Estratégia Continental
Publicado na Visão em 13 de Março de 2008
Sobre
a incursão do exército colombiano em território do Equador para
eliminar um grupo de guerrilheiros das FARC parece estar tudo dito,
tanto mais que é um caso encerrado e bem encerrado. Na verdade, assim
não é. O que sobre ela se revela é tão importante quanto o que se
oculta. Primeira ocultação: os processos políticos na América Latina
estão a pôr em causa o controle territorial continental de que os EUA
necessitam para garantir o livre acesso aos recursos naturais do
continente. Trata-se de uma ameaça à segurança nacional dos EUA que,
perante o iminente fracasso das respostas "consensualizadas" (comércio
livre e concessões de bases militares), tem de ter uma resposta
musculada e unilateral. Ou seja, a guerra global contra o terrorismo
chega ao continente – chegou com o Plan Colômbia mas a
"deriva" no Médio Oriente provocou algum atraso– e assume aqui as
mesmas características que tem assumido noutros continentes: utilizar
um aliado privilegiado – seja ele a Colômbia, Israel ou Paquistão – a
quem ao longo dos anos se fornece ajuda militar e informação de
espionagem sofisticada que o põe ao abrigo de represálias e lhe permite
acções dramáticas de baixo custo e êxito certo; incitá-lo ao
isolacionismo regional como preço a pagar pela aliança hegemónica. A
guerra contra o terrorismo inclui acções de grande visibilidade e
acções secretas. Entre estas estão os actos de espionagem e de
desestabilização de que a Bolívia, a Venezuela e a tripla fronteira
(Paraguai, Brasil e Argentina) são os alvos privilegiados. Na Bolívia,
bolseiros norte-americanos da Fundação Fulbright são chamados à
Embaixada dos EUA para dar informações sobre a presença de cubanos e
venezuelanos e movimentos suspeitos dos indígenas enquanto os
separatistas extremistas de Santa Cruz são treinados na selva
colombiana por paramilitares. Facto novo: nas acções de
desestabilização podem participar empresas militares e de segurança
privadas, contratadas pelos EUA ao abrigo do Plan Colômbia, e dotadas
de imunidade diplomática e, portanto, impunidade ante a justiça
nacional.
Segunda ocultação: a verdadeira ameaça não são as FARC. São as forças
progressistas e, em especial, os movimentos indígenas e camponeses. De
facto, a permanência das FARC é fundamental para manter a justificação
da guerra contra o terrorismo e criar o clima de medo e a lógica
belicista que bloqueiam a ascensão das forças progressistas,
nomeadamente do Pólo Democrático na Colombia. Pela mesma razão, a
intervenção humanitária a favor dos reféns teve de ser dinamitada para
que dela não tire dividendos políticos Hugo Chávez. As forças políticas
progressistas ameaçam a dominação territorial dos EUA por via de
medidas que procuram fortalecer a soberania dos países sobre os
recursos naturais e alterar as regras de repartição dos benefícios da
sua exploração. Mas a maior ameaça provém daqueles que invocam direitos
ancestrais sobre os territórios onde estão esses recursos, ou seja, dos
povos indígenas. É eloquente a este respeito o relatório Tendências Globais – 2020,
produzido pelo Conselho Nacional de Informação dos EUA, sobre os
cenários de ameaça à segurança nacional do país. Nele se afirma
que as reivindicações territoriais dos movimentos indígenas
"representam um risco para a segurança regional" e são um dos "factores
principais que determinarão o futuro latino-americano". "No início do
século XXI, há grupos indígenas radicais na maioria dos países
latino-americanos que em 2020 poderão ter crescido exponencialmente e
obtido a adesão da maioria dos povos indígenas... Estes grupos poderão
estabelecer relações com grupos terroristas internacionais e grupos
anti-globalização...que porão em causa as políticas económicas das
lideranças latino-americanas de origem europeia". À luz disto,
não surpreende que o presidente do Peru se pergunte "se não haverá uma
internacional terrorista na América Latina". Tão pouco surpreende que
já hoje centenas de líderes indígenas do Peru e do Chile estejam
incriminados ao abrigo de leis anti-terroristas promulgadas nestes e
noutros países (por pressão dos EUA) por defenderem os seus
territórios. A estratégia está, pois, delineada: transformar os
movimentos indígenas na próxima geração de terroristas e, para os
enfrentar, seguir as receitas indicadas no relatório: tolerância zero;
reforço das despesas militares; estreitamento das relações com os EUA.
A responsabilidade das forças políticas progressistas é fazer com que
esta estratégia falhe. |