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Boaventura de Sousa Santos

César Rodríguez

Introdução: para ampliar o cânone da produção

 

 

Introdução

Como demonstra a consolidação recente de numerosos movimentos e organizações de todo o mundo que lutam por uma globalização contra-hegemónica, os vários séculos de predomínio do capitalismo não conseguiram diminuir a indignação e a resistência efectiva contra os valores e as práticas que constituem o núcleo central do capitalismo, enquanto sistema económico e forma civilizacional. De facto, a história do capitalismo, desde o seu aparecimento no que Wallerstein (1979) chamou de «longo século XVI», é também a história das lutas de resistência e da crítica contra esses valores e práticas. Desde a luta dos camponeses ingleses contra a sua integração forçada nas fábricas protocapitalistas, provocada pela apropriação privada das terras comunais, no século XVIII, até às lutas contemporâneas das comunidades indígenas nos países semiperiféricos e periféricos, contra a exploração dos seus territórios ancestrais, passando por todo o tipo de movimentos operários, o capitalismo tem sido constantemente confrontado e desafiado. Estes desafios têm sido acompanhados de uma vasta tradição de pensamento crítico - desde o pensamento associativo de Saint-Simon, Fourier e Owen, na Europa, no século XIX, até à reivindicação de um desenvolvimento alternativo ou mesmo à rejeição da ideia de desenvolvimento económico nos países periféricos e semiperiféricos, no século XX, passando pela crítica marxista do capitalismo industrial - que impulsionou o debate sobre formas de sociedade mais justas que sejam alternativas viáveis às sociedades capitalistas (Macfarlane, 1998). Ao imaginar e lutar por sociedades onde a exploração seja eliminada, ou pelos menos drasticamente reduzida, as práticas e teorias críticas do capitalismo - acrescentadas a outras cujo alvo são outras formas de dominação, como o patriarcado e o racismo - mantiveram viva a promessa moderna de emancipação social.

No início do século XXI, a tarefa de pensar e lutar por alternativas económicas e sociais é particularmente urgente por duas razões relacionadas entre si. Em primeiro lugar, vivemos numa época em que a ideia de que não há alternativas ao capitalismo obteve um nível de aceitação que provavelmente não tem precedentes na história do capitalismo mundial. Com efeito, ao longo das duas últimas décadas do século XX, as elites políticas, económicas e intelectuais conservadoras impulsionaram com tal agressividade e sucesso as políticas e o pensamento neoliberais que a ideia tatcheriana, segundo a qual «não há alternativa» nenhuma ao capitalismo neoliberal, ganhou credibilidade, inclusivamente entre os círculos políticos e intelectuais progressistas. Desta forma, as décadas precedentes reavivaram a «utopia do mercado auto-regulado» (Polanyi, 1957) que havia sido dominante no século XIX. Contudo, ao contrário do que aconteceu no século XIX, o ressurgimento da referida utopia, sob a forma do neoliberalismo contemporâneo, não foi acompanhado pela reactivação simultânea das lutas e do pensamento crítico, que passaram para a defensiva e que têm que se reinventar e reorganizar. Mas esta situação começou a mudar nos últimos anos com o renascimento do activismo a favor de uma globalização contra-hegemónica, que começou, inclusivamente, a desenvolver formas de coordenação como a realização de um fórum social mundial em Porto Alegre. Dado que, como observou o referido Polanyi (1957: 3) com clareza, as instituições que encarnam a utopia do mercado auto-regulado «não poderiam existir por muito tempo sem aniquilar o material humano e natural da sociedade [ porque] teriam destruído fisicamente o homem e devastado o ambiente», a ideia de que não existem alternativas não podia predominar por muito tempo. Uma vez que a globalização neoliberal foi eficazmente posta em causa por múltiplos movimentos e organizações, uma das tarefas urgentes consiste em formular alternativas económicas concretas que sejam ao mesmo tempo emancipatórias e viáveis e que, por isso, dêem conteúdo específico às propostas por uma globalização contra-hegemónica. Em segundo lugar, a reinvenção de formas económicas alternativas é urgente porque, em contraste com os séculos XIX e XX, no início do novo milénio a alternativa sistémica ao capitalismo, representada pelas economias socialistas centralizadas, não é viável nem desejável. O autoritarismo político e a inviabilidade económica dos sistemas económicos centralizados foram dramaticamente expostos pelo colapso destes sistemas nos finais dos anos 80 e princípios dos 90 (Hodgson, 1999). Inclusivamente aqueles que, perante a evidência do autoritarismo e da inviabilidade desse sistema, persistiam na possibilidade de uma alternativa ao capitalismo (isto é, a alternativa socialista centralizada) foram obrigados a pensar de outra forma. Para aqueles, como nós, para quem os sistemas socialistas centralizados não ofereciam uma alternativa emancipatória ao capitalismo, a crise desses sistemas criou a oportunidade para recuperar ou inventar alternativas (no plural) que apontem para práticas e formas de sociabilidade anticapitalistas. Como se poderá ver no estudo que apresentamos mais à frente, estas alternativas são muito menos grandiosas que a do socialismo centralizado, e as teorias que lhes servem de base são menos ambiciosas que a crença na inevitabilidade histórica do socialismo que dominou o debate do marxismo clássico. De facto, a viabilidade de tais alternativas, pelo menos a curto e médio prazo, depende em boa medida da sua capacidade de sobreviver no contexto do domínio do capitalismo. O que se pretende, então, é centrar a atenção simultaneamente na viabilidade e no potencial emancipatório das múltiplas alternativas que se têm vindo a formular e a praticar um pouco por todo o mundo e que representam formas de organização económica baseadas na igualdade, na solidariedade e na protecção do meio ambiente.

Este é o espírito que inspira este trabalho introdutório e os estudos de caso incluídos no presente volume. A insistência na viabilidade das alternativas não implica, contudo, uma aceitação do que existe. A afirmação fundamental do pensamento crítico consiste na asserção de que a realidade não se reduz ao que existe. A realidade é um campo de possibilidades em que têm cabimento alternativas que foram marginalizadas ou que nem sequer foram tentadas (Santos, 2000: 23). Neste sentido, a função das práticas e do pensamento emancipadores consiste em ampliar o espectro do possível através da experimentação e da reflexão acerca de alternativas que representem formas de sociedade mais justas. Ao apontar para além daquilo que existe, as referidas formas de pensamento e de prática põem em causa a separação entre realidade e utopia e formulam alternativas que são suficientemente utópicas para implicarem um desafio ao status quo e suficientemente reais para não serem facilmente descartadas por serem inviáveis (Wright, 1998). O espectro de possibilidades resultante é muito mais amplo do que aquele que muitos partidos e pensadores de esquerda tiveram tendência para defender nos últimos anos. Na América Latina, por exemplo, uma corrente influente da esquerda, cujas ideias foram condensadas nos trabalhos de Unger e Castañeda, tem tendência a oferecer como alternativas ao sistema capitalista apenas variações já conhecidas. Nas palavras de Castañeda, as opções viáveis para a esquerda limitam-se a promover o modelo capitalista «com as variações, regulamentações, excepções e adaptações que as economias de mercado da Europa e do Japão incorporaram ao longo dos anos» (1993: 42). Como iremos mostrar no balanço das experiências e das teorias económicas alternativas que apresentamos mais adiante, o predomínio do capitalismo não reduz a amplitude de possibilidades às referidas variações. Pelo contrário, essa amplitude de possibilidades inclui formas de conceber e organizar a vida económica que implicam reformas radicais dentro do capitalismo assentes em princípios não capitalistas ou que apontam, inclusivamente, para uma transformação gradual da economia para formas de produção, intercâmbio e consumo não capitalistas.

Qualquer análise que, como a nossa, procure sublinhar e avaliar o potencial emancipatório das propostas e experiências económicas não capitalistas que se têm vindo a fazer por todo o mundo deve ter em conta que, face ao seu carácter anti-sistémico, essas experiências e propostas são frágeis e incipientes. Por esta razão, neste trabalho analisamos as alternativas a partir de uma perspectiva que se pode designar por «hermenêutica das emergências» (Santos, 2001), ou seja, uma perspectiva que interpreta de uma maneira abrangente a forma como as organizações, movimentos e comunidades resistem à hegemonia do capitalismo e aderem a alternativas económicas fundadas em princípios não capitalistas. Esta perspectiva amplia e desenvolve as características emancipatórias dessas alternativas para as tornar mais visíveis e credíveis. Isto não implica que a hermenêutica das emergências renuncie à análise rigorosa e à crítica das alternativas analisadas. Todavia, a análise e a crítica procuram fortalecer as alternativas e não propriamente diminuir o seu potencial.

Antes de avançarmos para a análise das iniciativas e propostas concretas, é necessário precisar os termos que geralmente se utilizam nas discussões sobre estes temas. Na falta de um termo melhor, as práticas e teorias que desafiam o capitalismo são frequentemente qualificadas como «alternativas». Neste sentido, fala-se de uma globalização alternativa, de economias alternativas, de desenvolvimento alternativo, etc. Existem razões para questionar a conveniência política e teórica da utilização deste adjectivo - qualificar algo como de alternativo implica, desde logo, ceder terreno àquilo a que se pretende opor o que, assim, reafirma o seu carácter hegemónico. Contudo, pensamos que, em vez de uma mudança de linguagem, o que se exige no início de uma interrogação que procura teorizar e tornar visível o espectro de alternativas é formular a pergunta óbvia: alternativo em relação a quê? Por outras palavras, quais são os valores e práticas capitalistas que essas alternativas criticam e procuram superar? Apesar da amplitude desta pergunta - que, de facto, visa um dos temas centrais das ciências sociais, ou seja, a caracterização do capitalismo como fenómeno económico e social -, é necessária pelo menos uma breve resposta para clarificar o sentido da exposição que se segue. E assim faremos porque o objectivo central desta introdução é precisamente apresentar um mapa e um conjunto de teses sobre a trajectória e as possibilidades actuais das práticas e visões do mundo inspiradas nos princípios não capitalistas. Ao colocar a pergunta e os termos do nosso argumento desta forma geral, esperamos que esta introdução sirva como pano de fundo e introdução à leitura dos estudos de caso que se incluem neste livro e que discutem, a partir de diferentes ângulos e de experiências diversas, em que grau as iniciativas escolhidas para análise constituem alternativas económicas emancipatórias.

Tradicionalmente, as linhas de pensamento crítico a que já fizemos referência sublinham três características negativas das economias capitalistas. Em primeiro lugar, o capitalismo produz sistematicamente desigualdades de recursos e de poder. Na tradição marxista o efeito que figura no centro das críticas é a desigualdade económica e de poder entre as classes sociais. A separação entre capital e trabalho e a apropriação privada os bens públicos actuam como motores que produzem rendimentos desiguais e relações sociais marcadas pela subordinação do trabalho ao capital. As mesmas condições que tornam possível a acumulação geram desigualdades dramáticas entre classes sociais, no interior de cada país, e entre países, no sistema mundial. Entretanto, a tradição feminista concentra as suas críticas na forma como as diferenças de classe reforçam as diferenças de género e, portanto, na forma como o capitalismo contribui para reproduzir a sociedade patriarcal. De igual modo, as teorias críticas de base racial sublinham a forma como a opressão entre raças e a exploração económica se alimentam mutuamente. Em segundo lugar, as relações de concorrência exigidas pelo mercado capitalista produzem formas de sociabilidade empobrecidas, que assentem no benefício pessoal em lugar de se basearem na solidariedade. No mercado, o motivo imediato para produzir e para interagir com outras pessoas é

uma mistura de cobiça e de medo [...]. Cobiça, porque as outras pessoas são vistas como possíveis fontes de enriquecimento, e medo, porque elas são vistas como ameaças. Estas são formas horríveis de olhar para os outros, independentemente de já estarmos habituados a elas, em resultado de séculos de capitalismo (Cohen, 1994: 9).

É esta redução da sociabilidade ao intercâmbio e ao benefício pessoal que está no centro do conceito de alienação em Marx e é ela que inspira críticas e propostas contemporâneas que procuram alargar as esferas em que o intercâmbio se baseia na reciprocidade e não nos ganhos monetários - como as economias populares estudadas por Quijano (1998), na América Latina - ou diminuir a dependência das pessoas em relação ao trabalho assalariado, de tal forma que não seja necessário «perder a vida para ganhar a vida» (Gorz, 1997). Em terceiro lugar, a exploração crescente dos recursos naturais a nível global põe em perigo as condições físicas de vida na terra. Como tornaram visível as teorias e movimentos ecologistas, o nível e o tipo de produção e consumo exigidos pelo capitalismo são insustentáveis (Daly, 1996; Douthwaite, 1999). Assim, o capitalismo tende a esgotar os recursos naturais que permitem a sua própria reprodução (O’Connor, 1998). Contra a possibilidade da destruição da natureza, os movimentos ecologistas propuseram uma ampla variedade de alternativas, que vão desde a imposição de limites ao desenvolvimento capitalista até à rejeição da própria ideia de desenvolvimento económico e a adopção de estratégias antidesenvolvimentistas, assentes na subsistência e no respeito da natureza e da produção tradicional (Dietrich, 1996).

