamento ou à manipulação por parte do mundo não científico.
Ao longo dos últimos três séculos, os debates sobre a ciência tiveram
sempre estas duas vertentes: a natureza e o sentido das transformações
do mundo operadas pela ciência; a natureza e a validade do conhecimento
científico que produz e legitima essas transformações. Em alguns
períodos, dominou uma das vertentes e noutros, a outra. Os debates
começaram por ser entre cientistas e titulares de outros conhecimentos
- filósofos, teólogos, artistas, etc. -, mas, à medida que a ciência se
expandiu e diversificou, passaram a travar-se igualmente entre
cientistas, ainda que, por vezes, o debate tenha sido sobre o que é ser
cientista e sobre quem o é.
A evolução dos debates tem a ver com uma pluralidade de factores: com o
crescimento exponencial da produção científica e a consequente
proliferação das comunidades científicas; com o extraordinário aumento
da eficácia tecnológica propiciada pela ciência, uma eficácia posta
tanto ao serviço da guerra como da paz; com as transformações na
prática científica à medida que o conhecimento científico foi
transformado em força produtiva de primeira ordem e a questão das
relações entre a ciência e o mercado se transmutou na questão da
ciência como mercado.
Os debates têm assumido muitas formas. A mais recente ficou conhecida
por "guerras da ciência" e incidiu preferencialmente sobre a natureza e
validade do conhecimento que produz e legitima as transformações do
mundo através da ciência. Foi um debate essencialmente entre
cientistas, ainda que o estatuto de cientista tenha sido, ele próprio,
parte do debate, e de tal modo que se, para alguns dos participantes, o
debate era entre cientistas, para outros tratava-se de um debate entre
cientistas e intelectuais estranhos ao mundo da ciência. Foi, acima de
tudo, um debate entre cientistas em geral e cientistas cujo objecto de
investigação é a própria ciência enquanto fenómeno social. Eis algumas
das questões que dominaram o debate: qual é a relação entre o
conhecimento científico e a realidade que ele pretende conhecer? O
conhecimento científico representa, descobre, cria ou inventa a
realidade que pretende conhecer? Quais os critérios por que se afere a
adequação ou a correcção destas relações? O conhecimento científico
aspira à verdade, à eficácia, à verosimilhança, à coerência, à
referencialidade? Se as verdades científicas de um dado momento
histórico têm sido refutadas em momentos posteriores, há algo mais na
verdade do que a história da verdade? O modo como a ciência está
organizada e o modo como se realiza na prática
interfere no tipo e na validade do conhecimento que se produz? Quais as
relações entre a ciência e outras formas de conhecimento? Qual o
verdadeiro papel do conhecimento científico? Como devem interagir os
cientistas com o "resto da sociedade" nos processos de decisão?
Este último debate eclodiu no início dos anos 1990 no Reino Unido e nos
EUA e alastrou a outros países. Um dos seus momentos mais intensos foi
constituído pelo caso Sokal. Eis, sucintamente,
aquilo em que ele consistiu e o contexto em que ocorreu.
Até à década de 1990, os debates sobre o estatuto epistemológico das
ciências modernas estavam confinados aos domínios especializados da
filosofia das ciências e da história das ciências. A publicação em
1992, em Inglaterra, de The Unnatural Nature of Science,
do embriologista Lewis Wolpert, significou uma importante inflexão nos
temas e nos protagonistas desses debates. O alvo de Wolpert era o
conjunto das correntes de investigação na sociologia conhecidas por
sociologia do conhecimento científico, incluindo, nomeadamente, a
chamada Escola de Edimburgo e o seu "Programa Forte" da Sociologia do
Conhecimento e a corrente associada a Harry Collins, o "Programa
Empírico do Relativismo", também conhecida por Escola de Bath. O livro
de Wolpert consagrava um modo de argumentação caracterizado pela
referência selectiva e parcial aos trabalhos daqueles que tomava como
alvo, e pela estigmatização de qualquer forma de investigação que
tomasse o conhecimento científico e as controvérsias científicas como
processos sociais, denunciando-a como um ataque à própria ciência e uma
tentativa deliberada de minar a autoridade cultural desta enquanto
forma de produção de enunciados verdadeiros. O ataque não deixou, como
seria de esperar, de suscitar respostas por parte dos visados, que
procuraram clarificar as suas posições e as orientações de pesquisa que
propunham. O debate, na altura, tinha toda a aparência de um remake
da discussão sobre as "duas culturas" - a humanística e a científica -
suscitada em finais da década de 1950 pela conferência com o mesmo
título de C. P. Snow.
Mas, se as primeiras escaramuças das "guerras da ciência" dos anos 1990
tiveram origem no Reino Unido, as batalhas maiores viriam a ser
travadas nos Estados Unidos, logo seguidas de uma tentativa de as fazer
regressar a território europeu. Em 1994, o biólogo Paul Gross e o
matemático Norman Levitt publicavam uma violenta denúncia dos alegados
ataques sistemáticos à ciência e à racionalidade perpetrados nas
Universidades americanas por uma "esquerda académica" que, através de
uma crescente influência - em boa parte apoiada na recepção das obras
de intelectuais franceses -, teria transformado um conjunto heterogéneo
de áreas académicas, tais como os estudos culturais, os estudos
feministas, os estudos sobre raça e etnia ou os estudos sobre a
ciência, em plataformas de denúncia e descredibilização da ciência e da
Razão. Higher Superstition tornar-se-ia a
principal inspiração para muitos dos violentos ataques que vieram a
seguir, os quais, enfiando no mesmo saco as disciplinas e áreas de
investigação referidas e todo um conjunto de práticas rotuladas de
"anti-ciência" (astrologia, diferentes correntes New Age,
terapias alternativas), as responsabilizava pela perda de influência
cultural e social da ciência e pelo declínio do apoio político e
público à investigação científica. Tal perda e tal declínio derivariam
do impacto das práticas e disciplinas que negavam a capacidade de a
ciência produzir um conhecimento verdadeiro e objectivo sobre o mundo.
Episódios subsequentes incluíram a retirada do apoio da American
Chemical Society à exposição "Science in American Life", no
Museu de História Natural de Washington, sob a alegação de que a
influência de posições "pós-modernistas" entre alguns dos seus
organizadores teria levado a conferir à exposição um tom hostil à
ciência. De facto, a exposição propunha, de maneira equilibrada, uma
interpretação da história da ciência que, ao lado dos benefícios da
ciência e da tecnologia, focava também os perigos, as incertezas e os
impactos negativos destas sobre a saúde, o ambiente e a segurança.
Outro momento alto das "guerras da ciência" foi a organização pela
Academia das Ciências de Nova Iorque, na Primavera de 1995, do
congresso "The Flight from Science and Reason", o qual, reunindo
especialistas das ciências naturais, das ciências sociais e das
humanidades, procuraria apresentar uma frente comum dos
auto-proclamados defensores da racionalidade e dos ideais das Luzes
contra as alegadas correntes "anti-ciência" que estariam a corroer a
Razão, a Verdade e a Objectividade.
A primeira resposta colectiva, da parte de investigadores dos campos
das ciências sociais, das ciências naturais e das humanidades,
apareceria em 1996, através de um número da revista Social
Text, precisamente dedicado ao tema "Science Wars". O número
incluía um conjunto de discussões e refutações das alegações e
acusações provindas dos "guerreiros da ciência". Entre as contribuições
contava-se o texto "Transgressing the boundaries: towards a
transformative hermeneutics of quantum gravity", da autoria do físico
Alan Sokal, que viria a dar origem a um dos mais ruidosos episódios das
"guerras da ciência" (Sokal, 1996a). Apresentando-se como uma
reinterpretação pós-moderna do domínio dos estudos sobre a gravidade
quântica, o texto apoiava-se num extenso rol de citações de autores
invariavelmente associados às correntes rotuladas de "anti-ciência".
Nesse texto, Sokal faz duas referências a dois dos meus trabalhos
epistemológicos - Um Discurso sobre as Ciências,
na versão inglesa publicada em Review,
15(1) (1992: 9-48), e a Introdução a uma Ciência Pós-moderna
(Porto: Afrontamento, 1989) - que indica como representativos da
ciência pós-moderna (1997, 235 e 236). Logo a seguir, o próprio Sokal
viria a revelar, num texto publicado na revista Lingua Franca,
que o seu artigo era um embuste, e que a sua intenção havia sido apenas
a de mostrar a facilidade com que um texto com todos os sinais
exteriores próprios do que escreviam os "pós-modernistas" podia ser
aceite para publicação, independentemente do seu conteúdo e da sua
coerência, em revistas por eles dirigidas (Sokal, 1996b).
Não sendo de todo original, o "embuste" de Sokal não deixou de suscitar
alguma confusão e embaraço, à mistura com muita indignação por aquilo
que os responsáveis editoriais de Social Text
consideraram ser uma violação da ética académica. O episódio
alimentaria um debate que prosseguiu durante vários anos e que viria a
conhecer, em 1997, novo desenvolvimento. Sokal, em colaboração com
outro físico, Jean Bricmont, publicava nesse ano, em França, um livro
que tomava por alvo os intelectuais "pós-modernos" franceses que,
alegadamente, teriam tido uma influência decisiva na erosão da crença
na Razão e na Objectividade (Sokal e Bricmont, 1997). De Bergson a
Lacan, passando por Kristeva, Baudrillard, Latour, Irigaray, Deleuze,
Guattari e Virilio - e com algumas misteriosas ausências, como a de
Jacques Derrida que, contudo, havia sido um dos autores mais salientes
das citações incluídas no "embuste" de Sokal -, Sokal e Bricmont
procediam a uma denúncia do que descreviam como os abusos que esses
autores faziam de referências à ciência para fins de legitimação da sua
autoridade intelectual. A técnica seguia de perto a que já havia sido
usada por Gross e Levitt: citações escolhidas, retiradas dos contextos
de argumentação em que elas tinham lugar, de forma a transformar esse
conjunto escolhido de citações em amostra do conjunto da obra e, dessa
maneira, desacreditar intelectualmente esta e o seu autor ou autora.
Como seria de esperar, o livro suscitou um vivo debate em França, e foi
através da sua tradução em várias línguas que os "guerreiros da
ciência" procuraram exportar um debate muito vinculado ao meio
académico americano para o continente europeu. Em Portugal, e num
ambiente consideravelmente diferente, a publicação de Imposturas
Intelectuais apareceu num momento em que estava em processo
de construção um sistema nacional de ciência e tecnologia, com a
constituição e consolidação de centros e institutos de investigação
apoiados por financiamentos públicos e sujeitos a avaliação
internacional, e com um grande investimento na formação de jovens
investigadores altamente qualificados. Esse processo abrangia todas as
áreas científicas - incluindo as ciências naturais, as áreas
tecnológicas, as ciências sociais e as humanidades - e caracterizou-se
por experiências, extremamente produtivas, de diálogo e colaboração
entre investigadores nas ciências naturais e cientistas sociais que se
dedicavam aos estudos sociais das ciências. De facto, a importação das
"guerras da ciência" aparecia, nestas circunstâncias, como uma polémica
fora do lugar, estranha à dinâmica específica da construção do espaço
das ciências em Portugal. Aliás, em Março de 1999, quando visitou
Portugal para lançar a versão portuguesa de Impostures
intellectueles, Sokal, convidado pelo jornalista a comentar
o facto de no seu embuste da Social Text estar
mencionado um nome português, o meu, respondeu assim:
Ah, sim! O seu caso é mais delicado. Na paródia
liguei muitas coisas distintas - o parodista tem a liberdade de ligar
coisas fracamente relacionadas, desde que sejam sociologicamente
compatíveis. Ao mesmo tempo que parodiei os palavrosos autores
franceses, critiquei ideias extremas da sociologia da ciência.
Mas, no livro, onde há um raciocínio cuidado, tratamos de separar essas
coisas. Os escritos de Boaventura de Sousa Santos pertencem à corrente
pós-moderna que encara certos avanços recentes da ciência - em
especial, a teoria do caos - como uma mudança epistemológica importante
para as ciências sociais. Mas isto não tem nada a ver com o abuso
grosseiro de outros autores. Trata-se, no máximo, de erros subtis,
feitos de boa fé (Público, 5 de Março, 1999, p.
22).
