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Zander Navarro «Mobilização sem emancipação» — as lutas sociais dos sem-terra no Brasil (texto não editado)
Introdução Quem detém a propriedade sobre a terra? De que forma? Como pode vendê-la? Como há-de comprá-la? Se ela nos pertence, sim. Nós somos da terra. Seus filhos somos. Sempre, sempre. Terra viva. Da mesma forma que cria as larvas, assim nos cria também. Tem ossos e sangue. Tem leite, e dá-nos de mamar. Tem pelos, pastos, palha, árvores. Sabe produzir comida. Faz nascer casas. Faz nascer gente. Ela cuida de nós e nós cuidamos dela. Ela bebe chicha, aceitando o nosso convite. Somos seus filhos. Como pode ser vendida? Como pode ser comprada? (Arguedas, 1970, apud Galeano, 1982: 256). A mudança social mais impressionante e de maior alcance da segunda metade deste século, e que nos isola para sempre do mundo do passado, é a morte do campesinato [...] na década de 1930, a recusa dos camponeses a desaparecer ainda era usada correntemente como um argumento contra a previsão de Karl Marx de que eles se extinguiriam (Hobsbawm, 1996: 284). A história social e política do Brasil no período contemporâneo, especialmente a partir dos anos finais do ciclo militar, ou seja, entre o fim da década de 1970 e a primeira metade da década seguinte, estendendo-se até os nossos dias, apresenta um conjunto de processos sociais os quais, se alguns foram ou têm sido comuns igualmente a outras sociedades latino-americanas no mesmo período, outros, contudo, são surpreendentes e até inesperados. Dentre os primeiros aspectos salienta-se, como tem sido destacado por diversos autores, a rapidez da consolidação de um regime político inspirado nos limites relativamente estreitos de uma democracia primordialmente eleitoral. Ou então, ainda no primeiro grupo de processos, repetidos em outros países da América Latina, mudanças sociais intensas (como a urbanização acelerada, por exemplo) ou, no campo da economia, os processos inflacionários crônicos, apenas parcialmente vencidos e, também, a adoção generalizada de políticas de «ajuste estrutural», a partir de meados dos anos 80. Preconizadas por organismos financeiros internacionais, essas políticas geralmente acabaram integrando forçadamente, e de forma rígida, as economias do continente aos circuitos financeiros e comerciais internacionais, fazendo da região um dos casos paradigmáticos do fenômeno da globalização. Por outro lado, se analisado o conjunto de processos sociais que caracterizou o Brasil no mesmo período, dificilmente deixará de ser consensual a identificação da emergência das lutas sociais em áreas rurais, particularmente aquelas empreendidas pelos chamados sem-terra como as mais emblemáticas e distintivas do período, lutas sociais inesperadas, em especial se comparadas com os diagnósticos típicos do período passado, inclusive entre marxistas, usualmente céticos quanto às possibilidades de organização política conseqüente por parte de trabalhadores rurais e camponeses. O nascimento, no início da década de 1980, e o posterior desenvolvimento do «Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra», tornou gradualmente conhecida sua sigla - MST - e outros de seus ícones públicos, especialmente sua bandeira vermelha e os típicos bonés utilizados por seus militantes. As lutas sociais empreendidas por esta organização, que nasceu como um movimento social decorrente do processo de transição política experimentado pelo Brasil a partir do final da década de 1970 (trânsito posteriormente sinalizado pela ascensão do primeiro presidente civil, em 1985), concretizam provavelmente um dos mais surpreendentes processos sociais em curso. A organização, neste artigo, será doravante tratada como Movimento, MST ou, simplesmente, «a organização dos sem-terra» (a distinção conceitual entre movimento social e organização formal não sendo analisada neste capítulo, senão brevemente, não obstante a sua decisiva importância política para a compreensão do Movimento). Normalmente mais ativo no Sul do Brasil nos anos 80, na década seguinte tornou-se gradativamente uma organização de grande visibilidade nacional, estruturando-se na maioria dos estados brasileiros, sua atuação despertando crescente interesse, inclusive internacionalmente. As análises sobre o MST, embora tivessem sido multiplicadas celeremente nos anos recentes, ainda são, contudo, largamente insuficientes. No período, estudos e interpretações produzidas têm sido, em geral, ou meramente idealizantes e superficiais, normalmente dedicadas muito mais a registrar, acriticamente, as ações externas e públicas do Movimento, associando-as às improváveis potencialidades «revolucionárias» dos sem-terra e assim confundindo-se com a própria literatura apologética da organização ou, então, são estudos acadêmicos centrados em ambientes restritos de ação dos sem-terra, normalmente assentamentos rurais, sobre os quais já existe um grande número de estudos realizados. Um terceiro grupo de estudos, com o objetivo de analisar o MST sob enfoque mais ambicioso, ultrapassando limites estaduais e interpretando-o nacionalmente à luz dos processos sócio-políticos e econômicos mais recentes, ainda é notavelmente rarefeito, refletindo as dificuldades metodológicas de tais empreitadas. Como resultado, o conhecimento sobre o Movimento, no Brasil (e internacionalmente), curiosamente, é ainda largamente inadequado e parcial, o que tem produzido um amplo desencontro analítico sobre tal fenômeno social, independentemente da perspectiva teórica e/ou política, repetindo-se as análises marcadas pelo encantamento ideológico e pela superficialidade. Tais desencontros, de fato, são mais complexos, como ressaltou José de Souza Martins, pois envolvem quase todos os atores envolvidos nas disputas sociais no campo, inclusive as agências de mediação que pretendem representar os sem-terra no quadro da «política em geral». Conforme este autor, O silêncio dos pobres não vem apenas da clausura cultural em que vivem. Vem também da usurpação da palavra, do querer e do esperar por parte daqueles que, ao pretenderem generosamente ser solidários, acabam impondo-lhes um novo e mais grave silêncio, o da fala postiça e inautêntica, anômica (Martins, 2000a: 69). O Movimento, formalmente nascido em Janeiro de 1984, embora tenha emergido, de fato, anos antes, a partir da abertura política empreendida no âmbito do ciclo militar, já no final dos anos 70, é o produto social e político de um conjunto de fatores, que serão descritos nas seções seguintes. Tais determinantes incluem desde as condições políticas repressivas do período autoritário, e o ativismo político daí decorrente, às ações de mobilização e politização organizadas por setores radicalizados do clero católico, dos efeitos da vigorosa modernização agrícola da década citada à história política das comunidades rurais do Sul do Brasil (onde o Movimento primeiramente organizou-se), ou ainda, da abertura política iniciada em 1979 aos processos sociais que acabaram impulsionando um «ciclo de protesto» em áreas rurais daquela região brasileira. É talvez uma das mais fascinantes trajetórias sócio-políticas que a história brasileira já produziu, pois nos últimos vinte anos o MST tem conseguido manter-se suficientemente ativo para influenciar a agenda pública sobre o mundo rural e empreender ações coletivas de grande repercussão, tornando-se ator de referência obrigatória em todos os assuntos ligados à questão agrária brasileira. Extremamente ágil, o Movimento igualmente desenvolveu processos de organização e dinâmicas internas de estruturação que são justificadoras de sua força política, embora sejam operacionais mecanismos de sustentação quase sempre desconhecidos, inclusive, com certa surpresa, até mesmo por pesquisadores ligados à área correspondente, muito mais atraídos pelas ações externas e pela visibilidade pública do MST. Três advertências iniciais são necessárias, para melhor situar o corpo de argumentos deste artigo e delimitar claramente seus objetivos. Primeiramente, opta-se aqui por adotar uma distinção analítica, com claras implicações políticas, entre a «organização dos sem-terra», englobando o conjunto de seu corpo dirigente principal e seus militantes intermediários, diretamente ligados à organização como seus funcionários, e a ampla base social das «famílias sem-terra». Entre estas, incluem-se os pequenos produtores agrícolas pauperizados, proprietários ou não (neste caso, meeiros, pequenos arrendatários, parceiros e posseiros), detentores de diminutas parcelas de terra, insuficientes para a sua reprodução social, além de milhares de famílias rurais pobres que vagam pelos campos brasileiros, à procura de ocupação e renda e, também, parte dos assalariados rurais, que em algumas regiões agrárias têm sido atraídos para as fileiras do MST. O foco central deste artigo dirige-se, quase exclusivamente, à organização e seu corpo diretivo, sua história, estratégias de ação e seu repertório de escolhas e decisões, ao longo do período analisado, mas não aos sem-terra sob sua órbita, inclusive porque, como se argumentará, muitas vezes é significativa a distância entre a base social e a agenda discursiva e as formas de ação social escolhidas pela direção, o sucesso mobilizador do MST sendo explicado por outras razões, diferentes da adesão consciente e voluntária de sua base social. O segundo aspecto que aqui é salientado refere-se ao campo de processos sociais sob interpretação. Deve ser acentuado que este capítulo não é dedicado à análise social no Brasil contemporâneo, ou à discussão da questão agrária brasileira lato sensu. Os determinantes mais gerais, de ordem econômica ou sócio-políticos, são citados tão somente para indicar contextos e conjunturas, pois a centralidade analítica remete-se à organização dos sem-terra, inclusive secundarizando (e, às vezes, sequer mencionando) o conjunto de outras organizações populares do campo brasileiro, as relações estabelecidas, a natureza dos conflitos existentes entre tais organizações. Embora crucial, também não se discutirá pormenorizadamente o papel do Estado e suas políticas, senão também contextualmente, apenas sendo indicada a natureza das ações governamentais, em períodos específicos. Em face da imensa variabilidade da rede de relações construída e modificada, ao longo do tempo, entre tais atores, sua menção assumirá aqui contornos mais episódicos, meramente para o suporte dos argumentos apresentados. Finalmente, como se perceberá facilmente, as evidências empíricas apresentadas são, quase todas, relacionadas a situações do Sul do Brasil (a maioria, gaúchas), sendo este o terceiro esclarecimento prévio, que estabelece os limites deste artigo. Se de um lado refletem a experiência como pesquisador do autor, deseja-se salientar, contudo, que as ilustrações empíricas extraídas da história do