Na prática, certamente, as críticas e as alternativas formuladas a estas características do capitalismo tendem a combinar mais de uma das linhas mencionadas. Por exemplo, o ecofeminismo promovido pelos movimentos de mulheres, na Índia, articula a crítica e a luta contra o patriarcado com a preservação do meio ambiente (Shiva e Mies, 1993). De igual forma, as cooperativas não apontam apenas para a remuneração igualitária dos trabalhadores-donos das empresas cooperativas, mas também para a criação de formas de sociabilidade solidárias assentes no trabalho colaborativo e na participação democrática na tomada de decisões sobre as empresas. Ainda no mesmo contexto, propostas tais como a criação de um rendimento mínimo universal, acompanhado da diminuição do horário de trabalho, não procuram estabelecer apenas um nível de bem-estar material básico, mas também libertar tempo para o desenvolvimento de sociabilidades e habilidades diferentes das que são exigidas pelo mercado (Van Parijs, 1992).

O mapa de iniciativas e de visões económicas alternativas que apresentamos mais adiante, assim como o conjunto de experiências analisadas nos estudos de caso incluídos neste volume, é muito variado. Como se verá a seguir, os estudos de caso incluem desde organizações económicas populares constituídas pelos sectores mais marginalizados na periferia até cooperativas prósperas no centro do sistema mundial. Contudo, ao criticar e procurar superar, em maior ou menor escala, as características do capitalismo atrás assinaladas, todos estes tipos de experiências têm em comum o facto de, ainda que não pretendam substituir o capitalismo de um só golpe, procurarem (com resultados díspares) tornar mais incómoda a sua reprodução e hegemonia. Para isso, os múltiplos tipos de iniciativas que incluímos no nosso mapa criam espaços económicos em que predominam os princípios de igualdade, solidariedade ou respeito pela natureza. De acordo com o primeiro princípio, os frutos do trabalho são distribuídos de maneira equitativa pelos seus produtores e o processo de produção implica a participação de todos na tomada de decisões, como nas cooperativas de trabalhadores. Graças ao princípio da solidariedade, o que uma pessoa recebe depende das suas necessidades e a contribuição depende das suas capacidades. Assim funcionam, por exemplo, os sistemas progressivos de tributação e transferências cuja criação ou defesa, no contexto da globalização neoliberal, constitui uma proposta alternativa ao consenso económico hegemónico. É neste princípio que igualmente se inspira o movimento de fair trade (comércio justo), em que o preço que os consumidores do Norte pagam por um produto contribui efectivamente para a remuneração justa dos seus produtores do Sul. Em nome da protecção ao meio ambiente, a escala e o processo de produção ajustam-se a imperativos ecológicos, mesmo quando estes contrariam o crescimento económico.

A escala das iniciativas é igualmente variada. As alternativas compreendem desde pequenas unidades de produção locais - como as cooperativas de trabalhadores dos bairros marginalizados dos países da periferia do sistema mundial - até propostas de coordenação macro-económica e jurídica global que garantam o respeito por direitos laborais e ambientais mínimos, em todo o mundo, passando por tentativas de construção de economias regionais assentes nos princípios de cooperação e solidariedade.

Face a semelhante diversidade, as alternativas existentes variam muito no que respeita à sua relação com o sistema capitalista. Enquanto que umas (por exemplo, as cooperativas) são compatíveis com um sistema de mercado e inclusivamente com o predomínio das empresas capitalistas, outras (por exemplo, as propostas ecológicas antidesenvolvimentistas) implicam uma transformação radical ou até mesmo o abandono da produção capitalista. Todavia, ao estudar estas iniciativas pensamos que é importante, por duas razões distintas, resistir à tentação de as aceitar ou rejeitar com um critério simplista que equaciona exclusivamente se elas oferecem alternativas radicais ao capitalismo. Por um lado, este critério simples de (des)qualificação encarna uma forma de fundamentalismo alternativo que pode fechar as portas a propostas que, ainda que surjam dentro do capitalismo, abrem as portas a transformações graduais em direcções não capitalistas e criam enclaves de solidariedade no seio do capitalismo. Mais do que da velha dicotomia entre reforma e revolução, trata-se é de, como afirma Gorz (1997), aplicar reformas revolucionárias, ou seja, empreender reformas e iniciativas que surjam dentro do sistema capitalista em que vivemos, mas que facilitem e dêem credibilidade a formas de organização económica e de sociabilidade não capitalistas. Por outro lado, semelhante critério estrito de avaliação das alternativas implica, em última análise, uma hermenêutica do cepticismo, e não da emergência, que acaba por rejeitar todo o tipo de experimentação social por estar sempre contaminado pelo sistema dominante. Já que nenhuma das propostas viáveis representa uma alternativa sistémica ao capitalismo (ou seja, uma alternativa de organização micro e macro-económica integral, assente exclusivamente em valores de solidariedade, igualdade e protecção do meio ambiente), as alternativas com que contamos têm relações directas ou indirectas com os mercados locais, nacionais e até mesmo internacionais. Por outras palavras, uma vez que sabemos como fazer funcionar uma economia assente no interesse individual (ou seja, baseada no mercado), mas não aprendemos como fazer funcionar uma economia fundada na generosidade (Cohen, 1994), as iniciativas não representam novos modos de produção que substituam o modo capitalista. Contudo, isso não lhes retira relevância nem potencial emancipador. Ao encarnar valores e formas organizativas opostas aos do capitalismo, as alternativas económicas geram dois efeitos com alto conteúdo emancipador. Em primeiro lugar, ao nível individual implicam frequentemente mudanças fundamentais nas condições de vida dos seus actores, como mostram os estudos sobre a transformação da situação dos colectores e recicladores de lixo, na Índia e na Colômbia, analisados respectivamente por Bhowmik e Rodríguez, nos capítulos incluídos neste volume. Em segundo lugar, ao nível societal, a difusão de experiências bem sucedidas implica a ampliação dos campos sociais em que operam valores e formas de organização não capitalistas. Nalgumas situações - como no caso do complexo cooperativo Mondragón, em Espanha, que tem influência numa região inteira (Whyte e Whyte, 1989) - o alcance das iniciativas é tal que transforma de maneira considerável os padrões de sociabilidade e os resultados económicos. Encaradas a partir da perspectiva de uma hermenêutica das emergências, estas experiências guardam, de facto, a promessa de transformações em maior escala na direcção de formas de sociabilidade e organização económica não capitalistas.

Com base na caracterização geral delineada nos parágrafos anteriores, concentramo-nos a seguir nas formas de produção não capitalistas que constituem o tema específico dos estudos incluídos neste livro. Para isso, dividimos a parte restante desta introdução em duas secções. Na primeira delas, e segunda deste trabalho, apresentamos um mapa não exaustivo das propostas e linhas de pensamento sobre produção não capitalista. O objectivo central desta secção é estabelecer coordenadas gerais para articular as múltiplas iniciativas e propostas que se estão a levar a cabo, tanto no centro como na semiperiferia e na periferia do sistema mundial, e, em especial, das experiências analisadas nos capítulos seguintes deste volume. Distinguimos três grandes vertentes de pensamento e de experimentação produtiva não capitalista. Em primeiro lugar, exploramos brevemente o cooperativismo e outra propostas que se baseiam em teorias sociais associativistas, tais como o socialismo de mercado. Em segundo lugar, investigamos as múltiplas formas de organização económica dos sectores populares, na semiperiferia e na periferia, principalmente nas actividades económicas informais, que foram enunciadas nos estudos e nas políticas sobre desenvolvimento alternativo. Em terceiro lugar, fazemos alusão às múltiplas propostas, formuladas com particular vigor nos últimos anos pelo movimento ecologista, que põem em causa a própria ideia de crescimento económico e que, por conseguinte, representam alternativas ao desenvolvimento económico. Estas três linhas de alternativas de produção não se excluem mutuamente e, de facto, na prática acontecem em formas híbridas (por exemplo, as iniciativas de desenvolvimento alternativo na semiperiferia e na periferia incluem frequentemente a criação de cooperativas de produtores). Na terceira e quarta secções desta introdução ligamos o mapa apresentado na segunda secção aos estudos de caso incluídos neste volume. Para isso, primeiro, na terceira secção, resumimos os estudos de caso e em seguida, na quarta secção, em jeito de conclusão, enunciamos nove teses que pensamos que captam os assuntos e dilemas comuns aos casos. Dado o nosso interesse em impulsionar o debate sobre as formas de produção não capitalistas, enunciamos estas teses através de fórmulas curtas para discussão que sintetizam a nossa leitura dos capítulos incluídos neste livro e a nossa visão sobre os desafios que enfrentam as formas alternativas de produção no contexto da globalização contemporânea.

 

1. Um mapa de alternativas de produção

1.1. As formas cooperativas de produção

1.1.1. A tradição cooperativa

A procura de alternativas, perante os efeitos excludentes do capitalismo, a partir de teorias e experiências assentes na associação económica entre iguais e na propriedade solidária, não é uma tarefa nova. O pensamento e a prática cooperativista modernos são tão antigos como o capitalismo industrial. De facto, as primeiras cooperativas surgiram por volta de 1826, em Inglaterra, como reacção contra a pauperização provocada pela conversão maciça de camponeses e pequenos produtores em trabalhadores das fábricas pioneiras do capitalismo industrial. Foi também em Inglaterra que surgiram as cooperativas que passariam a ser o modelo do cooperativismo contemporâneo - as cooperativas de consumidores de Rochdale, fundadas a partir de 1844, e cujo objectivo inicial foi a oposição à miséria causada pelos baixos salários e pelas condições de trabalho inumanas, através da procura colectiva de bens de consumo baratos e de boa qualidade para vender aos trabalhadores. As primeiras cooperativas de trabalhadores foram fundadas em França, cerca de 1833, por operários que, depois de organizarem uma série de protestos contra as condições de trabalho inumanas nas fábricas em que trabalhavam, decidiram fundar e administrar colectivamente as suas próprias fábricas (Birchall, 1997: 21). Estas primeiras experiências cooperativas surgiram da influência das teorias pioneiras do associativismo contemporâneo. Em Inglaterra, o pensamento de Robert Owen, que participou directamente na fundação das primeiras comunidades cooperativas, constituiu a contribuição fundadora para a tradição intelectual cooperativa. As ideias associativas, em Inglaterra, continuaram a desenvolver-se no início do século XX, particularmente através da contribuição de Harold Laski, R. Tawney e G. Cole (Macfarlane, 1998: 7). Em França, as teorias associativistas de Charles Fourier e de Pierre Proudhon inspiraram o estabelecimento das primeiras cooperativas de trabalhadores.

Desde as suas origens, no século XIX, o pensamento associativista e a prática cooperativa desenvolveram-se como alternativas tanto em relação ao individualismo liberal como ao socialismo centralizado. Como teoria social, o associativismo funda-se em dois postulados: por um lado, a defesa de uma economia de mercado assente nos princípios não capitalistas de cooperação e mutualidade e, por outro, a crítica ao Estado centralizado e a preferência por formas de organização política pluralistas e federalistas que deram um papel central à sociedade civil (Hirst, 1994: 15). Como prática económica, o cooperativismo inspira-se nos valores da autonomia, democracia participativa, igualdade, equidade e solidariedade (Birchall, 1997: 65). Estes valores plasmam-se num conjunto de sete princípios que têm guiado o funcionamento das cooperativas de todo o mundo desde que a sua versão inicial foi enunciada pelos primeiros cooperantes contemporâneos, os pioneiros de Rochdale. Esses princípios são: a pertença aberta e voluntária - as cooperativas estão sempre abertas a novos membros -; o controlo democrático por parte dos membros - as decisões fundamentais são tomadas pelos cooperantes de acordo com o princípio «um membro, um voto», ou seja, independentemente das contribuições de capital efectuadas por cada membro ou a sua função na cooperativa -; a participação económica dos membros - tanto como proprietários solidários da cooperativa como participantes eventuais nas decisões sobre a distribuição de proveitos -; a autonomia e a independência em relação ao Estado e a outras organizações; o compromisso com a educação dos membros da cooperativa - para lhes facultar uma participação efectiva -; a cooperação entre cooperativas através de organizações locais, nacionais e mundiais; e a contribuição no desenvolvimento da comunidade em que está localizada a cooperativa (Birchall, 1997).