Em Janeiro de 2002, foi publicado o livro O
Discurso Pós-Moderno contra a Ciência: Obscurantismo e
Irresponsabilidade (Lisboa: Gradiva), de autoria de António
Manuel Baptista (AMB), em que é feita uma crítica virulenta, bem no
estilo das guerras da ciência, ao meu livro Um Discurso
sobre as Ciências (Porto: Afrontamento). Neste livro,
publicado quinze anos antes, prossegui os seguintes objectivos: em
primeiro lugar, mostrar que, no início da década de 1980, o debate
epistemológico sobre as condições de validade e de rigor do
conhecimento científico deixara de ser um debate entre filósofos e
cientistas, como fora antes, para passar a ser um debate entre
cientistas, o que era, em si mesmo, o resultado do avanço
extraordinário da ciência desde o início do século XX. Daí que nesse
livro cite muito poucos filósofos da ciência e quase nenhum sociólogo
da ciência. A minha argumentação é construída com base em reflexões de
cientistas, na grande maioria físicos, dado que nessa época a física
quase monopolizava o interesse pela epistemologia. Em segundo lugar,
procurei mostrar que o realismo e o positivismo científicos entravam em
crise no mesmo processo em que a contingência, a incerteza, a
complexidade, a irreversibilidade e, com esta, a história faziam a sua
entrada nas teorias científicas, não como corpos estranhos, mas como
produtos do próprio desenvolvimento científico. Finalmente, tentei
mostrar que o debate epistemológico abria novas perspectivas às
relações entre as ciências físico-naturais e as ciências sociais e à
criação de novas configurações do saber mais aptas a serem apropriadas
pelos cidadãos.
O livro é uma versão ampliada da Oração de Sapiência,
proferida na abertura solene das aulas na Universidade de Coimbra, no
ano lectivo de 1985/86. Publicado em 1987, teve uma recepção que me
surpreendeu. Foi adoptado em cursos de filosofia e de ciências no
ensino secundário e no ensino universitário e foi publicado em inglês e
em espanhol, e a versão portuguesa foi reeditada várias vezes,
encontrando-se actualmente em 14ª edição. Ao longo de todo este tempo,
o livro foi objecto de várias recensões, todas elas positivas.
Causou-me, pois, alguma estranheza que só ao final de tanto tempo e de
um percurso tão longo e tão pacífico o meu livro se tornasse objecto de
polémica.
Estranhei ainda mais que o meu antagonista se refira exclusivamente ao Um
Discurso sobre as Ciências e omita os trabalhos posteriores
que dediquei ao tema e em que reelaborei, aprofundei e expandi os
argumentos apresentados em Um Discurso sobre as Ciências.
Refiro-me, por exemplo, a Introdução a uma Ciência Pós-moderna,
publicada em 1989 (Porto: Afrontamento, hoje em 6ª edição; Rio de
Janeiro: Graal, hoje em 3ª edição) e A Crítica da Razão
Indolente: Contra o Desperdício da Experiência, publicada em
2000 (Porto: Afrontamento, hoje em 2ª edição; São Paulo: Cortez, hoje
em 2ª edição), especialmente os capítulos 1 e 4. Curiosamente Alan
Sokal refere não só Um Discurso sobre as Ciências
como a Introdução a uma Ciência Pós-moderna (p.
235-236).
Mas a maior estranheza decorreu de o estilo incendiado do livro de
António Manuel Baptista fazer supor que nos encontramos em plena guerra
da ciência, quando, de facto, mesmo nos países onde ela foi mais
intensa, no Reino Unido e nos EUA, é evidente uma certa acalmia nos
últimos anos. Efectivamente, foram publicados recentemente vários
livros cujo tema é ir "para além das guerras da ciência": trocar ideias
em vez de insultos; descobrir áreas de consenso sobre a legitimidade e
a autoridade da ciência enquanto modo de compreensão do mundo. Dois
livros podem ser referidos a título de exemplo: Ullica Segerstraile
(org.), Beyond the Science Wars: The Missing Discourse about
Science and Society (Albany NY: State University of New York
Press, 2000) e Jay A. Labinger e Harry Collins (orgs.), The
One Culture? A Conversation about Science (Chicago:
University of Chicago Press, 2001). A ideia geral é que o último
episódio das guerras da ciência chegou ao fim, sem que tenha havido
declaração formal de tréguas ou de rendição. A sensação que se tem é
que o fim desta guerra é tão misterioso quanto o seu começo.
Naturalmente que os grandes debates epistemológicos permanecem, mas
parecem ter deixado de ser campos de batalha para se acolherem no
âmbito e no estilo de discussões académicas, sem dúvida intensas, mas
pacíficas e com respeito mútuo pelas diferenças. A explicação, pelo
menos para o caso desta guerra da ciência nos EUA, reside, em meu
entender, no facto de, apesar de ter sido travada entre cientistas, ela
ter tido motivações mais políticas e culturais do que científicas.
Refiro-me à política em geral, à política científica e cultural, em
particular. No fundo, o que esteve em causa foram diferentes concepções
quanto ao papel da ciência e das diferentes concepções de ciência na
transformação política da sociedade; foram também diferenças sobre o
impacto dessas concepções no financiamento público da ciência,
sobretudo quando se trata de financiamentos muito avultados, como os
que são exigidos pela Big Science; e foram ainda
visões antagónicas sobre o significado da diversidade cultural e,
portanto, do reconhecimento do multiculturalismo no ensino superior.
Porque se tratava de uma mobilização política e porque os cientistas
não são políticos profissionais, a mobilização para a guerra não foi
duradoura e, mais ou menos rapidamente, os cientistas regressaram aos
seus gabinetes e laboratórios e continuaram a fazer o que sempre tinham
feito. Talvez ninguém tenha convencido ninguém, o que não significa que
este episódio das guerras da ciência não tenha tido impacto. Teve-o
naturalmente no prestígio e até na carreira profissional dos seus
principais protagonistas. Mas teve-o muito para além disso e não foi de
todo negativo. Pelo contrário, penso que contribuiu para aprofundar a
auto-reflexividade das ciências e dos cientistas, tornando mais
explícitos os pressupostos e as crenças meta-científicas em que assenta
o conhecimento científico. O decorrer da "guerra" tornou ainda mais
claro que as diferenças epistemológicas não ocorriam apenas entre
cientistas naturais e cientistas sociais, mas também entre cientistas
naturais e entre cientistas sociais, e que tais diferenças se
articulavam de modo complexo com diferenças culturais e políticas, com
diferentes concepções sobre a relação entre conhecimento científico e
outras formas de conhecimento. Em suma, tornaram-se mais claras as
divergências e as suas causas, e, se não aumentou a tolerância,
aumentou, pelo menos, o conhecimento da diversidade de perspectivas.
Foi, pois, num período de relativo apaziguamento que surgiu o livro de
AMB. Este descompasso torna-o algo anacrónico, não só no conteúdo, como
no estilo. A crítica de AMB segue a linha de Sokal, ainda que sem a
erudição e actualização deste último. Socorre-se de alguns dos textos
esgrimidos no último episódio das guerras da ciência, que usa
frequentemente a partir de fontes secundárias e, por vezes,
descuidadamente, o que o faz incorrer em erros de interpretação que uma
leitura mais atenta facilmente preveniria. Para além do seu estilo
truculento, o texto está investido de um carácter de urgência, bem
evidente logo na nota de abertura, que parece deslocado, se se tiver em
mente que o seu alvo privilegiado, o meu livro, fora publicado quinze
anos antes. A assimetria entre os dois textos não é apenas a distância
temporal que os separa. É também o facto de o meu livro não ter sido
escrito com intuitos polémicos, antes apenas com o objectivo de dar
conta dos debates epistemológicos mais recentes, ao tempo quase
desconhecidos entre nós, e de tomar posição neles a partir da minha
área científica, as ciências sociais e especificamente a sociologia. À
publicação do livro de AMB seguiu-se um debate curto e azedo nos
jornais mas, curiosamente, poucos mais cientistas intervieram nele,
ainda que alguns lhe tenham feito referência indirecta ou acidental.
Apesar do seu tom precipitado e exagerado e da falta, por vezes
clamorosa, de informação actualizada, e apesar de uma pulsão
descontextualizante algo descontrolada, o livro de AMB levantava muitas
das questões que tinham sido suscitadas no último episódio das guerras
da ciência, e essas questões são importantes e devem ser debatidas.
Como tal debate não poderia ser conduzido com a mínima profundidade nos
jornais, dispus-me a preparar uma resposta. A resposta, tal como a
imaginei, teria que ter em conta dois factos. Por um lado, o meu livro
fora publicado numa altura em que os debates epistemológicos eram
distintos dos que vieram a ter lugar mais tarde. Basta lembrar que, no
início da década de 1980, a discussão sobre os limites da validade e do
rigor do conhecimento científico era liderada pela física - uma
liderança que só anos mais tarde começaria a perder a favor da biologia
e das ciências da vida em geral - e que a sociologia do conhecimento
científico e os estudos sociais e culturais da ciência tinham então um
desenvolvimento muito incipiente. Por outro lado, o debate
epistemológico tem estado quase totalmente ausente em Portugal e a
nossa comunidade científica tem exígua participação nas discussões
internacionais.
Em face destas duas considerações, decidi que só uma intervenção
colectiva e internacional poderia, por um lado, dar conta da grande
diversidade dos temas em debate e das posições assumidas e, por outro
lado, mostrar o âmbito internacional e transdisciplinar dos debates.
Admiti também que, com isso, poderia contribuir para dar a conhecer
entre nós a riquíssima reflexão sobre o conhecimento científico hoje em
curso, e fazê-lo a propósito de um debate em que poucos participaram
activamente, mas em que muitos se interessaram, a avaliar pela venda
dos livros em causa.
Com estes objectivos em mente, dirigi um convite a colegas de
diferentes países e de diferentes formações disciplinares, com quem
dialoguei nos últimos vinte anos sobre questões de epistemologia e de
sociologia da ciência, para colaborarem comigo num livro em que
partilhassem com a comunidade científica de língua portuguesa as suas
mais recentes reflexões sobre os debates epistemológicos, filosóficos,
sociológicos e culturais sobre a ciência e o conhecimento em geral em
que têm participado. Expliquei-lhes o contexto em que tinha surgido em
Portugal o debate sobre "as guerras da ciência" de todos bem conhecido.
Sugeri-lhes que, sempre que possível, se referissem a alguns dos temas
abordados no meu livro. Indiquei-lhes explicitamente que não se tratava
de coligir contribuições com posições concordantes com as minhas, mas
antes de estabelecer um diálogo crítico que tornasse possível
identificar, de modo fundamentado e sereno, as nossas convergências e
as nossas divergências. Aliás, dada a longevidade do meu livro e a sua
reduzida extensão, pedi-lhes que se centrassem nos temas da sua
preferência e nas questões por eles consideradas mais importantes, a
esmagadora maioria das quais, por certo, não tinha sequer sido abordada
por mim. Aos colegas estrangeiros capazes de ler português foi enviado
o livro de AMB sempre que solicitado.
A resposta ao meu convite foi a melhor possível e está contida neste
livro. Nele convergem contribuições de uma enorme variedade de
disciplinas - filosofia (8), sociologia (9), história (1), física (7),
biologia (4), antropologia (3), estudos culturais (1), economia (1),
ciência política (1), psicanálise (1), matemática (2) - de um conjunto
variado de países e comunidades científicas: Alemanha, Argentina,
Bélgica, Brasil, Colômbia, Estados Unidos da América, Índia,
Inglaterra, México, Moçambique e Portugal. No conjunto, são um mosaico
muito rico, denso e variado, da reflexão contemporânea sobre a ciência.
Não pretendem ser uma amostra representativa dessa reflexão e muito
menos transmitir uma visão ecléctica ou exaustiva dos debates.
Constituem uma visão possível dessa reflexão, não a visão global; são
representativos de muitas das posições nos debates, não de todas. Como
acontece em geral nas nossas interacções, científicas e outras, os
diálogos intensificam-se quando as divergências ocorrem sobre um lastro
de crescentes convergências. Não é de surpreender que me reveja em
muitas das posições aqui apresentadas, mas tão-pouco pode surpreender
que de outras divirja mais ou menos intensamente. Aliás, em várias das
contribuições são explicitadas divergências em relação às minhas
posições. É este o nosso modo de fazer avançar o debate.
O livro está dividido em quatro partes. Nas páginas seguintes farei um
breve resumo descritivo de cada um dos capítulos do livro. Seria de
todo impraticável entrar em diálogo com os diferentes autores nesta
introdução ou mesmo identificar todos os pontos em que estou em acordo
ou em desacordo com eles. Esse diálogo teve lugar por correspondência
electrónica à medida que os autores foram preparando os seus textos,
por vezes em várias versões. E certamente será reatado no futuro sob
outras formas. Aqui apenas sumario as posições dos autores, utilizando
inclusive a sua terminologia, com a qual por vezes não concordo.
