Opinião

Boaventura de Sousa Santos
bsantos@ces.uc.pt

Justiça: a década da visibilidade
Publicado na Visão em 17 de Dezembro de 2009

A década que agora termina foi a década do choque de realidade para a sociedade portuguesa. A década anterior fora a década das expectativas: a aproximação crescente e aparentemente irreversível do rendimento médio dos portugueses ao rendimento médio europeu. Era uma expectativa luminosa para uma sociedade de desenvolvimento intermédio, com uma economia de exígua dimensão e fraca especialização internacional, um Estado social de recente criação e com deficiente consagração de direitos sociais e económicos e com a taxa mais baixa da Europa de redução da pobreza por via das políticas sociais. Na década de 2000 as expectativas luminosas foram-se transformando progressivamente em frustrações sombrias: em vez de aproximação ao rendimento europeu, afastamento; impacto devastador na economia das políticas neoliberais europeias de controlo do deficit; perda de direitos sociais, da segurança social à saúde, dos direitos laborais (particularmente flagrante) à educação. Resultado: somos um dos países da Europa com mais desigualdades sociais e maior risco de pobreza, com os maiores índices de atipicidade e precariedade das relações laborais medida por critérios objectivos (o número de trabalhadores com contratos a termo, de trabalhadores autónomos, de trabalhadores pobres).

Que tem o sistema judicial a ver com isto? A justiça é um bem público que deve estar ao serviço do desenvolvimento económico e social e do aprofundamento da democracia. Cumpriu esse objectivo ao longo da década? Esta foi a década da visibilidade judicial e o que ela permitiu ver é motivo de desassossego para os cidadãos. Antes de mais, a visibilidade do sistema judicial em conflito consigo próprio ou com o sistema político, em ambos os casos longe do que os cidadãos esperam dele. A última década foi marcada por momentos em que a tensão institucional, usando a comunicação social como palco, atingiu os limites do admissível numa democracia consolidada, se é que não os ultrapassou: alterações aos regimes de férias judiciais; subsistema de cuidados de saúde; regalias remuneratórias; conflitos entre as cúpulas da magistratura judicial e do Ministério Público sobre os poderes na condução do processo judicial, em especial, na condução da investigação criminal; conflitos dentro dos corpos profissionais, entre o Bastonário da Ordem dos Advogados e respectivos Conselhos Distritais, entre a Associação Sindical de Juízes e o Conselho Superior da Magistratura, entre o Sindicato do Ministério Público e a Procuradoria-Geral da República. Estes conflitos institucionais aprofundaram as percepções negativas dos portugueses sobre o sistema judicial e minaram a sua legitimidade social.

O outro tipo de visibilidade judicial decorreu dos casos processados pelos tribunais, uma visibilidade que tem duas dimensões: os tribunais não podem expor e dar visibilidade aos problemas sociais sem eles próprios se exporem e tornarem socialmente visíveis. Ao longo da década, foram vários os casos mediáticos em que estiveram envolvidas personalidades conhecidas, de que o caso Casa Pia é exemplo paradigmático. A exposição mediática, para a qual os magistrados não estavam (nem estão) preparados, os incidentes do processo e a morosidade do seu andamento acabaram por vincar na opinião pública uma dupla ideia negativa sobre os tribunais: que são ineficientes e que são reféns dos desequilíbrios entre a capacidade técnica da defesa e da acusação. Mas o problema vem de trás e é bem mais complexo. Considerando que a criminalidade complexa, em especial, a criminalidade económico-financeira, a corrupção, o tráfico de influências e o abuso do poder têm sido factores importantes na degradação da nossa vida colectiva, é forçoso concluir que o sistema judicial tem contribuído, por omissão, para este estado de coisas. É extenso o rosário de casos em que os tribunais se deixaram enredar de maneira inglória e com um desprezo total pela exigência cidadã de transparência e justiça: fundos sociais europeus, Partex, facturas falsas, Caixa Económica Açoreana, JAE, Universidade Moderna, Caso da Mala, Freeport, Portucale, Operação Furacão, Apito Dourado, Somague. O que se conhece de casos mais recentes (Caso BCP, Caso BPN e Face Oculta) não nos sossega quanto ao seu destino.

Acontece que a hipervisibilidade da ineficiência nestes casos vai de par com a invisibilização de outras ineficiências que afectam tanto ou mais as percepções dos cidadãos sobre a justiça porque os deixam desarmados perante o infortúnio. Se é verdade que os indicadores mostram elevados níveis de ineficiência no desempenho do sistema de justiça (tribunais judiciais, órgãos de polícia criminal, Ministério Público, instituições conexas), o seu impacto na vida dos cidadãos e das empresas é muito diferenciado. Os anos de espera podem ser dramáticos para quem é vítima de violência doméstica, para quem espera por uma indemnização de um acidente de trabalho que o/a incapacitou, para a criança que espera por uma pensão de alimentos ou aguarda numa instituição que lhe encontrem uma família, para a pequena e média empresa que, não beneficiando do efeito de escala das grandes empresas, asfixia ante os créditos que não cobra. O drama reside no facto de o sistema judicial não dar mostras de começar a compreender que há diferenças nas urgências e que a igualdade reside no tratamento diferenciado do que é diferente.

Perturbador é que tão pouco tenha mudado apesar de esta ter sido a década das reformas: no âmbito da procura judicial (desjudicialização de conflitos, criação de meios alternativos de resolução de litígios: arbitragem, mediação, julgados de paz); no âmbito da tramitação dos processos (reformas do processo civil e penal, contencioso administrativo e fiscal, procedimento de injunção para a cobrança de dívidas, criação da figura do solicitador de execução); na desformalização de actos (sobretudo na vertente comercial) ou criando novo mapa e organização judiciária para os tribunais comuns, administrativos e fiscais. A desmaterialização dos processos por via da informatização foi uma das medidas emblemáticas do último governo, apostando, quer na dotação dos tribunais com redes e equipamentos informáticos, quer em programas que permitem uma interacção mais eficiente entre os vários intervenientes processuais (magistrados, secção de processos, advogados, solicitadores de execução, instituições colaborantes do judiciário, etc.).

Os desafios para os próximos anos devem assentar nas seguintes ideias-chave: combate à criminalidade grave e complexa — investigações levadas a cabo com competência e eficácia, cuja conclusão de acusação ou de arquivamento assente em fundamentos e em estratégia de prova sólidas; igualdade de acesso ao direito e à justiça — depois de uma década que restringiu (em plena crise económica) o direito de acesso ao apoio judiciário e aumentou as custas judiciais; transparência — dadas as condições tecnológicas que permitem um verdadeira justiça de proximidade; eficiência e qualidade do sistema judicial — num período tão difícil para vida dos portugueses, a justiça só é verdadeiramente cega se tiver a paixão da justiça social.