Apesar de, por um lado, o número de cooperativas se ter multiplicado rapidamente e de ter dado lugar a um movimento cooperativista internacional e, por outro, a teoria associativista ter sido retomada ocasionalmente por movimentos e teorias sociais, nem a prática cooperativa nem o pensamento associativo que lhe serve de base chegaram a ser predominantes. «O associativismo nunca amadureceu até ao ponto de se converter numa ideologia coerente» (Hirst, 1994: 17), capaz de resistir aos ataques provenientes tanto das teorias do socialismo centralizado como do liberalismo individualista. O cooperativismo deu forma a experiências exemplares de economias solidárias - como o complexo cooperativo de Mondragón (Espanha), a que nos referiremos mais adiante -, mas não conseguiu converter-se numa alternativa importante relativamente ao sector capitalista da economia nacional e mundial. De facto, a opinião prevalecente nas ciências sociais, desde os finais do século XIX (Webb e Webb, 1897), tem tido tendência a ser a de que as cooperativas são intrinsecamente instáveis, por estarem presas num dilema estrutural. Por um lado, segundo esta opinião, correm o risco de fracassar porque a sua estrutura democrática as torna mais lentas na tomada de decisões do que as empresas capitalistas e porque o princípio «um membro, um voto» as impede de alcançar o nível de capitalização necessário para se expandir, porque os investidores - sejam eles membros ou pessoas externas à cooperativa - desejam ter uma intervenção nas decisões que seja proporcional à sua contribuição. Por outro lado, ainda segundo esta posição, mesmo que as cooperativas consigam crescer e expandir-se acabam por fracassar, uma vez que o crescimento se faz à custa do sacrifício da participação directa dos membros da cooperativa - o que se torna difícil numa grande empresa - e exige, cada vez mais, investimentos consideráveis de capital, que só podem ser obtidos com recurso a investidores externos, cuja influência desvirtua o espírito da mesma (Birchall, 1997; Ferguson, 1991).

Não obstante, nos últimos anos a teoria e as práticas cooperativas têm suscitado um renovado interesse que desafia o prognóstico pessimista sobre a viabilidade económica das cooperativas e que recuperou os elementos centrais do pensamento associativista. Perante o fracasso das economias centralizadas e da ascensão do neoliberalismo, académicos, activistas e governos progressistas de todo o mundo têm recorrido de forma crescente à tradição de pensamento e organização económica cooperativa que surgiu no século XIX, com o objectivo de renovar a tarefa de pensar e de criar alternativas económicas. Esta alteração é evidente na bibliografia sobre este tema, tanto nos países centrais - em que têm proliferado as análises teóricas sobre a democracia associativa e o cooperativismo (Hirst, 1994; Bowles e Gintis, 1998) e os estudos de caso sobre experiências de cooperativas de trabalhadores bem sucedidas (Whyte e Whyte, 1988; Rothschild e Whitt, 1986) ou fracassadas (Russel, 1985) - como na semiperiferia e na periferia, onde tem tido lugar dentro das discussões sobre propostas de desenvolvimento alternativo, que, como explicaremos mais adiante, vêem nas cooperativas e noutras estruturas associativas formas idóneas para canalizar as iniciativas populares (Friedman, 1992). Na América Latina, o interesse renovado pelas cooperativas foi expresso nas propostas de reactivação da chamada «economia solidária», ou seja, o sector da economia a que correspondem formas diversas de produção associativa em que se destacam as cooperativas e as mutualidades (Singer e Souza, 2000).

A que se deve o ressurgimento do interesse pelas formas de produção solidárias em geral e pelas cooperativas de trabalhadores em particular? Na nossa opinião, existem quatro razões fundamentais relacionadas com as condições económicas e políticas contemporâneas que tornam o estudo e a promoção das cooperativas de trabalhadores uma tarefa prometedora para a criação de alternativas de produção emancipadoras. Em primeiro lugar, ainda que as cooperativas estejam fundadas em valores e princípios não capitalistas - isto é, contrários à separação entre capital e trabalho e à subordinação deste àquele - foram sempre concebidas, e operaram, como unidades produtivas capazes de competir no mercado. O cooperativismo considera que o mercado promove um dos seus valores centrais, a autonomia das iniciativas colectivas e os objectivos de descentralização e eficiência económica que não são acolhidos pelos sistemas económicos centralizados. Face à comprovada inviabilidade e indesejabilidade das economias centralizadas, as cooperativas surgem como alternativas de produção factíveis e plausíveis, a partir de uma perspectiva progressista, porque estão organizadas de acordo com princípios e estruturas não capitalistas e, ao mesmo tempo, operam numa economia de mercado. Em segundo lugar, as características das cooperativas de trabalhadores têm potencial para responder com eficiência às condições do mercado global contemporâneo, por duas razões. Por um lado, como demonstraram Bowles e Gintis (1998), as cooperativas de trabalhadores tendem a ser mais produtivas que as empresas capitalistas porque os seus trabalhadores-proprietários têm um maior incentivo económico e moral para dedicar o seu tempo e esforço ao trabalho e porque, uma vez que os trabalhadores beneficiam directamente quando a cooperativa prospera, diminuem drasticamente os custos de supervisão, que, numa empresa capitalista, são altos porque a vigilância constante do desempenho dos empregados é necessária para assegurar a cooperação destes com a empresa. Por outro lado, as cooperativas de trabalhadores parecem ser especialmente adequadas para competir num mercado fragmentado e volátil como aquele que caracteriza a economia global contemporânea. De acordo com a abundante literatura sobre as transformações estruturais da economia desde o início da década de setenta - que remonta ao trabalho pioneiro de Piore e Sabel (1984) sobre a «especialização flexível» -, as empresas aptas para competir num mercado altamente segmentado e em mudança, como o actual, são aquelas capazes de se ajustar com flexibilidade às alterações da procura, motivar a participação activa e inovadora dos trabalhadores no processo produtivo e de se inserir numa rede de cooperação económica formada, além do mais, por outras empresas pequenas e flexíveis e por instituições culturais, educativas e políticas de apoio - por outras palavras, formada numa economia cooperativa. Já que as cooperativas de trabalhadores facilitam (de facto, requerem) a participação activa dos trabalhadores-proprietários, são normalmente pequenas e têm uma vocação de integração com outras cooperativas e outras instituições da comunidade onde estão localizadas, elas podem ser, de facto, «protótipos da especialização flexível de que falam Piore e Sabel» (Ferguson, 1991: 127). Em terceiro lugar, como a característica essencial das cooperativas de trabalhadores é que estes são proprietários, a difusão das cooperativas tem um efeito igualitário directo sobre a distribuição da propriedade na economia, o que, por sua vez, como demonstraram Birdsall e Londoño (1997) para a América Latina, estimula o crescimento económico e diminui os níveis de desigualdade. Por último, as cooperativas de trabalhadores geram benefícios não económicos, para os seus membros e para a comunidade em geral, que são fundamentais para contrariar os efeitos desiguais da economia capitalista. As cooperativas de trabalhadores alargam a democracia participativa ao âmbito económico e, com isso, alargam o princípio de cidadania à gestão das empresas. Semelhante alargamento da democracia tem efeitos emancipadores evidentes, por cumprir a promessa da eliminação da divisão que impera na actualidade entre a democracia política, de um lado, e o despotismo económico (isto é, o império do proprietário sobre os trabalhadores no interior da empresa), do outro.

 

1.1.2. O caso exemplar: o complexo cooperativo de Mondrágon (Espanha)

Face às numeras tentativas cooperativas fracassadas, a pergunta central dos estudos sobre este tipo de organização económica refere-se às condições segundo as quais uma cooperativa se pode consolidar e manter. Para tratar esta pergunta, torna-se útil considerar as lições derivadas da experiência que é reconhecida mundialmente como o modelo de economia cooperativa, ou seja, o complexo económico Mondragón, situado nos arredores da cidade do mesmo nome, no país basco espanhol, que se iniciou em 1965 e que pertence aos 30.000 trabalhadores das suas 109 fábricas, da sua cadeia de supermercados, do seu banco e da sua universidade.

A que se deve o êxito da Mondragón? Que lições se podem obter deste modelo para promover e avaliar o funcionamento de cooperativas noutros contextos? As razões fundamentais do êxito das cooperativas do grupo Mondragón estão relacionadas com a inserção das cooperativas em redes de apoio e com o esforço constante para tornar as cooperativas competitivas no mercado global. Mondragón é uma verdadeira economia regional cooperativa porque as cooperativas de produção, consumo, crédito e educação que integram o complexo estão intimamente ligadas através de laços múltiplos de mútua dependência. Assim, por exemplo, o banco cooperativo pertencente ao grupo (a Caixa Laboral Popular) não só concede empréstimos às cooperativas em termos favoráveis, como lhes serve, bem como ao grupo no seu conjunto, de órgão de coordenação, supervisão e assessoria. A Caixa faz uma monitorização constante do desempenho de cada cooperativa e recomenda e ajuda a implementar, como condição para a concessão de créditos, as alterações que sejam necessárias para manter as cooperativas em condições de competir no mercado. De igual forma, a universidade tecnológica que serve todo o grupo (a Escola Politécnica Profissional) encarrega-se de educar os futuros trabalhadores e administradores das cooperativas e de lhes dar formação para garantir a sua flexibilidade laboral e a actualização de conhecimentos. Desta forma, a Escola garante o fluxo e o intercâmbio constante de informação e conhecimentos sobre sistemas de produção, finanças, comercialização, etc., dentro do grupo cooperativo. Para além da coordenação e da cooperação entre as empresas de Mondragón, através de organizações de apoio financeiro e educativo (que também são cooperativas), um mecanismo central de ajuda mútua entre as cooperativas é a sua inserção em grupos económicos que seguem a lógica da integração vertical. Com efeito, as cooperativas do grupo Mondragón geralmente fazem parte de subgrupos compostos por empresas que desenvolvem actividades económicas complementares e que funcionam como uma cadeia coordenada de fornecedores e compradores mútuos dos bens e serviços que produzem. Por exemplo, o maior grupo dentro de Mondragón - FAGOR - reúne cerca de 15 fábricas cooperativas, com um alto grau de integração vertical, que produzem bens de consumo - por exemplo, arcas frigoríficas, fogões, aquecedores, máquinas de lavar roupa -, componentes industriais - por exemplo, componentes para electrodomésticos, lâminas de ferro, partes electrónicas - e maquinaria e serviços de assessoria para indústrias - por exemplo, ferramentas e serviços de auditoria (Whyte e Whyte, 1988: 167). A coordenação e a ajuda mútua entre as cooperativas consegue-se mediante a subordinação destas aos órgãos de decisão participativos do grupo no seu conjunto, que determinam o financiamento e os parâmetros da administração de cada cooperativa. O grupo, por sua vez, tem vários mecanismos de apoio às cooperativas, de entre os quais se destaca a redistribuição de parte dos proveitos das cooperativas de maior sucesso pelas que atravessam dificuldades temporárias e a rotação de pessoal experimentado (por exemplo, gerentes) de umas cooperativas para outras, de acordo com as necessidades das cooperativas. Em síntese, Mondragón teve êxito porque conseguiu constituir-se numa verdadeira economia cooperativa regional, cuja redes de suporte permitiram a sobrevivência e expansão das cooperativas que fazem parte dela. Para além disso, estas redes foram fortalecidas mediante a cooperação entre o Estado - concretamente, o governo regional basco - e os grupos de Mondragón, em assuntos tão diversos como projectos de investigação tecnológica, programas de estímulo ao emprego e estudos periódicos sobre a evolução da economia regional.

Por outro lado, sobretudo durante os últimos vinte anos, o complexo cooperativo Mondragón empreendeu estratégias empresariais que, sem desvirtuar a sua estrutura cooperativa, permitiu-lhe prosperar sob as condições de volatilidade e concorrência intensa do mercado global. Nestas condições, Mondragón demonstrou que as limitações impostas pelos princípios cooperativos - por exemplo, o compromisso com a manutenção do emprego dos trabalhadores e a capitalização das empresas a partir das contribuições dos trabalhadores, e não de investidores externos - podem actuar como «restrições virtuosas» (Streeck, 1997) que obrigam as empresas cooperativas a serem flexíveis e inovadoras. Por exemplo, uma vez que um dos objectivos centrais de Mondragón é a manutenção do emprego dos seus sócios dentro do complexo e, em caso de desemprego temporário, a prestação de um generoso e prolongado seguro de desemprego, o complexo está sob a constante pressão de criar novas cooperativas e postos de trabalho, o que exige uma constante inovação e melhoria nos níveis de produtividade. Um factor adicional que pressiona a criação de novas empresas cooperativas, pequenas e inovadoras, é a política de Mondragón de evitar o crescimento desmedido das suas cooperativas. Quando uma cooperativa bem sucedida se está a expandir Mondragón procura criar cooperativas que se encarreguem de algumas das actividades que têm estado ocupadas por aquela, de tal forma que se garanta tanto a continuidade da estrutura do complexo - baseada em grupos fortemente integrados de cooperativas relativamente pequenas e flexíveis - como a criação de novos focos de emprego e inovação. A resposta adequada do complexo Mondragón a estas pressões para inovar foi facilitada por dois factores adicionais. Por um lado, os grupos cooperativos conseguiram os altos níveis de capitalização necessários para modernizar os seus processos produtivos sem necessidade de recorrer a investimentos externos, graças às contribuições adicionais de capital dos seus sócios-trabalhadores e ao apoio da Caixa. Por outro lado, os grupos cooperativos de Mondragón entraram em múltiplas alianças com cooperativas e empresas convencionais, em várias partes do mundo, que lhe permitiram aproveitar as condições do mercado global. Neste sentido, a experiência de Mondragón oferece não só em contra-exemplo ideal face à opinião prevalecente sobre a inviabilidade das cooperativas, mas também elementos de julgamento importantes para avaliar outras experiências de organização cooperativa.

