Editorial
A aventura do caminho escolhido por Belgais começa no
próprio caminho que nos leva até essa construção em pedra,
paradoxal fortificação da fragilidade que é a arte,
perfeitamente integrada na ruralidade beirã. Lembrando-me
de Sena, chamei-lhe uma vez "uma pequenina luz", uma luz
na limpidez do ar daquela região, uma luz que resiste, e
que insiste em permanecer viva apesar de todas as
dificuldades. O espaço agreste em que se desenha e a
dificuldade do trilho parecem estar lá para afirmar a
própria sobrevivência - da gente e do projecto. Depois dos
25 minutos de solavancos e destreza na condução, chegar ao
cimo da colina e ver Belgais ao fundo dá-nos a medida
certa da heroicidade que lhe subjaz. Por isso, o
reconhecimento pela UNESCO foi só uma questão de justiça.
Por isso, a falta de reconhecimento só pode basear-se na
ignorância ou no medo da infinita possibilidade que a arte
abre à existência. Disso nos fala Maria João Pires, no
texto que dá início a este volume.
O desafio que foi lançado à Oficina de Poesia da
Universidade de Coimbra transformou-se numa enorme
aventura: numa experiência inesquecível de partilha, de
fruição estética e de vida, de emoção e trabalho criativo,
de reconhecimento ancestral e telúrico - uma experiência
de crescimento pessoal para cada um de nós.
Como coordenadora da Oficina de Poesia tive o enorme
privilégio de participar num número maior de actividades
deste Centro para o Estudo das Artes, mas muitos dos
jovens poetas que comigo trabalham nesta Oficina puderam
colaborar, ao longo de um ano (fins-de-semana), com outros
artistas e outras linguagens, num projecto tão aliciante
quanto o Curso de Iniciação às Artes para Crianças (com
crianças de aldeias beirãs como a Mata, Escalos de Baixo,
Escalos de Cima, Ladoeiro e Lousa). Esses jovens poetas
foram: João Rasteiro, Andreia Rafael, Cristina Néry, Carlo
Rua, Célia Gonçalves, Miguel Carvalho, Cláudia Pinto,
Emiliana Cruz e Carla Vaz. Alguns dos poemas escritos
pelas crianças estão aqui representados, mas esperamos que
um pequeno livro venha a compilar uma selecção mais
alargada, num futuro não muito distante. Desafiámos estas
crianças a brincar com as palavras, enquanto nos falavam
da experiência dos vários materiais com que trabalhavam a
arte: da experiência da matéria que constitui o seu
próprio corpo - na voz, no movimento, no ouvido, nos pés,
nas mãos - e da experiência do corpo da natureza - nas
pedras, nas árvores, no rio. Descobrimos que, quanto menos
cientes das regras para trabalhar as palavras, mais fácil
lhes era a liberdade poética de as combinar numa
brincadeira divertida. E aprendemos, nós adultos, com essa
liberdade - a liberdade que todas as regras e todas as
escolas nos ensinam a esquecer.
Publicam-se também, neste número especial dedicado a
Belgais, poemas de outras oficinas, escritos por alunos de
piano e de composição, que se deixaram desafiar pela
palavra, uma outra forma de expressão artística.
Reflectimos sobre o diálogo possível entre as nossas
formas de expressão e, entre uma cantiga para musicar
(composição) e uma árvore que pretendíamos ouvir (piano),
escreveram-se os poemas nas secções 11 e 111. Destaco aqui
a canção escrita pelo compositor norte-americano James
DeMars, famoso pelo seu trabalho com a música dos índios
norte-americanos.
A consultora em Escrita Criativa do Projecto das Crianças,
a poeta norte-americana Sheryl Robbins, encarregou-se de
mais um curso. Com trinta anos de experiência em escolas
primárias e secundárias do estado de Nova lorque, Robbins
veio a Belgais para acompanhar a fase final do trabalho de
escrita das crianças e dirigiu uma oficina em que se
inscreveram estudantes universitários, professores da
região centro e animadores culturais. Publicam-se aqui
também alguns exemplos desses dois intensos dias de
trabalho (IV), bem como um texto de Robbins sobre a
experiência daquele espaço e ainda alguns dos seus poemas.
A bailarina e filósofa Cristo Torres escreveu o texto
sobre a Especial Intimidade das Crianças com a Arte, uma
conferência dramatizada, que se representou/dançou em
Belgais, e da qual escolhemos apenas alguns excertos.
O pianista Caio Pagano contribui também com um pequeno
texto sobre a sua vivência deste espaço e desta aventura.
Finalmente, e depois dos poemas do mesmo teor escritos
pelos jovens poetas da Oficina de Poesia, Andreia Rafael,
na altura ainda estudante de Jornalismo, mas hoje já uma
profissional, faz-nos uma reportagem sobre a Oficina para
Crianças. Além de um texto sobre a poesia da pedra, por
Marco Daniel Duarte, o volume inclui ainda o ensaio do
especialista de literatura e músico de jazz, Michel
Delville, apresentado no IV Encontro Internacional de
Poetas de Coimbra, um ensaio que reflecte, de forma muito
provocatória, sobre música contemporânea e poesia
modernista.
O destaque ainda para dois poetas, Ana Luísa Amaral e
Fernando Aguiar, que aceitaram o nosso convite para nos
acompanhar através desta viagem pelo corpo da música, com
alguns dos seus inéditos.
As fotografias de Luís Almeida trazem-nos, além da palavra
e da música, uma outra linguagem e uma outra experiência
de Belgais através da imagem a preto e branco.
Como nota última, a referência a esse texto escrito a
várias mãos - por Frederico, João André e Paulo Renato
Cardoso de Jesus também aqui só em alguns fragmentos, e
que tem por título "Diafonia". Nele encontro a perfeita
descrição de Belgais:
"Diafonia é uma casa
sem paredes é só portas e janelas
casa de ar respiração
Nidificação da metamorfose: luz oceânica redigindo o cume
futuro dos montes".
Graça Capinha
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