MST no Rio Grande do Sul (ou no Sul do Brasil) são largamente emblemáticas e representativas para poderem ser, com freqüência, generalizadas para o restante do país. Nascido no Brasil meridional, a organização dos sem-terra tem no Rio Grande do Sul a sua mais antiga e sólida filial e, de fato, praticamente todas as iniciativas arquitetadas pelo MST foram testadas primeiramente neste estado, que tem servido de campo de experimentação para as diferentes iniciativas promovidas pela organização ao longo do tempo, depois repetidas nacionalmente. Outra observação preliminar, imperativa para circunscrever os limites deste artigo, refere-se à própria noção de emancipação adotada. Diferentemente de outras possibilidades conceituais (por exemplo, a clássica noção habermasiana de «conhecimento emancipatório»), a idéia de emancipação, neste capítulo, é informada restritivamente por uma dimensão essencialmente política. Refere-se, precisamente, às chances das classes subalternas e os grupos sociais mais pobres, a partir de diferentes identidades, construírem, de forma autônoma, suas diversas formas de associação e representação de interesses e, mais relevante, adentrarem o campo das disputas políticas e aí exercerem seu direito legítimo de defender reivindicações próprias e buscar materializar suas demandas, sem o risco de eliminação ou constrangimentos politicamente ilegítimos materializados por grupos sociais adversários. Esta proposição significaria um sistema político que incorporaria o conflito social como parte integrante de sua própria natureza e legitimidade, diferentemente da tradição brasileira de lidar com o conflito social como uma anomalia a ser combatida por todos os meios repressivos. Em uma sociedade tão marcadamente desigual, se o conflito não é parte constitutiva da política, as classes subalternas jamais terão a oportunidade de alterar as diferentes assimetrias existentes (e, se reais a autonomia das formas de representação e a legitimidade do conflito, certamente estaria sendo aberta a senda de uma «democracia emancipatória»). Desta forma, tal noção distancia-se, inteiramente, da ambiciosa idéia (fantasiosa nesta quadra da história) da correspondência entre emancipação e a «grande transformação societária», marcada pela profunda ruptura com a ordem existente. Ou seja, neste capítulo, emancipação não é sinônimo de ruptura anti-sistêmica e, menos ainda, de uma vaga ordem política socialista, mas, em perspectiva restrita, adere-se aqui à idéia da necessidade, relativamente óbvia no caso brasileiro, de dar significado real a tal conceito através da possibilidade da participação e da representação política (insista-se, de forma autônoma, sem o recurso ao líder messiânico, aos partidos políticos que abafam os interesses dos grupos subalternos, ou outra representação falsamente mediadora) e, igualmente, à concretização da presença de tais grupos no sistema de disputas políticas que os aceite e integre de forma legítima. Como se argumentará posteriormente, mesmo sob esta limitada noção de emancipação, o enorme sucesso do MST, quando mobiliza grupos sociais sem-terra, para construir sua arquitetura de ações coletivas, sequer remotamente tem se aproximado da noção (mesmo que restrita) de emancipação acima referida — o que justifica, aliás, o título do artigo. Ao adotar a perspectiva totalizante dos grandes esquemas políticos das tradições ortodoxas do marxismo, que desqualificam as diferenças e alteridades sociais, além de impedir a autonomia das formas organizacionais microsociais, locais e regionais, pois ameaçariam a existência de sua própria dimensão nacional, o MST, enquanto uma organização política, tem, de fato, atuado mais como freio à emancipação dos mais pobres do campo, estes últimos servindo, muito mais, aos propósitos, nem sempre explícitos, do corpo dirigente da organização. Neste artigo, é apresentado inicialmente uma concisa história deste movimento social, destacando os determinantes originais que produziram o nascimento de formas de protesto social no Sul do Brasil, gerando diversos movimentos sociais rurais, entre os quais a organização dos sem-terra. A seguir, na mesma seção, apresentam-se as fases mais salientes e as características distintivas de sua evolução nas últimas duas décadas, procurando demonstrar que o desenvolvimento do MST tem produzido, nos anos mais recentes, a opção por formas de organização interna, escolhas políticas e estratégicas e, também, uma «leitura de realidade» que é extremamente problemática, seja em relação às demais organizações do campo, seja em relação a seus próprios integrantes, alternativas que a organização dos sem-terra tem abraçado, em particular, em função de sua força política e de suas orientações ideológicas. Finalmente, antes das conclusões que fecham este artigo, a segunda seção analisa um sintético conjunto dos dilemas atualmente vividos pelo Movimento, salientando-se alguns aspectos mais críticos e controvertidos de sua ação política. Ou seja, nesta seção, antes de serem apontados os resultados mais destacados e notáveis da ação política e organizativa dos sem-terra — talvez já suficientemente conhecidos — o que é apresentado e discutido, por não ter sido ainda introduzido (aliás, sequer reconhecido como existente e real pela maior parte dos analistas e aderentes do Movimento) é exatamente um sintético conjunto de aspectos da face invisível do Movimento. Espera-se que a seção possa assim contribuir para ampliar o conhecimento sobre a organização, particularmente suas opções políticas, que poucas chances parecem ter de construir uma real emancipação dos pobres no Brasil rural. 1. Concisa história do MST (1980-2000) 1.1 O contexto original Assim como ocorreu em outros países da América Latina no período do pós-guerra, também no Brasil contemporâneo é possível identificar diversos momentos mais expressivos em que as populações rurais mais pobres, excluídas politicamente e subordinadas economicamente, puderam exercer o direito de mobilizar-se e organizar-se, e assim adentraram o espinhoso e complexo campo da política, em consonância com o que alguns autores definiram como «ciclos de protesto» (Tarrow, 1994). Usualmente aceita-se que, no caso do Brasil, são dois esses momentos. No primeiro, englobando parte dos anos 50 e os anos iniciais da década seguinte, encerrando-se bruscamente com o golpe militar de 1964, observou-se pela primeira vez a constituição e a multiplicação de sindicatos de trabalhadores rurais, que mobilizavam principalmente os assalariados das regiões comerciais do país e, também, a emergência de ligas camponesas, que abraçaram primordialmente as demandas de pequenos produtores, geralmente não-proprietários, em particular no Nordeste brasileiro. Além disto, como resultado da liberalização política característica do populismo daquela época e, igualmente, das transformações econômicas no meio rural, outros atores, como o Estado, os partidos políticos e instituições como a Igreja Católica, entraram vigorosamente na cena política, disputando influência e o controle do processo de organização dos «pobres do campo», além de propor projetos de mudança ou de continuidade que, com o tempo, tornaram-se crescentemente polarizados entre si. Como resultado, a questão agrária acabou tornando-se um importante elemento detonador do golpe militar, que derrotou as forças políticas que propunham mudanças estruturais no país. Outro momento expressivo da (re)emergência dos movimentos populares no meio rural começou a se materializar no final da década de 1970, decênio aliás caracterizado, de um lado, por um inédito padrão de violência rural e, de outro lado, por processos de modernização e desenvolvimento capitalistas igualmente sem precedentes. A partir daqueles anos, o movimento sindical de trabalhadores ligado à estrutura oficial passou a mostrar-se mais dinâmico, mas, ainda assim, também constituiu-se um outro ramo competidor, que anos depois se vincularia à Central Única dos Trabalhadores (CUT). Outros eventos, no início dos anos 80, acabariam por levar à constituição do MST, que reintroduziu agressivamente a «bandeira» da reforma agrária no cenário político brasileiro. Além, certamente, de várias outras formas de expressão organizacional mais regionalizadas, como movimentos de mulheres rurais, de agricultores ameaçados pelo desenvolvimento de grandes obras públicas (como hidroelétricas), de pequenos produtores reivindicando acesso a políticas setoriais do Estado, entre outros. Da mesma forma, e como resultado das extraordinárias transformações do meio rural, um processo acelerado de mercantilização das atividades produtivas acarretou uma crescente diferenciação social, especialização da produção e integração aos novos complexos agroindustriais formados no período, criando outros interesses e a necessidade de novas formas de representação e estimulando diversas ações coletivas por pequenos produtores e trabalhadores rurais. Os determinantes principais que contribuíram para a emergência e o desenvolvimento desses novos movimentos sociais rurais, iniciando-se pelo Sul do Brasil (e no Rio Grande do Sul em particular), entre o final da década de 1970 e os anos posteriores, poderiam compor uma longa lista, incorporando desde aspectos relacionados à história da participação política naquele estado, à existência de uma «cultura de organização» que as comunidades rurais tradicionalmente apresentam ou, ainda, elementos reativos como a oposição ao controle exercido pelas elites locais. Nesta seção se argumentará, contudo, que esses movimentos sociais na região citada resultaram principalmente de três fatores: a liberalização política do período, nos anos finais do ciclo militar; as mudanças estruturais na economia agrária dos estados que modernizaram sua agricultura (basicamente, o Centro-Sul do Brasil) e seus impactos sociais, além da ação de setores progressistas da Igreja Católica, inspirados inicialmente pela exacerbação dos conflitos no campo, que cresceram exponencialmente nos anos 70 e, posteriormente, já na década seguinte, emoldurados pelos aparatos discursivos propostos pela Teologia de Libertação, fatores esses que, como seria esperado, exerceram influência diferenciada no tempo e no espaço agrário (Navarro, 1996). A materialização dos efeitos combinados desses três fatores, particularmente nos estados sulistas, deve-se às características específicas da agricultura nesta região brasileira. São estados com forte presença de agricultores familiares e onde a Igreja Católica tem presença igualmente expressiva em termos de mediadores e estruturas físicas, provavelmente sem comparação com outros estados brasileiros (em vista da histórica presença da Igreja exatamente entre as comunidades rurais, aí recrutando filhos de agricultores para a carreira religiosa e, também, contando com o apoio material das famílias rurais para construir igrejas, casas paroquiais, seminários e, inclusive, a sua manutenção ao longo do tempo). O processo de modernização agrícola dos anos 70 integrou a maior parte dessas famílias rurais aos diferentes circuitos econômicos e financeiros e, quando esgotado, criou crescentes problemas de reprodução social, fazendo inevitável uma aliança entre o braço rural da Igreja Católica, representado pela Comissão Pastoral da Terra (com seus mediadores oriundos, precisamente, da agricultura familiar) e as nascentes organizações populares do período, como as entidades sindicais e os movimentos sociais, como o MST. Somente após a sua consolidação nos estados do Sul, durante a maior parte dos anos 80, é que foi possível, gradualmente, para estas novas organizações, ampliar seu raio de ação para os demais estados, o que ocorreu na segunda metade daquela década e, em especial, a partir dos anos 90. 