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Maria Paula G. Meneses «Quando não há problemas, estamos de boa saúde, sem azar nem nada»: para uma concepção emancipatória da saúde e das medicinas (texto não editado)
1. Introdução Quando hoje em dia se fala de conhecimentos rivais, na maioria dos casos o ponto de partida das análises realizadas apresenta os sistemas de conhecimento modernos - caso da biomedicina - como formas globalizadas de saberes (Chavunduka, 1994, Wynne, 1994, Mappa, 1998). Em vários trabalhos produzidos no continente Africano, o acto de localização de saberes dos ‘outros’ é o momento crucial na produção de uma relação de desigualdade, pois que a partir de então as formas de protecção e recuperação da saúde pré-medicina moderna passam a ser caracterizadas como terapias tradicionais, de âmbito local (Ngubane, 1981, Hewson, 1998). Quando as parteiras tradicionais, os curandeiros e da medicina verde, são concebidos como os principais componentes da ‘medicina tradicional’ (WHO, 1996) na realidade o que está em curso é uma simplificação extrema do conceito de saúde, onde não são tidas em atenção as especificidades históricas, económicas, políticas e culturais por detrás do desenvolver dos conhecimentos sobre saúde (Meneses, 2000). Em Moçambique, na maioria dos trabalhos abordando a temática da ‘medicina tradicional’, o discurso predominante confere à ciência moderna um estatuto hegemónico de conhecimento, protegido e definido pelo Estado na qualidade de ‘saber oficial’. Pelo contrário, às formas de conhecimento nativas é atribuído um carácter secundariamente situacional (Marrato, 1995, Tsenane, 1999, Instituto Nacional de Estatística, 1999). A procura de uma definição de ‘medicina tradicional’, para além da diversidade e da heterogeneidade das práticas e saberes terapêuticos, está inscrita na ordem social resultante do processo de colonização do próprio conhecimento; o que constitui estas práticas em objecto é simplesmente a negação do seu reconhecimento pelo Estado (Santos, 1995). A hipótese alternativa que gostaria de discutir neste trabalho está centrada no argumento de que as formas e as práticas de saber ditas ‘tradicionais’ detêm realmente um estatuto de saber legítimo, o qual é reafirmado pela grande afluência de pacientes a estes terapeutas. Apesar das repetidas tentativas de epistemicídio de que estas formas de saber sobre saúde têm sido alvo, tal facto poderá ajudar a explicar a enorme vitalidade e persistência dessas práticas, quer no período colonial, quer nos dias de hoje. Mas muitos outros aspectos têm de ser explorados. O que será uma medicina alternativa? Alternativa em função de quê e de quem? O que deverá ser considerado conhecimento legítimo? E legítimo na óptica de quem? Para que o saber se transforme em solidariedade, que garanta a libertação e a igualdade de cada cultura, é preciso dar a essa cultura, ao ‘outro’, o estatuto de sujeito. O tema central deste texto - a interrogação sobre a relação dicotómica entre saberes locais e globais, vista através do prisma da evolução da medicina ‘tradicional’ - está ainda pouco explorado enquanto objecto de pesquisa. As reflexões aqui apresentadas são fruto de um projecto de pesquisa a decorrer há mais de 18 meses na da cidade de Maputo, especialmente no Bairro Polana Caniço (da zona suburbana da cidade).
Trata-se de uma região extraordinariamente complexa e de grande riqueza cultural, onde estão presentes vários sistemas de saúde, que frequentemente se cruzam e interpenetram. Esta pluralidade de sistemas médicos (MacCormack, 1986) não é fácil de avaliar, pois que diferentes percepções individuais e de distintos grupos sociais sobre a saúde, bem estar, sobre o mal, estão presentes, resultando numa trama imensamente rica que se traduz em formas de intermedicina. Num mundo onde a produção de diferenças culturais é permanente, este processo actua como catalisador de espaços atravessados por relações políticas e económicas de desigualdade. Por isso, neste trabalho, o aspecto inicial da discussão centra-se no questionamento das razões da construção desta diferença. Quem é o ‘outro’, o que produz e preserva formas outras de saber? Para avaliar as percepções existentes em relação aos distintos sistemas médicos presentes foram realizadas entrevistas a praticantes da medicina tradicional, a seus pacientes, a elementos envolvidos na elaboração das políticas de saúde no País (a nível do Governo e de ONG), etc. Este estudo incluiu entrevistas abertas e em profundidade a cerca de 30 pessoas, cujas idades variam entre os 22 anos e mais de 60 anos. Na maioria dos casos as pessoas foram entrevistadas separadamente. Grande parte das informações aqui apresentadas e discutidas provém de entrevistas realizadas a ‘médicos tradicionais’ da nova direcção da AMETRAMO, os quais partilharam comigo, quase numa rotina quotidiana, reflexões sobre as sua práticas e sabedorias, os seus problemas, dúvidas e incertezas. Escrever um texto utilizando como base de narração ‘outras’ percepções sobre saberes constituiu um enorme desafio. O ajustar da pertença a um mundo muito complexo e dinâmico - incluindo aspectos tão distintos como a rotina do dia-a-dia e a discussão académica - demonstrou que uma reflexão sobre como emancipar o conhecimento só poderia ser alcançada através da elaboração de um texto mestiço. Isto explica a escolha apresentada neste trabalho, que desliza da narrativa situada para uma análise mais detalhada do tema, evitando a elaboração de uma imagem estereotipada sobre o ‘outro’, pela sua presença enquanto sujeitos, detentores de identidade própria. A preferência pela narrativa pessoal permitiu apresentar o processo de construção do ‘eu’ particular a cada sujeito, avaliando as subjectividades de apreciação de cada um dos narradores. No texto, os ‘eus’ passaram a ser elementos activos do discurso, parte da análise do fenómeno, e não o fenómeno em si, gerando muitas questões que ficaram por explorar. Isto obrigou igualmente a um desvio pelo campo interpretativo do próprio conceito de saúde, a uma reflexão sobre o lugar e o papel das medicinas presentes em Moçambique, dando voz a vários dos actores que participam deste desafio. 2. Medicina, medicinas .... Em várias das conversas com uma das terapeutas tradicionais, esta afirmou que «tem doença nossa, tradicional, mas lá na escola [Faculdade de Medicina] não sabe o que é isto. Mas nosso quando tem problemas que não sabe resolver, manda no hospital». Estas palavras sublinham a afirmação de vários autores sobre como a doença, o mal, são explicados: as etiologias são a expressão directa de normas e representações que sustentam os edifícios sociais (as transgressões a proibições, as manifestações de espíritos ancestrais, as agressões de feiticeiros, etc. - Dozon, 1987, Hess, 1994). Num país como Moçambique, com uma matriz sociocultural extremamente complexa, é inquestionável a existência de uma amálgama de subculturas médicas, cada uma com as suas próprias características e estruturas, embora para a biomedicina estas sejam descritas como uma entidade homogénea, resultando, por ignorância, na referência a uma medicina tradicional de carácter único e geral (Nordstrom, 1991, Jurg, 1992, Frelimo, 1999). Estes estereótipos, emergentes em situações coloniais, persistem ainda nos dias de hoje. Tal como se discutirá ao longo do texto, em Moçambique desde há muito que se detectam evidência da germinação de sistemas médicos híbridos - hibridização esta que aceita inclusivamente o modelo médico moderno, criando o mesmo espaço para a sua actuação. Vista desta perspectiva, a vitalidade das medicinas tradicionais é um espelho das dificuldades de uma biomedicina que parece não conseguir alcançar os seus objectivos. A hibridização dos conhecimentos terapêuticos constitui uma diversidade entremeada de apropriações transformadas, e não cristalizadas no espaço e no tempo, como tantas vezes sugerem os ‘valores tradicionais’. Como ponto de partida, a análise desta pluralidade de sistemas médicos é feita utilizando cautelosamente as variáveis oficial/não oficial, tradicional/moderno. A cautela aqui referida decorre da situação de intermedicina, da permanente mistura e cruzamento de decisões que originam uma multiplicidade de situações híbridas. A dicotomia oficial/não oficial é definida pelo Estado, sendo este quem estabelece, pelo direito, no seio da multiplicidade do pluralismo terapêutico presente em Moçambique, uma distinção mais ou menos explícita entre o que é legal e o que é ilícito, senão mesmo ilegal. No caso da medicina, tudo o que é reconhecido como medicina oficial é alvo de apoio por parte do Estado. Toda a medicina que não é reconhecida como ‘estatal’ é tolerada, mas continua sendo mais frequentemente ignorada, porque pouco permeável a imposições e controle por parte da biomedicina. A