A primeira parte, intitulada "Nem Tréguas, nem
Rendições: Depois das Guerras da Ciência", reúne os textos que mais
especificamente se articulam com os debates no âmbito do último
episódio das "guerras da ciência". Como o título indica, a ideia
central nesta secção é que o episódio mais recente das "guerras da
ciência" parece ter-se exaurido à medida que foram sendo conhecidas as
motivações específicas que o tinham alimentado, como mencionei atrás.
Permaneceram os debates, mas num tom menos aguerrido e talvez mais
esclarecedor.
No capítulo 1, João Arriscado Nunes faz uma análise do contexto
sociológico e epistemológico em que surgiu Um Discurso sobre
as Ciências e procede a uma avaliação dos argumentos nele
defendidos à luz do desenvolvimento científico nas quase duas décadas
seguintes e dos debates que ele suscitou, e também à luz da evolução da
minha reflexão epistemológica que, em trabalhos posteriores, se
orientou para os temas da diversidade dos modos de conhecimento e das
condições sociais da sua produção, apropriação, circulação e
articulação. Analisa especificamente cada uma das quatro teses
prospectivas apresentadas no livro: todo o conhecimento
científico-natural é científico-social; todo o conhecimento é
auto-conhecimento; todo o conhecimento é local e total; todo o
conhecimento científico visa transformar-se em senso comum. Carreia uma
série de argumentos novos que confirmam as teses e mostra a inflexão
dos debates epistemológicos ocorrida com o crescente protagonismo das
ciências da vida. Salienta, em particular, o modo como as orientações
reducionistas foram suplantadas pelas orientações para a complexidade e
pelos processos de transversalização interdisciplinar associados a ela.
Apresenta, finalmente, uma proposta de interpretação para uma polémica
que considera "anacrónica e fora do lugar", contrapondo-a aos
progressos recentes na criação em Portugal de uma cultura científica
inclusiva, aberta, crítica e cosmopolita.
No capítulo 2, Richard Lee faz uma análise detalhada dos debates mais
recentes sobre a ciência e, especificamente, da última guerra da
ciência, centrando a sua análise nos EUA, mas estendendo-a às guerras
da ciência em Portugal através de uma leitura crítica do meu livro e do
de AMB. Lee mostra que a compreensão das guerras da ciência, sobretudo
no modo como ocorreram nos EUA, exige que as contextualizemos no âmbito
de guerras culturais e políticas bem mais amplas. O que esteve em jogo
nas controvérsias foi, por um lado, o cânone cultural dominante na
sociedade americana e a ameaça que para ele constituiu a emergência dos
estudos culturais e a reivindicação do multiculturalismo e, por outro
lado, a luta pelo controlo das políticas educativas e, nomeadamente, da
reforma da universidade. A um nível mais profundo, o que esteve, está e
estará em causa nos próximos tempos é a quebra do muro entre as duas
culturas, ou seja, a separação entre cultura científica e cultura
humanística, entre o estudo dos factos e o estudo dos valores, e o
desafio que tal queda põe às estruturas de produção e de distribuição
de conhecimento.
O capítulo 3 é de autoria de Peter Wagner. Wagner começa por
perguntar-se por que é que o episódio da guerra da ciência ocorreu em
Portugal, num contexto totalmente distinto do que sustentou a polémica
nos EUA e a partir de um livro que tinha sido publicado quinze anos
antes. E, tal como os autores anteriores, procede a uma leitura
crítica, tanto do meu livro como de AMB. No que respeita ao meu livro,
Wagner entra em linha de conta com outros textos posteriores a Um
Discurso sobre as Ciências, nomeadamente com "A
Epistemologia da Cegueira" (capítulo 4 de A Crítica da Razão
Indolente) que ele já comentara aquando da sua publicação em
inglês no European Journal of Social Theory
("Toward an Epistemology of Blindness: Why the New Forms of 'Ceremonial
Adequacy' neither Regulate nor Emancipate", The European
Journal of Social Theory, Vol. 4(3 ), Agosto de 2001).
A partir de um conhecimento muito sólido da história, da filosofia e da
política do conhecimento científico, Wagner oferece uma leitura nova
dos recorrentes debates sobre a ciência, vendo-os como o desdobrar de
uma tensão inerente à relação entre o conhecimento e o mundo. No caso
da ciência, a tensão decorre de uma contradição interna entre a
pretensão de neutralidade e de distanciamento do mundo e a legitimação
pela utilidade e eficácia na transformação do mundo. Wagner dá um
relevo especial à filosofia da ciência de John Dewey, que argutamente
identifica como uma das fontes de inspiração da minha reflexão.
No capítulo 4, Immanuel Wallerstein propõe-se analisar as guerras da
ciência à luz da longue durée do sistema mundial
moderno, de que é o principal teorizador. Mostra como a ciência se foi
divorciando da filosofia para alcançar uma posição dominante na
hierarquia do conhecimento, e problematiza, à luz dos acontecimentos
contemporâneos, a separação que, no processo, ocorreu entre a busca do
bem e a busca da verdade. Remetendo para os trabalhos da Comissão
Gulbenkian sobre as ciências sociais, que dirigiu, e para o livro em
que foram publicados os principais resultados (Para Abrir as
Ciências Sociais: Relatório da Comissão Gulbenkian sobre a
Reestruturação das Ciências Sociais. Mem-Martins:
Publicações Europa-América, 1996), Wallerstein refere a emergência das
três culturas - ciências naturais, ciências sociais e humanidades - que
nos últimos cem anos estruturaram o nosso conhecimento, e detém-se no
questionamento a que foi sujeita em tempos recentes esta divisão
tripartida do conhecimento por parte dos estudos da complexidade, por
um lado, e dos estudos culturais, por outro.
O capítulo 5 é da autoria de Isabelle Stengers. Começa por discutir a
minha asserção de que não há razões científicas para que a explicação
científica tenha prioridade em relação a outras explicações
alternativas (Um Discurso sobre as Ciências, 52) e
parte dela para questionar o que designa por "a grande separação" -
entre ciência e filosofia, entre factos e valores - que tem
caracterizado o conhecimento ocidental. Segundo ela, o "conhecimento
que conta" numa dada comunidade é um híbrido de factos e valores, dando
o exemplo da reivindicação da autonomia da ciência como condição da sua
utilidade pública. Socorre-se de Bruno Latour e da distinção por ele
proposta entre humanos e não humanos - em substituição da distinção
entre sujeito e objecto - para justificar o papel das ciências sociais
em mostrar como se produz o "conhecimento que conta", a importância dos
empreendedores, das redes de cientistas e de não cientistas. Daí que a
decisão sobre o conhecimento que conta e o que não conta seja uma
questão iminentemente política e, portanto, refractária ao pensamento
totalizante e a perspectivas privilegiadas a priori.
No seguimento de Bruno Latour, Stengers propõe o conceito de ecologia
política para significar a exigência radical de democratização neste
domínio. Não a designando como "revolução cultural", mostra, no
entanto, como esta exigência rompe com as concepções assentes na
"grande separação".
O capítulo 6, de autoria de Joan Fujimura, visa contextualizar a
recente guerra das ciências portuguesas num campo de disputa
teórico-epistemológica temporal e tematicamente amplo, constituído por
múltiplos episódios de confrontação em torno de propostas consideradas
transgressivas. Tal como o capítulo anterior, procura trazer luz aos
debates mais recentes, invocando a história da ciência. O "caso"
analisado por Fujimura ocorreu em meados do século XIX, com a
controvérsia sobre a emergência da geometria não-euclidiana. Com a
análise deste caso, Fujimura pretende mostrar que as guerras da ciência
não se travam em torno da oposição entre ciência e anti-ciência, nem da
oposição entre objectividade e subjectividade. Travam-se, sim, em torno
da autoridade científica para definir o tipo de ciência que deve ser
feito. Depois de uma análise sintética mas esclarecedora do caso
Sokal, Fujimura parte do que Sokal parodicamente afirma
sobre a historicidade do pi , no seu embuste
publicado em Social Text, para mostrar que, ao
contrário do que ele pensa, o valor de pi tem de
facto uma história, a qual está registada na história da matemática.
Mostrar isso mesmo é o objectivo da sua análise sobre a controvérsia
gerada em redor da geometria não euclidiana e as lutas renhidas pela
autoridade do cânone matemático que ocorreram no seu seio. De tal
análise sai evidenciada a importância da perspectiva histórica nos
debates metodológicos e epistemológicos contemporâneos.
No capítulo 7, João Caraça procede a uma análise sucinta, mas muito
esclarecedora, da evolução histórica dos contextos sociais e políticos
da ciência. Considera que, no início do século XXI, estamos perante um
novo regime de saberes, uma organização em arquipélago, reticular, que
não postula uma génese comum a todos os saberes, nem aceita uma
hierarquia natural ou funcional entre eles. Tal como John Dewey, João
Caraça entende que a validade do conhecimento científico está tanto
mais garantida quanto melhor forem conhecidos e aceites os limites do
âmbito deste. Segundo ele, a ciência possui o monopólio da verdade
apenas no que toca à descrição dos fenómenos que ocorrem na natureza.
Em todos os outros domínios de actividade, do mercado à política, da
cultura aos media, outros saberes verdadeiros
permitem definir as mais adequadas estratégias de interacção com o
real. Termina apelando à necessidade de um novo discurso sobre as
ciências que acolha perspectivas internas, externas e comunicacionais
da actividade científica e que privilegie o encontro inter- e
intradisciplinar.
No capítulo 8, Germinal Cocho, José Gutierrez e Pedro Miramontes
procedem a uma crítica veemente, tanto dos usos imperiais e destrutivos
da ciência, como da demonização irracional da ciência. Fazem uma
distinção entre a ciência em si e a sua aplicação, e submetem esta
última a um juízo muito severo, dando como exemplo paradigmático a
tecnologia da guerra. Consideram que o conflito entre cientistas e
humanistas tem aqui a sua origem e que a sua superação deve assentar
numa acção concertada, altamente política, no sentido de eliminar o
potencial bélico da ciência e de, pelo contrário, pô-la ao serviço de
um projecto social em que os homens e as mulheres comuns sejam donos do
seu próprio destino. Quanto à ciência, centram-se, seguindo a sua
própria formação, na física e na matemática. Partindo do colapso do
reducionismo mecanicista, que dominou durante muito tempo a física
clássica, mostram como as teorias da complexidade vieram enriquecer a
física e como foi decisivo o papel da matemática nessa viragem. Os
sistemas dinâmicos complexos enriqueceram a ciência com novos conceitos
e ferramentas decorrentes das suas propriedades, como auto-organização,
zona crítica, frustração, emergência.
O capítulo 9 é de autoria de Jorge Dias de Deus. O autor começa por
esclarecer que concorda comigo no reconhecimento da validade de uma
sociologia crítica da ciência, mas discorda da minha ideia de que a
ciência está sujeita aos limites da condição humana e da sociedade em
que é produzida. O facto de a ciência moderna ser parte de um processo
social em que os valores da tradição foram substituídos pelos valores
da eficácia, da competência e das regras técnicas ligadas à acção
técnica, e o facto de a ciência ter sempre acompanhado o capitalismo
apenas mostra que essas transformações sociais reclamaram, como mais
adequada, a forma de conhecimento científico, um conhecimento concebido
como universal e objectivo. Com base na ideia de que a ciência é feita
por homens, Jorge Dias de Deus analisa criticamente as teorias de
Popper, Merton e Kuhn, distinguindo entre normatividade metodológica e
prática científica. Conclui, sugerindo a necessidade de uma terceira
posição entre, por um lado, a ideia de uma lógica imutável, inerente à
ciência e imune à sociedade, e, por outro, a ideia de que só nos resta
o método histórico-sociológico para validar a ciência.
O capítulo 10 é de Roberto Follari. Follari faz uma análise sistemática
dos principais argumentos de Um Discurso sobre as Ciências
e da Introdução a uma Ciência Pós-moderna à luz
da reflexão teórica e epistemológica que ele próprio tem vindo a
elaborar ao longo dos anos. Ao fazê-lo, não só desenvolve muitos dos
temas apenas referidos no meu trabalho, como acrescenta muitos outros
que emergiram ou se tornaram importantes nas duas últimas décadas. Para
ele, a imanência da ciência às condições sociais é um facto
inquestionável e estrutural. O que caracteriza a ciência não é a
observação dos factos, mas antes a construção metódica e controlada de
um conhecimento que estabelece a previsibilidade como necessidade
central. Manifesta as suas reservas em relação à erosão da causalidade
nos modelos explicativos e teme o subjectivismo hermenêutico. Duvida
que as ciências sociais possam liderar o paradigma emergente, mas
considera que o seu papel será cada vez mais importante para a
auto-reflexividade da ciência no seu conjunto. Suspeita, aliás, que
algumas das tendências por mim apontadas como prometedoras possam ter
conduzido a resultados perversos. Conclui o capítulo com a análise da
minha concepção da dupla ruptura epistemológica desenvolvida com base
nas teses de Um Discurso sobre as Ciências, mas
apenas formulada na Introdução a uma Ciência Pós-moderna.
