Editorial
Lembro-me da primeira vez que, para desafiar o seu
entendimento do “poético”, propus aos/às participantes no
Curso Livre “Oficina de Poesia” que experimentassem
escrever um poema com linguagens que usualmente não se
consideram “poéticas”. A diversificada formação
disciplinar dos/as presentes não poderia ter sido mais
útil mas, ainda assim, a primeira reacção foi de
resistência: escrever com símbolos químicos? Com equações
matemáticas? Com categorias geológicas? Usar categorias e
nomenclaturas científicas? Colocar na mesma mesa, no mesmo
nível democratizante, esses diferentes puzzles de
representação do mundo (como se lhes referia o poeta
norte-americano Robert Duncan)? E, além de perturbar a
sacrossanta hierarquia dos saberes, atrever-se a mexer nas
peças e, assim, interferir nas ordens desconhecidas, ou
quase desconhecidas, daquelas imagens?
A verdade é que, à medida que o trabalho avançava – a
partir dos textos que iam sendo trazidos de cada área de
cada participante –, os resultados eram cada vez mais
interessantes e divertidos. Afinal, como Lyotard concluiu,
em A Condição Pós-Moderna (partindo de
Heraclito, Nietzsche e Barthes), não só qualquer enunciado
deve ser considerado como um “lance” feito num jogo (e
podemos escutar os ecos de Mallarmé), mas este fazer do
lance pode não servir para ganhar, antes e apenas servindo
para o prazer de inventar (na fala e na literatura – uma
vez que todo o vínculo social observável é feito de lances
na linguagem, num jogo em que as regras são o objecto
de um contrato, explícito ou não, entre os/as
jogadores/as).
E, por falar de regras e/ou de ordem, a grande surpresa
ainda estava para vir: mesmo tendo por base textos
recolhidos na área do Direito da Comunicação, a
linguagem mais difícil de todas, aquela que mais resistia
aos lances do nosso jogo, foi – e a conclusão foi unânime
– a linguagem do Direito (e não, a da Matemática ou da
Física, como todos/as esperavam). Mesmo implodindo a
ordem, a proliferação interpretativa, que se verificava
nas outras linguagens, era sempre limitada, muito limitada
– demasiado limitada quando o objectivo é, precisamente,
abrir para ordens outras, ordens ainda por descobrir ou
conceber. Platão estava certo: o/a poeta não tem lugar na
República. Talvez por isso, no seu Fedro,
se perceba a necessidade de sair dos muros da cidade para
falar da natureza comum da poesia e do amor: do que está
fora da ordem da sabedoria humana, mas também,
paradoxalmente ou talvez não, do que mais se aproxima da
linguagem divina (segundo o filósofo grego, a bela e/ou a
mais próxima da verdade). Tal como Fedro aprende no
combate de palavras, que sempre subjaz a qualquer acto de
linguagem, é esse o confronto permanente. E a
linguagem do Direito – porque deve ser o epítome da
sabedoria humana na República –, ciente desse
combate (talvez mais do que qualquer outra área do saber)
e da impossibilidade da verdade como absoluto, firma-se na
sabedoria: na sua grandeza terrena, na dureza, que se
pretende o mais límpida e clara, de uma linguagem que,
ciente da limitação humana, pretende, mesmo assim,
salvar-nos das nossas incapacidades e dos nossos erros.
Desde esse primeiro desafio, muitos outros houve: sempre
com as mesmas dificuldades! Desta vez, nada de novo: nas 9
horas de sessões conjuntas, muita foi a discussão e muitas
foram as queixas! As próprias fotografias eram “secas e
duras” (como Pound queria para a poesia) e houve quem
tivesse desistido. Mas, mesmo que a essas horas se
tivessem adicionado outras tantas de trabalho mais
solitário, houve quem não se desse por vencido/a e os
poemas estão aqui – a dar conta do combate. Decidiu-se
ainda, para este número, combater também a representação
fotográfica, chamemos-lhe, mais realista – daí as
variações.
Mais uma vez, o espaço interdisciplinar do CES, que
sempre acolheu as nossas sessões de trabalho e muitas das
nossas iniciativas, produziu a diferença e, tal como
Lyotard nos propunha já em 1979, permitiu-nos deslocar os
limites da instituição universitária.
Graça Capinha
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