1.2 O MST: fases de sua história Uma análise da história do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, mesmo que restrita exclusivamente a regiões específicas do Brasil, representaria difícil desafio de pesquisa, em vista da vigorosa história social que este Movimento desenvolveu, a partir dos primeiros anos da década passada. Organizado nacionalmente desde meados dos anos 80, o MST tem tido uma capacidade surpreendente de reinventar-se politicamente, segundo as variações conjunturais e uma criatividade sem paralelo com os outros movimentos. Tem conseguido, assim, manter-se à tona e evitado situações de fortes indefinições, como tem sido a situação experimentada pelo movimento sindical ou outros movimentos sociais rurais. Seus desafios são, proporcionalmente, também maiores, por ter como base social os «mais pobres entre os pobres do campo», normalmente grupos sociais de ocupação episódica, sem moradia definida, sem acesso à escolaridade e, quase sempre, facilmente vítimas de manipulações políticas de toda ordem — na linguagem do próprio Movimento, sua base forma o «lumpesinato», os setores sociais mais frágeis do meio rural. Mas, seu desafio principal é exatamente aquele derivado da razão mesma de sua existência, isto é, tentar pressionar socialmente para alterar um padrão de propriedade da terra historicamente consolidado, onde o controle deste recurso mantém-se nas mãos de uma minoria de proprietários. Entre os movimentos sociais que surgiram naqueles anos de transição política, o MST apresenta a mais forte identidade social e tem sido capaz de bem definir a sua base social e motivá-la. Como resultado, é um movimento com expressiva capacidade de mobilização, o impacto de suas ações sendo, no geral, de grande visibilidade pública. Tendo se tornado um ator social reconhecido e participativo das lutas sociais, os resultados de suas ações têm sido razoavelmente significativos, pois já conseguiu forçar o nascimento de milhares de novos assentamentos em todo o Brasil — embora números talvez não tão relevantes, em termos numéricos, se comparados à população potencialmente demandante de terra. Segundo os números oficiais, até o final de 1996, tinham sido assentadas, em todo o país, 117 mil famílias, mas apenas entre Janeiro de 1997 e Junho do ano seguinte, outras 114 mil famílias receberam suas parcelas de terra e os programas de reforma agrária federais estimam que será possível oferecer acesso à terra, entre 1999 e 2002, para outras 400 mil famílias. Tais resultados, pelo menos em algumas sub-regiões, têm contribuído para a melhor distribuição fundiária em várias regiões rurais do país, criando oportunidades de ocupação e de acesso à terra para milhares de famílias, além de instaurar dinâmicas econômicas novas. Provavelmente, sob uma perspectiva geral, pode-se segmentar a história do Movimento em três momentos principais — correndo-se o risco, é claro, de uma extrema simplificação, especialmente a partir de 1994/95, quando o Movimento expandiu-se nacionalmente e as variações regionais acentuaram-se significativamente. O primeiro momento refere-se aos anos formativos, do início da década de 1980, quando os primeiros grupos de sem-terra foram organizados, principalmente no Rio Grande do Sul e Santa Catarina, passando por sua estruturação formal (em 1984, com o congresso de constituição, na cidade de Cascavel, no Paraná), a realização de seu primeiro congresso nacional, em Curitiba (em Janeiro de 1985) e até o emblemático ano de 1986, que conclui esta primeira fase, quando o movimento era ainda essencialmente sulista. Neste primeiro período, o MST contou com a forte presença de mediadores religiosos ligados aos grupos progressistas da Igreja Católica, inclusive como dirigentes do próprio Movimento e, no geral, selecionou ações de pressão menos confrontacionais, optando freqüentemente pela negociação e tendo como interlocutor principal os governos estaduais — até 1985. Neste último ano, nacionalmente, a partir do primeiro governo civil que tomou posse, encerrando o ciclo militar, defrontou-se também com o Governo Federal. Salientava-se nesta primeira fase, em virtude da presença da Igreja Católica, a adesão a ações marcadas pela não-violência e, pelo lado do Governo Federal, destacava-se a presença clara da reforma agrária na agenda do Estado, em virtude da militarização de tais disputas sociais. Eram, contudo, momentos de fácil recrutamento de agricultores com pouca terra ou sem terra e o Movimento expandia-se agilmente, fundado no significativo apoio dos mediadores religiosos da Comissão Pastoral da Terra e nas facilidades operacionais oferecidas pelas estruturas da Igreja Católica. Não muitos novos assentamentos foram formados, mas os poucos concretizados serviram como forte estimulante à ampliação da capacidade de mobilização do Movimento. Uma segunda etapa ocorreu entre os anos de 1986 e 1993. Neste período, as ações do Movimento gradualmente tornaram-se principalmente confrontacionais (simbolizado, inclusive na mudança da consigna principal, que se era antes «Terra para quem nela trabalha», passou, nesta segunda fase, para «Ocupar, resistir, produzir»), com vários episódios de enfrentamento com policiais ou jagunços dos grandes proprietários, em virtude de uma nova orientação interna, que privilegiava esta tática de luta — particularmente, a partir da recusa dos agricultores sem-terra em submeter-se à direção incontrastável assumida até então por mediadores da Igreja Católica. A partir desta fase, portanto, inverte-se a relação entre os mediadores religiosos, os quais, se antes definiam a orientação geral do Movimento, passaram gradualmente a compor-se como quadros auxiliares da organização, o que apenas acentuou-se nos anos seguintes, quando permaneceram na órbita do MST apenas os quadros mais radicalizados do clero católico. No Sul, um episódio que bem ilustra esta fase foi, entre inúmeros outros fatos, o «conflito da Praça da Matriz», ocorrido no centro da cidade de Porto Alegre, em Agosto de 1990, quando os agricultores enfrentaram a polícia militar estadual, em incidente cuja violência surpreendeu fortemente a opinião pública daquele Estado. Em resumo, estas tendências refletiam a apressada adesão a um ideário leninista, ainda que simplificado, por parte do pequeno grupo de dirigentes principais, que sacrificou até mesmo a orientação do jornal da organização, que passou a ser mero instrumento de «agitação e propaganda». Como resultado, neste período decidiu-se também organizar este movimento social como um «movimento de quadros» (e não «de massa», como se pensava no primeiro momento, estimulado pela presença da Igreja), aos poucos deixando de assumir-se como um «movimento social», no sentido sociológico da expressão, mas moldando-se propriamente como uma centralizada organização. O MST deixou então o Sul como região privilegiada de ação e transferiu sua sede para São Paulo (onde ainda permanece), salientando-se que, naqueles anos, o Governo Federal passaria a ser o interlocutor principal, até pelo menos o ano de 1988, quando foram abandonadas as esperanças de ocorrência de amplos processos de desapropriação de terras, pois o Governo Federal aos poucos liquidou suas intenções neste campo, como era a promessa inicial do governo civil da «Aliança Democrática», que assumira em 1985. Mesmo retornando, no final desta fase, a confrontar-se com os governos estaduais, este seria o período de maiores resultados práticos (sendo apenas suplantado pelos resultados do período iniciado em 1996), com o número de assentamentos ampliando-se e um número significativo de agricultores sendo recrutado para as ações propostas. No final desta segunda fase, o MST experimentou também uma relativa crise, em vista da presença ostensiva de forças contrárias, como a efêmera UDR (União Democrática Ruralista), uma organização de grandes proprietários que optava por métodos confrontacionais e violentos, em suas ações no meio rural. Mas surgiu também outro problema crescente, em alguma medida ainda não resolvido, relacionado ao crescimento rápido do número de assentamentos, que passaram a impor uma pergunta premente: como organizar a produção nessas novas áreas, viabilizando economicamente os assentados e apresentando-as como «áreas modelo»? A resposta a esta pergunta, desenvolvida pelo Movimento em diversos assentamentos, em vários estados, e representou um dos mais fascinantes exercícios de ideologização já produzidos, quando o MST propôs (e impôs, onde foi possível) a constituição de cooperativas inteiramente coletivizadas — uma evidência notável do grau de mistificação ideológica então alcançado. O terceiro momento engloba os anos mais recentes, iniciando-se em 1994, quando o MST viu-se envolvido em um conjunto novo de fatos políticos a serem considerados, como a crescente desconfiança dos outros movimentos em relação aos sem-terra e sua organização, em virtude de compreensões distintas da vida social e das estratégias de transformação política da sociedade. Mas também a nova realidade dos assentamentos, agora em grande número, e exigindo respostas rápidas quanto à organização da produção e dos produtores nestas áreas. O fato marcante, no entanto, é que o MST, a partir daquele ano, «conquistou» São Paulo, conseguindo consolidar-se neste estado e descobrindo um campo privilegiado de atuação, o Pontal do Paranapanema, enorme área agrária ideal para as táticas de luta do Movimento, pois é região devoluta em que os proprietários de terra, em sua maioria, não têm mais o direito de recorrer aos atos desapropriatórios (já decididos em última instância). Por atuar com tal desenvoltura no estado mais influente, com forte repercussão nos meios de comunicação, o Movimento passou a ter presença ainda mais marcante nos assuntos relativos à reforma agrária e tornou-se interlocutor obrigatório para este tema e os assentamentos. A outra razão para a crescente força política e capacidade de pressão