José Manuel Pureza *
Quem Salvou Timor Leste? Novas Referências Para O Internacionalismo Solidário
(texto não editado)
"Human life is now confronted with a range of new conditions - wide famines, ecological catastrophe and genocide - that constitute victims who have no social relations capable of mobilizing their salvation, and who, as a result, make na ethic of universal moral obligation among strangers a necessity for the future of life on the planet."
Michael Ignatieff, The Warrior’s Honnor, 1999
Todas as lutas emancipatórias são, à partida, combates pelo impossível. A luta dos timorenses pela sua autodeterminação foi claramente uma dessas lutas.
Em texto datado de 1979, Noam Chomsky afirmava que "o povo de Timor Leste está entre as vítimas da actual fase da ideologia e prática do Ocidente. (...) Os cidadãos das democracias ocidentais podem dar preferência ao desvio do olhar, permitindo aos seus governos contribuirem decisivamente para o massacre que continuará enquanto a Indonésia tentar reduzir o que resta de Timor e do seu povo à submissão. Mas também têm o poder de pôr fim a estes crimes horrendos" (Kohen e Taylor, 1979: 11). O referendo organizado pelas Nações Unidas em Agosto de 1999, pelo qual a esmagadora maioria dos timorenses votou pela independência, foi uma prova manifesta de que, por vezes, o impossível acontece.
Esta inversão do que parecia ser um destino fatal desse povo insignificante coloca questões fundamentais ao modo dominante de leitura da realidade internacional. Acima de todas sobressaem duas perguntas: constitui o caso de Timor Leste uma prova de uma mudança de tal maneira essencial no papel desempenhado pelo internacionalismo solidário que a projecta como elemento fundamental de uma globalização contra-hegemónica? Terá o triunfo desta luta "impossível" pela autodeterminação constituído uma ruptura com algumas heranças consolidadas, designadamente com um senso comum realista?
Para responder a estas questões, analisarei em primeiro lugar o conteúdo dessas heranças hegemónicas e das propostas contra-hegemónicas veiculadas por discursos políticos e jurídicos alternativos. De seguida, e à luz deste quadro teórico, analisarei algumas especificidades do caso de Timor Leste indagando nele sinais de uma tal mudança de paradigmas.
1. Vestefália e pós-Vestefália
Richard Falk sublinhou que a actual fase da ordem internacional é de algum modo simétrica da que ficou simbolizada pelos Tratados de Paz de Vestefália de 1648. "No século XVII completou-se um longo processo de transição histórica de uma dominação central não-territorial para uma descentralização territorial, enquanto que o actual processo de transição parece levar-nos de volta a uma dominação central não-territorial" (1989: 5). Para Falk, a crise contemporânea do sistema político e institucional fragmentado e a emergência de novas formas transnacionais de autoridade são testemunhos desta simetria.
Os tratados de paz de Vestefália simbolizam, no plano jurídico, a transição de
"uma amálgama cosmopolita de lealdades e obediências sobrepostas, de jurisdições geograficamente entrelaçadas e de enclaves políticos" para "um sistema de estados soberanos territorialmente delimitados, cada qual dotado de uma administração central e arrogando-se o monopólio do uso legítimo da violência" (Camilleri & Falk, 1992: 12-14).
Nesse sentido, Vestefália transportou um princípio de descentralização para a ordem institucional internacional, com uma dimensão interna e uma dimensão externa. Em primeiro lugar, Vestefália significou a definição de uma estrutura para cada comunidade nacional. Uma tal dinâmica assentou na diferenciação entre esfera pública e esfera privada e materializou-se na gradual monopolização do uso legítimo da força pelo poder central. Esta inédita autonomização da autoridade pública relativamente à esfera privada esteve no centro de um entendimento territorialmente expansivo da soberania. A propriedade privada foi deixando de estar sujeita aos vínculos e limites jurídicos medievais e veio a ser conformada como o poder de excluir outros do uso de um recurso. O território, base física da soberania, percebia-se como uma espécie de macro-propriedade: "o Estado consolidou-se como objecto de um direito real do rei" (Camilleri & Falk, 1992: 15), isto é, algo sobre o qual o soberano exercia a sua jurisdição pessoal e territorial, e que poderia ser ampliado em virtude de conquista e colonização.
O lado externo da herança de Vestefália é o reverso desta comunidade nacional imaginada. A soberania, conceptualizada por Bodin como summa in cives ac subditos legibusque potestas, implicou um contraste radical entre interno e externo: monopólio da força pelo Estado dentro do seu território, legitimação do uso da força entre Estados; ordem e relações contratualizadas no interior do Estado, anarquia e guerra de todos contra todos no exterior. Para a imaginação de uma comunidade nacional, foi necessário que a comunidade internacional fosse, por definição inimaginável (Pureza, 1998: 35). Neste contexto, a herança essencial de Vestefália foi "a de uma forma específica de espaço político: formações territoriais diferenciadas, desgarradas e mutuamente excluentes" (Ruggie, 1998: 172).
Estamos presentemente no centro de uma ruptura com o estatocentrismo vestefaliano. A chamada era pós-vestefaliana é, no essencial, uma fortíssima dinâmica (de retorno?) rumo a uma direcção política desterritorializada de carácter global. Todavia, esta superação da identificação tradicional da política com as fronteiras do Estado é atravessada por importantes contradições e apresenta-se, portanto, diante duma bifurcação estratégica fundamental.
Por um lado, está a tomar corpo uma nova combinação hegemónica entre os princípios do estado e do mercado. A globalização neoliberal está a ser levada a cabo através dos "Estados de serviço", cujo papel principal é garantir a liberalização, a privatização, a desregulação económica, a compressão dos serviços sociais, a redução das despesas públicas, o reforço da disciplina fiscal, o favorecimento da liberdade de circulação de capitais, o controle estreito sobre a força de trabalho organizada, as reduções da tributação e o repatriamento ilimitado de dividendos da actividade económica (Falk, 1999:1). Por isso, não é exacta a acusação de esvaziamento de capacidade regulatória desses Estados, porque o que se verifica é antes uma reorientação das suas prioridades e uma destruição institucional selectivamente conduzida.
Haverá uma alternativa contra-hegemónica a esta leitura da ordem pós-vestefaliana? Em meu entender, essa alternativa existe e arranca de uma nova combinação estratégica entre uma ruptura radical com o estatocentrismo e uma reconstrução do papel dos Estados-nação. A reinvenção do internacionalismo solidário tem que ser guiada pelo ethos de uma democracia cosmopolita. A metáfora do cidadão-peregrino, empregue por Richard Falk (1995: 95; 1999: 153) é porventura a melhor antecipação dessa reinvenção. Ela vem reforçar a necessidade de recentrar a nossa noção de cidadania, dando primazia ao alcance indiscriminado da responsabilidade partilhada sobre a autonomia individual e da uma contextualizada ética de cuidado sobre uma ética de princípios abstractos.
A par do cidadão-peregrino, o Estado militante é a outra metáfora de uma construção contra-hegemónica da era pós-Vestefália. Com ela, eu pretendo ilustrar a transfiguração do conceito tradicional de soberania na oferta do Estado como suporte de lutas emancipatórias fundamentais que têm lugar na sociedade civil global e que são conduzidas por redes de ONG's transnacionais. O Estado militante deve ser encarado como o rosto pós-moderno do Estado solidário moderno: "Os Estados solidários pós-modernos aliam-se a forças progressistas em diferentes cenários específicos e recusam-se a avalizar a disciplina do capital global nos casos em que isso determine danos sociais, ambientais e espirituais" (Falk, 1999: 6).
2. Positivismo e pós-positivismo
A imagem vestefaliana do mundo foi transformada em senso comum pelo discurso realista das Relações Internacionais. O realismo é uma forma de positivismo, pois que assenta numa dicotomia absoluta entre factos e valores, atribuindo uma total primazia àqueles sobre estes — um "viés para uma explanação objectiva", de acordo com Frost (1996: 12).
Dois corolários fundamentais resultam desta identificação de princípio das exigências normativas com as regularidades empíricas. O primeiro é a compreensão da política internacional como pura política de poder. O realismo reduziu todas as representações intelectuais da política internacional a procedimentos pragmáticos, orientados para a solução de problemas, o que supõe que se trata de um pensamento que aceita o mundo tal como é (e visa mantê-lo assim), e que vê as relações sociais e de poder como condicionamentos prévios e intocáveis. Para os realistas, o sistema internacional reduz-se a uma luta entre diferentes "interesses nacionais": esta verdadeira obsessão estatocêntrica do realismo condena o mundo a permanecer num eterno estado de natureza em que cada Estado vive em permanente suspeição face aos demais e desprovido de quaisquer formas institucionais de monopolização do uso da força ("ni législateur, ni juge ni gendarme").
