Opinião

Boaventura de Sousa Santos
bsantos@ces.uc.pt

Libertem a Língua
Publicado na Visão em 17 de Abril de 2008

Sendo a ortografia uma pequena dimensão da vida da língua, seria legítimo esperar que não fosse necessário o acordo ortográfico ou que, sendo-o, pudesse ser celebrado sem dificuldade nem drama. No caso da língua portuguesa assim não é, e há que reflectir porquê. A razão fundamental reside no fantasma do colonialismo inverso que desde há séculos assombra as relações entre Portugal e o Brasil. Durante séculos, a única colónia com propósitos de ocupação efectiva no império português, o Brasil, foi sempre e simultaneamente um tesouro e uma ameaça grandes de mais para Portugal. Depois de um curto apogeu no séc. XVI, Portugal foi durante toda a modernidade ocidental capitalista um país semiperiférico, isto é, um país de desenvolvimento intermédio, desprovido dos recursos políticos, financeiros e militares que lhe permitissem controlar eficazmente o seu império e usá-lo para seu exclusivo benefício. Teve, pois, de o partilhar desde cedo com as outras potências imperiais europeias, e foi por conveniência destas que ele se manteve até tão tarde. A partir do séc. XVIII, Portugal foi simultaneamente o centro de um império e uma colónia informal da Inglaterra. À semiperifericidade de Portugal correspondeu a semicolonialidade do Brasil, tão bem analisada por António Cândido, a ideia contraditória de um país mal colonizado e superior ao colonizador, um país que resgatou a independência de Portugal e que, logo depois da sua própria independência, foi visto como uma ameaça aos interesses de Portugal em África. A relação colonizador-colonizado entre Brasil e Portugal foi sempre uma relação à beira do colapso ou à beira da inversão. Até hoje. É essa indefinição que torna tão necessário quanto difícil o acordo ortográfico. Do lado português, a posição ante o acordo assenta sempre na ideia de "rendição ao Brasil", tanto para o aceitar como para o recusar. Em ambos os casos, o fantasma do colonialismo do inverso, em vez da ideia libertadora do inverso do colonialismo.
Acontece que hoje a inconsequência do acordo tem consequências que não tinha, por exemplo, em 1911. Em 1911, o acordo teve lugar entre dois países em que a língua portuguesa era a língua natural. No caso português, o colonialismo proibia que as línguas nacionais faladas nas colónias fossem um problema linguístico, no caso do Brasil, o colonialismo interno impedia que as línguas indígenas existissem. Portugal considerava-se o dono da língua portuguesa, mas porque não o era de facto, o acordo só começou a ser implementado em 1931. Hoje são oito os países de língua oficial portuguesa, e em seis deles a língua portuguesa coexiste com outras línguas nacionais, algumas delas mais faladas que o português. Nestes países, o contexto da política da língua é muito mais complexo. Mexer no português só faz sentido se se mexer nas línguas nacionais, e mexer nestas, em países que há pouco saíram de uma guerra civil, pode ter consequências bem mais graves que as do drama bufo luso-brasileiro. Por estas razões, deviam ser estes países a decidir o desacordo, mas pelas mesmas razões é pouco provável que aceitassem tal magnanimidade.
Neste contexto, a língua portuguesa deve ser deixada em paz, entregue à turbulência da diversidade que torna possível que nos entendamos todos em português. Revejo-me, pois, no comentário irónico e contraditório de Fernando Pessoa aos acordos ortográficos, escrito em 1931, ano em que se implementava o acordo de 1911: "Odeio . . . não quem escreve em orthographia simplificada, mas a pagina mal escrita, como pessoa propria, a syntaxe errada, como gente em que se bata, a orthographia sem ipsilon, como o escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse.
Sim, porque a orthographia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da translitteração greco-romana veste-m’a do seu vero manto regio, pelo qual é senhora e rainha".
Apesar de transcrito na ortografia de Pessoa, foi difícil entender este passo?