Mas Mondragón não é a única experiência cooperativa com êxito. Ainda que o complexo de Mondragón seja a experiência mais desenvolvida e estável, existem pelo mundo fora iniciativas bem sucedidas de economias cooperativas de escalas diversas. Um exemplo notável na semiperiferia do sistema mundial é o conjunto de cooperativas existente no estado de Kerala, que ganhou visibilidade internacional nos últimos anos. Os mecanismos de cooperação económica que têm sustentado as cooperativas de Kerala, desde a sua fundação nos finais da década de sessenta, são análogos aos que Mondragón utilizou. Como o demonstra o estudo de caso detalhado de uma cooperativa de produtores de cigarros de Kerala, efectuado por Isaac, Franke e Raghavan (1998), os factores essenciais para sobreviver perante a concorrência das empresas capitalistas são uma combinação de, por um lado, descentralização e colaboração entre cooperativas associadas em rede e, por outro, fidelidade ao princípio de participação democrática no interior da cooperativa. O caso das cooperativas de Kerala, para além do mais, ilustra outro aspecto que não é tão evidente no caso de Mandragón e que é muito importante nos estudos de caso sobre cooperativas incluídos neste livro. Trata-se do facto de que as cooperativas de Kerala surgiram como resultado de um movimento democrático dos camponeses da região que procurava tornar efectiva a lei da reforma agrária de 1969. O processo de construção e o sucesso do movimento criou uma combinação feliz de «educação, activismo, optimismo e democracia» que deu lugar não apenas às cooperativas, mas também a um conjunto de instituições políticas democráticas e progressistas, cujo conjunto se veio a conhecer como o «modelo de Kerala» (Isaac, Franke e Raghavan, 1998: 202). Desta forma, as cooperativas estão inseridas num movimento social amplo que, por sua vez, beneficia da prosperidade das cooperativas. Existe, assim, uma continuidade entre a democracia participativa, que impera na esfera da política, em Kerala, e a democracia participativa que se pratica nas cooperativas (Isaac, Franke e Raghavan, 1998: 198). Como foi afirmado por Hirschman (1984), no seu fascinante levantamento de cooperativas na América Latina, esta transformação da energia emancipatória, que começa sob a forma de movimentos sociais e se converte em iniciativas económicas solidárias e vice-versa, é um fenómeno comum às experiências cooperativas mais duradouras. Como se verá ao longo dos capítulos deste livro, este factor é fundamental para entender o êxito relativo de algumas das cooperativas estudadas.

1.1.3. Associativismo e socialismo: do socialismo centralizado ao socialismo de mercado

Como explicamos em parágrafos anteriores, as condições económicas, políticas e sociais contemporâneas são propícias ao ressurgimento do pensamento associativo e das práticas cooperativas. Este ressurgimento tem representado um desafio não apenas às teorias e políticas liberais, mas também às correntes dominantes dentro da tradição socialista. Como foi demonstrado por Hodgson (1999), as teorias económicas socialistas tiveram, desde o seu aparecimento no início do século XIX até, pelo menos, meados do século XX, uma preferência manifesta pelo planeamento centralizado da economia, assente na propriedade colectiva dos meios de produção. Por outras palavras, a tradição socialista sofreu, de acordo com Hodgson, de «agorafobia», que significa literalmente medo do mercado e, em sentido lato, medo dos espaços abertos, da economia plural onde a concorrência, no mercado, tenha um lugar.

Na prática, esta posição foi adoptada pelas economias socialistas mais centralizadas, como a da União Soviética durante a maior parte da sua existência. No modelo soviético, aquilo que cada empresa produzia era determinado por um plano anual elaborado através de um processo de consulta que envolvia vários níveis da burocracia estatal (Estrin e Winter, 1989: 127). Desta forma, as decisões sobre produção eram um processo de negociação política em que as prioridades definidas pelos dirigentes da burocracia estatal se impunham através de planos que fixavam metas mais altas do que aquelas que as empresas podiam conseguir com os meios de que dispunham. Isto deu lugar a três consequências bem conhecidas. Em primeiro lugar, a prioridade estatal de impulsionar o crescimento económico em vez de atender às necessidades dos consumidores deu lugar a uma escassez crónica de bens de consumo e de meios para os adquirir. Em segundo lugar, os planos estritos eram eficazes para obrigar à utilização dos meios de produção disponíveis, mas não constituíam estímulos para inovar e aumentar a produtividade. Em terceiro lugar, a dificuldade para encontrar matérias primas por meios legais forçava as empresas a comprá-los nos mercados ilegais, que também forneciam boa parte dos produtos para os consumidores. Daqui resultava a coexistência de um maciço mercado ilegal juntamente com a economia legal planificada (Estrin e Winter, 1989: 130). Como mostraram os acontecimentos de finais dos anos oitenta e princípios dos noventa, as pressões económicas criadas por estes três efeitos e pelas suas consequências políticas eram insustentáveis e levaram ao fracasso do sistema soviético.

Várias décadas antes do colapso soviético, pensadores socialistas (especialmente na Europa) e funcionários estatais de alguns países da Europa de Leste advertiram para a inviabilidade do modelo soviético e tentaram recolocar a relação entre socialismo e mercado. Daqui surgiram, cerca de 1950, as primeiras teorias e experiências do que agora se designa como «socialismo de mercado» (Hodgson, 1999: 25). Na prática, a tentativa mais ampla de encontrar uma alternativa ao modelo soviético foi empreendida na Jugoslávia, depois da ruptura de Tito com Estaline em 1948. O «socialismo de mercado jugoslavo» baseava-se nos princípios de descentralização da produção e da participação dos trabalhadores (Prout, 1985: 12). Em vez de uma economia completamente centralizada, em que os meios de produção eram propriedade do Estado, no modelo jugoslavo, a propriedade dos meios de produção era da sociedade, organizada em cooperativas de trabalhadores democraticamente administradas que, apesar de terem que obedecer às directrizes de um plano geral quinquenal estabelecido pelo governo, estavam expostas aos mecanismos do mercado. Na prática, contudo, o papel do Estado e do planeamento centralizado passou a ser de protagonismo. Nestas condições, a coexistência entre o planeamento e o mercado era tensa e acabou por se tornar insustentável. Por razões idênticas fracassaram as reformas efectuadas na Hungria e na Polónia nos finais dos anos sessenta e inícios dos setenta. Ainda que as referidas reformas fossem experiências menos ambiciosas e mais erráticas que a jugoslava, tinham em comum com esta última o facto de terem tentado introduzir mecanismos de mercado dentro de uma economia socialista.

Na altura em que surgia a experiência jugoslava, a teoria económica, dentro da tradição socialista, começou a explorar modelos baseados no mercado que, todavia, permitiram atingir os valores da igualdade e da solidariedade. Após os trabalhos de Benjamin Ward, em meados do século XX, a ideia do socialismo de mercado, inspirada no modelo de socialismo proposto por Proudhon na primeira metade do século XIX, foi debatida com interesse crescente (Hodgson, 1999: 26). Este interesse aumentou, como era de esperar, perante o fracasso do modelo de economia centralizada que tinha dominado o pensamento e a prática socialista. Por esta razão, o modelo de socialismo de mercado atraiu considerável atenção durante a última década, como demonstra a abundante bibliografia desenvolvida sobre o tema.

A afirmação fundamental do socialismo de mercado é que a forma viável e adequada de perseguir os fins socialistas de solidariedade e igualdade é uma combinação entre mecanismos de mercado e planeamento económico, na qual o mercado tenha o papel preponderante (Le Grand e Estrin, 1989). Segundo esta perspectiva, não existe uma relação necessária entre mercado e capitalismo. O mercado é um mecanismo (o mais eficiente que conhecemos) de coordenação das decisões económicas descentralizadas. Por si próprio, o mercado não gera inevitavelmente os níveis de desigualdade e alienação que caracterizam o capitalismo. Tais efeitos são próprios, de acordo com os defensores deste modelo, dos mercados capitalistas e não dos mercados em geral (Le Grand e Estrin, 1989: 1). É possível, então, fazer reformas radicais no regime da propriedade e noutras instituições por forma a que os mercados facilitem a concretização de objectivos socialistas. Exige-se, em especial, que as empresas sejam propriedade dos trabalhadores, ou seja, que funcionem como cooperativas de trabalhadores. Face aos conhecidos efeitos igualitários e democráticos das cooperativas, que explicámos nas secções anteriores, um mercado onde predominem as cooperativas e seja regido por regras básicas de redistribuição da riqueza (sem que isto signifique um regresso ao planeamento económico que aniquile o mercado), pode, de acordo com este modelo, promover em simultâneo a igualdade, a solidariedade e a liberdade (Pierson, 1995).

O debate sobre modelos e experiências concretas que combinem, por um lado, as vantagens do mercado e, por outro, as da produção solidária é, hoje, um dos focos mais activos de criação de alternativas aos modelos económicos convencionais. Como se pode constatar nesta breve descrição, o socialismo de mercado consiste fundamentalmente na reintrodução do associativismo na tradição socialista. Não é surpreendente, por isso, que o modelo tenha sido objecto de múltiplas críticas, algumas dirigidas contra os seus elementos associativistas e outras contra a forma como assume os objectivos socialistas. Quanto ao primeiro, dado que a unidade económica privilegiada pelo modelo é a cooperativa de trabalhadores, formularam-se contra ele as mesmas críticas sobre a inviabilidade deste tipo de organização económica que já examinámos anteriormente. Relativamente ao elemento associativista, contudo, formularam-se críticas apontadas à timidez, mais do que à inviabilidade, da teoria. Hirst (1994), em particular, demonstrou convincentemente que não basta reorganizar a economia com base em cooperativas de trabalhadores. Para além disso, é necessário conceber formas de coordenação entre cooperativas, e entre estas e as entidades estatais, para criar o tipo de rede de suporte que caracteriza as experiências bem sucedidas, como a da Mondragón. Quanto às críticas que põem em causa a possibilidade de realizar objectivos socialistas através do mercado, tem-se assinalado que o mercado produz inevitavelmente desigualdade económica e que gera tipos de sociabilidade individualista, sendo ambos os efeitos opostos ao socialismo (Cohen, 1994).

Para além dos pormenores do debate actual sobre o socialismo de mercado, para efeitos do mapa de alternativas de produção que vimos elaborando, o essencial é destacar a forma como esse debate tem reanimado a reflexão e as experiências que pretendem combinar o associativismo e o socialismo, sem recorrer a formas inviáveis de planeamento centralizado. Estas tentativas, que se somam às que têm surgido dentro da tradição cooperativista, constituem actualmente um dos campos mais interessantes de expansão das alternativas de produção.

 

1.2. As economias populares e o desenvolvimento alternativo na periferia e na semiperiferia

1.2.1. As propostas de desenvolvimento alternativo

A ideia de desenvolvimento dominou as discussões e as políticas económicas relativas aos países pobres durante mais de meio século (Escobar, 1995; McMichael, 1996). Com efeito, desde os primeiros anos após a Segunda Guerra, o objectivo declarado dos programas económicos nacionais dos países semiperiféricos e periféricos e dos programas de ajuda internacional, empreendidos por países centrais e agências financeiras internacionais, tem sido a aceleração do crescimento económico dos países subdesenvolvidos, como meio para «eliminar o fosso» entre estes e os países desenvolvidos (Cypher e Dietz, 1997). A história da ideia e dos programas de desenvolvimento - que McMichael (1996) apropriadamente designou como o «projecto de desenvolvimento» - está fora dos objectivos desta introdução. Não obstante, para efeitos do estudo da teoria de desenvolvimento alternativo, é importante mencionar a justificação e o modus operandi usuais dos programas de desenvolvimento, já que a referida teoria foi formulada como reacção contra estes. Em termos gerais, os projectos de desenvolvimento económico foram concebidos e implementados «a partir de cima» (top-down development), com base em políticas traçadas e implementadas por agências tecnocráticas nacionais e internacionais, sem a participação das comunidades afectadas por essas políticas. Além do mais, os planos de desenvolvimento estavam tradicionalmente centrados na aceleração do crescimento económico, principalmente do sector industrial (Cypher e Dietz, 1997). Esta ênfase evidente nos resultados macroeconómicos implicou a marginalização de outros objectivos sociais, económicos e políticos, como a participação democrática na tomada de decisões, a distribuição equitativa dos frutos do desenvolvimento e a preservação do meio ambiente.