O segundo corolário é uma consequência do primeiro: toda a regulação é auto-regulação (Starr, 1995) e não há lugar para um autêntico Direito Internacional. Esta negação de carácter genuinamente jurídico às normas internacionais resulta da crença positivista na unicidade da normatividade jurídica. O positivismo só consegue ver normas jurídicas naquelas que emanam do Estado, o qual, em última análise, se serve do seu jus imperium para garantir a sua aplicação efectiva. O único tipo de discurso jurídico reconhecível pelo realismo é aquilo a que Austin chamou "a ordem do soberano", quer dizer, um sistema de proibições e sanções apoiado na coerção do Estado.
Porque não dispõe desta garantia, o Direito Internacional é confinado à função de base meramente contratual entre os Estados - um bric-a-brac, segundo Combacau (1986: 86) - cuja única utilidade é a legitimação da prática inter-estatal. Neste sentido, Martti Koskenniemi (1989: 40) afirma a primazia de um "padrão ascendente de justificação"na perspectiva positivista-realista do Direito Internacional: com efeito, a ordem e a obrigação no domínio internacional são vistas como sendo fundamentadas no comportamento dos Estados e não na justiça, nos interesses comuns ou em outros quaisquer valores".
Chegados aqui, impõe-se uma pergunta: qual o impacte das transformações ocorridas na ordem vestefaliana sobre esta dupla herança do realismo-positivismo? Acima de tudo, a emergência de um horizonte pós-vestefaliano arrasta consigo a percepção de um dualismo no Direito Internacional: a política de poder e a efectividade empírica não são tudo. O Direito Internacional também se funda num "padrão descendente de justificação", isto é, "sobre a justiça, os interesses comuns, o progresso, a natureza da comunidade mundial ou outras ideias semelhantes que se tomam por anteriores ou superiores ao comportamento, vontade ou interesse dos Estados" (Koskenniemi, 1989: 40-41). Isto significa que a transição para um Direito Internacional pós-vestefaliano se opera com base em dois elementos fundamentais: um peso relativo maior das dimensões utópicas (ou contra-hegemónicas) do discurso normativo internacional (visível fundamentalmente em áreas como o património comum da humanidade ou os direitos humanos e dos povos), e um corte radical com uma visão estreita da efectividade, feito a partir dum reforço do valor da eficácia simbólica do Direito Internacional. Para lá de um sistema tradicional de regras, proibições e sanções, há um Direito Internacional pós-vestefaliano, cuja característica fundamental é a centralidade da emsncipação quer de indivíduos quer de grupos, nações e da humanidade como um todo.
3. Timor Leste: uma luta pós-positivista
O caso de Timor Leste pode ser perspectivado, antes do mais, como uma mudança operada nas formulações hegemónicas dadas a três tensões fundamentais: entre efectividade e legitimidade, entre geopolítica e legalidade e entre eficiência e multilateralismo. Um primeiro legado crucial da luta de Timor Leste pela independência é que ela acrescentou algo aos elementos contra-hegemónicos destas três tensões: à legitimidade contra a efectividade, à legalidade contra a geopolítica, ao multilateralismo contra a eficiência.
3.1. Efectividade versus legitimidade
Esta primeira tensão foi vivida em dois contextos históricos diferentes.
O primeiro foi o regime colonial português. Timor Leste tornou-se uma colónia portuguesa desde princípios do século XVI. Tratados celebrados em 1859 e 1904 fixaram as fronteiras entre as partes oriental e ocidental da ilha, ficando esta última sob soberania holandesa e, após a respectiva independência em 1949, sob soberania indonésia. Tendo-se tornado membro da Organização das Nações Unidas em 1955, Portugal foi confrontado com a questão da aplicação da Carta aos seus territórios coloniais (Galvão Teles, 1997: 195). O regime colonialista português reagiu então contra o estabelecimento de um novo princípio de legitimidade internacional alicerçado na crescente dinâmica da ONU em favor da autodeterminação dos povos colonizados (recorde-se que a Assembleia Geral tinha adoptado resoluções fundamentais neste sentido desde, pelo menos, 1960). O argumento aduzido pelo governo português foi o de supostos direitos históricos, sobre os quais fundamentou a recusa de apresentar à comunidade internacional relatórios periódicos sobre a evolução desses territórios para a autodeterminação.
"O argumento invocado em sua defesa pelo governo português (...) era o de que Portugal era um Estado multi-continental ao qual não se aplicava logicamente o capítulo XI da Carta das Nações Unidas, que reconhece o direito à autodeterminação dos povos colonizados. Por outro lado, a Indonésia, com a sua política de não alinhamento, tinha defendido sempre o direito à autodeterminação do povo de Timor Leste e renunciado a qualquer reivindicação sobre aquele território" (Escarameia, 1993: 47).
Vendo-se numa luta contra a História, o governo português tentou usar a efectividade e o tempo como seus aliados preferenciais.
A revolução democrática ocorrida em Portugal em 1974 determinou uma mudança radical nesta estratégia. Portugal não só adoptou a doutrina legal das Nações Unidas como abraçou de modo claro a ideologia do serviço público internacional como um elemento central da sua nova identidade no sistema internacional. A importância crucial do anti-colonialismo na resistência ao fascismo em Portugal ajuda a explicar a naturalidade com que esta viragem foi assumida como nuclear do novo regime democrático. Concretamente em relação a Timor Leste, Portugal adoptou legislação em Julho de 1975 (a Lei 7/75) que consagrava um programa de descolonização para aquele território, a exercer através de consulta popular e deixando em aberto, como determina a legalidade onusiana, as três hipóteses: independênca, integração ou associação livre a um terceiro Estado. Deste modo, a partir de então Portugal reivindicou para si uma legitimidade genuína e fresca para exigir o cumprimento do princípio da autodeterminação onde quer que fosse objecto de violação e, por maioria de razão, no que respeita às suas ex-colónias.
O segundo contexto histórico em que esta tensão entre efectividade e legitimidade foi experimentada pelos timorenses foi o da Guerra Fria. A confrontação bipolar foi responsável pela aceitação da invasão e ocupação indonésia do território e do genocídio do povo timorense. De facto, a ilegitimidade do comportamento indonésio em Timor Leste foi aceite como um preço razoável a pagar pela protecção dos interesses ocidentais na região: a luta contra o comunismo no Sudeste Asiático, o trânsito de submarinos nucleares entre o Pacífico e o Índico, as reservas petrolíferas do Mar de Timor, a defesa da minoria católica no maior país muçulmano do mundo, etc. (Barbedo de Magalhães, 1992: 23; Kohen e Taylor, 1979: 95). Em grande medida, oadormecimento da questão de Timor Leste na agenda do Conselho de Segurança desde 1976 - ou seja, a sua ausência da agenda activa do Conselho desde a aprovação da Resolução 389/76, em Abril desse ano - é uma expressão caba desta aceitação. De facto, esta "arte de não decidir" (Monteiro, 2001: 7) do Conselho, durante 23 anos, foi o resultado de um consenso claro entre as cinco grandes potências, membros permanentes do Conselho de Segurança, acerca do interesse estratégico de uma potência regional como a Indonésia. Os Estados Unidos sinalizaram formalmente essa prioridade atribuída ao interesse estratégico logo em 1976, ao absterem-se na votação da referida resolução ("um veto prático", assim o qualifica António Monteiro). A percepção da importância geopolítica da Indonésia no combate à expansão do comunismo na região - lembremos o relevo adquirido, justamente em meados dos anos setenta, pela chamada "teoria do dominó" na interpretação das dinâmicas dos blocos no teatro da Guerra Fria - conferiu-lhe o apoio claro dos Estados Unidos, do Reino Unido e da França. A República Popular da China também não concebia qualquer iniciativa de afrontamento de um tão importante aliado asiático, sobretudo se isso significasse apoiar a pretensão do ex-colonizador europeu. Por fim, a própria URSS, apesar de o regime de Shart ter resultado da queda violenta do poder de Sukarno, apoiado no Partido Comunista, veio a pautar o seu comportamento pelo pragmatismo da realpolitik: "A Indonésia era (é) demasiadamente importante no mundo em desenvolvimento para poder eternizar-se como ‘inimigo a abater’" (Ibidem: 8).
