Oficina de Poesia
 
   


Oficina de Poesia nºs 16

Data de Publicação: 2011

 
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Editorial

Lembro-me da primeira vez que, para desafiar o seu entendimento do “poético”, propus aos/às participantes no Curso Livre “Oficina de Poesia” que experimentassem escrever um poema com linguagens que usualmente não se consideram “poéticas”. A diversificada formação disciplinar dos/as presentes não poderia ter sido mais útil mas, ainda assim, a primeira reacção foi de resistência: escrever com símbolos químicos? Com equações matemáticas? Com categorias geológicas? Usar categorias e nomenclaturas científicas? Colocar na mesma mesa, no mesmo nível democratizante, esses diferentes puzzles de representação do mundo (como se lhes referia o poeta norte-americano Robert Duncan)? E, além de perturbar a sacrossanta hierarquia dos saberes, atrever-se a mexer nas peças e, assim, interferir nas ordens desconhecidas, ou quase desconhecidas, daquelas imagens?

A verdade é que, à medida que o trabalho avançava – a partir dos textos que iam sendo trazidos de cada área de cada participante –, os resultados eram cada vez mais interessantes e divertidos. Afinal, como Lyotard concluiu, em A Condição Pós-Moderna (partindo de Heraclito, Nietzsche e Barthes), não só qualquer enunciado deve ser considerado como um “lance” feito num jogo (e podemos escutar os ecos de Mallarmé), mas este fazer do lance pode não servir para ganhar, antes e apenas servindo para o prazer de inventar (na fala e na literatura – uma vez que todo o vínculo social observável é feito de lances na linguagem, num jogo em que as regras são o objecto de um contrato, explícito ou não, entre os/as jogadores/as).

E, por falar de regras e/ou de ordem, a grande surpresa ainda estava para vir: mesmo tendo por base textos recolhidos na área do Direito da Comunicação, a linguagem mais difícil de todas, aquela que mais resistia aos lances do nosso jogo, foi – e a conclusão foi unânime – a linguagem do Direito (e não, a da Matemática ou da Física, como todos/as esperavam). Mesmo implodindo a ordem, a proliferação interpretativa, que se verificava nas outras linguagens, era sempre limitada, muito limitada – demasiado limitada quando o objectivo é, precisamente, abrir para ordens outras, ordens ainda por descobrir ou conceber. Platão estava certo: o/a poeta não tem lugar na República. Talvez por isso, no seu Fedro, se perceba a necessidade de sair dos muros da cidade para falar da natureza comum da poesia e do amor: do que está fora da ordem da sabedoria humana, mas também, paradoxalmente ou talvez não, do que mais se aproxima da linguagem divina (segundo o filósofo grego, a bela e/ou a mais próxima da verdade). Tal como Fedro aprende no combate de palavras, que sempre subjaz a qualquer acto de linguagem, é esse o confronto permanente.  E a linguagem do Direito – porque deve ser o epítome da sabedoria humana na República –, ciente desse combate (talvez mais do que qualquer outra área do saber) e da impossibilidade da verdade como absoluto, firma-se na sabedoria: na sua grandeza terrena, na dureza, que se pretende o mais límpida e clara, de uma linguagem que, ciente da limitação humana, pretende, mesmo assim, salvar-nos das nossas incapacidades e dos nossos erros.

Desde esse primeiro desafio, muitos outros houve: sempre com as mesmas dificuldades! Desta vez, nada de novo: nas 9 horas de sessões conjuntas, muita foi a discussão e muitas foram as queixas! As próprias fotografias eram “secas e duras” (como Pound queria para a poesia) e houve quem tivesse desistido. Mas, mesmo que a essas horas se tivessem adicionado outras tantas de trabalho mais solitário, houve quem não se desse por vencido/a e os poemas estão aqui – a dar conta do combate. Decidiu-se ainda, para este número, combater também a representação fotográfica, chamemos-lhe, mais realista – daí as variações.

Mais uma vez, o espaço interdisciplinar do CES, que sempre acolheu as nossas sessões de trabalho e muitas das nossas iniciativas, produziu a diferença e, tal como Lyotard nos propunha já em 1979, permitiu-nos deslocar os limites da instituição universitária.

Graça Capinha