do MST derivou de alguns trágicos eventos que nos anos recentes têm marcado algumas ocupações de terra — cuja ocorrência, certamente, não surpreendem inteiramente, em face da postura confrontacional adotada pelo Movimento como sua arma de luta principal e pelo costume usual das forças militares de reprimirem violentamente as ocupações de terra. Dois deles foram especialmente decisivos para impulsionar as pressões sociais em favor da reforma agrária nos últimos anos, os episódios de Corumbiara, em Rondônia (Agosto de 1995) e, depois, o massacre de Eldorado dos Carajás, no Sul do Estado do Pará, ocorrido em Abril do ano seguinte. Em ambos os casos, vários trabalhadores rurais foram assassinados, em virtude da brutal ação das forças policiais. Foram eventos que, em certa medida, refletiram uma forte inflexão pública a favor da organização dos sem-terra, especialmente porque o segundo evento produziu uma intensa repercussão, nascida do fato de ter sido o confronto filmado e, posteriormente, reproduzido repetidamente, em diferentes momentos. Fruto de sua forte influência naquela conjuntura, sem surpresa o III Congresso Nacional do MST modificou novamente a sua máxima política, desta vez para «Reforma agrária: uma luta de todos». Há ainda um fator que quase sempre tem sido ignorado, embora de relativa importância interna, para as decisões da organização e suas características atuais. Neste período mais recente, em função das atividades de formação desempenhadas nas escolas que o MST instalou, onde jovens assentados recebem formação política e alguns cursos profissionalizantes, aos poucos constituiu-se uma «segunda geração de militantes», desta vez formada por jovens oriundos de todos os estados brasileiros, assim refletindo realidades agrárias muito distintas e, em relação aos estados situados na metade norte do país (as regiões Nordeste, Norte e Centro-Oeste), militantes muito mais abertos a interpretações ainda mais radicalizadas da realidade, refletindo suas próprias experiências de vida. O resultado tem sido a lenta aparição de um novo conjunto de líderes que defendem e realizam ações coletivas mais ousadas e contestadoras da ordem social. A imagem de um MST «provocador» que tem sido gradualmente constituída, especialmente a partir de 1998, provavelmente repercute mais a ação regional dessas novas lideranças e, menos, a percepção política dominante entre os dirigentes (majoritariamente sulistas) da «primeira geração» que, embora ainda comandando a organização, são crescentemente confrontados com a radicalidade dos jovens dirigentes recentemente incorporados à estrutura decisória da organização. Começa a ser surpreendente, neste sentido, o contraste discursivo entre os jovens dirigentes do Movimento, quando comparados entre os diferentes estados do Sul e, por exemplo, do Nordeste do país. Nos anos mais recentes (entre 1994/95 e nossos dias), as ações do Movimento expandiram-se em algumas regiões agrárias e refluíram em outras (dentre estas, o Rio Grande do Sul e Santa Catarina, berço do MST), não sendo objetivo deste artigo discutir as razões que explicam estas variações. Provavelmente, é mais relevante registrar o que se apresenta atualmente para o Movimento como seus dois maiores desafios. Primeiramente, o problema da democracia, pois aproxima-se o momento em que a organização poderá defrontar-se com dissensões e conflitos crescentes, não apenas internamente mas, também, nas relações com outros movimentos sociais e organizações do chamado «campo popular», neste último caso em virtude do aprofundamento das diferenças políticas e ideológicas. Por estruturar-se como uma organização essencialmente não-democrática, contudo, são amplos os sinais de conflitos também internos, em que o ethos militarista e a devoção quase religiosa de alguns de seus militantes intermediários, comandados por um pequeno conjunto de lideranças nacionais principais, talvez não seja mais suficiente para assegurar o controle sobre os acampamentos e, principalmente, sobre os assentamentos. Evidentemente, o que mais se salienta, neste aspecto, é exatamente o instrumentalismo de uma retórica ideologicamente anti-sistêmica, meramente construída para fins internos (no sentido de manutenção da coesão do conjunto de seus militantes principais), e que conseguiu desenvolver uma identidade política monolítica e a segurança de seus objetivos políticos e formas de ação. Trata-se de uma aparente charada, talvez incompreensível para aqueles que se informam sobre o MST apenas perifericamente (ou através das superficiais e impressionistas matérias jornalísticas), o que produz curiosos comportamentos de alguns setores sociais, distintos entre si, mas igualmente equivocados. De um lado, setores conservadores reagem à retórica esquerdista e aos símbolos que, assim julgam, provavelmente o «muro já teria enterrado», clamando pela imposição dos preceitos legais que evitariam a ação dos sem-terra, quando ocupam propriedades privadas. Mas os setores sociais e agrupamentos partidários socialistas de extração urbana, igualmente desinformados acerca do mundo da política rural, e/ou motivados apenas pelos manuais da literatura «clássica», pretendem perceber nas ações de ocupações de terra, e no crescimento do Movimento, potencialidades políticas transformadoras que, de fato, inexistem no campo de expectativas dos trabalhadores sem-terra — são mudanças relevantes, isto sim, no sentido da democratização da «sociedade rural» sem conter, contudo, motivações políticas destinadas a promover rupturas. O objetivo da formação política de jovens agricultores sem-terra nas escolas do Movimento situa-se, como antes referido, em campo inteiramente distinto — em resumo, pretende-se tão somente produzir a adesão a uma compreensão «total» e fechada da política que, de fato, sequer procura situar-se concretamente em relação ao desenvolvimento político brasileiro recente, pois volta-se inteiramente «para dentro», já que é destinada precipuamente a manter a disciplina, a motivação e a coesão entre seus militantes intermediários. Algumas vezes, a mistificação ideológica pode atingir o patético, na tentativa de reforçar a perspectiva polarizada do mundo e o maniqueísmo das interpretações políticas. O jornal do Movimento, por exemplo, é talvez o melhor espelho das mudanças operadas. Até 1986 uma publicação plural, naquele ano sofreu a intervenção da direção nacional e foi transformado em «instrumento de agitação de massas», no melhor estilo do receituário leninista. Seus jornalistas, por desconfiança, foram afastados e substituídos por «repórteres populares», tal reorientação passando a refletir-se nas páginas da publicação. Como ilustração da nova opção ideológica, cite-se, por exemplo, entre dezenas de possibilidades de distorção deliberada dos fatos, a maneira como o jornal, em sua seção de «fatos diversos», tratou a prisão do lutador norte-americano Mike Tyson, em 1991, acusado (e posteriormente condenado, inclusive com sua confissão) de estupro. Na perspectiva «política» do jornal, tal fato simplesmente não ocorreu e a prisão de Tyson ocorreu, isto sim, em face da histórica discriminação racial existente naquele país, razão que teria sido a única para ser preso e condenado, segundo o que o periódico, na ocasião, publicou, provavelmente para surpresa de seus leitores mais informados. Neste caso, como na maior parte da agenda política organizada pela direção do Movimento, igualmente fruto de um discurso inspirado pelos setores ligados à Comissão Pastoral da Terra, que lhe serve como suporte de legitimação religioso, o recurso é à polarização extremada entre o «bem» e o «mal». Curiosamente, mesmo em meio à crescente complexidade social e cultural do país, bem como à ampliação do arco político e ideológico, vencido o ciclo militar do passado, os instrumentos mobilizadores do MST jamais conseguiram ultrapassar os estreitos limites de uma perspectiva marcada por pólos antípodas que opõe o virtuoso e o maléfico, distantes por certo de qualquer correspondência real. Preso a esta armadura de visível simplificação ideológica, que tem fins meramente instrumentais, não surpreende que a organização raramente tenha conseguido estabelecer alianças ou agendas comuns sequer com as demais organizações populares do campo brasileiro. Tal formação política, é claro, impede inteiramente a compreensão de seus militantes acerca da realidade social e dos problemas da política at large e, por ser superficial e incongruente, tem produzido surpreendentes e corriqueiros casos de rompimento e conflitos — particularmente, quando a identidade social original, nascida no mundo da «pequena produção», e rompida pelos tempos do acampamento e das ocupações de terra, concretiza-se novamente com a chegada ao assentamento e a reconstituição da vida comunitária do passado. Em tais situações, são comuns os anseios, entre tantos assentados, de refluir em relação à sua organização. Entretanto, como grupos dissidentes não comandam os meios de sua sustentação, como aqueles que o MST criou ao longo do tempo, as famílias rurais descontentes, nos assentamentos, são rapidamente afastadas do convívio dos demais assentados e, em alguns casos, são inclusive retiradas do próprio assentamento. Por tal razão, não podendo apoiar-se no «ciclo virtuoso» que mantém o Movimento, tais dissidências raramente constituíram-se em grupos organizados com poder e visibilidade pública. Quando isto ocorreu, representaram meros apêndices de partidos políticos de esquerda ou, então, sobreviveram por curto tempo, sem chances maiores de sobrevivência. Em Pernambuco, por exemplo, nos anos de 1996 e 1997, existiam pelo menos seis «movimentos de sem-terra» presentes naquele estado, nenhum deles, contudo, representando qualquer ameaça ao MST ou podendo sobreviver por tempo maior. O outro desafio que tem surgido com força crescente para o Movimento é exatamente a gestão dos novos assentamentos que se multiplicam pelo país. Não se pretende aqui analisar este tema em suas especificidade, o que se distancia do objetivo do presente artigo, apenas registrando-se que as propostas produtivas até agora defendidas não têm concretizado situações inovadoras em relação às possibilidades usualmente enfrentadas por agricultores familiares pauperizados. Neste sentido, os assentamentos, como regra geral, não deverão se constituir em mais do que uma sobrevida temporária às famílias que perderam a terra e voltam a ter acesso a uma parcela de um assentamento. Optar, como tem sido o caso mais corriqueiro nos assentamentos, por formatos tecnológicos típicos ou da «agricultura de sobrevivência» ou, como em muitos assentamentos do Sul do país, da «agricultura moderna», esta última demandante de insumos agroindustriais e de estruturas produtivas que elevam os níveis de endividamento dos assentados, não oferece viabilidade econômica e