Este esquecimento táctico da legitimidade pela comunidade internacional permitiu à Indonésia sentir-se livre para usar a efectividade dos factos consumados como seu principal argumento. Benedict Anderson (2000: 5) ilustra esta utilização da efectividade pelo ocupante, narrando uma confidência que lhe foi feita por um agente dos serviços secretos indonésios, seu amigo pessoal, em vésperas da invasão: "Não te preocupes. Em poucas semanas tudo estará resolvido (...). Além disso, o tempo está do nosso lado." Para Anderson, "a expectativa internacional era a de que, mais tarde ou mais cedo, a resistência dos timorenses orientais seria destruída e o mundo aceitaria a absorção da antiga colónia portuguesa pela Indonésia, como aceitara, duas décadas antes, a integração de Goa na Índia de Nehru." Por isso, a pergunta essencial que a questão de Timor Leste coloca a este autor é a seguinte: "quando e por que razão o tempo se passou do lado indonésio para o dos timorenses?" (Ibidem: 6). Assim, e apesar da reiterada condenação da invasão e ocupação em distintas resoluções da Assembleia Geral e do Conselho de Segurança das Nações Unidas, o governo de Suharto recorreu sempre em última análise ao argumento da suposta aquiescência da comunidade internacional para com a transformação de Timor Leste em 27ª província indonésia.
Em oposição a esta estratégia, a luta dos timorenses pela autodeterminação sempre se fundou no papel central da legitimidade nas relações internacionais. Princípios e valores como o da proibição do uso da força, do não reconhecimento da ocupação como título legítimo de soberania, da ilegalidade da ocupação colonial ou do direito à autodeterminação foram os eixos fundamentais da resistência internacional e da mobilização dos aliados diplomáticos e não governamentais.
Portugal, as Nações Unidas e os movimentos de solidariedade internacional sempre argumentaram que o território mantinha o estatuto jurídico de território não autónomo, nos termos do Capítulo XI da Carta das Nações Unidas, continuando Portugal vinculado às funções de potência administrante até que os timorenses pudessem exercer um genuíno acto de autodeterminação. Esta posição de princípio opunha-se a um (frágil) argumento indonésio, segundo o qual a ocupação corresponder afinal a um pedido nesse sentido formulado por uma assembleia popular, composta por dois delegados eleitos por cada um dos treze distritos de Timor Leste (à excepção de Díli, com três delegados) e dez líderes nomeados pelo governo provisório. Também na desmontagem deste cenário fantasioso a invocação da legitimidade jurídica contra o fait accomplis teve grande relevo. A grande maioria dos autores (Clark, 1980; Hannikainen, 1988; Cassese, 1995) sempre denunciou quer o carácter não representativo dessa assembleia quer o incumprimento flagrante do procedimento estabelecido pela Declaração sobre a Concessão da Independência aos Povos e Países Coloniais (Resolução 1514 (XV), de 1960), na parte em que esta impõe que a integração seja "resultado da livre expressão dos desejos dos habitantes do território, agindo com total conhecimento da mudança do seu estatuto, e sendo os seus desejos expressos através de um processo consciente e democrático, conduzido de modo imparcial e baseado no sufrágio universal." Deve, no entanto, notar-se que, apesar desta orientação constante da literatura jurídica internacional, a prática política e diplomática não se mostrou por ela influenciada, antes se inclinando diante dos ditames da realpolitik. E, nesse contexto, a insistência de Portugal na defesa da autodeterminação foi frequentemente considerada como um factor de rigidez que obstava à obtenção de uma solução política que aliviasse o sofrimento dos timorenses (Neves, 2000: 29). Estas teses encontraram apoios em destacados dirigentes políticos portugueses e chegaram mesmo a nortear, de facto, a condução diplomática do processo ao longo da década de oitenta, como se analisará adiante.
É também este combate entre legitimidade e efectividade que explica o contraste entre silêncio e mediatização como utensílios principais das estratégias da Indonésia e da resistência, respectivamente: o silêncio foi considerado como condição necessária da consolidação de um facto consumado, e motivou o encerramento do território a jornalistas, ONG's e à assistência humanitária até 1988-89, como se se tratasse de um gigantesco campo de concentração; ao invés, os media, enquanto instrumento de potenciação da consciencialização pública acerca da situação em Timor Leste, foram adoptados como uma prioridade absoluta quer pela resistência interna, quer pelos movimentos de solidariedade internacional. De uma forma clara, ambos os lados procuraram traduzir estrategicamente a noção de que o conhecimento é uma forma de (não) poder.
3.2. Geopolítica versus legalidade
Timor Leste deve ser considerado como um daqueles "hard cases", a estudar como testes à validade de uma tese sobre a realidade internacional. Na verdade, o caso de Timor veio pôr em causa o modo normalmente muito superficial como se estabelece o contraste entre pragmatismo e idealismo nas relações internacionais. E, nesse sentido, ele veio provar que o cinismo realista - baseado na pura crueza da geopolítica, expressa quer por um padrão de indiferença para com o sofrimento humano quer por um sobre-intervencionismo - e o legalismo angélico - que sobrevaloriza o papel constitutivo das obrigações formais - não são as únicas vias de interpretação do fluir da História (Falk, 1998: 81).
A realpolitik e a política de poder são as categorias fundamentais para o senso comum realista, como vimos. Num tal contexto, um "povo supérfluo" que habita metade de uma ilha com cerca de 19.000 km2, em condições de extrema pobreza, não pode aspirar a ser objecto de um "caso". No lado oposto, a leitura puramente legalista da política internacional tende a vincar uma representação formal da realidade (legal/ilegal) sem atender às dimensões factuais e às realidades do poder. Para este outro entendimento, Timor Leste constituiria um evidente caso "a preto-e-branco", de um manifesto incumprimento dos princípios básicos do Direito Internacional.
Ora, não há nenhum conflito insanável entre respeito pelo Direito Internacional e interesses geopolíticos. Falk esclareceu-o do seguinte modo:
"Quando o Direito Internacional confirma a vontade política dos Estados dominantes, ele é invocado para conferir suporte a iniciativas políticas globais (...) Mas quando uma interpretação razoável do Direito Internacional colide com as políticas preferidas por esses Estados em matérias prioritárias, então o Direito tenderá a ser marginalizado pelos seus violadores (...)" (1998: 58).
Timor Leste veio introduzir alguma novidade neste entendimento tradicional: um uso alternativo das normas internacionais e dos factores geopolíticos. O Direito Internacional desempenhou um papel de primordial importância na emancipação do povo timorense. Quer as regras fundamentais, como as já referidas, quer o direito derivado (designadamente as resoluções das Nações Unidas aprovadas entre 1975 e 1982) impuseram um congelamento das pretensões indonésias e mantiveram viva a tese de que Portugal se mantinha como potência administrante até que tivesse lugar um acto genuíno de autodeterminação. As normas internacionais relativas à proibição da agressão, da anexação e da ocupação militar, os direitos humanos fundamentais e a soberania permanente sobre os recursos naturais tiveram uma influência decisiva na denúncia da situação (IPJET, 1995). Quer a resistência quer os movimentos de solidariedade usaram essas normas como instrumentos imprescindíveis para a convocação da comunidade internacional a uma posição coerente com a sua retórica sobre princípios e decência. Aliás, convirá sublinhar que a argumentação normativa não veio a ser dispersa e ocasional mas a constituir um verdadeiro discurso global sobre Timor Leste. Como foi demonstrado por Paula Escarameia (1993: 95), a procura de legitimidade jurídica foi uma preocupação permanente da ONU na abordagem do caso. As resoluções sobre a questão invocam, por isso, implícita ou mesmo explicitamente, outros documentos (em especial declarações fundamentais ou resoluções anteriores) hierarquicamente superiores, o que provocou o efeito de cada decisão se associar a outra, considerada "mais fundamental" e conferindo, deste modo, uma legitimidade acrescida a cada passo jurídico andado.
Não obstante esta importância da dimensão jurídica do caso, a verdade é que os factores geopolíticos, num sentido amplo, foram essenciais não só para a estratégia indonésia, como já foi referido, como também para a transformação da fatalidade em liberdade para os timorenses. A adesão de Portugal à Comunidade Europeia em 1986, o "efeito CNN" do massacre de Santa Cruz (1991) e a atribuição do Prémio Nobel da Paz a Ramos Horta e ao Bispo Belo (1996), bem como o efeito combinado da transição democrática na Indonésia com a profunda crise económica dos dragões asiáticos desde 1997 constituíram oportunidades históricas únicas, sem as quais nenhum progresso jurídico e político teria ocorrido. Como sublinha António Monteiro,
"como noutros casos similares, só a remoção do principal obstáculo a qualquer solução diferente da mera consagração do status quo, isto é, a queda do ditador Suharto, abriu perspectivas reais para uma solução daquele tipo. Mesmo assim, a rapidez com que se chegou à possibilidade de um (embora disfarçado) referendo sobre a independência não deixou de surpreender. Tal só foi possível devido à súbita reviravolta do sucessor de Suharto nesse sentido." (2001: 5)
O símbolo maior desse uso alternativo dos factores geopolíticos terá sido, porventura, a pressão feita, em Agosto-Setembro de 1999, sobre as principais potências e sobre as organizações financeiras internacionais (como o Fundo Monetário Internacional ou o Banco Mundial) para que obtivessem - usando os seus meios costumeiros, designadamente a condicionalidade aos empréstimos - o fim da destruição e da matança generalizada pelos militares e milicianos pró-indonésios após o anúncio público dos resultados do referendo. Nas palavras sintéticas de John Taylor,
"foi o conjunto de jogadas para suspender as vendas de armas, associado à ameaça de sanções económicas específicas, dirigidas à reestruturação bancária e às dívidas dos grandes grupos que em última análise parece ter persuadido Habibie, o seu gabinete e a maioria das suas principais personalidades militares a aceitarem a entrada da força de manutenção de paz." (1999: 222)
3.3. Eficiência versus multilateralismo
O legado do caso de Timor Leste engloba também uma crítica das recentes tendências para o desinvestimento institucional transnacional em favor de um alegado primado da eficiência, tendência particularmente visível no domínio de um novo intervencionismo internacional.