formalização, em curso, da medicina tradicional é a causa da sua fragilidade, sendo esta tentativa de normação reflexo da natureza do próprio Estado em Moçambique. Vista da perspectiva da medicina moderna, a medicina tradicional surge como abrangendo vários saberes, como a biologia e a química (i.e., as plantas usadas como remédios e os extractos/compostos activos que delas é possível extrair), a biomedicina (o tratar, o curar do corpo), a justiça (o resolver de problemas, de conflitos que encontram no corpo doente a sua expressão), e a religião (as explicações para as crenças descritas em função de um aparato conceptual mágico-religioso). A redução da complexidade de saberes a uma lista de áreas científicas, através da compartimentação e da normação do conhecimento, é a expressão mais visível da formalização do Estado. É por isso que, no campo ‘tradicional’, as instituições que tomam conta da doença, que estão encarregues de curar, são simultaneamente políticas, terapêuticas, jurídicas e religiosas; neste sentido, abarcam uma extensa área de competências e funções que submetem a eficácia do tratamento a uma eficácia mais envolvente, colocando em jogo os poderes tutelares, as estruturas normativas e simbólicas, as relações de força, de saberes e de poderes (Fisiy & Geschiere, 1990, 1996, Geschiere, 1995, Fisiy & Goheen, 1998, Comaroff & Comaroff, 1999). Este ponto requer uma avaliação cuidadosa da variável tradicional/moderno, na perspectiva da origem e do desenvolver das medicinas em Moçambique. Para uma modernidade assente em experiências eurocêntricas, o apelo ao qualificativo ‘tradicional’ nas práticas médicas é feito para fazer referência a valores colectivos existentes desde ‘sempre’, reforçando o estatuto de objecto de quem os produz. Em Moçambique, a tradicionalização dos saberes locais surge assim em paralelo e em oposição à emergência, a partir de finais do séc. XIX, do paradigma biomédico. Em função dos anseios sociais dos pilares desta dicotomia, tanto pode ser o tradicional uma invenção do moderno, como o moderno uma criação do tradicional. Nas palavras de C. Tamele, «a medicina tradicional é esta nossa, não escrevemos, não é como lá na universidade. Mas nós estudamos muito para saber curar, sabemos coisas que na escola não ensinam». A medicina moderna aparece apenas como mais uma prática terapêutica nesta região, sem constituir, ainda hoje, um concorrente verdadeiro às restantes medicinas, que mantêm a sua vitalidade. O denominador comum reside na vantagem que estas medicinas ‘tradicionais’, paradoxalmente possuem, por não constituírem um domínio autónomo, fechado num corpo de regras, saberes, práticas e especialistas. De facto, as chamadas ‘medicinas tradicionais’ estão imbricadas em muitos outros sectores da vida social - neste sentido, elas obrigam ao redimensionamento do conceito de ‘doença’, de ‘mal’, que ultrapassa a categoria de infelicidade, e que se traduz em aspectos de ordem cognitiva, simbólica e institucional próprios à sociedade. A questão primordial que se coloca, conforme já referido, é a de compreender como se desenvolveram as dinâmicas de hibridização destas medicinas. Este universo traduz assim a coexistência, no campo social, entre as instituições terapêuticas que tratam a doença, o mal em geral, enquanto, em simultâneo, tratam a sociedade. Os ‘tratamentos’ visam garantir quer a reprodução e a manutenção da ordem - normas e representações, quer a sua perturbação (tensões, conflitos, infelicidades colectivas). Neste processo reside o cerne da autovalorização das medicinas tradicionais em Moçambique. 3. A invenção da medicina tradicional A doença, como símbolo de desajuste, de desequilíbrio individual e social, é pois, como qualquer outro símbolo, alvo de representações ambíguas e fluídas, construídas como práticas de conhecimento e exercício de poder (Appadurai, 1999, Santos, 1995, 2000). Num mundo onde a imposição hegemónica de conhecimento-ciência está em todo o lado, lutando com outras formas de conhecimento, uma das batalhas principais incide sobre o que se quer saber (ou ignorar), como representar este saber, e para quem. Em Moçambique, a procura de uma definição de ‘medicina tradicional’, para além da diversidade e da heterogeneidade das práticas terapêuticas, está inscrita na ordem social resultante do processo de colonização do próprio saber - o que constitui estas práticas em objecto, é simplesmente a negação do reconhecimento pelo Estado e seus organismos. Esta abordagem implica a criação do ‘outro’ pelo não saber, pela sua inclusão no mundo natural, e exclusão do mundo civilizado (Liengme, 1844-1894, Maugham, 1906, Pina, 1940, Silva Tavares, 1948, Santos Reis, 1952). Os conhecimentos sobre os saberes e práticas terapêuticas vão sendo decompostos em função da sistemática classificatória da ciência moderna. Esta compartimentalização de saberes vai permitir a apropriação, por parte do sistema colonial, dos princípios farmacológicos de produtos conhecidos de terapeutas locais, conforme o atestam vários comentários de sábios portugueses em missão de serviço em Moçambique: «Os remédios empregados pelos doutores indígenas são numerosos, por eles largamente utilizados em múltiplas doenças e, ás vezes, com assinalado êxito. na flora indígena muito há a estudar e, possivelmente, algumas coisas a aproveitar» (Santos Junior & Barros, 1952: 615). Em simultâneo, ao se localizar o saber, e posteriormente restringir o conhecimento apenas ao seu conteúdo simbólico, as comunidades ganham uma aura de exotismo, possuindo interesse como mercadoria para o turismo étnico, para o estudo antropológico desta diferença (Meneses, 2000). Ao identificar o saber local com o ‘sagrado’ desvia-se o foco da acção para longe dos autores, ao mesmo tempo que se reinscrevem continuamente as barreiras entre o mesmo e o outro, barreiras estas que sustentam o conhecimento como colonização. Os extractos de trabalhos a seguir apresento são exemplo da continuidade subterrânea de um discurso onde a oposição entre medicina e magia é reinscrita através da divisão entre biomedicina e medicina tradicional. Ontem, tal como hoje, a ‘medicina tradicional’ surge associada ao saber localizado, nativo, indígena (Batalha, 1985, Green, 1996, Green et al., 1999). O feiticeiro não oferece nada de extraordinário. É um preto como os outros (...) tendo apenas a esperteza bastante para se impor à sua consideração incutindo-lhes um respeito misterioso por seus processos clínicos, faculdades divinatórias e recursos para resolver várias dificuldades da vida. (...) Mas no geral não passa de um intrujão. (Cruz, 1910: 140). Neste extracto é ainda exemplar o modo hostil como o sistema colonial avalia negativamente as práticas médicas, ao tentar estabelecer uma equivalência entre o feiticeiro e médico tradicional. Feito o diagnóstico em que se desprezam sempre os simptomas físicos, os doentes são encaminhados [pelos ‘médicos negros’] assim se trate de males causados por espíritos de deuses, feiticeiros, de poluição pelos mortos (...) Contudo, o ‘médico negro’ não é, no geral, um charlatão, actua consciente e confiante na sua ciência. (Swalbach & Swalbach, 1970). Outro aspecto característico da medicina moderna é a sua fraca abertura em relação a outras possíveis formas de diagnóstico, que, por serem diferentes, não são reconhecidas em pé de igualdade enquanto meios auxiliares de detecção dos males. Há curandeiros que efectivamente curam com base em certos medicamentos obtidos a partir de raízes, plantas, etc., mas o curandeirismo espiritista é, sob todos os pontos de vista, negativo e obscurantista por excelência (...). (Castanheira, 1979: 12). [A medicina tradicional é] o conjunto de conhecimentos empíricos, desorganizados, deturpados do seu conteúdo pelo processo de transmissão oral e muitas vezes revestidos de práticas obscurantistas, tais como ritos, etc.