A teoria do desenvolvimento alternativo é constituída por múltiplas análises e propostas formuladas por críticos dos pressupostos e dos resultados dos programas de desenvolvimento convencionais. A origem da teoria remonta aos inícios dos anos 70, época em que, por todo o mundo, intelectuais, peritos em planeamento económico e activistas, todos eles críticos, começaram a formular reflexões e a organizar eventos, à volta dos quais se canalizou o descontentamento face à abordagem tradicional ao desenvolvimento. Alguns dos encontros fundadores foram a Conferência de Estocolmo sobre o Meio Ambiente (1972) - que deu lugar à fundação do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente - e o seminário sobre «Padrões de Utilização dos Recursos, o Meio Ambiente e as Estratégias para o Desenvolvimento», em Cocoyoc (México), em 1974, organizado pela Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento. A ideia de um desenvolvimento alternativo foi impulsionada decisivamente, em meados dos anos 70, pela fundação sueca Dag Hammarskjold (1975) e deu lugar à criação da Fundação Internacional de Alternativas de Desenvolvimento (1976), cujos membros incluíam muitos dos participantes em eventos anteriores e cujas publicações sintetizaram os pilares da teoria. O debate sobre formas alternativas de desenvolvimento continuou nos anos 80 e 90 e hoje constitui uma das principais fontes de energia e ideias nas críticas contra a globalização neoliberal.

As análises teóricas e os trabalhos empíricos que adoptam a perspectiva do desenvolvimento alternativo são muito variados. Contudo, todos eles partilham um conjunto de pressupostos e propostas que constituem a coluna vertebral da teoria. Em primeiro lugar, o desenvolvimento alternativo é formulado com base numa crítica de fundo contra a estrita racionalidade económica que inspirou o pensamento e as políticas de desenvolvimento dominantes. Contra a ideia que a economia é uma esfera independente da vida social, cujo funcionamento requer o sacrifício de bens e valores não económicos - sociais (v. g., igualdade), políticos (v. g., participação democrática), culturais (v. g., diversidade étnica) e naturais (v. g., o meio ambiente) - o desenvolvimento alternativo sublinha a necessidade de tratar a economia como uma parte integrante e dependente da sociedade e de subordinar os fins económicos à protecção destes bens e valores. Em particular, em oposição à ênfase exclusiva dos programas de desenvolvimento na aceleração da taxa de crescimento económico, o desenvolvimento alternativo destaca outros objectivos. O desenvolvimento económico é concebido como uma forma de promover melhores condições de vida para a população em geral, e para os sectores marginalizados, em particular. «Se o desenvolvimento económico e social significa algo em absoluto, deve significar uma melhoria substancial nas condições de vida e o sustento da maioria das pessoas» (Friedman, 1992: 9). Neste sentido, o desenvolvimento alternativo inspira-se nos valores da igualdade e da cidadania, isto é, na inclusão plena dos sectores marginalizados na produção e no usufruto dos resultados do desenvolvimento. Todavia, ao contrário de outras aproximações críticas - que exporemos na próxima secção deste trabalho, e que não defendem um desenvolvimento alternativo mas, sim, alternativas ao desenvolvimento -, esta linha de pensamento e acção não rejeita a ideia de crescimento económico. No lugar dele, propõe impor-lhe limites e subordiná-lo a imperativos não económicos. Em segundo lugar, contra o desenvolvimento «a partir de cima», esta perspectiva propõe um desenvolvimento de base, ou «de baixo para cima» (bottom-up). A iniciativa e o poder de decisão sobre o desenvolvimento, longe de ser competência exclusiva do Estado e das elites económicas, deve residir na sociedade civil. Em especial, face aos efeitos desiguais e de exclusão do modelo convencional de desenvolvimento, os actores da procura de alternativas devem ser as comunidades marginalizadas, que têm sido os objectos - e não os sujeitos - declarados dos programas de desenvolvimento. Neste sentido, a teoria propõe como actores centrais do desenvolvimento os sujeitos colectivos, isto é, as comunidades organizadas que procuram seguir em frente. O carácter colectivo do desenvolvimento de baixo para cima gera um processo de construção de poder comunitário que pode criar o potencial para que os efeitos das iniciativas económicas populares se estendam à esfera política e gerem um círculo virtuoso que contrarie as causas estruturais da marginalização. Em terceiro lugar, o desenvolvimento alternativo privilegia a escala local, tanto como objecto de reflexão como de acção social. Por esta razão, os trabalhos produzidos neste sentido têm privilegiado o estudo etnográfico de comunidades marginalizadas e as propostas resultantes tendem a sugerir que a acção social contra-hegemónica se deve concentrar no âmbito local das comunidades estudadas. Em quarto lugar, o desenvolvimento alternativo é céptico tanto em relação a uma economia centrada exclusivamente em formas de produção capitalista, como em relação a um regime económico centralizado controlado pelo Estado. Perante estas formas de organização económica, propõe alternativas baseadas em iniciativas colectivas, geralmente plasmadas em empresas e organizações económicas populares de propriedade e gestão solidária que tentam contrariar, por um lado, a separação entre capital e trabalho e, por outro, a necessidade de recorrer à ajuda estatal. De igual modo, as propostas de desenvolvimento alternativo salientam as formas de produção e intercâmbio não capitalistas. Quijano (1998) e Friedman (1992), por exemplo, sublinham a importância de actividades de troca nas comunidades latino-americanas marginalizadas. Estas actividades (v. g., a preparação colectiva de alimentos, cultivo colectivo de subsistência, etc.) reforçam os mecanismos de reciprocidade nas comunidades e permitem que os seus membros acedam a bens e serviços que a sua pobreza lhes impede de adquirir no mercado. Por fim, em concordância com a sua crítica ao paternalismo estatal, o desenvolvimento alternativo favorece estratégias económicas autónomas. Nos sectores populares, isso implica a promoção de iniciativas baseadas na autogestão das empresas populares e a construção de poder comunitário.

Como facilmente se pode observar, as iniciativas económicas que cabem dentro desta caracterização do desenvolvimento alternativo são muito variadas. Para o efeito desta introdução, basta indicar as linhas principais de pensamento e acção segundo as quais as ideias de desenvolvimento alternativo se têm impulsionado na esfera da produção. Distinguimos seis linhas fundamentais que têm sido propostas e postas em prática, tanto na periferia e na semiperiferia, como no centro. Em primeiro lugar, movimentos sociais, ONGs, comunidades e sectores governamentais da semiperiferia e da periferia continuam a promover formas associativas de produção (v. g., associações de moradores, cooperativas de trabalhadores, etc.) que procuram assegurar o acesso das classes populares a bens e serviços básicos. Em segundo lugar, desde os finais dos anos 80, boa parte do dinamismo do desenvolvimento alternativo proveio do movimento ecologista, a coberto das propostas de «desenvolvimento sustentável». Desde que o conceito de desenvolvimento sustentável foi formulado em 1987, pela Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (conhecida como a Comissão Bruntland) - que o definiu como o tipo de desenvolvimento que «satisfaz as necessidades do presente sem colocar em causa a possibilidade das gerações futuras satisfazerem as suas necessidades» -, o tema dos limites ecológicos ao crescimento económico tem sido uma questão dominante no campo do desenvolvimento alternativo (Rao, 2000). Ainda que nem o relatório da Comissão Brutland nem a Conferência do Rio, reunida em 1992, tenham posto em causa a própria ideia de desenvolvimento entendido como crescimento económico, ambos os documentos deram um impulso decisivo ao debate sobre a necessidade de impor limites ou transformar a produção para evitar a destruição do meio ambiente (McMichael, 1996: 220). Apesar da questão do desenvolvimento sustentável ter dado lugar a profundas divisões académicas e políticas (v. g., entre países do Sul e do Norte e entre coligações políticas no interior dos países), a sua visibilidade tem incomodado a perpetuação do projecto de desenvolvimento capitalista convencional, tanto no centro, como na semiperiferia e na periferia (Douthwaite, 1999). Em terceiro lugar, graças ao activismo de movimentos feministas, o problema da exclusão das mulheres dos programas de desenvolvimento convencionais passou a ser uma fonte de dinamismo nas propostas de desenvolvimento alternativo. Através de redes e encontros internacionais, tem-se vindo a consolidar, desde meados dos anos 70, o movimento «mulheres no desenvolvimento» (women in development - WID), cujo evento fundador foi a conferência das Nações Unidas sobre a mulher, na Cidade do México, em 1975 (McMichael, 1996: 227). Os objectivos do movimento são: conseguir o reconhecimento da contribuição do trabalho feminino no desenvolvimento económico e promover a incorporação das mulheres nos processos de desenvolvimento, através de políticas que aliviem a dupla carga do trabalho doméstico e do trabalho assalariado que implica a entrada das mulheres na força laboral. Em quarto lugar, um número crescente de programas de apoio económico às classes populares da periferia e da semiperiferia tem-se concentrado na prestação de serviços financeiros de pequena escala, especialmente microcréditos. O objectivo central destes programas é facilitar o acesso de famílias pobres a pequenos montantes financeiros que lhes permitam empreender ou sustentar actividades económicas produtivas (Wright, 2000). Os programas de microcrédito têm sido utilizados com especial intensidade no Sudeste Asiático, particularmente no Bangladesh e na Índia, e passaram inclusivamente a ser uma das bandeiras do Banco Mundial na luta contra a pobreza. Do ponto de vista do desenvolvimento alternativo, a proliferação de programas de microcrédito é um fenómeno de dois gumes. Por um lado, os microcréditos, em muitos casos, providenciam meios de subsistência indispensáveis que têm efeitos directos sobre o nível de vida dos seus beneficiários e que, com frequência, são acompanhados de programas de educação e desenvolvimento comunitário. Contudo, por outro lado, alguns defensores do microcrédito, e algumas organizações que implementam este tipo de programa (Wright, 2000), encaram os créditos como fins em si mesmos e rejeitam enfaticamente qualquer tentativa de associar a prestação de serviços financeiros aos pobres com projectos de construção de poder comunitário. Os pobres, de acordo com esta perspectiva, só estão interessados em receber dinheiro e não em ser doutrinados ou organizados. Como se pode verificar com facilidade, o problema desta concepção utilitarista e estreita do microcrédito é que concebe a incorporação marginal, individual e precária no capitalismo como a única alternativa para os actores económicos e populares e, desta forma, adopta a leitura e as políticas neoliberais sobre a marginalidade e a informalidade (De Soto, 1989). Em quinto lugar, movimentos sociais populares, tanto no campo como nas cidades, têm reivindicado a acção directa, legal ou ilegal, para promover o acesso das classes subalternas a recursos, como a terra e a habitação, que permitam a estas empreender actividades de produção alternativas. Provavelmente, a ilustração actual mais conhecida deste tipo de estratégia é o Movimento dos Sem Terra (MST), no Brasil, que é estudado em detalhe por quatro dos trabalhos incluídos neste livro, escritos a partir de perspectivas distintas por Navarro, Lopes, Martins e Singer. Da mesma forma que o MST tem vindo a impulsionar a ocupação de terras baldias com vista a uma reforma agrária efectiva e à promoção de formas de produção alternativas no Brasil, numerosas organizações e grupos de diferentes partes do mundo promovem, hoje em dia, ocupações de habitações urbanas vazias para providenciar abrigo a quem não tem tecto (Corr, 1999). Por fim, como resposta aos efeitos perversos da globalização neoliberal sobre comunidades de todo o mundo, uma vertente importante do movimento de crítica à globalização propôs variadíssimas tácticas de «regresso ao local» ou «relocalização» (Mander e Goldsmith, 1996). Entre as estratégias de regresso ao desenvolvimento local encontram-se a criação de bancos comunitários, campanhas de publicidade para convidar os consumidores a comprar apenas o que é produzido na sua localidade, formas de produção agrícola destinadas apenas ao mercado local e ao intercâmbio de serviços entre membros da comunidade com base em sistemas alternativos de medição do valor do trabalho (diferente do valor monetário) fundados no princípio de reciprocidade (Norberg-Hodge, 1996).

1.2.2. Os vazios das abordagens ao desenvolvimento alternativo

As várias propostas de desenvolvimento alternativo têm tido um impacto importante no pensamento e nas políticas sobre as economias da semiperiferia e da periferia e, como demonstra o breve levantamento efectuado na secção anterior, fazem hoje parte das estratégias e dos argumentos contra a globalização neoliberal, tanto nessas zonas como no centro do sistema mundial. Para além de terem dado lugar a milhares de projecto económicos comunitários, as propostas deste tipo tiveram uma influência notória na transformação gradual do enfoque de numerosas ONGs e governos relativamente ao desenvolvimento. Inclusivamente, tiveram um papel na modificação, bastante lenta, da aproximação ortodoxa dos programas de desenvolvimento empreendidos por agências internacionais, como parece sugerir a preocupação declarada do Banco Mundial por programas de desenvolvimento comunitário e de microcrédito, nos anos 90. Também a visão do desenvolvimento alternativo contribuiu para introduzir, em múltiplos fóruns e tratados internacionais, temas centrais deixados de lado pela aproximação ortodoxa, tais como a preservação do meio ambiente, o respeito pela diversidade cultural e o impacto do desenvolvimento económico convencional sobre os homens e as mulheres dos países pobres.