As mais recentes transformações geopolíticas, os novos desafios à segurança e a força impetuosa da globalização neoliberal parecem ter hipotecado por inteiro as expectativas de consolidação multilateral das aberturas políticas e conceptuais condensadas na Agenda para a Paz de Boutros-Ghali. Aquilo que prometia ser uma devolução à ONU do papel de protagonista na prevenção, gestão e solução dos conflitos internacionais acabou per se revelar uma desacreditação política, financeira e operacional da organização universal, que se converte, cada vez mais, num afastamento do monopólio onusiano do uso legítimo da força em favor de uma lógica - e de uma prática - de pendor assumidamente unilateral (Debiel, 2000). O debate em torno do pretenso direito de intervenção humanitária é uma prova clara desta tendência (Lyons & Mastanduno, 1995). As posições favoráveis a um tal direito invocam a falência do princípio clássico da não ingerência e a sua gradual substituição por um direito, tipicamente pós-vestefaliano, de forçar o cumprimento dos direitos humanos básicos onde quer que ocorram violações grosseiras e em larga escala, recorrendo à força se necessário. Há realmente algo de verdadeiramente novo nesta sugestão? Richard Falk (1998: 87) exprimiu essa dúvida perguntando: "não será que estamos face a uma mudança eminentemente discursiva, de tal forma que foi a linguagem o que fundamentalmente terá mudado e não o comportamento, retendo os principais Estados, ao nível do comportamento concreto, uma opção discricionária ao uso da força?" Esta suspeição faz todo o sentido ante a dinâmica objectiva criada após o fim da Guerra Fria: em vez de uma consagração da acção colectiva e institucionalizada, os anos 90 evidenciaram "que a ONU será usada (...) apenas quando geopoliticamente útil, fundamentalmente para prestar um serviço de branqueamento, isto é, para fornecer um mandato que legitime aquilo que é, afinal, no essencial, um uso unilateral da força ou, na melhor das hipóteses, por uma coligação de Estados" (Ibidem: 66).
Ora, deve recordar-se que esta selectividade foi frequentes vezes confirmada durante a ocupação indonésia de Timor Leste. E deve igualmente sublinhar-se que, apenas alguns meses antes da destruição e do massacre dramáticos que se seguiram aos resultados do referendo de Setembro de 1999, tinha sido dado um passo de crucial importância no sentido unilateralista: a intervenção da NATO na ex-Jugoslávia, sem qualquer tipo de mandato do Conselho de Segurança.
Neste preciso contexto , o procedimento específico adoptado para a criação de uma força internacional de imposição da paz (INTERFET) (Resolução 1264 do Conselho de Segurança, aprovada em 15 de Setembro de 1999) devolveu a primazia efectiva às estruturas de decisão multilaterais, desviando-se assim da tendência dominante neste tempo.
O preço político desta opção (ou terá sido imposição?) pelos cânones multilaterais institucionalizados foi indiscutivelmente muito elevado - embora se tenha sempre que acrescentar, como lembra Fernando Neves (2000: 38) que "o custo da ocupação indonésia foi, e continuaria a ser, muito mais insuportável: a aniquilação de todo um povo". Na linha da solução dúbia plasmada nos Acordos de Nova Iorque, de responsabilização exclusiva da potência invasora pela garantia de condições de segurança antes e depois do referendo, o Conselho de Segurança não quis reagir com a firmeza mínima exigível à chacina pessoal e material perpetrada pelos militares indonésios e pelos para-militares em todo o território de Timor Leste na sequência do anúncio dos resultados da consulta popular. Pelo contrário, o Conselho de Segurança não só enveredou por procedimentos formais pouco transparentes - privilegiando as consultas informais aos debates públicos (Monteiro, 2001: 19) - como insistiu sempre em não pôr em causa a autoridade de Jacarta, optando sempre por tentativas, bilaterais ou mais colectivas, de convencer as autoridades indonésias a agir, evitando até ao último momento a adopção das medidas fortes de intervenção que se impunham perante a contínua degradação da situação no terreno, e que vinham sendo preconizadas não só por Portugal mas também pela Austrália e mesmo pelo próprio Secretário-Geral das Nações Unidas, Kofi Annan. Prova-o a declaração de um porta-voz da ONU, citado pelo Times de 2 de Setembro de 1999: "Esta é uma operação em solo indonésio, onde a Indonésia é totalmente responsável pela segurança. Não há qualquer intenção neste momento de exigir uma mudança dessa situação. Pelo contrário, o que estamos a fazer é pressionar a Indonésia para se esforçar mais por garantir a segurança do território."
Na apaixonante narrativa dos "dias de brasa" da questão timorense nas Nações Unidas, António Monteiro revela, não surpreendentemente, que esta obstinada persistência de uma atitude de tolerância em relação a Jacarta lhe havia sido antecipada por um alto funcionário da Missão Permanente dos Estados Unidos junto a ONU quando questionado sobre o que fariam Washington e o Conselho de Segurança caso se viesse a concretizar um banho de sangue em Timor Leste: "Nothing, I’m afraid." (2001: 27). Esta confidência veio a revelar-se tragicamente premonitória do que sucedeu em 1999. Parece hoje incontestável que, ao mesmo tempo que a chefia do Estado indonésio subscrevia os Acordos de Nova Iorque, facções do exército começavam a aplicar - através de grupos de milícias como a Besi Merah Putih ("Ferro Vermelho e Branco"), a Aitarak ("Espinho"), ou a Darah Merah ("Sangue Vermelho"), coordenadas por uma estrutura de comando chefiada por João Tavares - o plano secreto Operasi Sapu Jagad ("Operação Limpeza Global"), cujos objectivos "eram os de descrever Timor Leste como um território devastado pela guerra civil e, desta forma, incapaz de autogestão, sabotar o referendo e eliminar os membros locais do movimento a favor da independência." (Taylor, 1999: 204). É igualmente incontestável que a política de destruição e matança sistemáticas postas em marcha por ocasião do referendo do Agosto de 1999 foi facilitada, quer pelo regime de segurança estabelecido nos Acordos de Nova Iorque, quer pela fragilidade da UNAMET (241 membros do pessoal internacional das Nações Unidas, 420 voluntários (funcionários eleitorais), 280 polícias civis e 50 militares oficiais de ligação).
A afluência de 98.5 por cento dos recenseados à consulta popular de 30 de Agosto e o resultado absolutamente inequívoco (78.5 por cento a favor da independência) desencadearam, como é bem conhecido, a eliminação de independentistas e de sectores intermédios e superiores da sociedade timorense, ataques a elementos e instalações da Igreja católica, destruição de arquivos e documentação, deportação forçada de milhares de timorenses, pilhagens e destruições em larga escala de propriedades, concretizando assim a ameaça do sub-chefe das milícias pró-integração, Eurico Guterres: a registar-se uma vitória da independência, Timor Leste tornar-se-ia "um mar de fogo."
Face a um cenário como este, em nada diferente de quadros de limpeza étnica como os do Kosovo ou do Ruanda, a opção por uma intervenção fora do contexto institucional multilateral, designadamente através de uma força multinacional regional exterior às Nações Unidas, teria seguido os precedentes unilateralistas verificados ao longo da década de noventa. Por isso, a herança do caso de Timor Leste pode ser vista como encorajadora de "uma abordagem mais constitucional das actividades do Conselho de Segurança, abrandando assim a tendência actual para ver o seu desempenho como uma espécie de carimbo geopolítico" (Falk, 1998: 68). Deve, aliás, sublinhar-se que, para lá da dimensão formal ou procedimental, a aprovação da constituição da INTERFET é igualmente relevante no plano substantivo, pois que ela veio a consubstanciar não uma operação de manutenção da paz de tipo tradicional (peace keeping), nem uma força de imposição de paz de figurino igualmente clássico (peace enforcing), antes se assumindo como um marco precursor de novas tarefas de nation building a assumir pela comunidade internacional organizada em situações de reconstrução social pós-bélica.