produtiva aos novos parceleiros, particularmente à luz dos condicionantes macroeconômicos do período recente. Provavelmente esteja sendo iniciada uma quarta fase na história do Movimento, quem sabe definida a sua abertura a partir de 1998, quando as dificuldades para a ação da organização ampliaram-se notavelmente. Embora a retórica justificadora para as incertezas desses anos venha apontando, em particular, para os resultados de «ações criminalizadoras» da ação governamental, argumento que parece distante da realidade (um emblemático auto-engano compartilhado por tantos de seus aliados), o fato é que o crescente isolamento do MST, em relação às demais organizações populares do campo, e até mesmo em relação a algumas entidades antes aliadas, tipicamente urbanas, reflete, isto sim, o conjunto de recentes escolhas políticas da organização. Ironicamente, a história recente do MST repete, sob diversos ângulos, a história das ligas camponesas, em seus anos imediatamente anteriores à ruptura institucional de 1964, comprovando assim a natureza cíclica dos processos sociais. Desde a exacerbação da retórica política às formas extremadas de luta social, passando pelo ataque ao Estado e, até mesmo, à pueril adoção de «esquemas militares», as lições da história passada parecem ter sido esquecidas pelos dirigentes da organização. Nos últimos três anos, o Movimento tem optado por um processo de radicalização política cuja rationale parece avessa a qualquer esquema interpretativo. Preferindo invadir, por exemplo, prédios públicos, ocupar algumas propriedades notoriamente produtivas (que não podem ser desapropriadas, segundo a lei), invadir navios para denunciar a existência de carga de «grãos transgênicos», afrontar diretamente as demais organizações populares do campo, realizar atos de pressão política sobre temas recentíssimos e ainda muito controvertidos, na esfera dos debates públicos (como os tratados de livre comércio ora propostos, ou o tema dos organismos geneticamente modificados), além da repetição exaustiva de um discurso anti-Estado, são iniciativas que têm contribuído para afastar o Movimento de suas áreas anteriores de adesão política, estreitando seu campo de ação. Talvez o sinal mais significativo desta nova fase, se concretizada, seja exatamente a reticência da cúpula da Igreja Católica em aliar-se, quase incondicionalmente (como no passado), com a organização dos sem-terra, crescentemente desconfiada de suas formas de ação e opções políticas, embora a agência de mediação da instituição, a Comissão Pastoral da Terra, há anos venha atuando como linha auxiliar do Movimento (a mais rigorosa análise sobre a ação e a história recente da CPT sendo encontrada em Martins, 2000: 11-71 e 133-153). O tempo, contudo, é que indicará se tais rupturas irão concretizar-se mais amplamente ou se, caso contrário, o MST poderá reorganizar-se politicamente e melhor interpretar suas alternativas e possibilidades, à luz das mudanças operadas no Brasil, no período recente.
2. O MST e os dilemas da luta social no campo A experiência social e política do Movimento, particularmente nos anos mais recentes (de meados da década de 1990 aos nossos dias), tem sido emblemática, por um lado, de suas virtualidades e extraordinária capacidade de manter-se proativo, como ator social fortemente presente na vida política, mas, também, como contraponto, é igualmente uma história organizacional exemplar, quando revela seus atuais impasses. Neste artigo, à luz dos resultados mais expressivos alcançados pelo MST, um considerável espaço seria necessário para listar seu imenso conjunto de realizações, ao longo dos anos e nas diversas regiões rurais brasileiras. São vários os casos, por exemplo, de regiões antes relativamente «adormecidas», do ponto de vista econômico, mantendo raríssimas atividades produtivas e que se tornaram relativamente dinâmicas, impulsionadas pela presença de assentamentos que foram formados na área e, igualmente, com a chegada da organização dos sem-terra e seus líderes, ou seja, por um novo conjunto de «agricultores-tornados-dirigentes-municipais», que passaram a pressionar mais intensamente as instituições locais, interferindo mais incisivamente na implantação das políticas governamentais e, em especial, passando a exercer maior vigilância sobre as práticas políticas. Essas pequenas regiões sub-nacionais revitalizadas são inúmeras, espalhadas em quase todo o Brasil, e respondendo pelo nascimento de um conjunto de famílias rurais mais participativas e, em conseqüência, contribuindo para a democratização de seus respectivos municípios. Como resultado, a multiplicação dos assentamentos em praticamente todos os estados tem produzido, especialmente, a renovação política desses rincões rurais, democratizando-os lentamente e produzindo novas práticas sociais, antes comandadas especialmente pelos grandes proprietários de terras. Os próprios assentamentos também derivam, em grande parte, da ação de pressão do Movimento e, menos, de prévias decisões governamentais. Embora a reforma agrária e a «necessidade de mudar a estrutura de propriedade da terra» estivessem inscritos na agenda política brasileira há longo tempo e alguns governos, na história do país, adotassem posturas favoráveis à implantação de programas de reforma agrária, o fato é que a multiplicação de assentamentos, em números crescentes e sem precedentes, nos últimos cinco anos, relaciona-se diretamente às pressões realizadas pelo MST (e, em alguns estados, pelo movimento sindical de trabalhadores rurais), sem deixar de também reconhecer a conjuntura favorável à implantação desta política, em face da fragilização dos grandes proprietários de terras. As ocupações de terra, com efeito, têm sido decisivas para impulsionar o programa de reforma agrária. Girando em torno de 100 ocupações, em todo o país, nos primeiros anos da década de 1990, cresceram exponencialmente a partir de 1996, quando atingiram 398 ocupações, chegando a quase 600 dois anos depois, com pequena queda nos anos mais recentes. Sintomaticamente, é o período em que a administração federal mais avançou seu programa de formação de novos assentamentos. Neste sentido, a eficácia política e organizativa empreendida pelo Movimento, talvez pudesse ser circunscrita, principalmente, a três conjuntos de resultados principais. Primeiramente, a permanência do tema «reforma agrária» no cenário de debates políticos da sociedade brasileira no período, demanda que provavelmente seria enfraquecida ou até mesmo eliminada, sem a existência da organização dos sem-terra, para insistir na necessidade de sua implantação. Em segundo lugar, a formação de um número expressivo de assentamentos, o que garantiu o acesso à terra a um número igualmente significativo de famílias rurais pobres (antes indicado), as quais, sem tal alternativa, ficariam à mercê da opção migratória para as cidades, em uma época de baixo dinamismo da economia e redução das oportunidades de trabalho nas cidades. Finalmente, o terceiro aspecto que merece ser ressaltado como representando mérito destacado da organização, em muitas regiões, refere-se exatamente à citada democratização da vida política dos pequenos municípios, em face da constituição de novas formas de representação e de organização que o Movimento estimula, tão logo os assentamentos são constituídos. Associado a tal fato, há um ângulo de extraordinário efeito, em algumas regiões brasileiras, fruto das ousadas ações do MST, e que refere-se a uma inversão das relações entre grandes proprietários de terra e os «pobres do campo». Historicamente, como é notório, essas relações refletiam a categórica dominação política dos fazendeiros nas diversas regiões agrárias, evidenciada sob diferentes formas de subordinação econômica experimentadas pelas classes subalternas do campo brasileiro. Em algumas regiões, contudo, em vista da multiplicação da arma de pressão do Movimento (as ocupações de terra), o conteúdo de tais relações tem sido alterado, criando sentimentos de crescente temor por parte dos grandes proprietários de terra, que assistem, amiúde, à incapacidade de o Estado contrapor-se, como no passado, a esta forma de pressão organizada pelos sem-terra. Em algumas regiões, como no Sul, tal temor às vezes expressa-se visivelmente, se analisadas as contra-reações dos proprietários, quando ocupações de terra ampliam-se em número e em regiões específicas. Esta inversão, em relação ao passado de dominação política dos maiores proprietários é, talvez, um dos resultados mais notáveis da história do Movimento, ampliando assim as chances de crescimento dos estoques de terra para programas de reforma agrária, agora facilitado pela desesperança gerada entre os grandes proprietários, gradualmente impotentes para contrapor-se às ocupações de terra. Ressaltada, genericamente, a agenda bem sucedida da ação do MST, caberia indicar o que a literatura raramente aponta, qual seja, uma série de dificuldades e desencontros gerados pelas formas de ação e opções políticas selecionadas pelo Movimento, que submetem sua história recente a uma luz crescentemente crítica. Dentre esses impasses, citam-se alguns, sucintamente discutidos a seguir: (a) a formação de um «círculo virtuoso» que sustenta a ação política da organização e permite a realização de um sem-número de ações públicas que a todos surpreende, porém sustentado em formas de controle social nos «seus» assentamentos, onde as famílias rurais são submetidas ao mandonismo dos dirigentes intermediários, assim repetindo o conservador padrão de hierarquização que sempre foi a marca distintiva das relações sociais rurais no Brasil (multiplicando-se, insista-se, os trabalhos de pesquisa demonstrativos de tais práticas nessas áreas). Tal controle social é concretizado por serem tais dirigentes os mediadores das políticas governamentais destinadas aos assentamentos e, como resultado, o acesso aos fundos públicos tem sido o mecanismo principal de controle social dos assentados. Mantido esse padrão, controla-se igualmente o público que será recrutado, não apenas para formar novos militantes da organização (os jovens filhos dos assentados, submetidos a compreensões doutrinárias acerca da vida social) como, igualmente, aqueles que serão convocados para engrossar as ações públicas, ocupando propriedades rurais, realizando marchas, invadindo prédios públicos e outras iniciativas, as quais formam o imenso repertório de lutas desenvolvido no período. A agilidade do MST, nesses anos, assenta-se portanto em dois pilares centrais que são os recursos humanos recrutados nos assentamentos, de um lado (tanto para formar quadros como para oferecer a marca da presença quantitativa de suas ações externas), como, por outro lado, o controle que o Movimento exerce, como mediador, sobre a aplicação de fundos públicos dirigidos aos assentamentos, permitindo assim