Não obstante, em nossa opinião, as propostas têm uma limitação importante para a construção de alternativas económicas emancipadoras, que deriva da sua ênfase exclusiva na escala local. Se bem que esta ênfase tenha permitido ao desenvolvimento alternativo colocar no centro da discussão os efeitos concretos dos programas de desenvolvimento e advogar a transferência de poder para os actores locais, também levou a teoria a reificar o local e a desligá-lo de fenómenos e movimentos regionais, nacionais e globais. Esta concentração no local sustenta-se numa concepção da comunidade como uma colectividade fechada e indiferenciada cujo isolamento garantia o carácter alternativo das suas iniciativas económicas. Então, de acordo com esta visão, a marginalização dos sectores populares cria as condições para a existência (e a desejabilidade) de economias alternativas comunitárias que operam sem conexão com a sociedade e a economia hegemónicas. Isto é especialmente notório nos trabalhos sobre a economia informal que, com frequência, é apresentada como um conjunto de actividades empreendidas exclusivamente por, e para, os sectores populares e, por conseguinte, separada da economia formal de que dependem as classes médias e altas. Esta visão dualista da economia não só é incorrecta, do ponto de vista fáctico - dado que, como demonstram numerosos estudos, existem relações estreitas de dependência mútua entre as actividades económicas informais e formais (Portes, Castells e Benton, 1989; Cross, 1998) -, como também é contraproducente do ponto de vista prático, porque limita o campo de acção e expansão das formas alternativas de produção, consumo e distribuição de bens ou de serviços aos sectores sociais e às actividades económicas marginalizadas. Um exemplo recente desta tendência encontra-se na contribuição de Burbach (1997) no debate sobre as economias populares. De acordo com Burbach:

Nas zonas do mundo que o capitalismo desprezou, está a ganhar terreno um novo modo de produção constituído pelas que podem ser designadas como «economias populares», que também denominámos «economias pós-modernas» [Burbach, Nuñez e Kagarlitsky, 1997]. Estas economias não competem nem podem competir com o capital transnacional no processo de globalização. Ocupam as margens, aproveitando as actividades que o mundo transnacional decide desprezar. Este processo histórico assemelha-se à transição do feudalismo ao capitalismo. O capitalismo primeiro garantiu as margens do feudalismo, avançando lentamente até que se converteu no modo de produção dominante (Burbach, 1997: 18-19).

O problema desta visão é que, como se verifica claramente nos estudos de caso sobre as cooperativas da Índia, Moçambique e Colômbia incluídos neste volume, as organizações económicas populares necessitam com frequência de «competir com o capital transnacional no processo de globalização» para se manterem vivas e darem um impulso aos seus objectivos emancipadores. Com efeito, como demonstra o caso das cooperativas de recicladores na Colômbia, cuja actividade informal de reciclagem está a ser colonizada por grandes empresas de limpeza, o processo que está a ter lugar na semiperiferia e na periferia é, com bastante frequência, o oposto ao descrito por Burbach, isto é, a colonização, por parte do capitalismo global, das actividades económicas e das zonas geográficas que até agora tinham permanecido nas suas margens. Nestes casos, só uma articulação da acção local com estratégias alternativas de incorporação ou resistência nas escalas regional, nacional ou global pode evitar a extinção das iniciativas locais confrontadas com a concorrência capitalista.

Portanto, uma das tarefas urgentes para os múltiplos enfoques que aqui tratámos, sob o tema geral de desenvolvimento alternativo, é formular formas de pensamento e acção que sejam ambiciosos em termos de escalas, ou seja, que sejam capazes de pensar e actuar nas escalas locais, regionais, nacionais, e até mesmo globais, dependendo das necessidades das iniciativas concretas. Para isso, é preciso passar da imagem da comunidade como uma colectividade fechada e estática (comunidade-fortaleza) para uma imagem da comunidade como uma entidade viva e dinâmica, aberta simultaneamente ao contacto e à solidariedade com outras comunidades, em diferentes escalas, e decidida a defender as alternativas contra-hegemónicas que surjam no seu interior (comunidades-amiba) (Santos, 1995: 485). Uma estratégia monolítica de relocalização como resposta à globalização (Mander e Goldsmith, 1994) pode ser não apenas inviável - dada a profunda imbricação actual entre o local e o global -, mas também indesejável - porque a solidariedade que se gera no interior da comunidade não se estende a membros de outras comunidades. Este tipo de solidariedade entre alternativas locais é fundamental para a sobrevivência das mesmas e para a consolidação gradual de uma globalização cosmopolita. No campo da produção, a fragilidade das alternativas existentes torna necessária a articulação destas entre si - em condições que devem ser negociadas para evitar a cooptação e a desaparição das alternativas -, com o Estado e com o sector capitalista da economia. Esta articulação em economias plurais em diferentes escalas que não desvirtuem as alternativas não capitalistas é o desafio central que enfrentam, hoje, movimentos e organizações de todo o tipo que procuram um desenvolvimento alternativo.

1.3. Em busca de alternativas ao desenvolvimento

As origens das discussões e das práticas sobre alternativas ao desenvolvimento estão próximas das do desenvolvimento alternativo. De facto, os autores e organizações que advogam alternativas ao desenvolvimento formulam propostas que coincidem parcialmente com as dos defensores do desenvolvimento alternativo - v. g., a ênfase no local, a promoção da autonomia comunitária, etc. Contudo, ao contrário da visão de desenvolvimento alternativo - que, como já vimos, propõe modificações e limites ao crescimento, mas não põe em causa a própria ideia de crescimento económico - as propostas de alternativas ao desenvolvimento radicalizam a crítica à noção de crescimento e, por conseguinte, exploram alternativas pós-desenvolvimentistas. Escobar menciona estas duas características e localiza as suas fontes da seguinte forma:

Desde meados e finais da década dos 80 [...] surgiu um conjunto de trabalhos relativamente coerente que destaca o papel dos movimentos de base, o conhecimento local e o poder popular na transformação do desenvolvimento. Os autores que representam esta tendência afirmam que não estão interessados em alternativas de desenvolvimento mas, sim, em alternativas ao desenvolvimento, ou seja, na rejeição total do paradigma (Escobar, 1995: 215).

Uma vez que na secção anterior explicámos a componente comunitária, popular e local, nesta concentramo-nos apenas no que é específico das alternativas ao desenvolvimento, isto é, no conteúdo e nas implicações da rejeição do paradigma do desenvolvimento económico. Provavelmente, a melhor forma de entender o que é específico das alternativas ao desenvolvimento seja confrontar as suas teses ecologistas e feministas com as propostas ecológicas e feministas de desenvolvimento alternativo. Quanto ao primeiro, as posições ecologistas pós-desenvolvimentistas fazem uma crítica radical à ideia de desenvolvimento sustentável. Nos termos contundentes de Daly, «o desenvolvimento sustentável é impossível» (Daly, 1996: 192). Tal como é actualmente utilizado, o termo «desenvolvimento sustentável» é equivalente a «crescimento sustentável», que, de acordo com Dany, é uma contradição. O crescimento económico é impossível de sustentar sem destruir as condições de vida sobre a terra. Portanto, de acordo com esta perspectiva, é imperioso alterar a própria concepção de desenvolvimento. O único tipo de desenvolvimento sustentável é o «desenvolvimento sem crescimento - melhoria qualitativa da base física económica que se mantém num estado estável [...] dentro das capacidades de regeneração e assimilação do ecossistema» (Daly, 1996: 193). O desenvolvimento entendido como realização de potencialidades, como passagem a um estado diferente e melhor, está longe da ideia do desenvolvimento como crescimento, como incremento. As actividades económicas podem, neste sentido, desenvolver-se sem crescer.

Uma crítica paralela é feita por correntes feministas contra a ideia de incorporação das mulheres no desenvolvimento. Contra a reivindicação da importância das mulheres no desenvolvimento como crescimento (Women in Development - WID), autores e activistas feministas propõem o abandono do projecto eurocêntrico, hierárquico e patriarcal de desenvolvimento. Segundo esta perspectiva - que é conhecida como ecofeminismo (Women, Environment, and Alternative Development - WED) - «a tarefa não é apenas acrescentar as mulheres ao modelo conhecido mas, sim, estabelecer um novo paradigma de desenvolvimento» (Harcourt, 1994: 5). Isto implica uma transformação da ideia de desenvolvimento, baseada na recuperação de formas de entender o mundo que foram marginalizadas pelo paradigma dominante, nas quais as actividades económicas são apenas uma parte de um conjunto de práticas culturais a que estão subordinadas (McMichael, 1996). Tal como foi desenvolvido por alguns dos seus expoentes mais representativos (Shiva e Mies, 1993), o ecofeminismo implica deter o desenvolvimento como crescimento e adoptar um enfoque que dê prioridade aos meios básicos de subsistência e se centre nas mulheres e nas crianças.

A alusão a formas alternativas de conhecimento leva-nos a outro elemento central das alternativas ao desenvolvimento. Trata-se da reivindicação da diversidade cultural e da diversidade de formas de produzir, e de entender a produção, que existem hoje por todo o mundo, apesar da expansão da economia capitalista e da ciência moderna. Perante a evidência dos efeitos sociais e ambientais perversos da produção capitalista e da cultura materialista e instrumental que a torna possível, a fonte de alternativas ao desenvolvimento encontra-se nas culturas híbridas ou minoritárias das quais «podem emergir outras formas de construir economias, de satisfazer as necessidades básicas, de viver em sociedade» (Escobar, 1995: 225). Estas culturas podem, então, subverter a hegemonia do capitalismo e do conhecimento moderno. Por esta razão, segundo esta perspectiva, «a diversidade cultural é um dos factos políticos essenciais da nossa época» (idem).

A resistência ao desenvolvimento como crescimento e a formulação de alternativas baseadas em culturas não hegemónicas segue uma tradição de pensamento e acção que teve as suas manifestações mais importantes na luta contra o colonialismo. Provavelmente, o exemplo mais saliente é a ideia de swadeshi, elaborada por Gandhi no contexto da luta do povo indiano contra o colonialismo inglês, que é comentada no capítulo de Sethi incluído neste livro. Em sentido restrito, swadeshi significa autonomia económica local, baseada no «espírito que nos exige que sirvamos os nossos vizinhos imediatos preferencialmente a outros e que usemos as coisas produzidas à nossa volta em vez das coisas produzidas em lugares remotos» (Gandhi, 1967: v). Esta estratégia de autonomia local foi crucial para o êxito da luta pela independência da Índia que ganhou ímpeto quando os indianos, exortados por Gandhi, se negaram a comprar o sal vendido pelos ingleses e debilitaram, assim, a base económica do império inglês. Contudo, como demonstra Kumar (1996), swadeshi é uma forma de ver o mundo que implica alterações mais profundas do que autonomia económica local. Swadeshi implica uma atitude antidesenvolvimentista face à produção e uma atitude antimaterialista relativamente ao consumo. Uma vez que, de acordo com Gandhi, existe o suficiente para satisfazer as necessidades de todos, mas não para satisfazer a ambição de todos, uma alternativa ao desenvolvimento implica uma forma de ver o mundo que privilegie a produção de bens para consumo básico em vez da produção de novas necessidades e de artigos para as satisfazer a troco de dinheiro.

As propostas que advogam a superação do paradigma do desenvolvimento são hoje uma das mais dinâmicas e prometedoras fontes de alternativas de produção não capitalistas. Nelas participa um caleidoscópio de organizações e movimentos de todo o mundo, envolvidos em lutas muito diversas. Estas lutas incluem a resistência de grupos indígenas de todo o mundo contra os projectos de desenvolvimento económico que põem em perigo a sua cultura e, com ela, a sua sobrevivência física, como a luta do povo U’wa, na Colômbia, contra a exploração de petróleo, por parte da Occidental, nos seus territórios ancestrais. Lutas similares, pela afirmação cultural e a protecção do meio ambiente, a partir de uma perspectiva anti-desenvolvimentista, proliferam actualmente em todo o mundo, impulsionadas por uma combinação de activismo local e redes de activismo global. Outros exemplos visíveis são o movimento dos Chipko, na Índia, contra o abate comercial de árvores e a resistência, no mesmo país, contra a construção da barragem no rio Narmada.

Apesar de estes e outros movimentos mostrarem claramente os benefícios da articulação de lutas locais e de redes de solidariedade nacionais e internacionais na procura de alternativas ao desenvolvimento capitalista global, em boa parte da bibliografia e dos programas pós-desenvolvimentistas existe uma ênfase quase exclusiva na escala local, comunitária. Neste sentido, as propostas pós-desenvolvimentistas expõem-se a riscos semelhantes aos que assinalámos a propósito do desenvolvimento alternativo, ou seja, à reificação da comunidade e da cultura local e ao abandono das aspirações de solidariedade além da esfera local. Este risco é especialmente evidente - e, de facto, celebrado - nalgumas propostas pós-desenvolvimentistas baseadas num pós-modernismo hiperdesconstrutivista que nega a possibilidade de criar diálogos interculturais e de estender o alcance do pensamento e da acção para além do âmbito local (Esteva e Prakash, 1998). Este radicalismo do local é produto da construção de dicotomias - «o povo» versus «os outros», tradicional versus moderno, sociedade civil versus Estado, comunidade versus sociedade, local versus global, sabedoria popular versus conhecimento moderno - em que não cabe a possibilidade de um termo médio nem as propostas de articulação entre os termos confrontados. O resultado é uma rejeição completa de qualquer forma de pensamento e acção globais, inclusivamente daquelas que tentam estabelecer nexos de solidariedade entre lutas locais. À «fantasia do pensamento global» opõe-se a celebração da diversidade local (Esteva e Prakash, 1998: 20).