4. Timor Leste: uma luta pós-vestefaliana
A luta dos timorenses pela autodeterminação deve ser percebida como um precedente importante de um combate pós-vestefaliano. Por duas razões principais: em primeiro lugar, Timor Leste permaneceu na agenda internacional graças à mobilização dos movimentos de solidariedade, muito mais do que devido às iniciativas diplomáticas dos Estados e das organizações intergovernamentais — neste sentido, Timor LoroSae é um produto da cidadania peregrina; em segundo lugar, o papel desempenhado por Portugal, a antiga potência colonizadora, como aliado do povo timorense e dos movimentos de solidariedade, e, bem assim, a articulação entre a diplomacia portuguesa e esses actores não governamentais em áreas cruciais (diplomacia dos direitos humanos, organizações multilaterais regionais, Comité de Descolonização das Nações Unidas) suscitam a questão da aplicabilidade da metáfora do Estado militante a Portugal neste caso concreto.
4.1. O papel da cidadania peregrina
Não há nada de inédito no uso de instrumentos não governamentais ou no estabelecimento de alianças tácticas com entidades não governamentais para suporte dos interesses dos Estados. Portugal teve, aliás, experiências anteriores neste domínio: por exemplo, o uso do lobby atlantista contra a administração Kennedy acerca da política colonial portuguesa. Além disso, a estrutura do movimento de solidariedade no caso de Timor Leste fez-se eco de referências internacionalistas anteriores, como o movimento anti-apartheid ou mesmo experiências frentistas de movimentos de solidariedade anti-fascista ou de assistência humanitária, e do modo como estes movimentos investiram na influência crescente dos media.
Mas, acima destas continuidades, destaca-se uma diferença fundamental: no caso de Timor Leste, os movimentos de solidariedade não exerceram uma função meramente defensiva. Ao invés, tornaram-se o mais importante dos aliados da Resistência, controlando, em conjugação com os líderes timorenses, o fluxo e os conteúdos da informação passada para a agenda dos meios de comunicação internacionais e para as redes informação mundiais.
A trajectória do movimento de solidariedade com Timor Leste apresenta fases distintas.
Ao longo da primeira dessas fases, até fins da década de 80, o movimento de solidariedade não governamental caracterizou-se pela sua fragilidade, confrontado que estava com a indiferença dos governos e dos políticos e reduzido a alguns comités locais ou mesmo a iniciativas individuais. Na Austrália, por exemplo, a militância individual — como a de James Dunn, Robert Wesley-Smith ou David Scott - foi absolutamente decisiva durante esse período para manter a questão viva na sociedade e no Estado australianos. Além da Austrália, também o movimento de solidariedade português se revelou de importância crucial durante essa década, sobretudo em virtude da sua função de intermediação entre a resistência no território e o exterior, o que, desde logo, impediu o governo português de aceitar qualquer tipo de acordo com as autoridades indonésias e de se demitir das suas responsabilidades enquanto potência administrante (cfr. secção 4.2 adiante). Na primeira linha desses movimentos em Portugal, após a formação de diversos comités de solidariedade com a RTDL (República Democrática de Timor Leste, proclamada unilateralmente pela Fretilin em Novembro de 1975), emergiu a CDPM (Comissão para os Direitos do Povo Maubere). A sua formação teve um objectivo operacional concreto: organizar uma sessão do Tribunal Permanente dos Povos, que teve lugar em Lisboa em Junho de 1980. A sua dirigente histórica, Luísa Teotónio Pereira, pertencia aos quadros do CIDAC (Centro de Informação e Documentação Anti-Colonial). Durante os anos 80, a CDPM serviu de plataforma de informação privilegiada (ou mesmo frequentemente exclusiva), levando o conhecimento dos factos ocorridos no território, entretanto silenciado pelo isolamento imposto pelo invasor, aos fora internacionais mais importantes, como as Nações Unidas e as suas agências especializadas e as organizações de defesa dos direitos humanos. Uma pequena ilustração dos efeitos deste papel: numa das rondas negociais entre Portugal e a Indonésia realizada sob os auspícios do Secretário-Geral das Nações Unidas, o governo português, usando informação proporcionada pela CDPM, apresentou uma lista detalhada de presos políticos timorenses, causando vivo embaraço nos representantes da Indonésia, cuja documentação era muito menos pormenorizada do que a portuguesa...
Um segundo grupo de apoiantes iniciais da causa timorense foi o das igrejas cristãs, com especial destaque para a Igreja Católica. A Igreja Católica assumiu-se como pólo de uma multiplicidade de estruturas de ajuda material e humanitária aos timorenses. Tendo permanecido como a única instituição oficial local que defendia a especificidade cultural dos timorenses e como pilar da resistência quotidiana à ocupação, a Igreja tornou-se em verdadeira e assumida estrutura organizativa da resistência política. "A Igreja, os padres e os religiosos são os três factores que ameaçam a integração de Timor Leste na Indonésia", afirmava peremptoriamente o major Prabowo, genro de Suharto e um dos comandantes militares da ocupação (cit. in Taylor, 1993: 300) . Na verdade, apesar da repetida ambiguidade do Vaticano - que, embora tenha mantido a administração apostólica de Díli fora da jurisdição da conferência episcopal indonésia, sempre evidenciou um claro juízo de prioridade conferido à protecção da comunidade católica indonésia, se necessário em detrimento dos católicos timorenses - a Igreja timorense manteve-se sempre na primeira linha da denúncia da violação dos direitos humanos, da exigência de um referendo de autodeterminação e de preservação da identidade do povo. Assim, o movimento de solidariedade internacional teve uma dimensão católica (ou cristã), fundada na solidariedade cristã e no compromisso de grupos católicos progressistas no combate pelos direitos humanos. Essa componente de matriz religiosa incluiu pequenos grupos ad hoc (como "A Paz é Possível em Timor Leste", de Lisboa), instituições católicas nacionais (como o Instituto Católico de Relações Internacionais, do Reino Unido) e movimentos católicos internacionais institucionalizados (como o Pax Christi, o Catholic Relief Service ou as Comissões Justiça e Paz, por exemplo).
Finalmente, uma terceira componente do movimento de solidariedade nesta primeira fase foi a dos movimentos de luta contra a ditadura na Indonésia. Tendo a denúncia pública das violações maciças dos direitos humanos como uma das suas prioridades, estes grupos viram na situação vivida em Timor Leste uma expressão concreta da natureza militarista e ditatorial do Estado indonésio. No topo deste último grupo encontramos a TAPOL, um movimento de campanha permanente pela libertação dos presos políticos indonésios (tapol é uma contracção de tahanan politik, preso político). A TAPOL esteve na origem de movimentos de solidariedade especializados que emergiram na segunda fase (de 1991 em diante), como os "Parlamentares por Timor Leste", criados por Lord Eric Avebury e Ann Clwyd, apoiantes da TAPOL. Mais recentemente, também a Solidamor adquiriu grande relevo neste terceiro grupo.
A segunda fase de evolução do movimento de solidariedade começou em fins da década de oitenta. O ponto de partida foi o massacre de Santa Cruz, cuja cobertura noticiosa pelos meios de comunicação internacional pode ser considerada como um ponto de viragem na internacionalização do caso. Esta segunda fase teve três características fundamentais. A primeira foi uma maior importância atribuída à relação entre a luta dos timorenses pela independência e a luta dos indonésios pela democracia. Este factor projectou o movimento de solidariedade para a Ásia, nomeadamente para países como as Filipinas ou o Japão. A segunda característica foi o alargamento do movimento, com especial incidência nos Estados Unidos, na Austrália e no Japão. Quer os grupos generalistas quer os grupos de solidariedade especializada optaram estrategicamente pela alargamento das suas redes a membros de todo o mundo. Um exemplo: a Plataforma Internacional de Juristas por Timor Leste, fundada em Lisboa em Novembro de 1991, era dirigida por um conselho executivo internacional com membros da Holanda, Portugal, Estados Unidos, Austrália, Índia, Moçambique e Brasil. A terceira característica foi a dinâmica de coordenação entre os grupos de solidariedade. Deste modo surgiram diferentes federações de ONG's centradas sobre o processo de descolonização de Timor Leste, a defesa dos direitos humanos e outros aspectos da vida do povo timorense no território e na diáspora. Dois importantes exemplos desta tendência são a Federação Internacional por Timor Leste (IFET) e a Coligação Ásia-Pacífico por Timor Leste (APCET), ela própria membro da IFET. Em 1999, a IFET tinha 36 grupos membros de 21 países diferentes como a Austrália, o Canadá, Fiji, Suécia, Portugal e os Estados Unidos. A APCET tinha 23 membros de 15 diferentes países daquela região. Este esforço de coordenação desenvolveu-se em simultâneo com o aprofundamento da aposta na criação e alargamento de redes de solidariedade, quer de alcance internacional quer no interior de certos Estados (por exemplo, a East Timor Action Network / US) e cujo alcance global se consolidou pelo uso crescente do correio electrónico e da internet. Deve sublinhar-se que esta rápida evolução do movimento de solidariedade a partir de 1991, foi de algum modo antecipada por uma mudança política fundamental na resistência timorense, operada entre 1983 e 1987. Tal mudança consistiu na substituição progressiva de um entendimento conflitual das relações entre as diferentes facções e partidos timorenses (como a Fretilin e a UDT) pela formação de uma frente nacionalista unitária (a Convergência Nacionalista, mais tarde CNRT, Conselho Nacional de Resistência Timorense), o fim da Fretilin como partido marxista-leninista e a emergência de Xanana Gusmão como líder consensual. Esta mudança possibilitou um apoio acrescido em todo o mundo, quer nos canais diplomáticos ou de Estados quer nas instituições multilaterais.