Também aqui, Follari, ao mesmo tempo que partilha as minhas
preocupações (aproximar a ciência dos cidadãos), acautela-nos contra o
perigo da perversão.
No capítulo 11, Marcos Barbosa de Oliveira começa por afirmar que não
se identifica com nenhum dos campos entre os quais recentemente se
travaram as guerras da ciência, considerando, aliás, que as discussões
geraram mais calor que luz. Propõe-se, assim, tentar aproximar os dois
campos, procurando um terreno comum que possa tornar mais proveitosa a
discussão. E esse terreno comum é o das práticas técnico-científicas. A
tese que defende neste capítulo é que uma discussão séria sobre os
rumos do desenvolvimento da tecnociência é incompatível com a forma
mercantilizada de inserção das práticas tecno-científicas na sociedade
que se vem fortalecendo na presente fase neoliberal da história do
capitalismo. Marcos Barbosa parte do conceito de tecnociência - com que
pretende significar a indissociação entre ciência e tecnologia - para
questionar o processo acelerado de mercantilização da ciência e da
tecnologia (o sistema de patentes) sob a égide do neoliberalismo, um
processo tão avassalador que implica a própria reforma da universidade.
Procede então a uma análise sistemática da reforma neoliberal da
ciência e da tecnologia e mostra em que medida ela inviabiliza uma
discussão séria sobre as práticas tecnocientíficas. Termina com um
apelo à luta pela desmercantilização da tecnociência e a advertência de
que esta luta é bem mais importante do que as que constituíram as
guerras da ciência.
Na parte II, intitulada "Os Grandes Temas: Algumas Abordagens
Possíveis", incluo textos em que é mais ténue o eco dos debates do
episódio mais recente da guerra da ciência. São abordados aqui alguns
dos temas que mais recorrentemente têm estado presentes na reflexão
epistemológica e sociológica sobre a ciência moderna. Isto não
significa que esses temas não sejam abordados nos restantes capítulos.
Trata-se, antes, de uma questão de ênfase. Tão pouco significa que, à
luz de outros critérios, outros "grandes temas" não pudessem ser
seleccionados. Poderiam; trata-se de uma questão de escolha.
No capítulo 12, Stephen Toulmin, depois de se referir na Introdução ao
diálogo que temos travado nos últimos vinte anos, analisa, com a
erudição que lhe é característica, o processo histórico da redução do
objecto da filosofia no bojo do qual emerge um conceito estreito de
racionalidade. Enquanto, desde a antiguidade, a filosofia consistia no
tratamento sistemático e metódico de qualquer assunto, a partir do
século XVII opera-se uma clivagem e uma hierarquia entre formas de
argumentação e pensamento, privilegiando-se a lógica e os argumentos
formais e demonstrativos em detrimento da retórica e dos argumentos
substantivos. A filosofia ficou confinada aos primeiros e a retórica,
expulsa da filosofia, foi "despromovida" a tema de estudos literários.
Isto leva a que seja adoptada uma concepção duplamente estreita de
racionalidade, porque expulsa do seu âmbito a razoabilidade da
argumentação substantiva e porque, para vingar, exige uma focalização
estreita em matéria de conteúdo. Toulmin propõe um regresso ao holismo
da filosofia grega, onde o logos incluía o
conjunto da argumentação e do pensamento, tanto argumentos formais como
argumentos substantivos, tanto a lógica como a retórica. Não sendo
possível fazer uma separação total entre a lógica e a retórica, já que
todos os discursos estão mais ou menos situados, propõe a adopção de um
conceito de racionalidade onde caiba a razoabilidade, que é afinal o
tipo de pensamento que mais diz respeito à condução da nossa vida
quotidiana.
A este texto, que reproduz o capítulo 2 do seu livro Return
to Reason (Cambridge MA: Harvard University Press, 2001),
Toulmin acrescenta, em excursus, um texto
original sobre "os usos humanos das ciências técnicas", em que estende
o argumento anteriormente apresentado ao conhecimento técnico, apelando
a um maior equilíbrio entre conhecimento teórico e conhecimento
prático, entre a acção técnica e as suas consequências na sociedade e
nos indivíduos.
O capítulo 13 é de autoria de Anna Carolina Regner. Entre este capítulo
e o capítulo anterior, de Stephen Toulmin, há uma notável convergência,
na medida em que ambos apelam a uma concepção de racionalidade mais
ampla, assente numa nova visão das relações entre retórica e ciência,
em que a distinção entre argumentação científica e argumentação
retórica colapsa. Anna Regner começa por perguntar-se se a visão
tradicional da racionalidade científica - baseada na distinção estrita
entre demonstrações que conduzem a verdades necessárias e universais e
argumentos persuasivos e contextuais que conduzem a conclusões
verosímeis - está preparada para dar conta das questões levantadas
pelas análises mais recentes da ciência. A resposta é negativa. E, para
a fundamentar, socorre-se da análise de um "caso exemplar" de
argumentação científica, a Origem das Espécies,
de Charles Darwin. Procede a uma reconstrução sistemática das
estratégias argumentativas de Darwin, à luz da Retórica de Aristóteles.
Na narrativa darwiniana, observação e experimento, a subsunção dos
factos à regra e o estudo de casos exemplares surgem de par com o uso
da imaginação, o recurso à metáfora e à analogia, a invocação do peso
das razões, o apelo à ignorância, aos hábitos mentais e, em geral, às
condições e valores psicológicos e sociológicos da investigação
científica. O cotejo sistemático do dispositivo argumentativo de Darwin
com a Retórica de Aristóteles leva Regner a concluir que, numa visão
aristotélica, as estratégias argumentativas de Darwin são "retóricas".
Longe de enfraquecer o discurso científico, os recursos retóricos
são-lhe constitutivos e o reconhecimento disso mesmo abre novas
possibilidades ao discurso racional, assente numa concepção mais ampla
da racionalidade.
O capítulo 14 é de autoria de Miguel Baptista Pereira. Parte da análise
semântica do conceito de precisão, tal como é usado na filosofia e na
ciência, mostrando que lhe está associada a ideia de corte, de
violência, de redução radical da facticidade da existência como
condição da pureza e do rigor do saber. Traça as origens clássicas e
medievais deste conceito e descreve o modo como ele passou a ser
central na filosofia moderna como expressão de autonomia da razão e
como condição do método científico, especialmente sob a forma da
precisão matemática. Permanece, no entanto, uma tensão entre o corte
redutor e a unidade integradora. Segundo Miguel Baptista Pereira, esta
tensão está presente na física moderna: comparada com a física
clássica; a física quântica evita a divisão cartesiana do mundo,
substituindo a precisão que corta pela distinção que une. Este tema é
desenvolvido ao longo do texto por referência à obra de W. Heisenberg e
de C.F. Weizsäcker e ao diálogo entre eles e às suas reflexões sobre as
relações entre a linguagem matemática e a linguagem natural, os limites
da axiomatização, a ideia heisenbergiana da teoria conclusa (abgeschlossene
Theorie), a ideia de von Weizsäcker e de Heidegger de que a
ciência deve o seu triunfo ao facto de ter renunciado às perguntas
pelos fundamentos. Da física às ciências da vida, de von Weizsäcker a
Heidegger, Miguel Baptista Pereira identifica os limites da razão
analítica, redutora e fragmentora ante a complexidade do ser e do
acontecer.
O capítulo 15 é de autoria de João Maria André. Deve-se ao autor a
primeira recensão de Um Discurso sobre as Ciências,
publicada no Jornal de Letras, ainda em 1987.
Como ele próprio refere, este capítulo é a continuação de um diálogo
que temos vindo a manter nos últimos dezasseis anos. E o diálogo não se
limita a Um Discurso sobre as Ciências,
englobando também os meus trabalhos posteriores, nomeadamente A
Crítica da Razão Indolente. André começa por inserir Um
Discurso sobre as Ciências num movimento epistemológico de
resistência ao empirismo e positivismo que, saídos do Círculo de Viena,
dominaram todo o século XX. São constitutivos desse movimento não só o
reconhecimento do pluralismo metodológico e axiológico, mas também, e
sobretudo, uma visão transdisciplinar e holística da prática científica
no contexto de outras práticas humanas e, tal como essas práticas,
vinculada a valores epistémicos e outros. Para João Maria André, há uma
assimetria em Um Discurso sobre as Ciências, na
medida em que a crítica do paradigma dominante não é seguida de uma
formulação alternativa dos critérios epistémicos de verdade e de
objectividade, abrindo assim o flanco à acusação de relativismo. Tal
alternativa está apontada em a Introdução a uma Ciência
Pós-moderna, mas, segundo ele, de uma forma demasiado
abreviada. Acresce que a introdução do conceito de ciência pós-moderna
em Introdução a uma Ciência Pós-moderna acabou
por inserir as propostas epistemológicas de Um Discurso
sobre as Ciências no debate mais amplo sobre a
modernidade/pós-modernidade. A dissolução da distinção entre ciências
naturais e ciências sociais prospectivamente apontada como
caracterizando o paradigma emergente é também questionada por André.
O capítulo 16 é de autoria de Hermínio Martins. Utilizando como
estratégia narrativa a fábula de um visitante de outro planeta às
nossas instituições científicas e ao conhecimento nelas produzido,
Hermínio Martins percorre as grandes linhas dos debates epistemológicos
do último século e mostra a estranheza que a um observador externo -
que ele não é mas em cuja pele se põe - pode causar a discrepância
entre os avanços científicos e a problematização epistemológica que
eles suscitam. Começando pelas ciências sociais e humanas e passando
depois às ciências exactas e naturais, o visitante extraterrestre
estranhará a prevalência, nas últimas décadas, do cepticismo, niilismo
e relativismo epistemológicos (e as reacções fundamentalistas
cientificistas militantes que eles provocam em aparente contraste com a
pujança da civilização técnico-científica). Martins considera que o
cepticismo é inseparável da filosofia moderna e analisa as suas
diferentes formas, distinguindo várias fases do relativismo
epistemológico. Percorre com grande detalhe a querela do realismo e a
crise da concepção da verdade como correspondência à realidade, e
mostra como a grande capacidade de intervenção (e de resolução de
problemas) e de manipulação experimental, por parte da ciência, convive
com teorias minimalistas de verdade (por exemplo, o realismo
referencial em vez do realismo da verdade). Segundo Martins, tais
teorias e o cepticismo que veiculam decorrem da necessidade de defender
a autonomia da ciência. Enquanto para Popper, Polanyi e Merton, a
defesa da autonomia foi accionada contra o poder político e a ideologia
totalitários - o que os levou a ver a coerência essencial entre
ciência, democracia e capitalismo -, nos nossos dias ela terá de ser
accionada contra a mercantilização da ciência e a conversão desta na
empresa-ciência e na tecnociência empresarializada.
No capítulo 17, Francisco Gutiérrez aborda dois temas que, apesar de
constitutivos da ciência moderna, têm vindo a assumir uma renovada
premência em face da crescente dissonância entre as brilhantes
promessas da ciência e a consciência cada vez mais aguda dos limites do
seu rigor. Os dois problemas são, precisamente, os limites da ciência e
da razão, em geral, e a questão de uma racionalidade mais ampla,
assente na bricolage de racionalidades e de
disciplinas científicas. No tratamento do primeiro tema, Gutiérrez
socorre-se de Pascal e da distinção por ele formulada entre limites
cognitivos e limites morais. Os primeiros dizem respeito à
impossibilidade de métodos irrefutáveis, enquanto os segundos têm a ver
com o que Pascal designa por "vaidade das ciências", a ideia de um
pensar refractário à experiência vital que não reconhece a validade dos
saberes centrados na prática e nos costumes. Os limites morais estão
relacionados com o tema, abordado em Um Discurso sobre as
Ciências, das relações entre ciência e senso comum e também
com o segundo tema tratado por Gutiérrez. Para Gutiérrez, se é verdade
que toda a ordem é vulnerável, não se pode deduzir dessa constatação a
renúncia à ordem. Toda a ordem sensata é bricolage,
e é nesta que Gutiérrez vê a superação da distinção entre ciências
naturais e ciências sociais, proposta prospectivamente em Um
Discurso sobre as Ciências. Gutiérrez dá três exemplos
recentes de bricolage: o estilo cognitivo da
mecânica quântica, a linguística e os autómatos celulares e programas
computacionais de Wolfram.