[É função do GEMT] depurar os conhecimentos existentes de todas as ideias obscurantistas de que geralmente se encontram impregnados e assim promovê-las a conhecimentos científicos, a fim de os utilizar em benefício de todo o Povo. (Serviço de Nutrição, 1981: 3-5). Os dois últimos extractos, que reportam ao período pós-independência, ilustram bem a tentativa de imposição do saber moderno pela anulação das práticas que não actuavam de acordo com os ideias de desenvolvimento moderno preconizados pelo partido Frelimo (desde então no poder) e pelo Estado. Finalmente, o extracto que se segue, e tentando fazer um apreciação mais específica da diferença entre a medicina moderna e a medicina tradicional, reforça a ideia da dualidade das práticas, implicitamente apoiando a subordinação do tradicional ao moderno. Nas culturas tradicionais [da África Austral], o processo de cura assenta no princípio de desequilíbrio, resultando em problemas mentais ou de natureza física. Pelo contrário, a ciência médica assenta num dualismo cartesiano, na separação da mente do corpo; (...) o ênfase é colocado no curar do corpo, na eliminação do sofrimento físico. (Hewson, 1998: 1029). Ao mediar entre a prática da acção e a intenção de quem selecciona o conteúdo das representações, é possível produzir fenómenos que constituem realidades distorcidas, o que justifica a preservação da oposição nós/outros, de cariz marcadamente geocêntrico (Goody, 1979, Barth, 1995, Santos, 2000). A força hegemónica da ciência moderna produz pois a localização de saberes, os quais tanto podem ser causa de discriminação, como fonte de resistência a essa globalização. Mas como se percebem a si mesmos os médicos tradicionais? O localismo surge como forma de segurança e afirmação de uma especificidade própria, de um saber que lhes pertence e que por isso mesmo lhes permite negociar, e conquistar mesmo, espaços de poder. Para os médicos tradicionais, a sua ‘medicina’ é a que acontece «nos lugares daqui». Os próprios pacientes estabelecem uma distinção muito clara entre os limites e a aplicação da biomedicina e da medicina tradicional, distinção feita em função do contexto de produção/reprodução de conhecimentos sobre o bem e sobre o mal. 4. Os médicos tradicionais e a medicina tradicional - o conceito de saúde 4.1. «Ter saúde é ter boa vida...» Para a maioria da população da cidade de Maputo, e mesmo no sul do País, o conceito de saúde é bastante amplo, referindo-se implicitamente à existência de um balanço social, noção esta que não é única a Moçambique nem a África, pois que presente em várias culturas dando origem a distintos sistemas médicos. «Ter uma vida boa» é a expressão que melhor resume o que se entende por ter boa saúde. Vida boa traduz-se em «ter uma casa bem construída, ter comida bastante, ter dinheiro para a roupa, para sabão, para as crianças irem á escola, para o hospital»; «sentimos bem quando não há problemas, temos comida, a família está bem». A expressão destes sentimentos sugere que para se estar bem de saúde é necessário realizar em si mesmo um equilíbrio essencial, estar em paz com a família (incluindo os antepassados), com os vizinhos, com o próprio corpo (incluindo a higiene); estar convenientemente alimentado (o que na actualidade inclui ter emprego que garanta o sustento) e protegido de males, sejam estes naturais ou ‘enviados’. A inveja suscitada pelo facto de alguém produzir bastante na machamba, de alguém ter um bom emprego, pode fazer com que um familiar ou amigo recorra a um terapêuta tradicional para, através de feitiços, procurar apoderar-se desses bens, desse ‘bem estar’, molestando quem os possui: «As pessoa agora sofrem muito de azar e morrem mesmo por causa de feitiços, sem ser o destino delas ...». Isto requer uma análise mais complexa da chamada ‘medicina tradicional’, uma reavaliação quer da ética, quer dos princípios émicos subjacentes às interpretações que projectaram a produção conceptual sobre esta medicina. 4.2. Medicina e feitiçaria Uma discussão sobre as delimitações éticas de um sistema médico que se estende muito para lá dos limites estabelecidos para a biomedicina o alargamento da discussão ao campo da chamada feitiçaria. Conforme anteriormente mencionado, o processo de negação do saber da medicina tradicional passou pela identificação da imagem deste terapeuta à do feiticeiro. Mas trata-se de actores bem distintos, como o afirmam quer pacientes, quer praticantes da medicina tradicional: Há diferença entre curandeiro e feiticeiro. O curandeiro cura e o feiticeiro mata. O feiticeiro conhece remédios para matar. Enquanto que nós os curandeiros curamos porque é essa nossa obrigação (...) os espíritos obrigam assim, senão castigam.... Para acabar com esse azar, com a má sorte, é preciso a ajuda do médico tradicional, ponto de auxílio no restabelecimento do equilíbrio. Mas o médico tradicional também pode ser maliciosamente utilizado: (...) as feitiçarias vêm da ambição e do ódio entre as pessoas (...) Há plantas e animais venenosos que, mal orientados, podem causar o mal (..) Há raizes malandras (...)Há responsáveis que nos contactam para lhes ajudar a resolver problemas lá no governo, mesmo quando querem mais força para governar. Há plantas que ajudam a resolver problemas sociais e complicações no serviço. No tempo presente, a procura constante do médico tradicional torna-se mais visível, pois que são inúmeras as pessoas em busca de sucesso - promoções, riqueza, negócios, etc., mas a quem os recursos quer da sociedade moderna, quer da tradicional não têm sorrido. A própria classificação e sistematização das doenças identificadas como possíveis de ser tratadas pelos terapeutas tradicionais entrevistados na cidade de Maputo é bem diferente da utilizada pela biomedicina. Ao lado de epilepsias, sarnas, tuberculose, ‘dor de olhos’, emergem outras patologias como ‘conflitos conjugais’, ‘expulsar feiticeiros’, ‘azar’, ‘espíritos maus’. No sector tradicional da sociedade, se as coisas não caminham bem, quando a produção não é boa, quando ‘há azar’, o médico tradicional é consultado para procurar localizar e explicar a fonte deste problema, para dar remédios para eliminar ou a fonte do mal (evitando-a mesmo de futuro), ou ainda para restaurar a ligação aos antepassados. Quanto à questão da feitiçaria, a sua face visível para análise assenta essencialmente nas acusações, nos boatos sobre a questão, o que coloca inúmeros problemas quanto à avaliação da sua permanência e eficácia. Já que crimes desta natureza as autoridades e os tribunais não atendem por falta de provas materiais (...) as pessoas morrem, caem doentes, ficam paralíticas por causa destas barbáries dantescas, por causa desses feiticeiros que reinam e proliferam nas nossas povoações. E a lei ignora isso, chegando ao ponto de defendê-los. Qual é a diferença que existe entre um assassinado pela feitiçaria e outro por uma punhalada ou baleado? Não é o mesmo crime? Só por que o primeiro é feito, sei lá em silêncio e espiritual? Ou existe um medo nos homens da lei ao se distanciar desse problema sério da natureza tradicional com o receio de se descobrir que afinal de contas os feiticeiros ‘pululam’ mesmo até nos órgãos da justiça? (Phaindanne, 2000). Num primeiro momento urge observar a pertinência da oposição entre o saber científico e as representações locais no discurso sobre o ‘outro’. Embora nos dias de hoje esta ideia persista em muitos trabalhos, o que importa é identificar a quem estas situações beneficiam, como é que a feitiçaria está directamente relacionada com a reprodução ou ruptura da ordem social. A persistência do fenómeno de acusações de feitiçaria, ao transportar consigo uma enorme ambiguidade - porque ligada a qualquer forma de poder - demonstra ser essencial ao funcionamento social, fornecendo um poder suplementar que pode mesmo servir para fins construtivos. Assim, a feitiçaria deverá ser percebida como compondo a possibilidade de resistir às mudanças e às desigualdades continuamente emergentes, podendo suscitar também tentativas de apropriação de novos recursos. Tem gente que fica mesmo rico, cheio de dinheiro de familiares, de colegas de trabalho. Para serem chefes, para desenrascar mais a vida, vão no curandeiro. O médico bate as pedras, chama os antepassados para ajudarem, para aumentar a força desse ambicioso, contra o ‘inimigo’ dele. Ninguém depois pode mudar nada, senão encontrares um médico tradicional ainda mais forte ainda que esse que fez o remédio para a pessoa enriquecer e ter mais força no trabalho, ser um chefe maior (...). Eu vim aqui só porque quero estar bem com a minha família, fazer ‘vacina’, senão tudo vai correr esquisito no serviço, há muita inveja.... A tenacidade com que a feitiçaria irrompe na sociedade moçambicana faz com que as concepções do poder e do seu exercício tenham implicações específicas, pois que estas situações são simétricas em termos de sentimentos de força (protecção - médico tradicional) e impotência (inveja - feitiçaria). A medicina tradicional oferece os meios para açambarcar o poder; ao mesmo tempo ela reflecte sentimentos de impotência, pois que parece servir para ocultar as fontes do poder. Em sociedades onde o papel das redes familiares é extremamente forte, a feitiçaria e o apelo ao médico tradicional para a promoção social demonstram quão ligados estão estes dois fenómenos, que serão adiante analisados em mais detalhe. O discurso sobre a feitiçaria não é exclusivo a Moçambique (Geschiere, 1995, Englund, 1996, Mappa, 1998, Comaroff & Comaroff, 1999), nem tão pouco ao continente africano (Taussing, 1987, Escobar & Pardo, 2000). Porém, na região onde este estudo tem lugar, a feitiçaria actua como um espelho privilegiado que permite ampliar a manipulação do ‘tradicional’ no jogo de construção de uma ‘outra modernidade’. Os discursos sobre feitiçaria não exprimem uma resistência ao desenvolvimento moderno; outrossim, constituem reflexos de uma luta constante por uma vida melhor. Porque a medicina tradicional se constitui como um sistema aberto, formalmente delimitada apenas a nível dos estatutos de uma associação conforme sobre será adiante discutido, inúmeras são as possibilidades de explicação para os problemas e dilemas que a vida coloca. Isto torna possível uma interacção antropofágica de distintos elementos, os quais fazem parte do projecto de constituição de uma ‘outra modernidade’ (Ong, 1996, Santos & Trindade, 2000). Neste sentido, as acusações de feitiçaria, longe de reforçar uma alteridade radicalmente diferente pelo exotismo estranho, são um discurso de luta sobre problemas que afectam a família, a comunidade, a sociedade. Do breve conjunto de opiniões acima apresentadas o que parece emergir de específico é o facto de, num contexto de procura de solução para um mal, os conceitos de conflito e desequilíbrio social constituírem o eixo central em torno do qual se processa o tratamento e a cura da pessoa que está enferma. É neste espaço social que predomina a figura do médico tradicional. 