4.2. Portugal: um Estado militante?
Pode um Estado comprometer-se com uma luta não governamental de emancipação? Pode um governo ser agente de solidariedade internacional com uma causa que não esteja minimamente relacionada com o interesse geopolítico estratégico, quer dizer, motivado unicamente por uma solidariedade genuína? Têm os pequenos Estados "vantagens comparativas" nestes domínios quando comparados com as grandes potências?
O papel desempenhado por Portugal no movimento de solidariedade internacional com Timor Leste foi fundamental. Para o melhor e para o pior, Portugal foi o veículo diplomático da vontade dos timorenses em se autodeterminarem, como, aliás, lhe competia enquanto potência administrante. Desde o momento da invasão em 1975 até ao referendo de 1999, Portugal envolveu-se nos esforços diplomáticos para ser encontrada uma solução justa e juridicamente válida do caso, denunciando a ocupação, as violações grosseiras e em larga escala dos direitos humanos fundamentais, e a invalidade da apropriação dos recursos naturais de Timor Leste. Em bom rigor, porém, o efectivo envolvimento do Estado Português foi extremamente apagado até 1982, ziguezagueante nos anos imediatamente seguintes, acentuando-se, enfim, progressivamente a partir de 1986. Um dos mais reputados estudiosos do caso timorense, John Taylor, sentencia com frontalidade:
"globalmente, a política externa portuguesa ofereceu muito pouco, muito tarde. As acções internacionais levadas a cabo pelo governo para dar publicidade à situação de Timor Leste foram, geralmente, ou declarações de princípio, ou pequenos espinhos no flanco da diplomacia indonésia. (...) Nos anos que se seguiram imediatamente à invasão, o governo português tentou abdicar da responsabilidade em nome da conveniência política ao tentar enterrar o caso de Timor Leste. Quando isto falhou, tentou procurar uma ‘solução honrosa’. Na tentativa de o conseguir, no entanto, as suas acções passadas, a sua contraditória aproximação e a sua ‘flexibilidade’ nas áreas-chave como a autodeterminação e as eleições, colocaram-lhe severos limites à eficácia da sua política de defender a ‘honra’ nacional." (1993: 329)
Os principais responsáveis por essa evolução foram tanto a resistência dos timorenses no território como o movimento de solidariedade internacional. Esta evolução pode ser faseada em quatro etapas sucessivas.
A primeira decorreu entre 1975 e 1982. Podemos designá-la por fase do "multilateralismo como único caminho". A posição oficial adoptada por Portugal nesses anos foi a de que o caso de Timor Leste não opunha Portugal à Indonésia, mas sim a Indonésia à comunidade internacional; sendo assim, a ONU devia ser confrontada com as suas responsabilidades no caso. A verdade é que os verdadeiros protagonistas da causa timorense no terreno diplomático vieram a ser os países africanos de língua portuguesa (com especial destaque para Moçambique), que tomaram a seu cargo a manutenção da questão na agenda de diferentes organizações intergovernamentais. José Ramos-Horta (1994: 180) é bem explícito a esse propósito: "Os cinco países africanos de expressão oficial portuguesa (PALOPS) foram a partir de 1975 a retaguarda diplomática da nossa luta. Apesar das suas próprias deficiências e limitações de ordem material, nunca sonegaram apoio à FRETILIN (...). Se não fosse esse apoio, a questão de Timor Leste teria sido riscada da agenda da ONU poucos anos após a invasão." E chega mesmo a sublinhar que "entre 1976 e 1982, a Missão Portuguesa junto da ONU não tinha qualquer input a elaboração dos projectos de resolução sobre Timor Leste (...). A delegação portuguesa era uma observadora desinteressada, neutra. Pelo menos, assim parecia dado o seu alheamento da nossa luta nos corredores da ONU." (218). O único "sobressalto" nesta passividade portuguesa terá sido protagonizado por Maria de Lourdes Pintasilgo na sua intervenção como Primeira-Ministra na Assembleia Geral e, mais tarde, como assessora especial do Presidente da República para a questão de Timor Leste.
De 1975 a 1981, as resoluções aprovadas pela Assembleia Geral das Nações Unidas sobre Timor Leste evidenciaram uma crescente falta de apoio político internacional. Aliás, logo a votação da resolução de 1975 suscitou fortes razões para pessimismo: tendo sido requerida a votação separada do parágrafo operativo que "deplora energicamente a intervenção das forças armadas indonésias no Timor português", o resultado foi de 59 votos a favor, 11 votos contra e 55 abstenções, estas últimas provenientes do bloco árabe e dos países ocidentais, o que, na opinião de Ramos-Horta (1994: 184), foi interpretado em Jacarta "como uma ‘carte blanche’ para prosseguir o processo de anexação de Timor Leste." Tudo isso significa que a multilateralização foi meramente passiva, dado que Portugal nunca demonstrou capacidades reais para influenciar a evolução das decisões nas Nações Unidas.
Participante activo na frente onusiana desta luta, António Monteiro retrata esta fase do seguinte modo:
"os interesses estavam do lado da Indonésia, que tinha os membros mais influentes da comunidade internacional prontos a preservar uma política utilitarista de salvaguarda de proventos políticos e económicos; os princípios, esses estavam do lado de Portugal (e de Timor Leste) (...). Tratava-se de um ‘equilíbrio estável’ que não punha nenhum ónus à comunidade internacional. Como acontece frequentemente em questões deste género, o primeiro que tomasse a iniciativa de romper esse equilíbrio podia ser ‘punido’. Só isso, aliás, justificava a táctica de Jacarta: ir-se defendendo no voto de uma resolução anual, procurando entretanto aliciar novos aliados que permitissem, a prazo, fazer cair a questão no esquecimento." (2001: 10)
Neste contexto de perda e de consequente inviabilidade de ressuscitar a questão na agenda do Conselho de Segurança - e afastada a hipótese de pedido de um parecer consultivo ao Tribunal Internacional de Justiça sobre a legalidade da Declaração de Balibó como suposto acto de autodeterminação, alegadamente em virtude de uma tal iniciativa contradizer o pressuposto de partida de Portugal para continuar a afirmar-se como potência administrante sem margem para qualquer dúvida (Horta, 1994: 227) - a fixação de um mandato de mediação ao Secretário-Geral das Nações Unidas pela Resolução 37/30, de 1982 - que se ficou a dever à iniciativa diplomática do então Representante Permanente de Portugal junto da ONU, Vasco Futscher Pereira, animado pela recente eleição do seu amigo pessoal Javier Perez de Cuellar para Secretário-Geral (Monteiro, 2001: 9) - pode ser considerada um marco crucial na batalha jurídica e política internacional (Neves, 2000: 32).
A segunda fase, entre 1982 e 1986, poderia ter como lema "vamos conversar", tendo como característica principal a convicção portuguesa de que toda a prioridade deveria ser dada à salvaguarda de um núcleo minimalista de interesses: respeito pelos direitos fundamentais dos indivíduos em Timor Leste, presença da cultura portuguesa no território e identidade religiosa dos timorenses. Passado um momento fugaz de intensa mobilização diplomática, traduzida na circulação de mais de 40 embaixadores e enviados especiais por vários países (Horta, 1994: 219), em vista da aprovação, conseguida no limite, da Resolução 37/30, o discurso oficial de Portugal durante esse período foi o de que, estando a decorrer conversações humanitárias entre Portugal e a Indonésia, nenhuma iniciativa externa deveria perturbar a sua realização. Por isso, um acordo com a Indonésia e o Secretário-Geral determinou que, a partir de 1983, a questão de Timor Leste tivesse deixado de ser agendada para debate na IVª Comissão da Assembleia Geral das Nações Unidas. A consequência desta atitude foi uma efectiva tendência para legitimar o status quo criado pela Indonésia no território.