O capítulo 18, da autoria de Carlos Plastino, começa por salientar que
a proposta de Um Discurso sobre as Ciências é
menos uma crítica do essencialismo ou da teoria representacional da
verdade do que uma crítica da ciência enquanto única modalidade válida
de apreensão do real. A reivindicação da pluralidade de modalidades de
apreensão do real vai de par com a crítica do dualismo sujeito/objecto
impregnado na modernidade ocidental muito para além da ciência. Daqui
parte Plastino para propor que, aos quatro rombos por mim identificados
no paradigma clássico da ciência moderna - a teoria da relatividade, a
mecânica quântica, o teorema de Gödel e as estruturas dissipativas de
Prigogine -, deve acrescentar-se um quinto rombo: a psicanálise de
Freud. Freud confronta-se com uma variante do dualismo sujeito/objecto
especialmente insidiosa, o dualismo corpo/psiquismo, que reduz o corpo
à condição de máquina determinada e o psiquismo à consciência. Para o
superar, Freud propõe uma experiência de conhecimento que opera de
sujeito a sujeito, uma experiência de apreensão do embate dos corpos e
dos afectos. Plastino analisa os obstáculos à identificação da
psicanálise como um saber crítico do paradigma moderno, de algum modo
relacionados com a própria evolução do pensamento de Freud até à
valorização plena do inconsciente - ou seja, de experiências não
mediadas pela consciência e pela linguagem - e do psiquismo corporal
(unidade corpo/Id).
O texto centra-se então na construção do saber psicanalítico - e da
"descoberta" fundamental do inconsciente - enquanto meta-psicólogo
assente na intersecção de instrumentos teóricos e prática clínica. A
crescente relevância dada ao inconsciente vai de par com a contestação
do monopólio da consciência e da razão postulada pelo paradigma da
modernidade.
No capítulo 19, Hugo Zemelman questiona o dualismo sujeito/objecto a
partir de um ângulo diferente: a relação da exterioridade do sujeito de
conhecimento ao seu próprio conhecimento. A partir de onde conhecemos?
Para que conhecemos? O conhecimento enriquece-nos enquanto sujeitos?
Segundo Zemelman, estas questões são fundamentais e não podem ser
respondidas - e, aliás, nem sequer formuladas - enquanto o sujeito for
exterior ao seu conhecimento e utilizar os métodos e os dispositivos
lógico-epistemológicos para garantir essa exterioridade. Para isso,
Zemelman propõe uma outra atitude, não apenas epistemológica, mas
também existencial, que vincula o sujeito ao seu próprio conhecimento,
e não apenas por via das suas capacidades racionais, mas antes de todas
as suas faculdades. Propõe que a "hospitalidade" de Levinas seja
assumida como condição epistémica que permite ao sujeito colocar-se
perante as circunstâncias, abrir-se ao inédito e saber pensar a partir
do desconhecido. Só a incorporação do sujeito no conhecimento permite
dar conta da complexidade do real existencial e resistir contra a
dominação que se exerce através do conhecimento. O envolvimento torna
possível uma capacidade de espanto e de argumentação que não se deixa
enredar nos conhecimentos já codificados e permite situar o sujeito num
momento aberto a múltiplas opções de apropriação e de intervenção.
A Parte III, intitulada "Interrogações Complexas, Criativas e Situadas:
A Ciência em Acção", inclui os capítulos que incidem mais
especificamente sobre as práticas científicas, sobre os problemas
teóricos, metodológicos e epistemológicos que se levantam ou estão
presentes no dia a dia da actividade científica.
O capítulo 20 é de autoria de Hugh Lacey. Embora o livro de AMB seja
referido em vários capítulos, é neste capítulo que ele é mais
detalhadamente discutido. Este texto que, por esta razão, poderia ser
inserido na Parte I, é incluído aqui para salientar a sua reflexão
sobre as práticas científicas concretas. Reportando-se à questão
rousseauniana (há alguma relação entre a ciência e a virtude?),
mencionada em Um Discurso sobre as Ciências,
Lacey propõe-se responder a uma questão afim: como deve a ciência
proceder de modo a promover o bem-estar humano? Começa por
problematizar a relação entre ciência e valores e, para isso, distingue
entre imparcialidade, autonomia e neutralidade da ciência, e identifica
três momentos decisivos da actividade científica - o momento da
determinação das prioridades e da orientação da pesquisa e metodologias
apropriadas; o momento da avaliação das teorias ou hipóteses; e o
momento da aplicação do conhecimento científico - e avalia à luz deles
as teses de AMB sobre a relação entre ciência e valores. Apresenta um
modelo de actividade científica assente no conceito de estratégia,
através do qual se especificam as possibilidades que podem ser
exploradas no decurso de uma dada investigação. Distingue entre
estratégias materialistas e estratégias alternativas. As primeiras são
esmagadoramente dominantes pela sua identificação com valores
especificamente modernos, que privilegiam o controlo dos objectos
naturais. Daí que, na sua terminologia, a imparcialidade não implique
neutralidade. Termina com uma avaliação crítica de Um
Discurso sobre as Ciências, apresentando um conjunto de
teses sobre as relações entre ciências sociais e ciências naturais.
O capítulo 21 é de autoria de Miguel Ramalho Santos. O autor dá conta
da sua investigação sobre as células estaminais (células
indiferenciadas que têm capacidade de se auto-renovarem e de darem
origem a células especializadas), geralmente considerada uma área de
investigação de grande potencial pelos contributos revolucionários que
pode trazer para a medicina e especificamente para as terapias de
substituição e para os transplantes. Miguel Ramalho Santos apresenta
neste texto o quadro teórico da sua investigação, em que são utilizados
dois dos conceitos discutidos em Um Discurso sobre as
Ciências, o conceito de autopoiese e o conceito de
complementaridade. Partindo dos trabalhos de Humberto Maturana e
Francisco Varela, o autor distingue entre sistemas autopoiéticos de
primeira ordem e de segunda ordem, e mostra que as células estaminais
desempenham um papel essencial entre a autopoiese de primeira ordem e a
de segunda ordem. Mostra também as vantagens da concepção das células
estaminais em termos de autopoiese em relação a outras concepções
alternativas, como o conceito de homeostase. No entanto, é a mesma
investigação sobre as células estaminais que leva o autor a criticar o
fechamento organizacional e a estrutura determinista da teoria de
autopoiese de Maturana e Varela, propondo, em alternativa, uma teoria
de sistemas autopoieticos sem fronteiras absolutas e com alguma
abertura organizacional que dê conta do facto de a maioria das unidades
individuais na biologia, se não todas, terem fronteiras que não podem
ser totalmente definidas. Miguel Ramalho-Santos considera igualmente
frutífera a importação para a biologia do conceito de complementaridade
da física quântica por permitir uma compreensão mais aprofundada do
comportamento probabilístico das células estaminais.
O capítulo 22 é de autoria de Olival Freire Júnior. As ideias do físico
Eugene Wigner sobre o processo de medição em física quântica,
mencionadas em Um Discurso sobre as Ciências e
criticadas por AMB, são o tema central deste capítulo. Olival Freire,
profundo conhecedor das posições de Wigner e da controvérsia que elas
geraram, pretende, com a sua análise, contribuir para uma imagem
realista da ciência, uma imagem que, em seu entender, permita um melhor
relacionamento entre a ciência e a sociedade e constitua um antídoto
contra as tendências irracionalistas. O autor percorre em detalhe a
controvérsia que opôs Wigner à interpretação da complementaridade
defendida pela Escola de Copenhaga e o modo como ele e os que o
acompanhavam quebraram um consenso que parecia indestrutível. A tese
principal de Olival Freire é que, apesar de as conjecturas de Wigner
sobre o papel da consciência nos fenómenos físicos não se terem
revelado frutíferas e terem sido abandonadas - e serem hoje, por isso,
parte da história da física e não da física -, o facto é que, ao
formulá-las contra a "monocracia de Copenhaga" sobre a
complementaridade, Wigner abriu uma importante problemática teórica,
experimental e filosófica, com repercussões significativas nas últimas
décadas. Não reconhecer isto e julgar Wigner pelo que sabemos hoje, mas
não se sabia ao tempo em que ele formulou as suas ideias, significa
incorrer no erro de anacronismo, um erro que Olival Freire atribui a
AMB. Daí a importância da história da ciência para, contra o
anacronismo, fundar uma compreensão ampla da ciência em que caiba a
cientificidade da própria história.
O capítulo 23 é de autoria de Samuel MacDowell. Muitas das ideias e
argumentos de Um Discurso sobre as Ciências foram
pela primeira vez "testadas" em longas conversas com Samuel MacDowell,
físico teórico da Universidade de Yale, entre 1970-1973, quando
preparava o meu doutoramento naquela universidade. As nossas
cumplicidades políticas e ideológicas cruzavam-se de modo complexo com
as nossas diferentes formações científicas e, ao fim de debates vivos e
inesquecíveis, resultavam em convergências e divergências
teórico-epistemológicas intensas e vincadas. Essa intensidade e esse
vinco transparecem de modo sintético e cristalino neste capítulo.
MacDowell concorda com a minha crítica ao determinismo mecanicista e
com o meu propósito de ver superada a separação entre "as duas
culturas". Discorda, no entanto, de que seja possível uma síntese entre
as ciências naturais e as ciências sociais. Discorda também do meu
questionamento da causalidade e da interpretação que faço do teorema de
Gödel. Termina mencionando um tema não abordado por mim e que, em seu
entender, é fundamental: a questão da determinação dos sistemas
inerciais em relação aos quais as leis de movimento se aplicam.
O capítulo 24 é de autoria de João Ramalho Santos, e, tal como o
capítulo anterior, adopta a perspectiva da ciência como se faz na
prática e enquanto se faz, para captar os complexos processos de
criação científica e as controvérsias que gera. As problemáticas
discutidas neste capítulo mostram bem como e por quê a biologia
(sobretudo a biologia da reprodução e do desenvolvimento) tem vindo a
assumir, desde a década de 1990, o lugar de destaque nos debates
epistemológicos e sociológicos sobre a ciência que, nas décadas
anteriores, fora ocupado pela física. Começa com uma narrativa da
reprodução, das suas peripécias, das suas dificuldades e das muitas
técnicas de reprodução assistida desenvolvidas para as superar. A
polémica causada por estas técnicas é depois analisada, conjuntamente
com outras polémicas noutras áreas científicas, com base na tese
central do autor de que a reconstrução das transformações científicas e
das controvérsias que suscitam deve incidir sobre o momento em que
tiveram lugar e à luz dos dados que, à altura, estavam disponíveis.
Analisá-los à luz dos resultados a que conduziram ou do modo como, a
longo prazo, os mecanismos de validação científica funcionaram elimina
a complexidade dos processos de criação científica e é pouco útil para
os cientistas, já que estes vivem e trabalham hoje, com os dados e
técnicas hoje disponíveis e sempre na fronteira entre o que hoje é
conhecido e desconhecido. Tal como Olival Freire, João Ramalho Santos
adverte contra o erro do anacronismo e sugere que, se tal advertência
for tomada em conta, será possível manter controvérsias para além das
guerras da ciência que sejam verdadeiramente enriquecedoras para os
cientistas e para os cidadãos em geral.
O capítulo 25 é de autoria de Peter Taylor. Taylor relata a sua
trajectória intelectual desde os anos 1970, altura em que decidiu
dedicar-se à ecologia enquanto ciência. Ao longo do texto mostra como
foi desenvolvendo uma consciência crítica e uma atitude reflexiva sobre
os conceitos e modelos utilizados na sua disciplina científica para
definir os sistemas ecológicos e as suas transformações. Central nesse
desenvolvimento foi a ideia da complexidade desses sistemas e a
consequente dificuldade ou mesmo impossibilidade em estabelecer
fronteiras bem definidas entre os factores considerados relevantes para
a definição dos sistemas e os processos subjacentes. Simultaneamente,
reflectindo sobre os desenvolvimentos da ecologia e sobre a sua própria
prática científica, chegou à conclusão de que havia uma tensão (não
necessariamente negativa) entre a pretensão da auto-referencialidade da
ciência e o impacto das condições de investigação e das preocupações
sociais dos cientistas no conteúdo do conhecimento científico (aquilo a
que chama a socialidade da ciência). Paulatinamente, dá-se conta de que
tal socialidade pode transformar-se num recurso para a conquista de
novos conhecimentos, designando esse processo de construção
heterogénea. Apercebeu-se, assim, dos processos intersectantes e
complexos presentes nas dinâmicas ambientais, difíceis de investigar (e
mais ainda de comunicar) e insusceptíveis de ser captados numa teoria
geral. Conclui referindo como chegou à ideia do "planeamento
participativo" e do "envolvimento flexível" do cientista a partir da
identificação do tipo de reflexão que leva o cientista a modificar
(reflexivamente) os sistemas ecológicos sobre os quais produz
conhecimento.