4.3. Quem é o médico tradicional? Embora existam várias designações para os terapeutas tradicionais, a designação mais comummente utilizada é a de ‘nyàngà’. O nyàngà é aquele que cura, o que conhece a força dos remédios e como curar com o auxilio do saber de espíritos ancestrais. Num texto que procura dar voz e relevo a distintos actores, necessário é que os médicos tradicionais se apresentem a si mesmos, delimitando a sua especificidade e áreas de contacto com os terapeutas modernos. Um aspecto interessante é o facto de todos os médicos tradicionais se referirem ao período inicial da ‘sua chamada’ pelos espíritos dos antepassados para aprenderem a ser médicos, como um período muito difícil, rodeado de dor e sofrimento: Eu estava na África do Sul a trabalhar nas minas, e depois fiquei muito doente, não conseguia trabalhar (...) Depois vim para Moçambique, consultei um médico que me disse que eu tinha espíritos que queriam sair (...). Fiz o curso e fiquei médico tradicional. Aprendi muito, porque não é só espíritos, é saber tratar com plantas, ajudar as pessoas. Para eu ter estes espíritos que hoje me ajudam a ser curandeira, fiquei muito doente, mesmo muito doente, quase três anos que não fiz nada, não ia na machamba, nem comida aguentava tomar. Levaram-me ao hospital (...) Então disseram que tinha espíritos e mandaram-me para aprender a ser curandeira. A selecção do futuro médico tradicional acontece através de um mecanismo de ruptura conturbada (física e espiritual) com a sua família e comunidade, mecanismo este que parece estar fora do controle do candidato a terapeuta. Enquanto decorre o processo de percepção do seu novo papel social, o candidato sofre de inúmeros males físicos e psicológicos, emergentes sem uma razão plausível (e por isso sem cura) dentro do paradigma da biomedicina. O mal estar que não é explicado actua como palavra-chave de acesso a um universo distinto de sabedorias, as quais constituem o garante do poder de decisão do médico quanto ao desenlace de problemas críticos que terá de enfrentar na sua prática terapêutica. Este ritual de ruptura acontecerá também sempre que um problema de maior seriedade acontecer e que requerer maior seriedade e conhecimento: «(...) depois mesmo quando estamos a trabalhar e os espíritos saem, dói muito, fico com os braços e as pernas fechados, nem consigo me mexer, xei, nada mesmo. Custa mesmo quando eles saem na gente». Tal como referido por inúmeros médicos tradicionais, os espíritos ancestrais apropriam-se momentaneamente do corpo do terapeuta para apoiarem o médico no diagnostico da enfermidade, no detectar das suas origens, bem como na selecção dos remédios necessários para a debelar. O período de aprendizagem de um ‘thwasana’ prolonga-se normalmente de dois a cinco anos, podendo ser mais longo. Sob orientação dos antepassados que o escolheram para dar continuidade aos seus saberes, o candidato selecciona o ‘b’ava’ com que vai aprender a tornar-se num terapeuta qualificado: É duro estudar para ser curandeiro. Temos de aprender muita coisa. Temos que aprender a saber o que é que causa o problema, saber as plantas que curam, saber as diferentes doenças, e como curá-las, com que plantas, animais, muitas coisas. É preciso ter muito cuidado para não cometer erros. Aprendemos a conhecer e depois nas reuniões conversamos com os colegas. Não é simples aprender a ser-se médico tradicional: os princípios éticos com a pessoa humana estão patentes no cuidado em se evitarem erros, no segredo profissional sobre os males de que padecem as pessoas, etc. A doença é algo fora do normal que se instala no corpo e que por isso se faz sentir. O incómodo, a dor, são sinónimos de uma alteração profundo do equilíbrio. É pois preciso tratar, localizar a origem do problema (física ou espiritual) e restabelecer a normalidade. O mal pode ser derivado de não se cumprirem as regras sociais (caso das ‘timhamba’), de os mortos não terem sido correctamente enterrados, do contágio com objectos impuros, e ainda fruto da acção dos espíritos maus (os ’valòyì’). Muitas vezes as pessoas vêm aqui ter comigo me consultar porque fizeram maldades e porque é que as coisas estão a correr mal, porque é que há azar na sua vida. Depois tem muitos homens com doenças que apanham das mulheres, agora há muito problema desse aqui no Maputo, mesmo SIDA [embora se escuse a responder se pode tratar o SIDA]. Eu depois bato as pedras. Às vezes sai logo a resposta, às vezes não. Cada vez é cada vez. Mas só assim consigo saber bem mesmo o que a pessoa tem (...) Outros casos é preciso ‘kufemba’, para ver os espíritos que o doente tem. Eles vão dizer o que é que eles querem. São problemas que aconteceram e não resolveram. Quando houve a guerra, lá na zona de Gaza morreu muita gente, mesmos dos nossos mataram. Então agora, a pessoa está a passar e ele sai, o espírito, e fica dentro de ti, a precisar de resolver o problema dele. A pessoa fica doente mesmo, vai magrecendo magrecendo, e ninguém no hospital pode ajudar. Só o médico tradicional pode, tem de fazer tratamento para deixar esses espíritos saírem e dar a eles o que eles querem para ficarem felizes. A causa do mal define-se pois através da localização, palpável ou não, visível ou não, odorosa ou não, de um objecto estranho, que se introduziu no corpo de uma pessoa. Para aliviar o mal é preciso recorrer a remédios - aos ‘mìrhri’ - o que permite atingir de novo o estado de saúde. O remédio pretende sarar a carne, a dor que faz sentir esse pedaço da pessoa, e ao mesmo tempo restaura a confiança do indivíduo em si mesmo. O nyàngà cuida do corpo, sara as feridas, elimina os padecimentos do organismo utilizando os conhecimentos que tem sobre a natureza e, em simultâneo, trata as perturbações da cabeça e do espírito, causadas pelos desajustes socioeconómicos, por traumas profissionais. 4.4. Sobre as doenças Os médico tradicionais são os terapeutas que melhor parecem saber lidar com as doenças ditas ‘tradicionais’, i.e., doenças com uma pesada carga emocional, pois que trabalham com o corpo e com os espíritos, espíritos esses que ‘ocupam o corpo’ e causam problemas diversos aos pacientes. O nyàngà desempenha pois uma tarefa dupla: divinatória e curativa, assente numa concepção mais ampla da doença, percebida a dois níveis: como fenómeno social - como uma alteração profunda da vida quotidiana - e enquanto fenómeno físico - como manifestação de acontecimentos no corpo de uma pessoa. A função divinatória procura tratar as causas que originaram o mal, prescrevendo meios para a solucionar. A função curativa procura eliminar o sintomas físicos. Estas duas funções são complementares, pois concorrem para o restabelecimento pleno do doente. Para o médico tradicional, curar significa remover todas as impurezas ou desequilíbrios da vida do paciente, pelo que cada tratamento termina normalmente com uma cerimónia de purificação, prevenindo contra situações semelhantes de futuro. Na sociedade moçambicana, tal como noutras sociedades, a feitiçaria actua como elemento regulador das pressões sociais dissonantes (Meneses, 2000, Santos & Trindade, 2000). Quem tem muito dinheiro, poder, é porque o tomou de outra pessoa, apoiado por alguém. Quem morre, quem sofre ‘azares’, é porque está ‘doente’, tem problemas com o sucesso, há alguém que não quer que ele se diferencie; pode também tratar-se de alguém tentando romper a ligação ao micro-universo de pertença social. Por exemplo, a infertilidade é por vezes interpretada como sendo causada por alguém que não quer que a mulher ‘prenda’ o marido, o que em última instância implica a anulação de um casamento, do reforço dos laços familiares e comunitários. Para a resolução