a seleção de quadros de maior lealdade aos seus objetivos estratégicos e, em contrapartida, exercendo pressões virtualmente irresistíveis, mesmo sobre os eventuais agricultores mais inconformados à tentativa de hegemonização do MST no assentamento. O acesso a tais fundos públicos conta não apenas com o leque de novas políticas constituídas no período, em âmbitos diversos, mas, igualmente, com o amplo apoio de setores sociais urbanos mais radicalizados, muitos funcionários governamentais que têm facilitado a concretização de projetos e o correspondente acesso a esses fundos. Embora por certo legítimo, em si mesmo, que o MST reivindique (e consiga) acesso às políticas públicas instituídas nos anos recentes, não deixa de ser curioso, contudo, que os atores sociais urbanos com os quais a organização relaciona-se desconhecem, quase inteiramente, o seu interlocutor que representa os sem-terra, exceto no plano mais visível representado pelas ações externas realizadas periodicamente, que têm tido o poder de despertar lealdades, muitas vezes incondicionais, entre segmentos urbanos. Aqui repete-se, por analogia, a inesperada dissonância entre o «MST real» e o «MST virtual», que Hellman discute em relação ao caso do movimento zapatista no México. Surpreendida pelo imenso apelo internacional e solidariedade despertados, em relação aos zapatistas, a autora justifica tal interesse, inicialmente, por ser um «caso extremo», que aparece como uma direta confrontação entre os mais pobres e os mais poderosos, o que obscurece os problemas analíticos que existiriam por detrás da visibilidade mais aparente e pública dos zapatistas. Assim como em relação ao caso mexicano, para a história dos sem-terra no Brasil seria possível repetir a autora, quando enfatiza que «Chiapas virtual estabelece uma sedutora atração com as pessoas desencantadas e desencorajadas da Esquerda, a qual é fundamentalmente diferente do apelo das lutas em andamento na Chiapas real» (Hellman, 2000: 1); (b) como corolário, a prática política do Movimento, ao longo dos anos, obedecendo à ortodoxa preferência leninista de sua direção principal, tem sido essencialmente não-democrática, como antes enfatizado. Nenhum de seus dirigentes, por exemplo, submete-se a qualquer responsabilização interna (ou externa, diga-se de passagem), por não existirem tais canais de prestação de contas e de responsabilização. Os dirigentes não são eleitos, em nenhum momento público, mas escolhidos cuidadosamente pelos quadros mais altos, sob o critério principal da lealdade e submissão às diretrizes principais, que são obedecidas rigidamente, sob pena de perda da posição na estrutura da organização. Os exemplos que ilustram esta curiosa oposição entre o discurso público dos dirigentes, que reivindicam a democratização da sociedade e de suas estruturas políticas, e a sua autoritária hierarquia interna, que não admite a menor dissensão, são inúmeros. Bastaria, neste ponto, talvez citar dois casos recentes, em campos distintos. Primeiramente, em suas decisões de combater o processo de privatizações em curso nos anos 90, em 1999 um grupo de militantes invadiu um posto de pedágio em uma rodovia privatizada, no estado de São Paulo, e depredou as instalações deste posto. Como pesquisas de opinião demonstram que a maioria dos usuários que utilizam tal rodovia não tem sido contrários à sua privatização (quando muito avaliam negativamente os preços cobrados), como responsabilizar os dirigentes do Movimento por um ato político que não encontra, neste caso pelo menos, legitimação alguma, por não receber apoio político e social à ação realizada? Espantosamente, repetindo outras situações similares, o Movimento e seus aliados vêm tentando transformar a prisão de alguns dos responsáveis em um fato exclusivamente político, realizando intensa atividade de propaganda que transforma os responsáveis pelo ato, atualmente sujeitos a inquérito criminal, em «prisioneiros políticos». Outro caso, em campo distinto, refere-se à recente decisão de autoridades federais responsáveis pela área ambiental de penalizar o MST pelo desmatamento indiscriminado ocorrido em algumas áreas de assentamentos no Norte do país, instituindo uma pesada multa financeira (que, diga-se de passagem, apenas corresponde ao que prevêem as leis ambientais brasileiras, tidas como das mais progressistas, mundialmente). Ou então, a recente revelação de ter ocorrido no Paraná o maior desmatamento de área contínua da Mata Atlântica, nos últimos 15 anos, coincidindo exatamente com a formação de um grande assentamento rural na mesma área (cf. O Estado de São Paulo, 27 de abril de 2001). Como irão, contudo, concretizar o ato de responsabilização do Movimento, se seus dirigentes formais sequer são reconhecidos, pois a prática da organização é manter estruturas não legalizadas, escolhendo dirigentes subalternos e desconhecidos publicamente para assumir formalmente a fachada jurídica, sob outros nomes, da organização (que é a forma legal sob a qual é possível ao MST receber fundos públicos, assinar convênios e exercer outros atos juridicamente regulares)? Essencialmente, este tópico não se refere, como poderia parecer à primeira vista, aos métodos de ação política da organização, que mesmo sendo ilegais, são muitas vezes legítimos. Remete-se, isto sim, ao repto crucial do jogo democrático, qual seja, a possibilidade de irrestrita materialização de formas de representação que, autonomamente, estruturem seus interesses e os disputem abertamente no campo das lutas políticas sem, contudo, deixar de assumir suas responsabilidades, quando empreendidas ações públicas mais ousadas, confrontacionais e controvertidas. Neste segundo caso, por exemplo, visando uma rápida problematização, como reconhecer os direitos das comunidades indígenas quase sempre presentes em áreas adjacentes aos assentamentos, utilizando seus recursos naturais como forma de sobrevivência, como é comum no Norte do país? Acentue-se também que a prática não-democrática do Movimento, interditando qualquer debate e compromisso com outros grupos sociais do meio rural, embora notória, tem sido minimizada por quase todos os setores situados à esquerda do espectro político, como se este fosse um tema menor e irrelevante. Um contra-argumento a esta proposição sobre a face refratária às práticas democráticas do MST nos remeteria a outra pergunta, comumente apresentada: poderia ser diferente, dado o ordenamento jurídico existente, o papel repressor do Estado, a ação intimidatória das organizações patronais e, até mesmo, a depreciação cultural existente sobre o «rural» (e seus habitantes), tão presente no imaginário social brasileiro? Como mobilizar famílias rurais extremamente pobres, sem escolaridade e ocupação regular, muitas vezes sem sequer moradia costumeira? Haveria outra forma organizativa, que não a centralizada, fundada na férrea disciplina, inclusive penalizadora dos «deslizes» que ferem o estatuto disciplinar do Movimento? Uma estruturação interna democrática, por fim, não acabaria enfraquecendo o Movimento e sua capacidade de luta social? Tais dúvidas, à luz da história política brasileira, certamente são mais do que razoáveis e substantivas. Entretanto, o que se argumenta neste capítulo é, exatamente, a decisão de jamais sequer se tentar uma forma organizacional diferente, seja em função de realidades regionais distintas ou, então (o que é mais relevante), em função de mudanças nos contextos políticos, ao longo da história da organização dos sem-terra. Provavelmente, mesmo as análises menos refinadas concordariam, malgrado diferenças de perspectivas teóricas e políticas, que ocorreram mudanças no sistema político brasileiro, desde os primeiros anos do Movimento e até os dias atuais e, portanto, as formas de luta não poderiam manter-se as mesmas, indefinidamente. Se ocupações de terra representavam um ato extremo de confrontação com as estruturas do poder das oligarquias agrárias, durante os anos 80, o seriam nos anos 90, na maior parte dos estados? Se uma agenda discursiva anti-sistêmica assumia claro significado político na longa noite dos generais, entre 1964 e 1984 (exatamente porque materializaria a polaridade «nós» versus «eles», uma reafirmação da versão da polaridade moral «bem» e «mal»), faria sentido político, contudo, na conjuntura política dos anos 90, quando os governos foram constituídos após disputas eleitorais legítimas? A desqualificação política e ideológica do Estado, expressando o antagonismo da sociedade à ditadura militar, no primeiro momento, obedece a qual racionalidade política na virada do milênio? A persistente recusa a qualquer experimento democrático, seja internamente, seja em suas relações com as demais organizações do campo, em conseqüência, torna impossível, pela inexistência, afirmar suas possibilidades políticas, mas também permite acentuar a incongruência entre um regime político que se democratiza e institucionaliza e a existência de uma organização que insiste em uma retórica anti-sistêmica; (c) a face não-democrática da história do Movimento poderia, infelizmente, ser também facilmente comprovada sob outros ângulos. Sem estender em demasia essas considerações, mencione-se, nesta parte, outros três aspectos. Primeiramente, como referido, o controle social sobre as famílias rurais assentadas, cujas evidências empíricas começam lentamente a surgir como resultado da pesquisa sociológica mais conformada pelo rigor de seu trabalho de investigação e, menos, com suas preferências militantes. Desta forma, são cada vez mais conhecidos os diversos mecanismos utilizados pelos dirigentes da organização que tem a responsabilidade em uma determinada região, sobre os assentamentos ali existentes. Mecanismos que não apenas submetem os assentados à sujeição através do controle dos fundos públicos mas, muitas vezes, recorrem à mais aberta intimidação, inclusive física. A formação de cooperativas inteiramente coletivizadas, que fazem tabula rasa da história social dos agricultores, antes pequenos proprietários, por exemplo, encontra uma forte resistência das famílias rurais, o que tem gerado inúmeros conflitos nos assentamentos formados. A título de exemplo, em seu cuidadoso e original estudo, que comparou assentamentos rurais no Sudoeste do Paraná, Eliane Cardoso Brenneisen transcreve o desabafo de uma agricultora que desligou-se da cooperativa «socialista» formada no assentamento, o que serve de exemplo paradigmático para as inúmeras situações de inconformidade social, tão corriqueiras nos assentamentos controlados pelo MST. A entrevistada, referindo-se ao modo de organização instituído, argumenta que trabalhar comunitário [coletivo] seria assim tipo escravo, fica tudo junto, mas só um manda [...] se você tem uma vaca de leite, você não mandava, se tem um porco você não mandava [...] hora marcada pra ir pro serviço, se