O capítulo 26 é de autoria de Maria da Conceição Ruivo. O tema central
deste capítulo é a questão da linguagem na produção e na comunicação da
ciência e nos debates sobre a ciência. Segundo a autora, muitas das
polémicas a respeito da ciência são causadas pelo desconhecimento mútuo
das linguagens usadas. Trata-se de um problema complexo, porque a
linguagem com que se faz a ciência é ela própria também um elemento da
própria produção científica, e a linguagem com que se fala da ciência é
uma nova linguagem. O reconhecimento desta complexidade leva a autora a
defender uma atitude de tolerância e de respeito mútuo que permita a
partilha de pontos de vista por parte de cientistas de diferentes
áreas, sem pretensões de monopólio. Através de exemplos da mecânica
clássica, da teoria da relatividade e da mecânica quântica, Conceição
Ruivo ilustra as dificuldades na comunicação do saber científico.
Acresce que os resultados científicos raramente são comunicados de
maneira que se faça justiça aos complexos processos de criação
científica. Para a autora, a criação não se faz segundo um manual de
instruções, e os modelos, as metáforas, os saberes de outros campos e o
próprio senso comum estão entre os meios de que a criação científica
vorazmente se alimenta. A terminar, a autora questiona o modo como em Um
Discurso sobre as Ciências e na Introdução a uma
Ciência Pós-moderna é imaginado o paradigma emergente.
O capítulo 27, da autoria de José Mariano Gago, aborda um tema
escassamente tratado: a teoria da apropriação social da ciência e da
cultura científica em situações museológicas, de exposição ou, em
geral, educativas. A tese central é que o museu ou a exposição
científica, longe de serem a mera apresentação ao público de processos
acabados ou da materialidade inerte dos instrumentos científicos,
envolvem um trabalho científico próprio e uma reflexão complexa,
orientados para o que está envolvido na passagem de situações
experimentais técnico-profissionais a situações museológicas,
expositivas e educativas. Tal passagem, para ter êxito e ser um factor
de apropriação social da ciência, pressupõe um projecto de museu que
tematize o potencial de interactividade, a relação entre cientistas, o
público e até outros actores relevantes (como, por exemplo, astrónomos
amadores) e a criação de espaços de diálogo e de comunicação
incorporados na própria concepção e execução dos módulos expositivos.
Ao contrário do que frequentemente se crê, Mariano Gago acha possível
conceber com êxito a passagem de situações profissionais para ambientes
expositivos orientados para o grande público, nomeadamente através de
instalações materiais do pensamento científico em acção abertas à
manipulação e à observação sensorial e activa dos utilizadores. As
dificuldades em promover tal modelo de proximidade derivam de um modelo
retórico de ensino das ciências de que está excluída a apropriação da
cultura científica por aqueles que não são cientistas.
A Parte IV, intitulada "Injustiça Cognitiva Global: Para Reconstruir os
Conhecimentos e o Mundo", reúne os capítulos em que as relações entre a
ciência e a sociedade são o tema central da reflexão. Este tema
desdobra-se convencionalmente em dois subtemas: a impregnação social e
cultural da ciência, uma actividade específica mas não menos social por
isso, e a transformação social e cultural produzida pela ciência (a
questão do impacto), enquanto sistema de conhecimentos que veicula uma
visão do mundo e da sociedade e enquanto aplicação tecnológica desses
conhecimentos. Na última década, a estes dois subtemas juntou-se, com
crescente premência, um terceiro subtema: o reconhecimento de outros
conhecimentos geralmente designados de não científicos, alternativos à
ciência, e as relações entre esses conhecimentos e a ciência. Este tema
tem vindo a adquirir particular acuidade nos domínios da biodiversidade
e do regime dos direitos de propriedade intelectual saído do Uruguay
Round do GATT. As discussões no âmbito deste tema têm vindo
a mostrar que as hierarquias entre conhecimentos são simultaneamente
produtos e produtoras de hierarquias sociais e, portanto, das
desigualdades que ocorrem de par com elas. A injustiça social traduz-se
frequentemente em injustiça cognitiva. Esta injustiça ocorre no
interior das sociedades e nas relações entre elas (as relações
Norte/Sul, entre o centro e a periferia do sistema mundial).
O capítulo 28 é da autoria de Francisco Louçã. Este texto poderia ter
sido incluído na parte anterior, sobre os temas da ciência em acção.
Incluo-o, contudo, nesta parte para salientar a reconstrução da teoria
crítica na economia, proposta pelo autor, com o objectivo de restituir
à ciência económica a vinculação aos objectivos da transformação social
progressista que teve anteriormente, mas que, entretanto,
"misteriosamente" perdeu. Francisco Louçã faz uma eloquente análise da
evolução da ciência económica nos últimos cem anos e mostra como o
objectivo de melhoria da sociedade (combate ao desemprego, à recessão e
à desigualdade), partilhado por muitos dos economistas que
protagonizaram as transformações teóricas e metodológicas mais
importantes, acabou por ser boicotado ou neutralizado pelos
pressupostos de que partiam, pelo modo como cederam à ortodoxia
dominante para maximizar a sua capacidade de influenciar as decisões
políticas. Foram objectivos sociais que levaram à adopção na economia
dos princípios da física e, com isso, à naturalização e à matematização
da economia. Esta naturalização acabou, no entanto, por não acompanhar
as transformações entretanto ocorridas nas ciências naturais.
O autor analisa as sucessivas gerações de economia matemática e as
trajectórias que as levaram à abdicação crítica, mesmo quando os
desígnios dos seus cultores iam em sentido contrário. Segundo o autor,
dado que a crise deste paradigma é evidente, é necessário que a
economia recupere a sua vocação da ciência social crítica e se proponha
conhecer a realidade e não as abstracções em que se transformaram, para
os neo-clássicos, os agentes e o mercado.
O capítulo 29 é da autoria de Arturo Escobar. O autor começa por
avaliar as tendências analisadas e as teses propostas em Um
Discurso sobre as Ciências à luz dos desenvolvimentos
epistemológicos e políticos das duas últimas décadas, considerando que,
em larga medida, foram confirmadas. Ressalva o caso das relações entre
as ciências sociais e as ciências naturais, em que hoje identifica o
recuo das primeiras ante a investida das segundas, ao contrário do que
se previa em Um Discurso sobre as Ciências.
Centra-se na primeira e na quarta tese caracterizadoras do paradigma
emergente ("todo o conhecimento científico-natural é científico-social"
e "todo o conhecimento científico visa constituir-se em senso comum"),
analisando, à luz delas, a produção de conhecimento levada a cabo pelos
movimentos sociais que na última década têm vindo a confrontar a
globalização neoliberal e a contrapor-lhe a ideia de uma globalização
alternativa, solidária. Recorre às teorias da complexidade e da
auto-organização, desenvolvidas na biologia, para caracterizar estes
movimentos, que concebe como organizações horizontais estruturadas em
redes cuja malha se constrói com elementos (lutas e locais)
heterogéneos e se adensa em direcções imprevistas em função das
interacções que abrange e dos catalisadores que nela interferem. Os
movimentos são produtores de conhecimento e, de facto, de um novo senso
comum, cujo impacto epistemológico na transição paradigmática deve ser
reconhecido.
Escobar ilustra a sua tese com o movimento social das comunidades
negras do Pacífico colombiano que, desde a década de 1990, têm vindo a
produzir um conhecimento ecológico e cultural autónomo a partir da
ideia da região-território concebida como construção política e
cultural capaz de sustentar uma defesa eficaz dos recursos naturais, da
biodiversidade. Tal conhecimento é, em última análise, um novo senso
comum construído a partir das necessidades práticas do movimento.
O capítulo 30, de Walter Mignolo, trata da injustiça cognitiva global
produzida desde o século XVII pela ciência moderna ocidental, concebida
como uma constelação epistémica e política constituída pela modernidade
e pela colonialidade do poder. Propõe uma nova concepção de modernidade
enquanto lado visível de um processo histórico que não pode ser
compreendido sem o seu outro lado, até há pouco invisível, a diferença
colonial enquanto diferença de poder que é também uma diferença
epistémica e ontológica. Esta concepção leva Mignolo a concluir que a
revolução científica do século XVII é menos uma ruptura do que uma
continuidade com a teologia do século anterior, na medida em que o
desconhecimento ou a marginalização de outras formas do conhecimento à
escala do planeta é comum a ambos os paradigmas. Segundo ele, é a
partir da diferença colonial que se deve criticar e superar a
modernidade, e não o inverso. Nela reside a base do duplo discurso da
modernidade, proclamando simultaneamente o avanço da humanidade e a sua
subjugação. Mignolo concorda com a minha caracterização do paradigma
emergente enquanto "conhecimento prudente para uma vida decente", mas
entende que o seu horizonte não é a pós-modernidade, mas sim a
transmodernidade (Enrique Dussel), a passagem da uni-versalidade para a
pluri-versidade do conhecimento e da compreensão. A concluir, analisa o
contributo dado a esse novo paradigma pelas "epistemologias feministas"
e pelas "epistemologias etno-raciais" a partir da década de 1970.
O capítulo 31 é de autoria de Orlando Fals Borda e Luis E. Mora-Osejo.
No conjunto dos contributos que integram este livro, este tem a
especificidade de ser de co-autoria entre um cientista social e um
cientista natural e de assumir a forma de manifesto. Fals Borda é
internacionalmente conhecido pela metodologia que desenvolveu, a
investigação-acção participativa, para superar as dicotomias
discriminatórias que, em seu entender, caracterizam a ciência
eurocêntrica, entre o saber científico e o saber popular e entre o
cientista e o político. Neste manifesto, os autores partem da ideia de
que todo o conhecimento é contextual e de que, portanto, a ciência
moderna - tão social como natural -, tendo sido desenvolvida nos países
da Europa e do Atlântico Norte, reflecte as realidades destes regiões
do mundo e o modo como elas se relacionam com as outras regiões. A
ciência eurocêntrica produz assim um efeito duplamente negativo nestas
últimas regiões: reforça a hierarquia entre países desenvolvidos e
países menos desenvolvidos e as relações de colonialismo interno e
impede a construção de um conhecimento científico ancorado nas
realidades dessas regiões. Para caracterizar as diferenças geográficas,
históricas e culturais entre as várias regiões do mundo, os autores
recorrem à distinção geo-climática entre zonas tropicais e zonas
temperadas. A ciência moderna, criada nestas últimas regiões,
desconhece a complexidade e a fragilidade das regiões tropicais, os
seus ecossistemas, a sua riquíssima biodiversidade, as suas comunidades
pluriétnicas e multiculturais como formas muito próprias de
relacionamento entre natureza e cultura. Sem negar a importância desta
ciência, propõem o desenvolvimento de uma ciência contextualizada, um
paradigma científico endógeno, uma soma de saberes que valorize os
conhecimentos populares e permita fundar o desenvolvimento sustentável
das regiões tropicais. Só assim será possível superar a injustiça
cognitiva global e fundar novas e equitativas alianças entre cientistas
do Norte e cientistas do Sul.
O capítulo 32 é de autoria de Maria Paula Meneses. O tema central deste
capítulo, tal como nos anteriores, é a injustiça cognitiva global
assente na hierarquia entre ciência moderna e conhecimentos locais e
nas que se articulam com ela, a hierarquia entre o Norte e o Sul, entre
desenvolvido e subdesenvolvido, entre doador e recipiente da
filantropia internacional. Tal como em Mignolo, a origem destas
hierarquias está na colonialidade de poder, mas esta é agora analisada
no contexto africano e, especificamente, moçambicano. Usando como
exemplos a medicina e a biologia, Paula Meneses mostra como a ciência
moderna impõe padrões eurocêntricos (de saúde, por exemplo), de que
decorre a equivalência entre a distinção tradicional/moderno e a
distinção selvagem/civilizado. A colonialidade do saber científico
consiste em conceber o Norte como tendo conhecimento e soluções e o Sul
como tendo informações e problemas. Esta colonialidade do saber acaba
por infiltrar-se nas elites moçambicanas, sendo exemplo disso a
proposta de lei de ciência e tecnologia apresentada pelo Governo
Moçambicano. Paula Meneses ilustra os seus argumentos com as
consultorias, que considera serem um caso extremo de conhecimento
descontextualizado que ignora ou exotiza as práticas e os saberes
locais. O capítulo assume então um carácter auto-reflexivo, em que a
autora identifica os dilemas que ela própria enfrentou enquanto
consultora. Termina o capítulo defendendo a ideia da pluralidade de
saberes assente na multi-situacionalidade da sua criação.