deste problema há que recorrer a todos os meios, incluindo o recurso a outra medicinas que não ‘tradicionais’: (...) quando uma mulher não concebe, nós tratamos e quando passa um mês, aconselhamos a ir ao hospital para fazer o controle. Depois volta e fazemos um tratamento para ‘segurar’ a grávida, o bebé na barriga da mãe. Tudo é importante, o hospital, os nossos remédios. Aí não há problemas. Os médicos tradicionais reconhecem a sua incapacidade para resolver a totalidade dos casos que se lhes apresentam e, frequentemente, após várias tentativas frustradas de sarar o problema, sugerem que o doente vá consultar terapeutas praticando outras medicinas, incluindo a biomedicina, simbolizada pelo hospital. A pluralidade de sistemas médicos produz pois esta possibilidade de recurso simultâneo a várias formas de ´tratamento’, permitindo a delimitação de um problema com expressão física. Em paralelo actua igualmente o sistema de punição e de regulamentação do mal. São duas faces de uma mesma moeda - o mal físico e o mal social, as tensões, os conflitos individuais e os comunitários, num sistema ainda em transição (e frequentemente em ruptura) para uma sociedade de acumulação capitalista individual. A percepção sobre a doença, as tentativas para a curar ou para a evitar, têm de ser entendidas e discutidas em função de cada um dos sistemas de conhecimento presentes - o da biomedicina e os das medicinas tradicionais existentes - pois que as noções de causalidade (etiologia) por vezes não são coincidentes. O médico tradicional, tal como os seus pacientes, não distingue necessariamente entre curar e tratar, entre sintomas objectivos e subjectivos, entre dados clínicos mensuráveis ou não mensuráveis, questões essenciais à prática da biomedicina. O médico tradicional está interessado em resolver o problema, em controlar os sintomas, em restaurar as funções físicas e as relações sociais afectadas. Como diz M.F. Zimba, «quando a cabeça não trabalha, o corpo é que sofre», resumindo o pressuposto principal do seu trabalho como médico tradicional. Embora muitas outras formas de medicina advoguem igualmente o princípio de que a causa da doença está na ruptura do equilíbrio e da harmonia da pessoa, para a biomedicina quando o corpo está bom, a desordem foi debelada. Entre os médicos tradicionais entrevistados, a questão que surgiu sempre foi a de que a harmonia, o bem estar da pessoa é reflexo do bem estar do seu grupo, da sua rede de amizades e familiar, e que a doença altera a relação entre as pessoas. Neste sentido, ao estudar um determinado caso, o nyàngà promove a reintegração do individuo num jogo de interesses solidários com o grupo, procurando manter a pressão dos conflitos emergentes, sendo detentor de um conhecimento que cria e desenvolve continuamente, para assegurar a manutenção do grupo. Como diria Lewis Carroll (1977), tem de manter-se em contínuo movimento para que o grupo se mantenha como está. Outro facto a ter em atenção é o da contaminação, no sentido em que frequentemente a doença (se resultante de contágio de espíritos ‘insatisfeitos’) caso não seja bem curada, poder afectar outras pessoas do grupo. O não cumprimento das obrigações para com os antepassados pode resultar na anulação da protecção destes à pessoa, ao grupo familiar, e mesmo à comunidade, uma vez que os espíritos dos antepassados permanecem parte integrante da estrutura familiar. O retorno da ligação interrompida é reclamando através da erupção do mal, provocado pela ausência de defesa por parte dos guardiães ancestrais, facto que de novo remete para a feitiçaria como sistema regulador dos desequilíbrios sociais. A forte dinâmica de actuação da médico tradicional contrasta com o projecto do Ministério da Saúde sobre a colaboração com os praticantes da medicina tradicional, como parte da sua política de saúde (Jurg et al., 1991, Frelimo, 1999). O quadro da saúde pública desenvolvido pelo Estado após a independência, coloca um ênfase especial no sector preventivo. Pretende-se assim alcançar a maioria da população do país, rural ou peri-urbana, através do estabelecimento de uma vasta rede de unidades e de agentes sanitários de base capazes de prestar cuidados de saúde elementares, bem como de promover a saúde pela educação e pela melhoria das condições de higiene. O resultado de tais políticas depende em primeiro lugar da participação das populações a quem se destina tal política. É por isso que a Organização Mundial de Saúde (WHO, 1978) tem vindo a recomendar a inclusão dos ‘praticantes tradicionais de saúde’ nos sistemas nacionais de saúde. Uma vez que esta política concebe as populações como parceiros desta campanha, e não apenas como receptores passivos, torna-se necessária a recuperação dos elementos que desde há muito se encontram directamente ligados a tais práticas dentro das comunidades - os terapeutas locais. Esta justificação tem vindo a ser utilizada pelo Estado para legitimar o seu interesse pela medicina dita tradicional, embora não seja suficiente para esclarecer as ambiguidades subjacentes que pesam quer sobre a noção de valorização da ‘medicina tradicional’, quer sobre as experiências práticas que são recomendadas. Ao promover um discurso que defende a integração da medicina tradicional dentro da medicina moderna, o Estado e a própria OMS (Jurg, 1992, Monekoso, 1994, World Bank, 1994, Aregbeyen, 1996, WHO, 1996, Friedman, 1996) pretendem retirar aos terapeutas tradicionais o controle sobre o tratamento - nos seus vários matizes - da maioria da população. Ao defender a formalização da ‘medicina tradicional’ em função da medicina moderna, a primeira é circunscrita a um conjunto de conhecimentos empíricos - plantas medicinais, farmacopeias, e ‘savoir-faires’ - técnicas corporais, epidemiologias (Tomé, 1979, Marrato, 1995, Lambert, 1997). O saber do médico tradicional só é válido como complementar à biomedicina; o terapeuta tradicional é visto como aquele que precisa de ser treinado, mas que não participa no treino dos biomédicos (Nordstrom, 1992, Cunningham, 1995). Este facto tem produzido um certo ressentimento condescendente entre os médicos tradicionais. «Não guardamos rancor a eles [i.e., praticantes da medicina moderna] mas queremos também reconhecimento, tem que respeitar a nós (...) queremos trabalhar com eles, mas também ensinar aquilo que a gente sabe, não é só as plantas». Todos estes aspectos sugerem que se deve avaliar mais profundamente as importâncias e as legitimidades dos saberes. 5. A importância da medicina tradicional 5.1. Entre a legitimação e a legitimidade Impõe-se pois uma análise rápida do papel do actor privilegiado que é o Estado, árbitro que se atribui um estatuto especial, ao elaborar as regras e, em simultâneo, participar no jogo. Ao se estudar quem são os actores autorizados e/ou favorecidos pelo Estado, que saberes são tolerados ou reprimidos, que actuações reconhecidas, ou mesmo o que se ignora, é possível obter uma noção mais forte e profunda das lógicas de acção do Estado. Isto implica ir mais longe, requerendo a análise dos campos de força em função do reconhecimento social das diferentes categorias de praticantes de saúde, num jogo complexo entre a concorrência e a complementaridade (Fassin & Fassin, 1988). Para o Estado, hoje, tal como ontem, a delimitação do que é saber e magia, do que é considerado oficial e do que não o é, é feito em função de práticas normalizadas, que este mesmo Estado controla. Numa perspectiva de legitimação racional que se impõe com o sistema colonial, só quem estudou nos centros formalizados de saber é que está autorizado a praticar medicina. Terá sido esta uma das razões de fundo que levou, no início da década de 90 do séc. XX, muitos dos médicos tradicionais a constituírem-se em associação - a AMETRAMO - facto que será discutido na secção seguinte deste texto. As pessoas legitimam os praticantes de cuidados de saúde que consultam, sejam eles treinados na biomedicina ou na chamada medicina tradicional. Normalmente associa-se espontaneamente a legitimidade tradicional ao nyàngà e a racional ao médico moderno, este último em função dos seus diplomas. A aceitação destes terapeutas depende e é garantida pela lealdade de quem os reconhece e os valoriza como herdeiros de sabedoria. A permanente procura destes terapeutas assegura a sua legitimidade, o reconhecimento da sua competência neste campo de conhecimento. Entre os próprios terapeutas, a legitimidade é reforçada pela pertença e partilha de um saber ancestral, recuperado nas ‘visitas’ dos espíritos. O compromisso de procurar curar o paciente, bem como a conduta moral do médico tradicional acabam tendo reflexo no seu sucesso como terapeuta: «Quando tem trabalho bom, tem que ser conhecido. As pessoas sabem que eu pode curar doenças, vêm de longe (...) Ouviram falar que existe um curandeiro no Maputo que