Ainda que as alternativas ao desenvolvimento dependam, em grande medida, da defesa das alternativas locais e das formas de vida e de conhecimento anticapitalistas que elas possam representar, acreditamos que o pensamento e a acção pós-desenvolvimentista têm muito a ganhar - como mostram as lutas bem sucedidas que articulam o activismo local, nacional e global - se, em vez de celebrar incondicionalmente a diversidade local, se esforçarem por desenvolver propostas que se desloquem através de todas as escalas, dependendo das necessidades da luta concreta. A diversidade cultural que pode impulsionar a procura de alternativas ao desenvolvimento «não é uma força estática mas, sim, transformada e transformadora» (Escobar, 1995: 226). Neste sentido, as comunidades capazes de impulsionar alternativas ao desenvolvimento são as comunidades-amiba e não as comunidades-fortaleza. Do ponto de vista pós-desenvolvimentista, é necessário formular, contra o paradigma capitalista, um paradigma eco-socialista cosmopolita, em que os topoi privilegiados sejam a democracia, o ecologismo socialista, o antiprodutivismo e a diversidade cultural (Santos, 1995: 484). Do que se trata, enfim, para utilizar a expressão feliz da tese de McMichael (1996), é de lutar por um «localismo cosmopolita» e plural, em que as estratégias antidesenvolvimentistas, de desenvolvimento alternativo, de cooperativismo e de socialismo associativo, entre outras, criem espaços não capitalistas que apontem para uma transformação gradual da produção e da sociabilidade para formas mais igualitárias, solidárias e sustentáveis.

 

2. Os estudos de caso

Com base no mapa exaustivo de alternativas de produção que construímos nas páginas anteriores, nas páginas seguintes situamos os dez estudos de caso que compõem este volume. Para isso, dividimos o restante desta introdução em duas secções. Nesta secção, com a finalidade de orientar o leitor, fazemos uma descrição muito breve de cada um dos estudos de caso. Na secção seguinte, com base nos estudos de caso e em jeito de conclusão, formulamos nove teses para debate, relativamente ao que acreditamos serem os problemas centrais comuns aos diferentes capítulos deste livro.

Antes de proceder à descrição dos capítulos seguintes e à formulação das teses, torna-se necessário fazer dois esclarecimentos sobre os estudos de caso e a sua relação com esta introdução. Por um lado, os estudos de caso não cobrem todos os tópicos incluídos no mapa que elaborámos nas secções anteriores. Por isso, ainda que o mapa sirva para situar os estudos de caso, a sua função é também a de ampliar o espectro de alternativas para além das que são explícitas nos estudos de caso. Por outro lado, de acordo com o espírito que anima o projecto de investigação que deu lugar a este livro, os estudos de caso são muito diversos, tanto no seu conteúdo - o tipo de iniciativa, a sua situação geográfica, etc. - como no enfoque e, até, na linguagem utilizada por cada um dos autores. Como o leitor poderá verificar, alguns capítulos estão mais próximos do estilo académico, enquanto outros estão escritos a partir da perspectiva do activista envolvido nas lutas que analisa. Enquanto alguns estudam experiências de pequena escala, outros estudam iniciativas empreendidas à escala regional e até mesmo nacional. Na nossa opinião, a diversidade de estudos de caso e o facto de eles terem sido efectuados numa perspectiva comparada (e em diálogo explícito entre os seus autores) em países da semiperiferia e da periferia (África do Sul, Brasil, Colômbia, Índia, Moçambique e Portugal), constitui uma das contribuições centrais deste livro. De igual modo, ainda que seja claro que todos os autores analisam os casos com vista a aumentar o potencial emancipatório das experiências estudadas, as opiniões sobre temas comuns são diversas. Por esta razão, as teses que formulamos nas conclusões desta introdução não devem ser entendidas como o resultado de um consenso entre os autores dos capítulos deste livro, mas como o nosso esforço de síntese e de convite ao debate, com base na nossa leitura dos textos.

O livro está dividido em quatro partes. Na primeira, Paul Singer (Brasil) e Harsh Sethi (Índia) analisam experiências de economia solidária. Na segunda, Heinz Klug (África do Sul), Zander Navarro (Brasil), Horacio Martins (Brasil) e João Marcos Lopes (Brasil) estudam formas alternativas de acesso à terra e à produção económica rural. Na terceira, César Rodríguez (Colômbia), Sharit Bhowmik (Índia), Teresa Cruz e Silva (Moçambique) e Alberto Melo (Portugal) apresentam os seus estudos de caso sobre associações e cooperativas. Na quarta, Aníbal Quijano (Perú), como comentador convidado, expõe as suas observações sobre os resultados dos estudos de caso e as suas reflexões gerais sobre o tema das alternativas de produção. Agora, de seguida, apresentamos o essencial dos estudos de caso que compõem as três primeiras secções.

O capítulo de Singer começa por apresentar uma caracterização geral da economia solidária como modo de produção baseada no modelo cooperativo descrito no início desta introdução. Para ilustrar o funcionamento da economia solidária no Brasil, Singer analisa em detalhe quatro casos de experiências cooperativas: a transformação de uma fábrica de sapatos à beira da falência numa cooperativa de trabalhadores, em São Paulo, no início dos anos 90, e o aparecimento posterior de uma associação nacional de trabalhadores cooperativistas; a criação de uma associação nacional de cooperativas do sector metalúrgico, impulsionada pelo sindicato nacional dessa indústria, em 1999; a autogestão económica colectiva nos assentamentos do Movimento dos Sem Terra; e um conjunto de iniciativas empreendidas pela Igreja Católica brasileira, ONGs e universidades para promover a criação de cooperativas de todo o tipo nos sectores populares, na década de 90, particularmente mediante esforços organizados de assessoria e apoio prestados pelas chamadas «incubadoras de cooperativas». Com base na comparação destes estudos de caso, Singer conclui que a organização de cooperativas em redes de mútuo apoio, combinadas com o apoio externo de sindicatos, organizações progressistas e movimentos sociais pode dar lugar à expansão da economia solidária no Brasil. Neste sentido, é possível que a economia solidária vá mais além da missão principal que cumpriu até agora, isto é, aliviar a situação generalizada de desemprego associada aos efeitos da globalização neoliberal no Brasil.

O trabalho de Sethi examina a forma como as ideias de autonomia e identidade cultural na Índia, resumidas na filosofia gandhiana de swadeshi, se podem contrapor à globalização neoliberal nesse país. Para isso, o autor faz um balanço geral dos acontecimentos e das tendências económicas da Índia, desde o início da liberalização económica, nos primeiros anos da década de 90. O balanço mostra que ainda que a abertura económica da Índia tenha impulsionado o crescimento económico, também aumentou a desigualdade económica e a insegurança laboral. Ao contrário do que sucede noutros países onde a resistência popular aos programas de ajustamento estrutural não teve um efeito importante, na Índia, os sindicatos e organizações de base conseguiram, pelo menos, desacelerar a abertura e, assim, evitar parcialmente a deslocação social que estes programas produzem. Não obstante, o poder político e económico permanece nas mãos dos partidários da continuação da integração da Índia na globalização neoliberal. Nestas condições, o autor indaga qual o papel que poderia desempenhar o conceito de swadeshi como meio de resistência e de criação de alternativas económicas.

O capítulo escrito por Klug estuda uma instituição criada pelo governo sul-africano, em 1996, para permitir que as comunidades rurais marginalizadas possam aceder à terra e produzir colectivamente, no contexto do programa governamental de reforma agrária. De acordo com as regras destas instituições -, denominadas Associações de Propriedade Comunitária (Community Property Associations) - as comunidades podem ser donas de terras entregues pelo governo se criarem associações regidas por um conjunto de regras de autogoverno que, por sua vez, devem respeitar alguns princípios constitucionais mínimos que pretendem garantir a participação democrática e a igualdade entre os membros, com ênfase especial na igualdade entre homens e mulheres. O autor analisa as associações criadas pelas comunidades sul-africanas com base neste programa de reforma agrária e destaca a forma como as regras internas das associações interagem - e por vezes colidem - com a ordem hierárquica estabelecida pelas tradições de alguns povos sul-africanos. De igual modo, Klug destaca o papel do acesso à terra como forma de emancipação social e investiga o potencial transformador das associações estudadas.

No seu estudo sobre o Movimento dos Sem Terra (MST), Navarro começa por descobrir a origem do movimento e faz um balanço das suas realizações ao longo das suas duas décadas de existência. O autor sublinha a forma como o movimento, através de um activismo constante e de tácticas bem sucedidas de ocupação de terras, revitalizou a luta pela reforma agrária e obteve conquistas fundamentais para os camponeses sem terra, numa das sociedades mais desiguais do mundo. Navarro destaca, igualmente, a forma como a multiplicação dos assentamentos do MST deu lugar à democratização dos municípios brasileiros, graças à capacidade do movimento de enfrentar a máquina política que tradicionalmente atraiu o voto dos camponeses. Não obstante, de acordo com o autor, o MST tem uma estrutura interna hierarquizada, graças à qual a participação e a discordância são eficazmente limitadas. Para Navarro, o controlo social e o autoritarismo resultante desta organização interna põem em causa o carácter emancipatório do movimento. Para desenvolver o seu potencial emancipatório, conclui o autor, o MST deve democratizar-se internamente e ajustar as suas estratégias às novas circunstâncias políticas brasileiras, particularmente às oportunidades de colaboração frutífera com o Estado.

Martins apresenta uma visão distinta do MST. Tal como Navarro destaca as realizações do MST em termos do número de assentamentos criados, famílias beneficiadas com a redistribuição das terras ocupadas e da expansão geográfica da reforma agrária por várias regiões do Brasil. Para Martins, estas conquistas foram possíveis graças à formação de uma identidade de valores entre os milhares de membros do movimento que tornou possível a mobilização maciça necessária para realizar acções directas de ocupação de terras. Ao contrário de Navarro, contudo, Martins sustenta que a organização interna do movimento não é vertical mas, sim, semelhante à de uma sociedade em rede, em que os meios convencionais de luta eleitoral não são utilizados como forma de renovação dos quadros directivos. Para além disso, de acordo com o autor, existe uma grande variedade nas formas de gestão e de convivências nos milhares de assentamentos do MST. Uma vez que, para Martins, a emancipação social é um processo continuado, as mobilizações e transformações do MST são parte do processo sustentável que continua hoje e que procura a transformação dos padrões de propriedade da terra e do modelo económico. O capítulo de Martins é seguido de uma breve tréplica de Navarro.

Continuando com a análise do MST, o estudo de caso de Lopes descreve em pormenor a forma como os cerca de 5.000 camponeses, pertencentes ao movimento, que ocuparam uma extensa herdade, no sul do Brasil, em 1996, conceberam a construção de uma cidade alternativa no território onde se estabeleceram. Depois de a instituição estatal encarregue de promover a reforma agrária lhes ter entregue a terra ocupada, os habitantes do assentamento debateram, com o apoio de ONGs e de entidades estatais, o tipo de cidade que iriam construir. Para isso, propuseram utilizar as ruínas de uma antiga cidade-acampamento existente na zona, construída décadas antes, para albergar os trabalhadores que construíram a barragem da região. O autor analisa o modo como a concepção de cidade dos sem terra, um híbrido entre o rural e o urbano, chocou com a concepção convencional dos funcionários estatais e dos arquitectos das ONGs que os apoiavam. Deste choque de formas de conhecimento e de vida surgiram, todavia, alternativas de organização do espaço e da produção que ainda hoje estão em processo de construção.

Como demonstra esta breve apresentação dos estudos de Navarro, Martins e Lopes - que se aproximam de um dos casos estudados por Singer sobre as cooperativas criadas pelos sem terra - este livro contém um debate rico sobre o MST. Não é nosso objectivo intervir no debate. Nos parágrafos anteriores destacámos os eixos centrais da discussão, que retomaremos ao ilustrar as teses que apresentamos na parte final deste trabalho. Em todo o caso, parece-nos importante que o debate tenha lugar para que se aprofundem os objectivos emancipatórios que originaram o MST.