O capítulo 33, de Shiv Visvanathan, retoma o tema da injustiça
cognitiva global e, tal como Paula Meneses, aborda-o através do impacto
nos países do Sul, neste caso a Índia, da ciência hegemónica e do
conhecimento descontextualizado em que ela se traduz. Para Visvanathan,
as guerras da ciência nos países do Norte têm um carácter lúdico
porque, apesar de tudo, ocorrem entre cientistas e filósofos. Há, no
entanto, uma outra guerra das ciências bem mais destrutiva, a que
respeita às relações entre ciência e desenvolvimento, porque nesta
guerra as opções epistemológicas determinam as oportunidades de vida
que são dadas ou recusadas a vastas populações do mundo. Dando como
exemplo a Índia, Visvanathan mostra o grau de destruição social que
pode resultar de concepções da ciência que não respeitam os saberes das
populações, as suas memórias e aspirações, os seus espaços e os seus
tempos, e, sobretudo, os seus direitos à voz e à participação
democrática. Analisa a seguir alguns dos movimentos em prol da ciência
que se constituíram para promover concepções alternativas de ciência,
epistemologias contextualizadas assentes num entendimento profundo da
ideia de democratização do conhecimento científico. Segundo
Visvanathan, a experiência destes movimentos mostra que o
reconhecimento epistémico dos conhecimentos não científicos (por
exemplo, o conhecimento dos camponeses, tão útil hoje para a
biotecnologia) não deve ser interpretado como uma atitude anticiência.
É antes um contributo para pluralizar e diversificar as nossas
concepções de saber e de ciência.
O capítulo 34 é da minha autoria. As minhas reflexões epistemológicas -
tanto em Um Discurso sobre as Ciências como em
trabalhos posteriores (1989; 1995; 2000) - tiveram sempre origem na
necessidade de resolver problemas novos e muito concretos com que a
investigação empírica frequentemente me surpreendeu e confrontou. Desde
logo, no primeiro trabalho de campo de envergadura numa favela do Rio
de Janeiro em 1970, cujos resultados constituíram a minha tese de
doutoramento (Yale, 1973), confrontei-me com um direito não oficial e
um conhecimento jurídico popular riquíssimos que, embora importantes
para vastas camadas populares, eram totalmente ignorados pelo direito
oficial e pela ciência jurídica ensinada nas Faculdades de Direito.
Conceber como direito e conhecimento jurídico os discursos e as
práticas de resolução de litígios que circulavam no interior da favela
não era apenas um problema teórico e analítico. Era também um problema
epistemológico: qual a verdade ou validade do conhecimento
jus-científico oficial que concebe como não-direito ou ignorância do
direito o que "vale" para vastos sectores das classes populares como
outro direito ou conhecimento jurídico alternativo? Foi a partir deste
questionamento que formulei a teoria do pluralismo jurídico nas
sociedades contemporâneas e não apenas nas sociedades "primitivas",
"simples" ou "tribais" como era então defendido pela antropologia
jurídica dominante (Santos, 1974, 1977).
Vindo da ciência jurídica e da filosofia do direito - a primeira,
sufocantemente analítico-positivista, a segunda, tentando ultrapassar
com excessivo idealismo a ressaca do nazismo - entrei na sociologia num
período (início da década de 1970) de grande convulsão teórica (a
crítica do funcionalismo parsoniano), metodológica (crítica do
naturalismo quantitativista próprio da administrative
research) e política (a devolução do conhecimento
sociológico aos "objectos" em nome da necessidade de responder à
questão: "de que lado estamos?"). O pluralismo teórico, metodológico e
político - celebrados como sinal de pujança em vez de estigmatizados
como sinal de fraqueza própria das ciências pré-paradigmáticas, como
pretendia Thomas Kuhn - criava as condições para questionamentos
epistemológicos mais profundos sobre a política da neutralidade
científica, sobre os limites da validade do conhecimento científico e,
acima de tudo, sobre as relações entre este e outros conhecimentos,
nomeadamente os dos nossos "objectos", homens e mulheres comuns que, em
contextos de entrevista, inquérito, painel ou observação participante,
nos transmitiam opiniões, saberes, sabedorias - por vezes tão
impressionantes quanto consideradas irrelevantes para a nossa
investigação - que as regras do jogo metodológico reduziam à rasa
condição de matéria-prima para generalizações relativamente triviais.
A turbulência mas também a ductilidade teórico-epistemológica das
ciências sociais neste período instigaram-me a curiosidade de conhecer
o estado dos debates epistemológicos noutras ciências. Estaria nelas
tão entrincheirado o positivismo, em suas múltiplas incarnações, quanto
o observava, nos anos 1960, na ciência jurídica, sobretudo de origem
alemã, apenas matizado pela reemergência da retórica jurídica? O
resultado das minhas investigações de vários anos neste domínio foi
inequívoco: o debate epistemológico estava instalado no âmago da
ciência e mesmo na rainha das ciências dos anos 1970, a física. A
sociologia que, ao contrário do que queria Augusto Comte, deixara de
ter a pretensão de ser o cume da pirâmide da ciência, era apenas um
campo mais convulso e aberto onde se manifestavam com mais estridência
movimentos tectónicos profundos que abalavam a auto-consciência
epistemológica da ciência no seu todo. Daí que os sinais tanto pudessem
ser lidos como sintomas de um presente desafecto do seu passado quanto
como pistas de um futuro que se concebia laboriosamente. Foi esta a
minha tese central em Um Discurso sobre as Ciências.
Os anos que se seguiram mostraram-me que os sinais eram talvez mais
ambíguos do que o que eu supunha em meados da década de 1980, e que os
movimentos de que eles davam notícia tanto podiam conduzir a
promissoras inovações como a perversões desarmantes, tal como é
argutamente referido em alguns dos capítulos anteriores. Dois
movimentos ou impulsos se salientaram no decorrer dos anos seguintes, e
tudo contribuiu para que a tensão entre eles se fosse adensando. Por um
lado, o extraordinário desenvolvimento científico-tecnológico - se em
extensão ou profundidade, é ponto de debate - fez com que a ciência no
seu conjunto se transformasse numa força produtiva de primeira ordem,
tal como a força muscular e as máquinas o tinham sido em épocas
anteriores. A sociedade de conhecimento que daí emergiu é uma sociedade
de conhecimento científico-tecnológico (a tecnociência) cada vez mais
vinculada à produção e, portanto, à lógica da produção, isto é, à
lógica da competição e do mercado. Esta vinculação aprofundou-se com o
modelo de capitalismo neoliberal que veio a dominar nas três últimas
décadas.
Sob a forma do Consenso de Washington, tal modelo passou a constituir o
núcleo duro de um projecto político global que consistiu (e consiste)
em submeter às leis e à lógica do mercado um conjunto cada vez mais
amplo de interacções de modo a que se passe aceleradamente e a nível
global da economia de mercado para a sociedade de mercado. Subjacentes
a tal projecto estão os seguintes princípios: os valores que contam são
redutíveis a preços; todas as prestações de serviços são privatizáveis;
a competição tem prioridade total sobre a cooperação em todas as
interacções sociais; as condições de competitividade determinam o lugar
que pode ser socialmente concedido às condições de outros critérios de
sociabilidade; a previsibilidade dos nexos causais entre acções e as
suas consequências é o factor principal de estabilidade
independentemente da substância de umas e outras; a inovação e a
criatividade - duas condições essenciais da competitividade - exigem a
fragmentação das competências, a individualização dos contratos de
trabalho (flexibilização para empresários, precarização para os
trabalhadores), a prioridade total do curto-prazo nos planos de vida
dos produtores; a inovação e a criatividade estão sujeitas à constante
avaliação dos resultados e esta é dominada por critérios de
rentabilidade; o mercado é a melhor (ou mesmo única) garantia de
eficiência e de previsibilidade, inovação, criatividade, fragmentação e
rentabilidade.
Acontece que estes princípios, por dominarem a sociedade de
conhecimento, acabaram por ter impacto também na actividade de criação
de conhecimento, a ciência. E o positivismo ganhou novo fôlego pelas
"afinidades electivas" que revelou com a sociedade de mercado em
construção: a predilecção pela abstracção lógico-numérica levada ao
extremo pela informatização do saber; acento tónico nos nexos causais e
na previsibilidade em detrimento da busca de sentido e da complexidade;
concepção estreita de autonomia da ciência confinada aos protocolos de
investigação; crença na neutralidade do saber científico e, portanto,
na sua disponibilidade para ser apropriado segundo a lógica do mercado
das aplicações tecnológicas. Tornou-se claro que a confiança
epistemológica da ciência era uma condição essencial da sua
competitividade no mercado e isso contribuiu, não só para desencorajar
os debates epistemológicos como para ver uma ameaça em todo o
questionamento das verdades "simples e claras" da ciência.
O outro movimento ou impulso nas três últimas décadas esteve
relacionado com o anterior, mas desenvolveu-se em tensão com ele.
Tratou-se do enorme desenvolvimento dos estudos sociais e culturais da
ciência, motivado em grande medida pelas transformações operadas na
produção prática da ciência em resultado da transformação desta na mais
importante força produtiva da economia e da sociedade de conhecimento.
Estes estudos, ainda que, em geral, não interessados em debates
epistemológicos, vieram mostrar que as novas condições de produção
científica impunham que tal debate ocorresse e se aprofundasse. Estavam
em causa a multiplicidade e a falibilidade das condições (por exemplo,
laboratoriais) que entretanto conduziam a verdades científicas sem
condições; a mistura de conhecimentos científicos com outros
conhecimentos a partir da qual se construíam novos conhecimentos
"puramente" científicos; a inserção da prática e da institucionalidade
científicas em contextos económicos e políticos suficientemente
poderosos para ser pelo menos de questionar se a autonomia da ciência
lhes sobreviveria com êxito; os fracassos da previsibilidade quase
sempre disfarçados através de formulações vagas ou de promessas de
trabalho futuro, muitas vezes esquecidas posteriormente; o aumento
alarmante de práticas científicas fraudulentas ou quase-fraudulentas,
susceptível de questionar a força da ética científica ante as pressões
da competição e do mercado; as lógicas bem pouco científicas da
definição das prioridades de investigação científica e, portanto, do
financiamento público e privado da ciência.
À luz do que estava em causa, não admira que entre o primeiro movimento
ou impulso e o segundo se viesse a acumular uma tensão crescente, a
qual acabou por explodir no último episódio das guerras da ciência,
simbolizado pelo caso Sokal. Entretanto, em
conjunção com estes movimentos, outros ocorreram nas ciências sociais
que mais me confirmaram a ambiguidade dos sinais que eu identificara em
meados da década de 1980. De facto, foi crescendo em mim a convicção de
que as ciências sociais tanto eram parte da solução como do problema
que eu identificara. Efectivamente, a vertigem neoliberal teve um
impacto avassalador nas ciências sociais, nomeadamente na economia e na
sociologia. O objectivo de assegurar a transição acelerada e a nível
global da economia de mercado para a sociedade de mercado criou uma
enorme pressão - ampla no seu âmbito e intensa no seu ritmo - para a
produção de conhecimentos-receita, capazes de reduzir a grande
complexidade das interacções sociais a indicadores quantificáveis de
factores susceptíveis de serem controlados e manipulados pela nova
engenharia institucional global (os novos papéis do Banco Mundial e do
Fundo Monetário Internacional, a Organização Mundial do Comércio, as
integrações regionais como a União Europeia ou o NAFTA). Por sua vez, o
aprofundamento da sociedade de consumo e a mediatização da política
deram um impulso sem precedentes à administrative research ligada à
gestão das instituições públicas, à prospecção de mercado, às sondagens
e à opinião pública.