cura esta e aquela doença. É assim que se sabe que eu sei curar bem, porque curou a muita gente». Uma das formas mais notórias de desclassificação da medicina tradicional pela medicina moderna passa pela caracterização da anterior como prática ilegal de saber, da sua negação pela ausência de procedimentos ‘científicos’ como a experimentação ou de noções sobre epidemias e contágios (Polanah, 1967-68, 1987, Junod, [1917]1996). Todos estes factores confirmam a caracterização ‘local’ da medicina tradicional, a partir de uma visão ‘científica’ moderna. Em contraste, o trabalho com os médicos tradicionais tem demonstrado que há um aturado processo de pesquisa e busca de novos remédios e soluções, bem como a troca de informações entre estes terapeutas, onde não é estranha a experimentação, fenómeno que nem sequer é recente: O meu avô, que foi um médico afamado no seu tempo, ensinou-me a curar desde pequenino (...) Quando o meu avô faleceu, eu, dedicando-me ao estudo que ele legara, fui fazendo várias experiências e (...) convencido da utilidade desses remédios, fiz tratamentos de doenças que surgiram dentro da nossa família. Assim fui sendo conhecido de há muitos anos como doutor (...) e fui salvando muitas pessoas de uma morte certa, adquirindo mais prática do meu trabalho e, devido á minha paciência e tenacidade, granjeei bastante fama. (Madão, [1921] 1971: 9). Desta breve análise histórica ressalta que a medicina tradicional, sem que o Estado actual saiba bem o que esta faz, parece deter a capacidade de se ir ajustando, num complexo jogo de aceitação e rejeição, a novos sistemas terapêuticos, procurando negociar posições e manter o seu reconhecimento, enquanto a biomedicina busca ainda vias e meios para impor as suas competências. 5.2 A vitalidade da medicina tradicional As várias tentativas de supressão da medicina tradicional, ou pelo menos de delimitação da sua prática aos ‘sujeitos’ indígenas, não civilizados, implicaram redimensionamentos da actuação destes praticantes, acções estas que constituem um exemplo da extraordinária capacidade desta medicina em se adaptar e se apropriar dos mecanismos criados pelo Estado em seu benefício (Meneses, 2000). Este tipo de interferência tem provocado crises periódicas de vulnerabilidade. Com a implantação do sistema colonial, o Estado português tentaria eliminar estes terapeutas, desclassificando a sua actividade como se tratando de casos de superstição, de magia, etc. (di Celerina, 1846, Cunha, 1883, Junod, [1917]1996, Silva Tavares, 1948). Como consequência, e com especial incidência durante os anos 20-30 do século passado, vários ‘curandeiros’ foram presos e condenados ao degredo. Todavia, rapidamente, mercê da ausência de médicos e enfermeiros no territórios, o Estado colonial aceitou a presença de curandeiros, por não ter alternativa ao sistema de cuidados de saúde presente no terreno. A medicina indígena tem sido tolerada e deverá continuar a sê-lo, enquanto a assistência médica não poder chegar plenamente, a todos os povoados do interior (...). Se a medicina gentílica deve ser tolerada em determinados pontos da Colónia, não será lógico usar do máximo rigor punitivo para os infortúnios clínicos dos nyàngàs não reincidentes. Além disso eles, de certo modo, devem ser considerados pessoas úteis no seu meio social, porque, à falta de melhor medicina, a que exercem não é de todo abominável. (Gonçalves Cota, 1946, art. 68). Fruto da fragilidade do sistema colonial português, os médicos tradicionais vão mesmo solicitar e obter autorização formal (por parte do Estado) para actuar como terapeutas em locais onde ou não existiam praticantes da medicina moderna, ou onde a confiança nestes não era grande. No período imediatamente posterior à independência (anos 70-80), o primeiro movimento dos terapeutas tradicionais em Moçambique foi no sentido de obterem mais espaço público de actuação. De entre os objectivos solicitados por um grupo de médicos tradicionais à Comissão de reestruturação dos serviços de saúde do Governo de transição, referia-se a necessidade de criar uma Escola de Medicina Tropical, para formar mais terapeutas tradicionais. Este pedido foi recusado, já no período pós-independência, «porque as práticas médicas tradicionais resumem-se a conhecimentos empíricos mesclados de obscurantismo. O reconhecimento oficial de uma organização de curandeiros significava a institucionalização do obscurantismo (...) Isto implicava a prática de medicina privada, que então não era legal». Porque importava «recuperar o conhecimento, mas não o Homem, pois que a atitude deste é obscurantista», e fruto da pressão exercida por vários praticantes da medicina tradicional junto a órgãos do Governo e do partido Frelimo, a Direcção Nacional de Medicina Preventiva no Ministério da Saúde foi encarregada de criar os instrumentos necessários para se proceder à recolha e pesquisa de plantas utilizadas pelos praticantes de medicina tradicional (Castanheira, 1979, Tomé, 1979). Numa altura em que o campo de actuação dos curandeiros era severamente limitado, a recolha de plantas e a discussão sobre a sua utilidade juntamente com o GEMT e o INIA constituíam uma das poucas possibilidades para a continuação da sua prática com um carácter de semi-legalidade. Embora tivessem esperado maior abertura em relação às suas actividades «já que o país agora era nosso», quer os médicos, quer os magistrados do período pós independência, em função da sua educação ocidental e dos objectivos políticos da altura, olhavam a feitiçaria e as práticas dos curandeiros como um fenómeno vergonhoso, que deveria ser abandonado como condição para a construção de um conhecimento novo, livre de misticismo e obscurantismo. De novo, no pós-independência, o Estado surgiu como aliado dos feiticeiros, ao manter a proibição da prática da ordália e a legitimação da sua aplicação pelas autoridades e instituições tradicionais. Se no período colonial ainda algumas formas de actuação dos médicos tradicionais eram permitidas, agora a sua proibição instaurou-se, perseguindo-se todos os que eram considerados curandeiros (i.e., mesmo os que curavam pessoas e resolviam casos de feitiçaria). Neste ambiente abertamente hostil, os ‘terapeutas tradicionais’ passaram a ser apelidados de obscurantistas, de detentores de mentalidades retrógradas (Castanheira, 1979, Tomé, 1979, Machel, 1981, Serviços de Nutrição, 1981), sendo punidos e mesmo condenados. Nas palavras de M. F. Zimba, este foi realmente um período muito difícil, e só a formação de um grupo de médicos tradicionais poderia alterar tal situação: Eu desde há muito tempo que fui falar com Machel, [1º presidente de Moçambique] para ajudar a organizar a nós. Era preciso organizar, para poder trabalhar bem, não ser perseguido (...) Depois ele mandou eu ir falar com Hélder Martins [então Ministro da Saúde]. Este não queria (...), ameaçou de fuzilar, mas eu continuei (...). Depois conseguiu-se e fez-se o Gabinete de Apoio à medicina tradicional. Eu trabalhei muito com Leonardo Simão [médico, actual ministro dos Negócios Estrangeiros] lá no Ministério, no gabinete. Depois deixei de trabalhar lá. Agora estou em casa a trabalhar. No final da década de 80, e com a introdução das políticas neo-liberais, a abertura em relação à medicina tradicional alargou-se, até que em 1991 foi liberalizada a prática de toda a medicina privada. Isto tornou possível a constituição da AMETRAMO - a Associação dos Médicos Tradicionais de Moçambique.
7.A AMETRAMO 7.1 A formação da Associação Depois da independência nacional, ao mesmo tempo que os médicos tradicionais viam a sua prática severamente cerceada, estes começam a ser contactados pelos juízes populares para resolverem questões de feitiçaria, azares, etc. Isto sempre foi assim, mesmo no tempo colonial. Logo no tempo da Frelimo [i.e., no período imediato do pós-independência], quando havia problemas com feitiçaria, o tribunal fazia guia de marcha para os curandeiros resolverem os problemas de azar, feitiçaria. Agora já mandam menos [casos], não sabemos porquê. Agora são as próprias pessoas que vêm nos solicitar desmascarar os feiticeiros. Seria a capacidade do médico tradicional (reconhecida a nível da comunidade) de actuar como medianeiro na resolução de problemas que terá levado, em grande medida, o Estado a tentar controlar estes terapeutas, usando como mecanismo a formação de uma Associação. A AMETRAMO é pois um encontro de vontades centrífugas, simultaneamente uma tentativa de controle por parte do Estado (e mesmo de alguns partidos políticos) e um espaço de reivindicação plural dos médicos tradicionais. Neste sentido, para os tinyàngà, a Associação é imprescindível como espaço de legitimação racional, ao sentirem o risco constante presente na sua área de actuação profissional, reprimida por um Estado que defende e promove a biomedicina, descriminando