Editorial
“E assim se acaba de vez com o grande mistério da
poesia!...”, exclamava, entre o atónito e o desiludido, um
jovem actor a colaborar, tal como eu, no “Curso de
Iniciação às Artes para Crianças” de Belgais (cf. Oficina
de Poesia, #2, 2003), quando ouvia, há uns anos
atrás, crianças de 6-10 anos a ler os poemas que vinham de
escrever. Respondi-lhe, com Pessoa, que “o único mistério
é que não há mistério nenhum!”
Este número especial da nossa revista é inteiramente
dedicado à divulgação da poesia escrita no âmbito de
várias sessões/oficinas em escolas e bibliotecas públicas
por todo o país. Poemas escritos por crianças (do
infantário, à básica e à secundária), adolescentes (do
Curso de Verão “Ciência Viva”, “Poemacto”, coordenado no
âmbito do CES) e jovens adultos (alguns em contexto de
Centro Educativo), além de participantes em cursos EFA
(Educação e Formação para Adultos). Extraordinariamente –
porque a revista só publica inéditos – apresentamos também
poemas já publicados num pequeno caderno, Cartilha
Trabalho Escravo Hoje No Brasil. Coletânea de paródias,
textos dissertivos, poesias e desenhos sobre trabalho
escravo (Xinguara, Pará, 2007), onde se coligiram
poemas de crianças a viver na pobreza extrema que resulta
de um sistema hoje considerado extinto, a escravatura (o
antropólogo brasileiro António Alves de Almeida foi um dos
organizadores deste pequeno caderno e foi ele mesmo que,
enquanto desenvolvia a sua investigação no CES, tomou
conhecimento do trabalho realizado pela Oficina e trouxe
até nós os poemas destas crianças).
Quais as razões que nos levam a desenvolver estas acções
de formação na área da escrita e a divulgar aqui os seus
resultados? Em primeiro lugar, porque acreditamos, de
facto, que Pessoa tinha razão: não há aqui nenhum
mistério! Há uma intimidade muito especial das crianças
com a arte: porque ainda não incorporaram/se subjugaram à
norma – e digo isto a partir da mais completa ignorância
de todos os estudos cientificamente desenvolvidos sobre
estas matérias; digo isto apenas porque a minha
experiência, ao longo de já quase 10 anos, mo comprovou à
evidência.
Comecemos com o infantário: dir-me-ão que crianças de 3
anos não sabem escrever, nem ler. Certamente! Mas não
sabem elas correr atrás de cubos com versos escritos nas
faces? Não sabem justapor esses cubos? Não sabem levar ao
adulto “aquele objecto palavra” que é copiado? E aprender,
assim, a construir com palavras e sons? (que difícil é,
tantas vezes, fazer perceber a um adulto essa
“objectividade”, essa materialidade da palavra – sempre
tão aleatoriamente subjectiva e transdiscursiva!). E
depois é vê-los, embevecidos, a ouvir a magia da voz que
lhes lê o que construíram!
Repetir esse jogo, essa aprendizagem, essa criação é, como
Aristóteles nos ensinou, um ritual de participação: é ser
aceite, entrar na comunidade, na coisa pública (e ninguém
falou aqui de comunicação). Assim, entramos na linguagem e
nela nos movemos: na coisa pública. E na coisa pública se
trabalhou: em Águeda (Aguada de Cima, Fermentelos),
Aljustrel, Almeirim, Alvaiázere, Coimbra, Constância,
Ferreira do Alentejo, Melgaço, Mértola, Montemor-o-Novo,
Olhão, Santarém, Setúbal, Silves (S. Bartolomeu de
Messines, Algoz). O poder de interferir na coisa pública e
de ter voz (com a ventriloquia da voz pública ou contra
ela) traz o prazer e assim, como todos/as sabemos, prazer
e poder funcionam em uníssono.
Dessa radicalidade do político saem todas estas vozes aqui
presentes: dos mais pequeninos, que começam a aprender, a
entrar no “jogo da construção” das representações; dos
mais crescidos, que começam a “recordar” que, de facto,
vivemos num/com um jogo de representações; dos
temporariamente afastados da ordem pública que, esperamos,
possam tomar consciência da permanente tensão – logo na
linguagem – entre a ordem e a desordem, aprendendo a gerir
essa tensão quando regressarem ao uso da sua liberdade em
espaço público; dos que se preparam para fazer uma escolha
da linguagem do saber que mais se lhes adequa e que, mesmo
que a linguagem das artes e as humanidades não seja o seu
futuro, possam perceber que, diga o que disser a voz
pública do senso-comum, essa linguagem nunca está (ou
estará) fora do seu futuro (porque é o primeiro “fazer” de
si); e, finalmente, dos que vivem subjugados e com fome, e
que se alimentam na esperança e na liberdade que é o
espaço da palavra, porque o único mistério é que não há
nenhum mistério na capacidade humana de imaginar outros
mundos – e assim aprendam a lutar por eles, reinventando a
tribo, para que esta possa sobreviver.
Ensinar a arte da escrita – a poética, a literatura – é
ensinar a cidadania.
Graça Capinha
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