Opinião | |||
Boaventura de Sousa Santos |
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Libertem a Língua Sendo
a ortografia uma pequena dimensão da vida da língua, seria legítimo
esperar que não fosse necessário o acordo ortográfico ou que, sendo-o,
pudesse ser celebrado sem dificuldade nem drama. No caso da língua
portuguesa assim não é, e há que reflectir porquê. A razão fundamental
reside no fantasma do colonialismo inverso que desde há séculos
assombra as relações entre Portugal e o Brasil. Durante séculos, a
única colónia com propósitos de ocupação efectiva no império português,
o Brasil, foi sempre e simultaneamente um tesouro e uma ameaça grandes
de mais para Portugal. Depois de um curto apogeu no séc. XVI, Portugal
foi durante toda a modernidade ocidental capitalista um país
semiperiférico, isto é, um país de desenvolvimento intermédio,
desprovido dos recursos políticos, financeiros e militares que lhe
permitissem controlar eficazmente o seu império e usá-lo para seu
exclusivo benefício. Teve, pois, de o partilhar desde cedo com as
outras potências imperiais europeias, e foi por conveniência destas que
ele se manteve até tão tarde. A partir do séc. XVIII, Portugal foi
simultaneamente o centro de um império e uma colónia informal da
Inglaterra. À semiperifericidade de Portugal correspondeu a
semicolonialidade do Brasil, tão bem analisada por António Cândido, a
ideia contraditória de um país mal colonizado e superior ao
colonizador, um país que resgatou a independência de Portugal e que,
logo depois da sua própria independência, foi visto como uma ameaça aos
interesses de Portugal em África. A relação colonizador-colonizado
entre Brasil e Portugal foi sempre uma relação à beira do colapso ou à
beira da inversão. Até hoje. É essa indefinição que torna tão
necessário quanto difícil o acordo ortográfico. Do lado português, a
posição ante o acordo assenta sempre na ideia de "rendição ao Brasil",
tanto para o aceitar como para o recusar. Em ambos os casos, o fantasma
do colonialismo do inverso, em vez da ideia libertadora do inverso do
colonialismo. |