Entretanto, havia ocorrido uma significativa vitória do movimento de solidariedade não governamental: a criação em Portugal, em 1981, da Comissão Parlamentar para Acompanhamento da Situação em Timor Leste. Uma visita dos membros dessa Comissão à Austrália e às Nações Unidas ajudou a tornar pública a falta de cumprimento, por Portugal, de algumas das suas obrigações fundamentais enquanto potência administrante de Timor Leste, incluindo quaisquer iniciativas de apoio à causa da autodeterminação e até a simples elaboração de relatórios periódicos sobre a situação no território para os órgãos competentes das Nações Unidas. O ano de 1986 foi decisivo no que toca àquele progressivo escorregar da posição portuguesa para a aceitação da soberania de facto da Indonésia sobre Timor Leste. Em Março, o Secretário-Geral adjunto Reffendin Ahmed apresentou um plano segundo o qual Portugal retiraria Timor Leste da lista de territórios não-autónomos em troca de um conjunto de garantias indonésias relativamente aos pontos relevantes acima referidos. Em Julho este plano foi discutido e rejeitado pelo Conselho de Estado português, não sem que se tenham manifestado posições divergentes a esse respeito. Aliás, não foi este o primeiro momento em que, ao mais alto nível do Estado português, se preparou uma solução de abandono da questão. Já antes, em 1983, circulara no âmbito do Governo um memorando que recomendava o envio a Timor Leste de uma missão parlamentar que, invocando posteriormente o visível desenvolvimento económico realizado pelo ocupante, recomendaria a normalização de relações diplomáticas com a Indonésia e a aceitação da anexação de Timor Leste (Horta, 1994: 277). Com a viragem ocorrida na política portuguesa sobre Timor a partir de 1986, a hipótese de realização de uma visita parlamentar passou a guiar-se por objectivos bem diferentes até se vir a gorar em 1991.
A terceira fase (1986-1997) teve como referência principal o desdobramento funcional de Portugal. O país tinha-se tornado membro da Comunidade Europeia em 1986 e, sob pressão do movimento de solidariedade não governamental, essa nova condição foi usada para a internacionalização sustentada do problema de Timor. Benedict Anderson (2000: 6) afirma a este respeito que "o tempo começou a mudar de lado [dos indonésios para os timorenses] quando Portugal foi admitido na Comunidade Europeia." De facto, até então só a cortesia, segundo este autor, tinha determinado que as potências europeias se coibissem de reconhecer de jure a soberania indonésia sobre Timor Leste. A fragilidade dessa motivação permitiu, aliás, que esses mesmos países europeus, com o Reino Unido à cabeça, tenham mantido importantíssimos fluxos de exportação de armamento sofisticado para a Indonésia e canalizado para esse país assinaláveis investimentos. Por isso, "tratava-se de saber por quanto tempo continuariam a ter essa cortesia." Ora, a entrada para a Comunidade Europeia deu a Portugal a possibilidade jurídica de vetar permanentemente qualquer iniciativa de reconhecimento europeu da anexação. Virtualidade formal muito importante, sobretudo se perspectivada no contexto de "impaciência e incompreensão" dos restantes Estados membros ou mesmo de "hostilidade activa" da Comissão Europeia às posições portuguesas (Neves, 2000: 32). Uma significativa expressão disso foi a Posição Comum assumida pela União Europeia em 1996, reconhecendo que qualquer solução deveria respeitar "os interesses e as aspirações legítimas do povo timorense." Esta posição comum, importante em si mesma por agregar os países europeus numa visão oficial ‘única do problema timorense, constituiu igualmente a base de actuação política e negocial da União, enquanto tal, em fora internacionais como as Nações Unidas (Neves, 2000: 34).
A diplomacia portuguesa - entretanto objecto de assinalável renovação, com a nomeação de Rui Quartin-Santos para a coordenação de todo o dossier de Timor, de Fernando Reino para Representante Permanente em Nova Iorque, assessorado por Ana Gomes, Francisco Ribeiro Teles e José Júlio Pereira Gomes, a manutenção em Genebra de Costa Lobo e a coordenação dos negócios políticos por António Monteiro - foi compelida por alguns factos muito importantes a investir crescentemente nessa estratégia de internacionalização: a visita do Papa ao território (1989), o massacre de Santa Cruz (1991), a ocupação das instalações da Embaixada dos Estados Unidos em Jacarta por estudantes timorenses das universidades de Java e de Bali por ocasião da chegada do Presidente Clinton para a cimeira anual da APEC (1995) e a atribuição do Prémio Nobel da Paz ao Bispo Belo e a Ramos Horta (1996) foram encarados como desafios a uma aliança estratégica reforçada com as ONG's. Os resultados concretos dessa percepção da diplomacia portuguesa traduziram-se num apoio material e logístico a algumas iniciativas das ONG's e da actividade diplomática da Resistência e numa melhor articulação entre diplomacia e movimento de solidariedade (por exemplo nas sessões da Comissão de Direitos Humanos da ONU em Genebra).
Este necessário reforço do carácter militante da diplomacia portuguesa não correspondeu apenas à crescente afirmação internacional da causa independentista propiciada pela Resistência e pela solidariedade internacional. Ele teve igualmente como contra-parte uma intensificação do controle e da repressão no território pelas forças indonésias. A captura e posterior julgamento-fantoche de Xanana Gusmão, em 1992, constituiu um primeiro passo numa operação - ulteriormente apelidada de Operasi Tuntas ("Acabem com Eles") - de identificação e "limpeza" dos independentistas, conduzidas por grupos de "ninjas" e pelas forças especiais do exército indonésio (Kopassus) (Taylor, 1999: 197). Os anos que se seguiram ao massacre de Santa Cruz foram, pois, de radicalização de posições e é nesse quadro que deve ser entendida a intensificação do trabalho diplomático por Portugal.
Por fim, a última etapa é a do "fim do dragão". A gravíssima crise financeira com que se confrontou a Indonésia desde 1997 e as contradições inerentes ao início de um processo de transição para a democracia foram aproveitadas pela diplomacia portuguesa como oportunidades históricas únicas para se conseguir amarrar o Estado indonésio a um compromisso jurídico, sob os auspícios das Nações Unidas, quer dizer, com o aval e a supervisão da comunidade internacional. Tal como escreveu Barbedo de Magalhães, "Timor Leste tornou-se na encruzilhada fundamental da transição indonésia" (1999: 174).
Esta importância estratégica de Timor Leste no processo de mudança política na Indonésia ganhou visibilidade quer em iniciativas das autoridades cimeiras daquele país quer na condução do dossier no interior das Nações Unidas. A chefia indonésia, ciente dessa importância, viu-se compelida a dar o "passo impossível": em Janeiro de 1999, o Presidente Habibie, confrontado com a rejeição internacional da sua proposta de um regime de autonomia especial para Timor no seio da nação indonésia, anunciou a disponibilidade dos invasores para retirar. "Provarei ao mundo que posso dar uma importante contribuição para a paz mundial (...). Rolará como uma bola de neve e ninguém a poderá parar." Mais clara foi ainda a conselheira presidencial para a política externa, Dewi Fortuna Anwar: "Porque é que temos de manter Timor Leste se isso nos está a prejudicar e os timorenses estão infelizes com a situação?" (Taylor, 1999: 201). Por sua vez, as conversações entre Portugal e a Indonésia sob os auspícios do Secretário-Geral das Nações Unidas, que haviam estado confinadas, desde 1983, a pontuais medidas de restauração da confiança entre as partes (designadamente a realização de operações humanitárias pelo Comité Internacional da Cruz Vermelha, o repatriamento de alguns portugueses, antigos funcionários da administração colonial, que ainda permaneciam em Timor, e o reagrupamento familiar dos que já haviam saído do território), conheceram um claro impulso a partir de 1997, com a eleição de Kofi Annan para Secretário-Geral da ONU. Tendo anunciado, desde a primeira hora, a sua disposição de assumir uma posição pró-activa na questão, Annan materializou-a rapidamente com a nomeação de um representante pessoal do Secretário-Geral para a questão de Timor Leste (Jasheed Marker, do Paquistão). A abertura de secções de interesses de Portugal e Indonésia em representações diplomáticas de países terceiros e a dinâmica negocial preparatória do que viriam a ser os Acordos de Nova Iorque deram mais expressão a esta sensível mutação do cenário. E foi já no horizonte de uma rápida transição para a independência que, no início de 1999, o Secretário-Geral Kofi Annan criou um grupo de contacto para supervisionar o processo de mediação, constituído pelos Estados Unidos, Japão, Austrália, Nova Zelândia, Reino Unido e Canadá.