chegasse um parente na casa a senhora só tinha três dias pra hospedar eles [...] a vida inteira trabalhamos de empregado e nunca fomos tão mandado assim (Brenneisen, 2000: 165). Aliás, a incorporação de tais comportamentos passou a ser uma das marcas do cotidiano da organização, inclusive em momentos épicos e de grande visibilidade pública. Quando ocorreu a bem sucedida marcha a Brasília, em 1997, por exemplo, tornaram-se conhecidos os métodos de controle rígidos estabelecidos pelos dirigentes, posteriormente retratados por estudiosos daquele evento. Em seu minucioso estudo sobre a marcha, Chaves relata o controle quase militarizado do evento, as pesadas penalidades existentes e a condução do processo e suas decisões de forma completamente centralizada, inclusive sem divulgação aos participantes. Relatando o caso de expulsão de um integrante da marcha, por suposta transgressão das normas, ressalta que Há muitas formas de coibir a expressão, e distintos modos de controle social [...] o desacordo tendia a ser compreendido como indisciplina e, segundo a gravidade, podia redundar em expulsão [...] Esse temor tornou-se presente na Marcha Nacional; no entanto, é cotidiano nos acampamentos do MST: muitos sem-terra dispõem-se de tudo para neles garantir por um tempo a subsistência da família e a sobrevivência do sonho da terra [...] O poder silencioso do medo, que faz calar, tornar-se-ia ainda mais opressivo nos últimos dias da Marcha Nacional (2000: 217-218). O segundo aspecto a salientar, ainda sob este item, refere-se à «homogeneização forçada» das diferenças e a forte recusa à alteridade, talvez o melhor exemplo sendo, neste caso, a subordinação das demandas especificamente femininas dos grupos de mulheres, forçadas a submeter-se às «lutas maiores», que supostamente assegurariam, se vitoriosas, a incorporação de demandas específicas, em momento futuro. Na história social e política do Movimento tem sido melancólica a trajetória de muitas mulheres portadoras de notáveis talentos pessoais para ocupar posições de liderança, mas não o fazem porque sujeitas ao machismo dominante no interior do MST. Ou, o que é ainda mais perverso, quando assumem o discurso dominante no interior da organização, de certa forma «masculinizando» seu discurso, como única forma de manter as posições e poder ascender na estrutura da organização. Resultante deste controle devido a gênero, que associa patriarcalismo e a quimera ideológica das «lutas principais e secundárias», a trajetória das mulheres no interior do Movimento tem sido objeto de uma contradição óbvia, que é a distância entre o discurso igualitário para efeito externo e as práticas internas, chegando inclusive ao ocultamento do seu trabalho, desqualificando-o. A mais abrangente pesquisa sobre este tema já realizada é categórica em suas conclusões, quando ressalta que verifica-se que a relativa eqüidade entre os sexos, observada no ambiente dos acampamentos, se esgarça e perde significado nos assentamentos, quando a participação feminina se torna surpreendentemente restrita. Os dados sugerem que a baixa participação das mulheres é própria dos assentamentos, não representando um comportamento naturalmente feminismo (...) Se isto ocorre, deve-se às barreiras à participação erguidas a partir das relações sociais e de gênero e do código de valores que as sustenta — compartilhada por homens e mulheres — que emergem e se tornam predominantes com a normalidade do cotidiano dos assentamentos (Rua e Abramovay, 2000: 286). O outro aspecto a ressaltar, neste mesmo item, diz respeito à persistente postura política, algo surpreendente, do Movimento, de categoricamente deslegitimizar o Estado, o que parece ser incompreensível, antes de mais nada, por ser o MST, como antes ressaltado, o mais integrado dos movimentos populares brasileiros, daí extraindo, ademais, a sua própria sustentação financeira principal. Esta deslegitimação, já ressaltada por Martins (2000), faz parte da arquitetura discursiva da organização dos sem-terra, operada, provavelmente, por duas razões principais, a primeira sendo a orientação ideológica de seus dirigentes principais e, a outra, sendo a antes referida «razão instrumental», qual seja, manter um discurso unitário que solidifique a coesão interna de seus militantes e, também, atraia o apoio de setores urbanos radicalizados. Tal postura, contudo, mantém-se em diversas situações, especialmente aquelas que não afetem o acesso aos fundos públicos, cuja interrupção poderia comprometer a sustentação financeira da organização dos sem-terra. Por exemplo, convidado em Julho de 2000 a tomar assento no «Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável», mesmo a organização não tendo existência formal, como antes indicado, o MST recusou peremptoriamente a possibilidade, mas nem por isto tem deixado de exigir permanentemente o acesso às políticas públicas federais implementadas pelo ministério correspondente e com a supervisão do Conselho, valendo-se, para tanto, de todas as formas de ação possíveis, inclusive as confrontacionais (e, aliás, mesmo que isto signifique também confrontar-se abertamente com as demais organizações que representam os setores sociais mais pobres, igualmente demandantes de acesso a tais fundos públicos). Da mesma forma, o Movimento não tem sido capaz de sequer reconhecer algumas medidas recentes no campo agrário que são inéditas em nossa história e representam profundo golpe na estrutura de poder representada pelas grandes propriedades rurais. Entre tais medidas, por exemplo, como uma das mais notáveis, a decisão governamental de cancelar o cadastro de todas as propriedades de maior extensão que não fossem capazes de demonstrar a regularidade de seus títulos. Terminado o prazo para esta comprovação, pouco menos de 2 mil latifúndios, em todo o país, não produziram informações convincentes e tiveram seus cadastros anulados (na prática, seu direito a estas propriedades), representando uma área de pouco mais de 60 milhões de hectares, ou seja, quase quatro vezes o tamanho do estado de São Paulo. Neste caso, amplia-se, em curto prazo, o estoque de terras disponíveis para ações em reforma agrária em ritmo quase exponencial, abrindo inúmeras oportunidades para novos assentamentos. Fosse a lógica operativa do Movimento, nos anos mais recentes, a representação efetiva dos sem-terra e a reforma agrária a sua principal demanda (e não outros objetivos, inclusive partidários), uma interlocução com o Governo Federal, mesmo que mantido sob critérios críticos e de distanciamento político, poderia agilizar enormemente a ocupação produtiva desses imóveis. Talvez uma evidência da prática continuada de deslegitimação do Estado perseguida pelo Movimento possa ser retirada da citação abaixo, onde o dirigente máximo da organização faz um vitriólico ataque ao poder judiciário, em uma exposição (pública) realizada há alguns anos. Citações como esta poderiam ser aqui repetidas ad nauseam, inclusive no período imediatamente recente, demonstrativas o suficiente da limitadora noção de política esposada pelos dirigentes principais do MST desde meados dos anos 80, quando a organização passou a orientar-se por um outro ideário político, que ainda conforma doutrinariamente a organização. Na ocasião, João Pedro Stédile, fundador do Movimento e ainda hoje seu mais destacado dirigente, provavelmente imaginando-se então como o próximo responsável pela área de reforma agrária do Governo Federal, pois seu candidato às eleições presidenciais de 1994 encontrava-se naquele momento em confortável dianteira, frente aos demais candidatos, não hesitou em desqualificar toda e qualquer iniciativa governamental nesta área e, em relação à ação da Justiça, propôs um curioso mecanismo de neutralização, quando necessário, acentuando, segundo suas palavras, que o terceiro aspecto na ação do governo é a legislação, é o poder judiciário. Muita gente tem dito em palestras que, ‘ah, o problema do Brasil é que o poder judiciário vai ser um problema’ [para a implantação da reforma agrária]. Vocês sabem melhor do eu [...] o poder judiciário no Brasil é um capacho do poder executivo, é uma tropa de puxa-saco, não existe nenhuma independência do poder judiciário com o poder executivo, a começar pelo Supremo Tribunal Federal [...] se os caras são indicados pelo presidente da república, algum deles vai criticar o presidente? (...) Então, um judiciário que começa desde o Supremo com essas características, o juizinho lá [nos locais distantes] nós compramos ele com um churrasco, né, o preço vem baixando, promotor de justiça então, deus o livre. (d) finalmente, não podendo ser estendida neste artigo uma longa lista de problemas políticos e organizacionais que o MST atualmente apresenta, contrariamente ao senso comum compartilhado por analistas sociais distantes das realidades agrárias, nem mesmo detalhar outras decisões polêmicas e/ou não-democráticas assumidas pela organização, é necessário ainda salientar que as estratégias escolhidas pelo Movimento e suas ações de pressão e reivindicação também têm ignorado uma possibilidade histórica, talvez única, criada nos anos 90, e sob a qual os interesses do Movimento e sua agilidade social e política poderiam potencializar os resultados extraordinariamente. Refere-se aqui à (re)emergência do «desenvolvimento rural» como uma demanda crescente das populações rurais, especialmente em regiões onde suas organizações são mais atuantes. Na década passada, por várias razões conhecidas, modificaram-se as condições de produção no meio rural brasileiro que, somadas às mudanças políticas operadas pelo processo de descentralização, experimentado pelo Brasil no mesmo período, e por novas formas de gestão estatal implementadas em governos recentes, resultaram no reaparecimento desta demanda em diversas regiões agrárias. Cada vez mais, o conjunto de organizações (excetuando-se o MST) associa-se em um ideário propositivo que procura reconstituir as possibilidades de formas de desenvolvimento rural dinamizadoras da economia local ou regional, que instituam novas alternativas na produção de renda e no aumento das oportunidades de trabalho, de integração aos mercados e, igualmente, influam nas esferas políticas do município ou da região. Pretendem, desta forma, assegurar a melhoria das condições de vida das famílias rurais que representam, algumas dessas iniciativas hoje caracterizando determinadas sub-regiões do mundo rural brasileiro, que começam a sair do encurralamento recente e iniciam formas de dinamização social, econômica e política novas. Em todos os casos conhecidos, a decisão do Movimento têm sido ou ignorar tais iniciativas ou, ainda mais problemático, combatê-las, às vezes agressivamente, não concordando em estabelecer alianças políticas, em nenhum caso conhecido, com as organizações que procuram empreender tais mudanças. Em um