O fim da Guerra Fria abriu o caminho para a despolitização das relações
Norte/Sul, ou seja, para a ideia de que as hierarquias do sistema
mundial não estavam sujeitas a controlo político e eram, pelo
contrário, produto dos imperativos da economia global. Tais
imperativos, porque impostos a realidades social, política e
culturalmente muito distintas, criaram a necessidade de um
conhecimento-receita, totalmente descontextualizado e legitimado em sua
descontextualização pelos objectivos de integração na globalização
neoliberal. As ciências sociais foram chamadas a produzir maciçamente
tal conhecimento, o que produziu nelas um duplo efeito. Por um lado, os
cientistas sociais dos países do Sul, o chamado Terceiro Mundo, foram
forçados a substituir as hipóteses de trabalho com que até então tinham
orientado a sua investigação pelos termos de referência da investigação
encomendada pelas agências financeiras multilaterais e pelas agências
públicas ou privadas de ajuda ao desenvolvimento sedeadas nos países do
Norte. Tal substituição aprofundou a hierarquia nas relações
científicas Norte/Sul, produzindo a proletarização dos cientistas
sociais dos países periféricos, ora redigindo relatórios de
consultoria, formatados nos países centrais, ora realizando
investigação em cuja concepção, planeamento e construção teórica e
metodológica não tiveram qualquer participação (ver o capítulo de Maria
Paula Meneses neste livro). O segundo efeito, igualmente devastador, da
descontextualização operada pelo conhecimento-receita foi a ocultação,
marginalização ou descredibilização, não só de toda a realidade social
insusceptível de ser captada pelos estreitos parâmetros desse
conhecimento e, por isso, considerada irrelevante, como de todos os
outros conhecimentos produzidos localmente a respeito dela. A
epistemologia da cegueira, própria da ciência moderna, manifestou-se
assim sob uma forma particularmente virulenta de arrogância cognitiva.
Com alguma perplexidade, verifiquei, no entanto, que, apesar do impacto
brutal do conhecimento-receita e da epistemologia que o sustenta
(realismo ingénuo e positivismo) nos países periféricos e
semiperiféricos do sistema mundial, era precisamente nestes países que,
não obstante todas as condições desfavoráveis, se vinha produzindo
conhecimento científico inovador, tanto a nível teórico como a nível
metodológico, ainda que desconhecido ou pouco conhecido nos centros
hegemónicos de produção de ciência. Nestes países, as ciências sociais
tinham-se desenvolvido em contextos sociais, culturais, políticos e
institucionais muito distintos dos que prevaleceram nos países
centrais. A extensão e a tipologia das desigualdades sociais, fundando
imperativos de intervenção e de investigação-acção, a presença de
culturas não-ocidentais hostis aos pressupostos culturais da ciência
moderna, os longos períodos de violência política e de ditadura,
obrigando a produzir ciência em condições de quase clandestinidade, os
níveis mais baixos de especialização disciplinar quando comparados com
os da ciência central, o escasso ou nulo apoio do Estado à produção
científica - tudo isto contribuíra para a emergência de formações e
tradições científicas com alguma especificidade, sempre desvalorizada
pela ciência central em tudo o que se desviasse das normas por esta
impostas.
No entanto, à medida que se aprofundava o debate epistemológico nos
países centrais, tornava-se possível questionar essa desvalorização e
averiguar em que medida ela era menos o produto da aplicação de
critérios imparciais ou um mero efeito da arrogância epistemológica. Os
países periféricos e semiperiféricos - muitos deles marcados pelo
passado colonial e pelas relações de dependência externa e de
colonialismo interno que se seguiram ao fim do colonialismo - viveram
intensamente as consequências negativas da globalização neoliberal para
o bem-estar das populações e para a sustentabilidade das suas culturas
e dos seus modos de vida. A intensidade do conflito Norte/Sul nestes
países e a resistência às novas (e velhas) formas de exclusão social,
apesar de invisíveis a partir do centro do sistema mundial, tornaram-se
temas de investigação e de intervenção dos cientistas sociais dos
países periféricos e semiperiféricos e abriram horizontes para
insuspeitados questionamentos metodológicos, teóricos e mesmo
epistemológicos.
Atento a estes desenvolvimentos e cada vez mais interessado em elaborar
uma epistemologia crítica a partir das ciências sociais, decidi
inverter a trajectória de abordagem às questões epistemológicas.
Enquanto no início da minha carreira científica, como referi acima, a
reflexão epistemológica resultara da surpresa causada pelas inovações
metodológicas a que fora forçado e pelos resultados dos projectos de
investigação em que me envolvera, propus-me em 1998 realizar um
projecto internacional em que a temática, a metodologia e a organização
da investigação foram escolhidas em função das minhas inquietações
epistemológicas e de modo a, se não apaziguá-las, pelo menos
esclarecê-las. O projecto, intitulado "A Reinvenção da Emancipação
Social", foi realizado entre 1999 e 2001 e envolveu sessenta e nove
cientistas sociais de seis países: África do Sul, Brasil, Colômbia,
Índia, Moçambique e Portugal. A escolha dos países foi decidida em
função de dois critérios. O primeiro foi o de não serem países
centrais, ou seja, de serem países onde a ciência, em geral, e as
ciências sociais, em particular, tinham tido trajectórias e tipos de
desenvolvimento diferentes dos que tinham vigorado nos países centrais.
A minha hipótese de trabalho foi que no "desvio" de tais trajectórias e
tipos de desenvolvimento em relação ao padrão hegemónico poderia estar
a chave para entender a falta de criatividade teórica e analítica das
ciências sociais nos países centrais em finais do século XX. O segundo
critério foi o de serem países em que o conflito Norte/Sul e a
consequente resistência à globalização neoliberal fossem mais intensos.
Daí a escolha de países semiperiféricos e periféricos. Os temas foram
escolhidos em função da sua capacidade para revelar a complexidade do
conflito Norte/Sul e as alternativas concretas aos imperativos da
globalização hegemónica protagonizadas por grupos e movimentos sociais
concretos. O projecto foi estruturado com a máxima abertura teórica e
metodológica. O quadro teórico não foi além de algumas hipóteses de
trabalho muito gerais e as metodologias escolhidas foram muito
variadas. O objectivo foi exactamente criar condições para que
florescesse o pluralismo teórico e metodológico, nos antípodas, pois,
dos termos de referência da consultoria, da administrative
research e do conhecimento-receita. Procurei, ainda, que a
organização desta pequena comunidade internacional, mais habituada a
relações com os países centrais do que a relações no seu seio,
configurasse a estrutura de uma rede cujos nós principais eram os seus
coordenadores de investigação, um por cada país.
Não é este o lugar para descrever o projecto ou avaliar os seus
resultados. A reflexão epistemológica que ele até agora me suscitou
está no capítulo 34.
A ideia central deste capítulo pode resumir-se no seguinte: quando a
base da reflexão epistemológica vai para além do discurso e das
práticas científicas nos países centrais, os problemas epistemológicos
convencionais - isto é, hegemónicos na epistemologia e na filosofia da
ciência ocidentais - tendem a perder centralidade. É por isso que as
ciências sociais convencionais são mais parte dos problemas
epistemológicos que enfrentamos do que das soluções que buscamos.
Neste capítulo desenvolvo uma perspectiva sobre o conhecimento
alternativa à que tem dominado nos países centrais, a perspectiva
hegemónica centrada na superioridade absoluta do conhecimento
científico e numa concepção da ciência que justifica, para além de
qualquer dúvida ou condição, essa superioridade. Tal como dera a
entender em Um Discurso sobre as Ciências, mas
agora com muito mais determinação, o potencial de renovação
epistemológica atribuído às ciências sociais não será realizado
enquanto dominar nelas a perspectiva hegemónica. Esta perspectiva está
de tal maneira enraizada nos modos dominantes de interpretar e
transformar o mundo que a sua crítica, para ser eficaz, tem de ir às
suas próprias raízes. Defendo que tais raízes estão na concepção de
racionalidade que subjaz tanto às ciências naturais como às ciências
sociais. Trata-se de uma racionalidade indolente cuja indolência se
traduz na ocultação ou marginalização de muita experiência e
criatividade que ocorre no mundo e, portanto, no seu desperdício.
Distingo quatro formas de indolência e analiso em detalhe duas: a razão
metonímica e a razão proléptica. Na primeira, o desperdício da
experiência ocorre sob a forma da contracção excessiva do presente,
enquanto na segunda ocorre sob a forma de expansão excessiva do futuro.
Para recuperar a experiência social e cultural desperdiçada pela razão
metonímica, proponho um procedimento sociológico não convencional a que
chamo sociologia das ausências, assente na substituição de cinco
monoculturas por cinco ecologias. Com o mesmo objectivo, em relação à
razão proléptica, proponho uma sociologia das emergências baseada na
categoria do Ainda Não (Noch Nicht), tal como foi
desenvolvida por Ernst Bloch.
A multiplicação e diversificação das experiências sociais disponíveis e
possíveis obtida pela sociologia das ausências e pela sociologia das
emergências levantam dois problemas: a extrema fragmentação do campo
das experiências e a dificuldade em conferir sentido à transformação
social. Neste capítulo trato apenas do primeiro problema, propondo para
o resolver um procedimento não convencional: o trabalho de tradução que
concebo como alternativa à tentação agregadora implícita na ideia de
uma teoria geral.
Este livro é, genuinamente, o resultado de um
esforço colectivo. Antes de tudo, o esforço dos autores dos capítulos
que generosamente aceitaram partilhar comigo as preocupações que
estiveram na origem deste projecto. Estou, pois, muito grato a todos
eles. Reside neles a razão da ambição que, ouso pensar, este livro
merecidamente tem.
O teor da crítica de AMB a Um Discurso sobre as Ciências
e das que, na sua peugada, se seguiram tornou claro que o alvo não
poderia ser somente o pequeno livro publicado quinze anos antes. A
crítica visava uma certa forma de conceber e praticar a ciência, uma
ciência socialmente empenhada na afirmação dos valores da democracia,
da cidadania, da igualdade e do reconhecimento da diferença, uma
ciência que se pretende objectiva e independente, mas não neutra e
socialmente opaca ou irresponsável. Esta é a concepção de ciência que,
em geral, tem presidido à investigação realizada no Centro de Estudos
Sociais, que dirijo. Daí que a crítica a Um Discurso sobre
as Ciências tenha sido entendida como visando atingir muito
para além do autor do livro. As expressões de solidariedade que recebi
dos meus colegas do CES, que não esquecerei, tiveram, assim, o sentido
da afirmação e defesa partilhadas de um projecto colectivo. Uma dessas
expressões deve ser explicitamente mencionada. Veio dos mais novos, dos
jovens assistentes de investigação que assumiram a tarefa de traduzir
para português os capítulos originariamente escritos em inglês,
castelhano ou francês. Foi um trabalho generoso e exigente, já que
nenhum deles é tradutor profissional, realizado na convicção de, com
ele, contribuir para a afirmação de uma concepção de ciência em que se
revêem. O meu muito obrigado a Ana Cristina Santos, António Calheiros,
Carlos Nolasco, Dina Chaves, Dora Gomes, Jorge Almeida, Madalena
Duarte, Marisa Matias, Mónica Rafael, Patrícia Grilo, Sara Araújo,
Sílvia Ferreira, Sílvia Matias, Susana Costa, Taciana Lopes, Tânia
Costa, Tatiana Moura, Teresa Maneca. Porque os assistentes de
investigação trabalham em projectos de que são responsáveis os
investigadores permanentes ou associados do CES, a sua generosa
colaboração não teria sido possível se nela não consentissem os
directores dos projectos. Daí o meu muito obrigado a Carlos Fortuna,
Conceição Gomes, Elísio Estanque, João Arriscado Nunes, João Pedroso,
José Manuel Mendes, José Manuel Pureza, Maria Manuel Leitão Marques e
Pedro Hespanha.
Pese tudo o mais, este livro não teria sido possível sem a colaboração
de quatro pessoas: João Arriscado Nunes, Maria Irene Ramalho, António
Sousa Ribeiro e Ana Cristina Santos. O João Arriscado Nunes, sem dúvida
um dos grandes sociólogos da ciência do nosso tempo, tem sido a
testemunha e o parceiro de todas as minhas inquietações
epistemológicas. Foi em conversa com ele que surgiu a ideia deste livro
e foi com ele que discuti o seu perfil. Além disso, o João reviu todas
as traduções com inexcedível cuidado. A Maria Irene, minha companheira
de tudo o que cabe no trabalho científico e de tudo que extravasa dele,
e António Sousa Ribeiro, amigo e confidente para além do que pode ser
dito, leram e reviram todos os textos com a atenção minuciosa e a
competência que todos lhes reconhecemos. A Ana Cristina Santos, que há
anos prepara para publicação, com tanto profissionalismo quanto
entusiasmo, todos os manuscritos dos meus livros, teve aqui uma tarefa
particularmente espinhosa de copy-editing, para
além de ter planeado e supervisionado todo o complexo trabalho de
tradução. A todos a minha gratidão muito sentida e sincera. Este livro
não estava nos meus planos e, naturalmente, interferiu com os que tinha
no momento em que me "aconteceu". Exigiu um esforço adicional de todos
os que acompanham mais de perto o meu trabalho e me ajudam nele.
Exigiu-o sobretudo a quem, qual anjo da guarda, me acompanha
solidariamente em todos os meus passos, a Lassalete Simões.
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