a medicina tradicional: Temos o problema das detenções dos nossos médicos, quando morre um paciente em tratamento tradicional. Isso não se verifica quando o paciente morre no hospital, o médico não fica detido. [Queremos a] legalização da prática da medicina tradicional para que possa ser exercida abertamente e deixar de ser encarada apenas como objecto de negócio (...) o que nós queremos é sermos autorizados para trabalharmos dentro da lei, em paralelo com a medicina moderna. O curandeiro deve deixar de ser venenoso (...) por isso a nossa preocupação maior de momento é vencer a velha mentalidade sobre as actividades dos curandeiros. Escangalhar o passado para modernizar o nosso trabalho. Em paralelo, a Associação é necessária para a certificação da sua actividade, onde os seus dirigentes, através do formalismos burocrático-legais (emissão de cartões, diplomas, etc.) ‘reconhecem os verdadeiros curandeiros’, separando-os dos charlatães. Tal como defendem os seus estatutos, a AMETRAMO pretende estender o método de certificação e oficialização dos médicos tradicionais ao Pais inteiro, para que possam trabalhar com mais segurança, participando na luta pela melhoria da saúde do povo moçambicano. Conforme a AMETRAMO tem vindo a declarar repetidas vezes, «gostaríamos de trabalhar mais estreitamente com o Gabinete de Estudos da Medicina Tradicional do Ministério da Saúde, no Instituto Nacional de Saúde, bem como com outras instituições que se dediquem a actividade de prevenção e cura de doenças». Finalmente, e como defendem os membros da AMETRAMO, a formalização desta associação prende-se com a necessidade de reforço da capacidade organizativa dos médicos tradicionais, por forma a granjear mais apoio e assegurar o seu estatuto social e profissional, limitando a concorrência por parte de outros terapeutas. De facto, para além da competição e o não reconhecimento pela medicina oficial, surge agora um outro dado novo - a competição por parte de médicos tradicionais estrangeiros. «Vamos pedir explicação sobre a entrada de médicos tradicionais estrangeiros no país. E se bem que esses médicos têm autorização, vamos exigir ao Governo para os tais, antes de se apresentarem ao Executivo, tenham o parecer da associação». Para os médicos tradicionais, quanto mais ameaçado está o seu espaço de actuação, quanto mais enfraquecida está a sua legitimidade tradicional, mais forte é a necessidade de recorrer a um reconhecimento oficial, recorrendo-se a estruturas ‘legais’ para reprimir o ‘tradicional dos outros’. Para grande parte dos seus membros porém, o objectivo central da AMETRAMO - a constituição de um espaço de reivindicação social pelo reconhecimento e promoção da medicina tradicional - não tinha sido alcançado durante a primeira década da sua existência. Isto explica a realização, em Abril de 2000, em ambiente bastante conturbado, da primeira Assembleia Geral desta Associação. A actual direcção da AMETRAMO, agora encabeçada por M.F. Zimba - uma das pessoas que afirma mais ter lutado pela constituição desta associação - ganhou as eleições realizadas durante esta Assembleia. Se bem, no discurso oficial, as críticas mais severas à anterior direcção se prendam com a sua inoperância face aos objectivos de luta da Associação, outras razões existem para explicar os desentendimentos no interior da AMETRAMO. As lutas pelo poder são mais profundas, surgindo por vezes à superfície a questão do prestígio e do poder que a detenção destes saberes confere. Outro dos problemas prende-se com a manipulação de fundos, pois que a anterior direcção foi várias vezes acusada por membros da AMETRAMO de não conseguir justificar a utilização do montante que recolheu durante o seu mandato (Manjate, 2000). Finalmente, Zimba clama ter liderado desde cedo a luta pela constituição desta associação, justificando assim a sua posição de destaque no seio da associação. Para este dirigente, a grande crítica apontada à anterior direcção da Associação assenta na falta de empenho na promoção da medicina tradicional: «A Banú [antiga presidente] não fez nada, nem sede de AMETRAMO tínhamos...». Para Zimba está claro que a definição do campo de acção da medicina tradicional tem de ocorrer com apoios em instâncias de legitimação exteriores ao seu campo de acção, incluindo o regime judicial moderno e as outras medicinas, principalmente a biomedicina: A AMETRAMO tem que ficar bem organizada, e todas as pessoas têm que saber que [a organização] existe. Temos de trabalhar com os outros médicos [biomedicina] para resolver problemas, para ajudar, para fazer essa ligação. Senão não funciona. Nós quando vemos que não resolve o problema, quando a doença não sai, tem casos que manda no hospital. Eles [médicos modernos] não fazem isso. Embora sujeitos a algumas regras burocráticas (como a necessidade de ter cartão de membro, o pagamento de quotas, etc.), os membros da AMETRAMO estão ainda livres para responderem às dinâmicas alterações que continuam ocorrendo. Até onde poderá a AMETRAMO ir com a burocratização da organização? Importa pois avaliar as rupturas e continuidades existente entre as intenções do discurso e a prática quotidiana. Por exemplo, os estatutos da AMETRAMO asseguram a figura de ‘Conselho Fiscal’ como um dos órgãos directivos com funções de controle administrativo; na prática, e como foi repetidas vezes reafirmado por membros da actual direcção, a principal função do Conselho Fiscal é a de «fiscalizar a actuação dos seus membros», i.e, velar pela aplicação dos princípios éticos da medicina tradicional. No plano formal, o reconhecimento dos médicos tradicionais parece passar pela anulação da sua legitimidade tradicional, ao reduzir a sua acção terapêutica a um conhecimento ‘puro’, de onde se ausenta a sua dimensão social. Na prática porém, a legitimidade tradicional permanece, se bem que à primeira vista menos visível. Ao recorrer continuamente a estes terapeutas para resolver os males de que são alvo, os pacientes reafirmam a legitimidade, o poder e a confiança no saber do médico tradicional. Os próprios praticantes estão conscientes do seu papel neste processo de controle social, conforme já foi referido anteriormente. A organização dos médicos tradicionais é importante para a conquista de novos espaços de reconhecimento oficial, num jogo duplo entre a legitimidade tradicional e a racional, espelhando o aproveitamento, por parte da medicina tradicional, dos espaços de poder criados pelo Estado. Zimba não necessita de cartão da AMETRAMO para garantir a sua condição de médico tradicional: o número de pacientes, o respeito demonstrado ilustram melhor do que estes documentos ‘legais’ a realidade do seu reconhecimento social, assente na legitimidade tradicional. Contrariamente ao que alguns autores parecem sugerir (Nathan & Strengers, 1995, Honwana, 1996, Xaba, 1999), a realidade aqui descrita sugere que é a ausência de legitimidade que faz o charlatão. Aqui tanta falta de legitimidade tem um médico tradicional sem clientes como um centro de saúde sem meios ou um advogado que não consegue defender as suas causas. Os discursos sobre a medicina tradicional e mesmo sobre a feitiçaria contém um subtexto que oferece explicações sobre as mudanças modernas em presença. A reafirmação, por parte de muitos, do carácter tradicional da feitiçaria, ao actuar como obstáculo à mudança, também tem fundamento. Um exemplo será o da explicação sobre a origem de uma doença. Quem detém o saber e promove, segundo as suas competência, a cura de alguém, possui ligações ou conivências com as instâncias que regem as relações sociais. Assim, interpretar e curar uma ‘doença’ pode significar exactamente o seu oposto (por exemplo, apoio em caso de roubos e seu encobrimento). Dependendo da perspectiva que se tem sobre a ‘cura’, o terapeuta tradicional tanto pode curar, como pode também causar problemas a outrem (ex.: impedir promoções), ao concentrar todo o reforço ancestral apenas numa das parte em litígio. Por isso é que é necessária força e protecção para não se ser vítima de instâncias ancestrais que podem resultar em ‘azares’, ‘má sorte’, enfim, em ausência de saúde. Um mesmo discurso pode assim, num certo contexto, apresentar um conteúdo muito tradicionalizante, opondo-se ao desenvolvimento e à mudança. Noutros contextos, o mesmo discurso parece ligar-se muito bem com os novos elementos de desenvolvimento, do que resultam situações ambivalentes. 