período no qual os grandes proprietários de terras enfraqueceram-se substancialmente, perdendo igualmente sua capacidade de extrair do Estado federal a sustentação financeira que sempre obtiveram no passado, além de terem os agricultores mais pobres (englobados na categoria mais geral de «agricultores familiares») criado uma brecha inédita no âmbito do mesmo Estado (através primeiramente de políticas públicas específicas, como o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) e, mais recentemente, até mesmo instituindo um Ministério do Desenvolvimento Agrário que, de fato, é o «ministério dos pobres do campo»), é espantoso que o MST continue alheio a estas transformações recentes. Mantém-se, surpreendentemente, na mesma estratégia acima citada, refratário (e até hostil) às demais organizações de pequenos agricultores e trabalhadores rurais e, da mesma forma, a sonhar com a «tomada do Palácio de Inverno», quando a economia rural brasileira, neste início de milênio encontra-se inteiramente mercantilizada e as famílias rurais, sequer remotamente, assumiriam projetos políticos que não fossem, quando muito, reformistas, pois jamais adeririam às projeções de transformação política que os dirigentes principais do Movimento defendem (e ensinam em suas escolas de formação política, para os jovens rurais recrutados em seus assentamentos). Provavelmente, este é, atualmente, o maior impasse político experimentado pelas famílias rurais mais pobres, no Brasil: o processo de democratização da sociedade brasileira produziu uma capacidade de reivindicação sem precedentes no meio rural e uma presença na esfera pública igualmente inédita, além de contar, na maior parte dos anos recentes, com uma possibilidade política de ação dos governos federais do período muito mais favorável, também sem comparação com épocas passadas e, sobretudo, sem contar com a oposição (e ação) na mesma força do passado, das organizações dos grandes proprietários. Mas, como perversa ironia, nos mesmos anos, a organização que mais forte tornou-se, em face de seu desenvolvimento, vem constituindo-se, mais e mais, em significativo empecilho à construção de processos novos e promissores de desenvolvimento rural no Brasil, assumindo assim uma inesperada e insuspeitada face conservadora, quando suas lutas sociais são comparadas com as demandas das famílias rurais mais pobres do país. 3. Conclusões A teoria crítica foi desenvolvida para lutar contra o consenso como forma de questionar a dominação e criar o impulso de lutar contra ela. Como proceder numa situação em que o consenso deixou de ser necessário e, portanto, a sua desmistificação deixou de ser a mola do inconformismo? É possível lutar contra a resignação com as mesmas armas teóricas, analíticas e políticas com que se lutou contra o consenso? (Santos, 2000: 35). Movimentos sociais transformados em organizações formais, como o MST, uma vez operada tal mudança interna, passam a reger-se por outras lógicas constitutivas e diferentes interesses, diversos daqueles originais, tanto em suas relações externas, mantidas com os demais grupos políticos, como em suas relações internas. Destaca-se, neste caso, a estreita relação entre a origem social dos sem-terra e as oportunidades criadas pela expansão da organização, inclusive em termos de carreira política e, mais genericamente, pela extraordinária ampliação de formas de mobilidade social ascendente, possibilidade mantida enquanto a organização conseguir manter seu ritmo de crescimento. Neste sentido, análises «fora de lugar» sobre o MST, ou seja, ainda enfocadas pelas conjunturas políticas do período militar ou de seus anos imediatamente seguintes, quase sempre informadas por polaridades político-ideológicas que são o apanágio do passado, mas distantes das formas societárias atuais, obedecem primeiramente às necessidades do jogo de disputas partidárias ou, então, representam óbvios equívocos analíticos. O título deste artigo inspirou-se no conhecido estudo realizado por Maxine Molyneux sobre o papel e o destino da participação das mulheres e os interesses devido a gênero na chamada «revolução sandinista» nicaraguense. Naquele caso, um processo de ruptura sócio-política prometia a emancipação das mulheres do país, que formaram parte significativa e ativa dos exércitos formados pela guerrilha. Entretanto, argumenta a autora, durante o processo revolucionário e, especialmente, após a vitória dos grupos insurgentes, a especificidade dos sujeitos políticos por elas representados submergiram na «luta geral». Surge aqui um claro e decisivo problema político, não resolvido naquele caso, quando a autora insiste que muito depende sobre o que se entende pelos sujeitos «perdendo a sua especificidade» e objetivos universalizados. Porque a universalização dos objetivos dos sujeitos revolucionários não necessariamente implica na perda de suas identidades específicas [...] se a revolução não exigiu a dissolução das identidades das mulheres, exigiu sim a subordinação dos seus interesses específicos aos objetivos maiores de [...] estabelecer uma nova ordem. Isto levanta uma questão importante que está no centro dos debates acerca da relação entre a revolução socialista e a emancipação das mulheres [o que introduz o tema crucial e geral] [...] que é aquele das garantias políticas. Porque se os interesses devido a gênero serão concretizados somente dentro do contexto de considerações mais amplas, é essencial que as instituições políticas responsáveis por esses interesses tenham os meios de impedir a sua completa submissão e suas ações serem adiadas indefinidamente (Molyneux, 1985: 228-229, 251, ênfase da autora). Embora aparentemente distinto, a história recente do MST no Brasil é notavelmente análoga, em relação à interdição das possibilidades de emancipação dos grupos sociais representados pela organização. Não apenas diferenças específicas, de cunho sócio-cultural, entre grupos de famílias rurais recrutadas têm sido ignoradas, subordinadas às formas de mobilização animadas pelo Movimento mas, ainda mais crucial, diferenças em termos de idade, gênero, formas de inserção produtiva, histórias regionais de agricultura, tipos de organização e representação previamente existentes (que são combatidos ferreamente em nome da «unidade na luta») e, igualmente, as diferenças de enfoques estratégicos e formas de ação políticas, estas invariavelmente desqualificadas e não aceitas, em nome de uma suposta homogeneidade política, aliás jamais claramente explicitada. O resultado final, em todas as regiões agrárias brasileiras, tem sido a significativa materialização de uma capacidade de mobilização empreendida pelo MST, ancorada nos mecanismos antes apontados e evidenciada em inúmeros fatos e ações, mas também a incapacidade, por outro lado, de produzir sujeitos sociais portadores de real autonomia organizativa, comandantes de seus próprios destinos, assim impossibilitados de inscrever a emancipação social e política entre seus objetivos de vida. A história do Movimento, neste sentido, perde seu caráter de novidade e apenas repete a melancólica trajetória de outros agrupamentos políticos situados no campo da esquerda tradicional, apenas aparentemente promissores, quando iluminados pelo foco de suas ações externas. Sob os símbolos e ícones elaborados para efeitos externos, contudo, subjaz a silenciosa desconfiança de seus participantes subalternizados, o desconhecimento acerca dos objetivos do próprio Movimento, os impasses produtivos existentes em todos os assentamentos rurais, a feroz disputa política pela hegemonia organizativa dos pobres do campo, o desprezo pelas práticas sociais democráticas e, surpreendentemente, como antes apontado, a reiteração do controle social e das formas de mando usuais no meio rural brasileiro, antes exercidos pelos grandes proprietários de terra e seus prepostos, hoje materializados sob outras formas e acobertados pelo discurso progressista. As possibilidades de contar com apoios externos, em face dos constrangimentos sociais e econômicos oferecidos pela globalização, que têm aumentado a desigualdade social em tantos países, inclusive o Brasil, igualmente têm sido pouco aproveitadas pelo Movimento. Sua repercussão internacional, procurando apoios, reflete especialmente a capilaridade de instituições situadas na órbita das instituições religiosas, que periodicamente promovem ações de divulgação, campanhas e diversas formas de protesto, com resultados, no geral, pouco eficazes, em termos de difusão do «problema agrário» no Brasil. A tentativa da organização, por sua vez, de criar algum tipo de cooperação internacional ainda é muito embrionária. Inicialmente, constituiu-se através da «Coordenação Latino-americana de Organizações Camponesas - Cloc», sem qualquer efeito mais prático e, recentemente, vem sendo tentada através da «Via Campesina» [www.viacampesina.org], uma articulação de organizações camponesas do continente da qual o MST faz parte, em seu corpo dirigente. Além disto, apenas a divulgação em portais da internet de suas campanhas e ações [www.mst.org.br], também sem significativa repercussão internacional. Mesmo a premiação do chamado «Nobel Alternativo», ou o «Prêmio Rei Balduíno», atribuído pelo governo belga para organizações dedicadas ao tema dos direitos humanos, tem tido efeitos limitados, na promoção de uma rede de cooperação internacional que pudesse realizar ações diversas e promover formas de pressão mais eficazes. Neste sentido, ao contrário de outros campos emergentes, como as contestações internacionais dirigidas às organizações promotoras do livre comércio ou a crescente ação relacionada ao tema dos OGMs (para não falar nos temas ambientais), parece que uma «contra-globalização», de natureza emancipatória, que incorporasse os interesses dos sem-terra do Brasil, ainda não encontrou suas condições objetivas de concretização. Uma razão é, talvez, a natureza da luta social comandada pela organização, que provavelmente não tenha mais o apelo do passado e não encarne uma «novidade» (compare-se, por exemplo, com o caso de Chiapas e suas particularidades inovadoras, discutidas por Hellman, 2000). Mas outra razão para esta ineficácia transformadora, no plano internacional, certamente remete-se à natureza política assumida pelo MST. À luz da história da organização, nos últimos vinte anos, como se argumentou neste artigo, talvez não seja inesperado este diagnóstico e avaliação. A emancipação social e política dos pobres do campo, no Brasil, neste contexto, mantém-se como uma simples miragem, que apenas a fabulação de outros tempos, distantes no futuro, quase utópicos, pode oferecer, adiando, como tem ocorrido desde sempre, a constituição de um ambiente societário onde as esperanças e o mundo vivido não estejam separados por abismos insuperáveis.
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