Os Acordos de Nova Iorque, assinados em 5 de Maio de 1999, têm sido objecto de uma avaliação que está longe de ser consensual. Acima de tudo, é sublinhada a fragilidade (e ilegitimidade) da atribuição à Indonésia do exclusivo da garantia da segurança durante e após a consulta popular. Apesar das óbvias reservas que me suscita esta solução, acompanho Patrícia Galvão Teles na opinião de que "talvez este compromisso tenha sido o único possível na altura", sendo os acordos "a peça fundamental que permitiu aos timorenses exercerem o seu direito à autodeterminação. Mesmo que o preço a pagar tenha sido bastante elevado" (1999: 393). Neste mesmo sentido vai, aliás, a posição de Ian Martin, Representante Especial do Secretário-Geral para a Consulta Popular em Timor Leste e Chefe da Missão das Nações Unidas em Timor Leste (UNAMET):
"Não há dúvida de que o povo de Timor Leste teria sido poupado a mais um dos ciclos de violência que marcaram a sua história, se a consulta popular tivesse tido lugar com uma presença militar internacional mandatada para garantir a sua segurança, e os acordos têm sido criticados por entregarem a responsabilidade pela segurança à polícia indonésia. Mas também não há dúvidas de que qualquer tentativa para insistir numa presença internacional de segurança significaria a não realização do acordo. Uma posição mais forte, por parte de governos chave, na questão de Timor Leste, talvez pudesse, com o tempo, mudar essa realidade, mas os negociadores trabalharam com a realidade existente no princípio de 1999. O que é notável não é que os acordos não incluíssem melhores garantias de segurança, mas que pudessem ter sido concluídos: a outra realidade era que a vontade do Presidente Habibie para aceitar a opção pela independência tinha escasso apoio, dentro e fora do seu próprio governo, e ainda menos nas TNI [forças armadas indonésias]" (2000: 28).
Uma vez mais, Portugal assumiu esse acordo como o resultado possível, na confiança de que, em qualquer caso, a comunidade internacional agiria para obrigar ao seu cumprimento e para garantir a aplicação efectiva dos resultados do referendo. Os massacres que se seguiram puseram em causa a boa fé deste entendimento. E, mais do que nunca até então, a articulação entre os três pilares principais deste combate — a Resistência timorense, a diplomacia portuguesa e o movimento de solidariedade internacional — foi sujeita a um teste decisivo. O certo é que a pujança inacreditável que essa aliança então atingiu foi projectada globalmente pelos canais típicos da aldeia global: os media, as redes de informação, a sociedade civil global, etc.. Talvez melhor do que qualquer elaboração teórica possa um episódio autêntico e divertido desse Setembro de 1999 resumir metaforicamente que foi esse tríptico (Resistência, Portugal, ONG) o que verdadeiramente salvou Timor. Na maior manifestação organizada diante da Embaixada dos Estados Unidos em Lisboa, o embaixador norte-americano garantiu aos representantes dos manifestantes que os Estados Unidos estavam prontos a assumir as suas responsabilidades em favor do povo timorense. A razão era a imensa mobilização da opinião pública um pouco por todo o mundo. Aquela manifestação era, segundo ele, emblemática do que afirmava, pois que a tinha visto... no noticiário da CNN (e não através das janelas da Embaixada naquele mesmo momento e naquele mesmo local)...
Epílogo: quem foi salvo, afinal?
Após vinte e quatro anos de opressão e martírio, o povo de Timor Leste pôde, enfim, exercer o seu direito à autodeterminação. Até à consumação formal da independência, Timor mantém o estatuto de território não autónomo, tendo Portugal (autoridade de jure) e a Indonésia (autoridade de facto) transferido para a ONU - que, para o efeito, criou a Administração Transitória das Nações Unidas em Timor Leste: UNTAET) - o poder de administrar o território. A UNTAET abrange três áreas de competências: governo e administração pública, reabilitação humanitária e de emergência e militar. Estas áreas consubstanciam um mandato muito amplo, que inclui a manutenção da segurança e da ordem pública, a criação de uma administração efectiva, o fornecimento e a coordenação de ajuda humanitária, a promoção de capacidades de autogoverno e a criação de condições para um desenvolvimento sustentado (Galvão Teles, 1999: 420).
Juridicamente, as Nações Unidas detêm apenas poderes não soberanos de administração, tal como sucedeu no Irião Ocidental (UNTEA), no Camboja (UNTAC), na Eslavónia Oriental (UNTAES) ou no Kosovo (UNMIK). Mas a peculiaridade do contributo de Timor Leste para o património histórico da solidariedade internacional reside também nas interrogações que a amplitude deste mandato das Nações Unidas tem suscitado, designadamente no que se refere a saber se estaremos ou não perante um precedente crucial no desempenho de novas funções pela ONU no mundo contemporâneo.
Significativamente, James Traub qualifica a operação atribuída à UNTAET como um exercício de colonialismo benevolente (2000: 75). O que vem corroborar, neste caso concreto, a hipótese lançada provocatoriamente por Edward Luttwak (2000: 67) de que, na grande maioria dos casos, as intervenções multilaterais realizadas sob a égide da ONU para pôr termo a práticas de violação sistemática e em larga escala de direitos humanos fundamentais "não podem ser meros raids ou visitas-relâmpago à la Somália", antes "têm de dar lugar ao estabelecimento de protectorados das Nações Unidas com capacidade para erguer infra-estruturas, educar as populações e desempenhar todas as funções próprias de um governo civil. E, por uma questão de necessidade, a duração destes protectorados deverá ser medida em décadas e não em anos."
Timor pode ser assim perspectivado como um ensaio, em pequena escala, do exercício destas novas funções da ONU que combinam singularmente motivações pós-vestefalianas (a defesa universal dos direitos humanos) com horizontes tipicamente vestefalianos (a construção de Estados-nação a partir de situações de caos administrativo e civil).
O que suscita, desde logo, dois tipos de reservas e inquietações. Em primeiro lugar, por mais benevolente que se arrogue, a atitude colonial está nos antípodas da prática emancipatória. Testemunhos entretanto conhecidos de responsáveis da UNTAET confirmam esta reserva. Assim, Pedro Bacelar de Vasconcelos, que integrou o Departamento de Assuntos Políticos, Constitucionais e Eleitorais da UNTAET assinala que a "visão vagamente neocolonial que resulta do conúbio entre o politicamente correcto académico americano e a atitude de Indiana Jones em cenários exóticos redunda numa grande incapacidade para compreender os timorenses, uma grande inaptidão para lidar com eles e compreender o que é decisivo nesta última etapa de transição para a independência" (entrevista ao "Público", 26.12.2000). E outro funcionário superior da UNTAET, Jarat Chopra, denuncia que "a ONU, no terreno, funciona como se estivesse em Nova Iorque. (...) impedi-los [aos timorenses] de entrar na administração foi uma estratégia metódica, de funcionários que queriam concentrar o máximo de oficiais da ONU nas suas equipas, para aumentar o seu pode dentro do sistema. Porque pensam que, se falharem numa missão, isso vai prejudicar o seu currículo. Quando isso se torna a única razão de actuar, começa a ditar a história dos acontecimentos".
A esta primeira sombra junta-se uma outra. O sensível aumento, e prolongamento no tempo, das tarefas a desempenhar pelas Nações Unidas tornam-na ainda mas refém dos financiamentos dos Estados e, portanto, da respectiva vontade política em se comprometerem em gastos tendencialmente improdutivos e de longo prazo. Ora, como é óbvio, estão assim criadas condições para que, uma vez formalizada a independência, os principais Estados contribuintes para o orçamento da ONU - os quais têm reiteradamente expresso a sua indisponibilidade para se responsabilizarem pelo "negócio" de construir países - venham reclamar que a actuação da organização passe a ser suportada por contribuições voluntárias pagas por (outros) Estados-membros interessados (Austrália e Portugal, em especial) e não mais pelo orçamento geral.
Sobre este fundo desenha-se um quadro preocupante. "Há pouca capacidade construída. Haverá um vácuo entre o que os timorenses vão precisar e o que a Missão lhes deixa. (...) a ONU vai convocar as eleições sem ter criado capacidade em Timor - e depois vai-se embora, deixando o desastre atrás de si".
Quem se salvou, afinal?
Com as luzes e as sombras de todos os processos históricos, a luta dos timorenses pela sua autodeterminação acrescentou elementos preciosos à História como narrativa de emancipação. E, porque é de emancipação que se trata, esse acrescento foi inicialmente entendido como impossível, depois como inviável, até se tornar, enfim, realizado. Ou melhor, até começar a romper. Porque a emancipação nunca é um momento mas sim um processo. Xanana Gusmão, líder da Resistência timorense, é porta-voz dessa ambição sempre inacabada:
"O povo de Timor Leste não desejava apenas a independência, não lutava apenas por ter uma bandeira, um hino, um presidente e um governo próprio. O povo timorense alimentava outros sonhos que sabia só poderem ser realizados com a conquista da independência. Só a independência o tornaria sujeito activo do processo do seu próprio desenvolvimento, tanto no plano colectivo como no das liberdades individuais e dos direitos de cidadania" (2000: 39).
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