7.2 O Estado e a AMETRAMO A avaliação do tradicional não deve ser vista apenas a partir do campo do formalismo legal exercido pelo Estado. Vários dos terapeutas tradicionais referiram que era prática comum o encontro com os seus mab’ava para avaliarem males sobre os quais tinham dúvidas, prática que hoje está a ser reforçada com a constituição da AMETRAMO. A AMETRAMO não veio pois preencher um espaço totalmente vazio nas relações entre os terapeutas tradicionais. Durante as ‘mavandla’ para a graduação dos ‘mathwasana’ é frequente os terapeutas encontrarem-se para debater questões que os afectam. A AMETRAMO tem contribuído para reforçar e ampliar estas ligações. Outro aspecto distinto é a constituição da AMETRAMO como um espaço de reivindicação social pelo reconhecimento da medicina tradicional. Neste caso, os membros da associação demonstram estar não em posição de fraqueza, mas de poder, investidos do peso social que representam. O interesse da actual direcção em finalizar a legalização da AMETRAMO, bem como ao actuar como representante dos interesses dos tinyàngà do País na reabilitação da medicina tradicional, contribui para a sua própria legitimação; o poder que acompanha esta representação actua como garante do interesse e como veiculo para alcançar tal objectivo. O paradoxo que muitos asseguram constituir um impedimento ao desenvolvimento - a persistência de valores ‘tradicionais’ - não pode ser visto como uma antinomia. A tradicionalidade apenas o é na medida em que se distingue da modernidade pela diferença, mas alimentando-se continuamente desta. Os encontros de múltiplas personagens dão-se a cada passo: o Estado ignora o médico tradicional enquanto os seus funcionários recorrem a este frequentemente; as Faculdades de Medicina, de Direito, não contemplam estes saberes enquanto muitos dos enfermeiros e outro pessoal médico, advogados, etc., não hesitam em consultar estes terapeutas. Esta paradoxo apenas constitui a aparência de uma contradição: a norma enunciada e imposta pelo Estado decorre de um modelo legal e racional de legitimidade. Os agentes que constituem estas instituições, pelo contrário, distanciam-se destes princípios quando actuando como pacientes, obedecendo apenas às regras da prática. Como dizia um dos doentes, «tudo vale, não se sabe se vai funcionar, mas um vai de certeza; não podemos é arriscar». Para o paciente, a questão de legitimação recua face à emergência do mal, de um problema, do azar. O professor universitário, o ministro, o advogado, quando consultam um médico tradicional para obter uma solução ou a cura de um mal, procuram um ponto de força e não legitimação. Daqui a impossibilidade de dividir a sociedade em ‘tradicional’ e ‘moderno’, em função da medicina, da procura de cura. O homem de negócios ‘civilizado’, a camponesa ‘tradicional’ com o filho doente, apresentam itinerários semelhantes, apenas distintos nos meios financeiros envolvidos, e consequentemente, no prestígio dos praticantes tradicionais consultados. 8. Onde reside a alternativa? Voltando ao início do texto, a questão permanece: será que a medicina tradicional é realmente alternativa à biomedicina? Todo o quadro desenhado até agora leva a sugerir que no fundo, a luta da biomecina por um enquadramento reducionista da medicina tradicional (apenas no sentido restrito dos remédios e técnicas de saúde), a resistência da biomedicina em aceitar o amplo espectro de eficácia da medicina tradicional, é no fundo o reconhecimento da força desta outra medicina, apelidada, por oposição, de tradicional. A razão mais forte que explica a enorme vitalidade destas medicinas tradicionais parece assentar no facto de as instituições ‘médicas tradicionais’ tratarem a doença de um dado paciente, do mesmo modo com que resolvem problemas da sociedade, como sejam a ordem (representações, normas), estabilização de problemas e conflitos (tensões, azares colectivos, etc.). São figuras da modernidade, mas de uma outra modernidade, não imposta mas composta de compromissos com as ordens anteriores. Longe de encarnar o imobilismo da tradição, a medicina tradicional alimenta-se desta modernidade eminentemente problemática, apropriando-se de todas as brechas e metamorfoses criadas pelo Estado para lhe atribuir novos sentidos. As medicinas tradicionais actuam como elementos reguladores de ritmos socias, pacificando as tensões, assegurando a reprodução dos tecidos sociais. O enfoque principal de interpretação consiste em demonstrar que a modernidade não acabou, que ela não cessa de amplificar o ruído do tradicional. Se o tratamento da doença passa necessariamente pela eficácia terapêutica de procedimentos simbólicos e interpretativos, outras formas de intervenção garantem-lhe uma maior amplitude. Para além do tratamento das diversas manifestações de infortúnio (insucesso escolar, desavenças conjugais, problemas financeiros), o médico tradicional opera também no campo preventivo, garantindo aos seus pacientes meios de protecção contra diversas fontes de agressão. Neste sentido, o médico tradicional assegura o desenvolvimento, instalando-se no seio de uma modernidade que, pelas suas aspirações e estratégias individuais, tenta romper com as lógicas anteriores. É por isso que a medicina tradicional continua atraindo não apenas pacientes de zonas rurais, nem apenas pessoas provenientes de camadas economicamente mais desfavorecidas; outrossim, assiste-se cada vez mais a problemas e expectativas de pacientes oriundos do meio urbano, em busca de tratamento, de protecção, de sucesso, de algo que todos crêem ser possível e praticável. Pode-se pois legitimamente falar de uma forma de saber e de poder contra-hegemónico, onde esta ‘medicina’ representa as dinâmicas e os pólos de poder utilizados localmente. Para responder à questão de início - será que a medicina tradicional é uma alternativa à biomedicina - creio ter conseguido demonstrar que é a capacidade de se apoderar da modernidade e a modificar consoante as suas necessidades que faz acreditar na força deste campo de saber. A alternativa não reside nos conhecimentos ‘outros’, classificados de complementares, mas numa complexa relação entre diferentes conhecimentos, todos eles legítimos na perspectiva de quem a eles recorre e os consagra como forma de poder. A intermedicina é pois sinónimo de uma miríade de medicinas - umas preferidas a nível familiar, outras da comunidade, outras do trabalho e outras ainda no espaço público da cidadania, o que lhe consagra um carácter emancipatório. O reconhecimento da AMETRAMO, por parte do Estado, através da sua legalização, não se traduzirá afinal na tentativa vã de imposição de uma versão de modernidade exógena à que se desenvolve no terreno? No que concerne aos poderes públicos, nacionais e internacionais, a aposta política parece ir no sentido de valorizar e pseudo-legitimar a medicina tradicional, negando porém a dimensão social desta medicina, ao reduzi-la, no seu campo de actuação, à sua farmacopeia, aceitando-a apenas devido á sua implantação no terreno. As constantes tentativas por parte do Estado, de ‘promover e valorizar’ as medicinas tradicionais, como complementaridade alternativa à biomedicina, desembocam num outro polo de tensão e conflitos, fruto dos esforços para controlar politicamente as comunidades onde este conhecimento é produzido. Todavia, o reconhecimento da complexidade, da fluidez, e da ambiguidade dos meandros que compõem o campo social da medicina tradicional tornam esta tentativa de controle bastante difícil, senão mesmo impossível de alcançar. Ao normar estes processos, ao cristalizar o conhecimento sob formas escritas, repetidas e pouco inovadoras, não se estará a pôr em causa a ambiguidade tão essencial à dinâmica de transformação e apropriação criativa da modernidade pela medicina tradicional? O carácter emancipatório da intermedicinidade deriva do seu estatuto ‘em construção’, onde a medicina tradicional experimenta uma travessia conturbada no processo de produção de uma ‘outra’ modernidade. Nesta travessia, são ecos e registos do tradicional os que mais se destacam, porque dissonantes da ‘modernidade clássica ocidental’. A constelação de saberes distintos que se vai constituindo entre as várias realidades terapêuticas possibilita um reforço da sua actuação e da sua legitimidade e, em simultâneo, um maior controle mútuo. Este mosaico de conhecimentos heterogéneos emerge assim como garante da permanência de um diálogo aberto e em construção, como forma de exercício democrático de saber/poder, o que lhe atribui a sua qualidade emancipatória. Dai a necessidade de, a partir das formas de resistência locais, apresentar os distintos actores e os seus universos de luta, construir ligações entre estes actores, mobilizando-os e apoiando as sua campanhas por uma inclusão cada vez mais igualitária na diversidade de saberes, pela conquista de mais espaço de actuação, pelo possibilidade do alargar dos campos de saber partilhados. Tal unidade assente na diferença constituirá um dos pilares na elaboração de uma nova perspectiva global contra-hegemónica. Este tipo de pesquisa tem obrigatoriamente de ser dirigido para uma intervenção política, para a transformação das sociedades actuais.
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