No seu contributo para o presente volume, Rodríguez estuda um caso específico de cooperativismo que envolve um dos sectores mais marginalizados da sociedade colombiana, os recicladores de lixo. Um sector minoritário dos cerca de 300.000 recicladores de lixo colombianos organizou ao longo de 20 anos, com o apoio de entidades privadas e estatais, cerca de 100 cooperativas de trabalhadores, assim como redes regionais e nacionais de cooperativas, para transformar as condições de exploração do mercado da reciclagem e melhorar a qualidade de vida dos recicladores. Este capítulo analisa o aparecimento, realizações e dificuldades das cooperativas, com a finalidade de responder às perguntas mais gerais sobre as condições sob as quais podem surgir organizações económicas que, como as cooperativas de trabalhadores, desafiem a divisão entre capital e trabalho própria das empresas capitalistas e, ao mesmo tempo, sejam capazes de sobreviver num mercado cada vez mais globalizado. O autor demonstra que as cooperativas de recicladores geraram benefícios económicos e sociais substanciais para os recicladores sócios. Não obstante, a investigação demonstra também que as cooperativas foram incapazes de transformar a estrutura do mercado da reciclagem, que continua a beneficiar as grandes empresas compradoras de material reciclado. Ao longo do estudo enfatiza-se a necessidade das cooperativas em geral, e das de recicladores em particular, se integrarem em redes de apoio mútuo com outras cooperativas, com entidades estatais e, em certas condições, com empresas capitalistas, tanto no seu país de origem como no exterior. Este vínculo entre o local e global pode ajudar a avançar na direcção do cumprimento da promessa frustrada do cooperativismo como forma de globalização contra-hegemónica.

Bhowmik também estuda experiências de cooperativismo em sectores marginalizados da classe trabalhadora. O trabalho de Bhowmik é composto por uma introdução sobre o cooperativismo e a emancipação social, seguida de quatro estudos de caso, efectuados em duas cidades da Índia (Ahmedabad e Calcutá), que permitem analisar variações e extrair conclusões sobre as razões do êxito de algumas cooperativas e do fracasso de outras. O estudo de Ahmedabad trata da experiência de mulheres recicladoras de lixo que formaram cooperativas com a ajuda de um sindicato de mulheres trabalhadoras. Os três estudos efectuados em Calcutá referem-se a iniciativas de trabalhadores de fábricas que faliram e que os trabalhadores decidiram comprar e administrar de forma cooperativa. Ao comparar os quatro estudos de caso, Bhowmik sublinha o papel essencial que podem desempenhar os sindicatos na promoção de experiências cooperativas bem sucedidas. O autor sublinha, igualmente, a democracia interna das cooperativas e a atitude do Estado relativamente a elas como factores importantes para o êxito ou fracasso das mesmas.

O capítulo de Cruz e Silva continua a linha de discussão dos trabalhos de Rodríguez e Bhowmik relativamente ao potencial emancipatório e às dificuldades das cooperativas formadas por trabalhadores das classes mais marginalizadas da sociedade. O estudo de caso de Cruz e Silva refere-se a cooperativas de mulheres que vivem nos arredores da cidade de Maputo, Moçambique, que forma criadas como produto das políticas socialistas posteriores à luta de independência do país, em meados dos anos setenta. As cooperativas, coordenadas pela associação que constitui o objecto de estudo central do capítulo, a União Geral de Cooperativas, realizam diversas actividades de produção, especialmente de alimentos, para venda no mercado de Maputo. A autora mostra como as estratégias mediante as quais as cooperativas associadas à União conseguiram manter-se vivas e providenciar formas de sociabilidade solidárias e meios de sustento básicos às suas trabalhadoras-proprietárias. Todavia, o estudo de caso revela igualmente a precariedade das cooperativas na sua luta por sobreviver no novo contexto económico de Moçambique, caracterizado pela abertura à concorrência estrangeira. Nestas condições, a autora adverte para o risco de desaparição das cooperativas e investiga as possíveis estratégias que as podiam tornar viáveis no meio de um mercado aberto.

Por fim, o trabalho de Melo apresenta, através do olhar de participante directo do autor, uma experiência bem sucedida de desenvolvimento local empreendida no sul de Portugal, desde 1985. Trata-se de uma série de iniciativas de diversos tipos - desde actividades de produção artesanal até à prestação de serviços básicos, como cuidar das crianças dos pais que trabalham, passando pela capacitação para o auto-emprego e por iniciativas culturais destinadas a desenvolver os laços de solidariedade nas comunidades envolvidas - cujo conjunto constitui um caso de desenvolvimento integral no seio de comunidades rurais marginalizadas. O autor centra-se no papel que a associação «In Loco» desempenhou na promoção do desenvolvimento integral da região estudada. O capítulo sublinha igualmente o efeito que a integração de Portugal na União Europeia - e, com ela, a liberalização neoliberal - teve nos programas de desenvolvimento local e sugere que o futuro destes depende da articulação de esforços nas escalas local, regional e global.

 

3. Conclusão: nove teses sobre as alternativas de produção

Para encerrar esta introdução, formulamos um conjunto de curtas teses que, acreditamos, apontam para os temas comuns aos estudos de caso incluídos neste volume e que, esperamos, servem como provocações para a leitura e discussão dos mesmos. Com base na nossa própria leitura dos casos, apresentamos estas teses em jeito de intervenção explícita no debate político e académico em que movimentos progressistas de todo o mundo estão envolvidos. As teses estão aí, então, para serem discutidas, confrontadas, complementadas, criticadas ou rejeitadas.

Tese 1. As alternativas de produção não são apenas económicas: o seu potencial emancipatório e as suas perspectivas de êxito dependem, em boa medida, da integração que consigam entre processos de transformação económica e processos culturais, sociais e políticos. Como revelam os estudos de caso, as iniciativas de produção alternativa são geralmente apenas uma parte de um projecto integral de organização comunitária. Ainda que a produção seja uma parte essencial das iniciativas porque providencia o incentivo económico para a participação dos actores, a decisão de empreender um projecto alternativo e a vontade diária de o manter depende igualmente das dinâmicas não económicas - culturais, sociais, afectivas, políticas, etc. - associadas à actividade de produção. Neste sentido, as alternativas são holísticas e o seu êxito depende, em parte, da forma como os processos económicos e não económicos dentro delas se sustentam mutuamente.

O caso da associação «In Loco», no sul de Portugal, apresentado por Melo, ilustra bem o carácter das iniciativas. A «In Loco» é um projecto de desenvolvimento local integral, que não compreende apenas actividades empresariais comunitárias (produção de alimentos, artesanato, etc.), mas também uma série de actividades sociais (v. g., organização colectiva do cuidar das crianças), culturais (educação e afirmação das tradições locais) e políticas (processos de democracia participativa na tomada de decisões sobre os projectos e os assuntos que afectam a população em geral). De igual modo, os casos apresentados por Singer, Cruz e Silva, Bhowmik e Rodríguez sobre cooperativas de trabalhadores mostram que a difícil transição da produção capitalista para a produção cooperativa requer actividades simultâneas de educação e integração social que mantenham o entusiasmo dos trabalhadores participantes e criem as condições necessárias para a participação significativa destes nas decisões das empresas de que são proprietários. Como demonstra Singer na sua comparação de cooperativas brasileiras de diferentes sectores, a transição do trabalhador de uma relação de operário/patrão para uma de igualdade entre cooperantes é difícil. A alteração de situação e de estatuto requer um verdadeiro processo de aprendizagem do novo papel e das oportunidades e responsabilidades que a condição de proprietário da empresa implica. Este processo é especialmente difícil quando os actores são pessoas que sofreram formas extremas de exclusão social, como os recicladores de lixo. Como é ilustrado pelo caso dos recicladores colombianos, apresentado por Rodríguez, um factor essencial para a continuação das cooperativas no meio de dificuldades de todo o tipo é que elas constituem pequenas comunidades de apoio mútuo entre os recicladores participantes. Nessas cooperativas, as actividades lúdicas, culturais, sociais e outras promovidas pelas cooperativas são tão importantes - do ponto de vista dos participantes - como o trabalho quotidiano de reciclagem e, de facto, com frequência, são as razões centrais pelas quais os recicladores permanecem nas cooperativas. O carácter holístico das iniciativas de produção também é evidente na experiência da criação de uma cidade alternativa por parte dos sem terra, analisada por Lopes. A cidade alternativa concebida pelos sem terra integra a produção, a habitação, a recreação e o usufruto e cuidado da terra, tornando fluidas as fronteiras convencionais entre o rural e o urbano e entre os lugares de produção e os lugares de produção e os lugares de habitação e de convivência pública.

As alternativas de produção são, então, iniciativas híbridas. São uma amálgama complexa de actividades muito diversas, como demonstram estos casos e muitos outros estudados em diferentes partes do mundo (Hirschman, 1984; Wassertrom, 1985). As actividades económicas fornecem o sustento e o incentivo material, enquanto que o sentimento de pertença e os processos de educação e integração social gerados à volta delas fornecem a energia e o entusiasmo necessários para que os participantes persistam e a alternativa não se desmorone ou se desvirtue.

Tese 2. O êxito das alternativas de produção depende da sua inserção em redes de colaboração e de suporte mútuo. Dado o seu carácter contra-hegemónico e o facto de que em muitas situações as experiências de produção alternativa são empreendidas por sectores marginalizados da sociedade, as iniciativas são, frequentemente, frágeis e precárias. Como mostram todos os casos incluídos neste livro, o risco de cooptação, fracasso económico ou desvirtuamento dos projectos alternativos é muito elevado. Como também revelam os estudos de caso, a solução mais adequada para contrariar esta fragilidade é a integração das iniciativas em redes compostas por outras iniciativas similares (v. g., cooperativas) e por entidades diversas.

Um dos factores mais importantes para o aparecimento, sobrevivência e expansão das alternativas é a existência de um movimento social mais amplo que as produza e mantenha a sua integridade. O caso do MST é a ilustração mais clara desta afirmação. Os estudos de Martins, Singer, Navarro e Lopes destacam a forma como as múltiplas iniciativas de habitantes dos assentamentos do MST - que vão desde a produção de alimentos até à construção de cidades alternativas - foram possíveis graças à solidez do movimento de que fazem parte. De igual forma, em Moçambique, a energia política gerada pela luta de libertação nacional forneceu o ímpeto necessário para a fundação das cooperativas estudadas por Cruz e Silva e o triunfo do movimento contra o apartheid, na África do Sul, deu lugar ao regime político que criou o sistema de reforma agrária, organizado à volta das associações comunais de camponeses estudadas por Klug. Estas experiências confirmam as conclusões de outros estudos sobre casos similares, como os que explicam o êxito das cooperativas de Kerala, na Índia, em termos da sua inserção num movimento de transformação social mais amplo que deu lugar ao denominado modelo de Kerala (Isaac, Franke e Raghavan, 1998).

As redes de apoio mútuo, em particular, são compostas por três tipos de entidades: sindicatos, ONGs e fundações, e outras organizações económicas alternativas. Os sindicatos desempenham um papel fundamental na criação e promoção de várias das experiências bem sucedidas, em particular, das cooperativas de trabalhadores. Assim o demonstram os casos apresentados por Bohwmik e Singer, em que a iniciativa e o apoio dos sindicatos foram decisivos para que trabalhadores de várias empresas falidas pudessem passar a ser os donos das mesmas e as transformassem em cooperativas. No caso estudado por Singer, os sindicatos brasileiros também contribuíram para a fundação de entidades especializadas na promoção e no apoio de cooperativas de trabalhadores. As evidências demonstradas por estes casos - juntamente com os que existem sobre outros casos como o de Kerala - revelam, em nossa opinião, um dos desafios mais interessantes para o movimento operário no novo milénio, isto é, a definição do seu papel relativamente à promoção de alternativas económicas que vão para além da negociação operário-patronal. Por outro lado, o apoio de fundações e ONGs de promoção de desenvolvimento comunitário aparece também, nos estudos de caso, como um aspecto crucial, sobretudo na etapa de criação e consolidação das iniciativas. O apoio externo de igrejas, organizações privadas de promoção social e de todo o tipo de «animadores sociais» (Hirschman, 1984) está presente tanto na fundação de grandes movimentos, como o MST, como em iniciativas micro, como as cooperativas de recicladores de lixo. O dilema que enfrentam várias das iniciativas estudadas é precisamente como sobreviver de forma autónoma quando o apoio externo terminar. Por fim, é significativa a influência positiva do apoio entre organizações económicas alternativas (concretamente entre cooperativas) que, nalgumas situações - como nos casos das cooperativas de Moçambique, Brasil e Colômbia -, deram lugar a associações de segunda linha, dedicadas à promoção das cooperativas.

Como demonstra o caso exemplar de Mondragón, referido anteriormente, as cooperativas e demais organizações económicas não capitalistas são extremamente frágeis quando têm que enfrentar, sozinhas, a concorrência do sector capitalista e condições políticas desfavoráveis. Por esta razão, a formação de redes de apoio mútuo é indispensável. Estas redes têm, como integrantes naturais, organizações de todo o tipo comprometidas com uma agenda de transformação social. Contudo, como sucede em vários dos estudos de caso (v. g., as cooperativas de Moçambique e da Colômbia), no contexto de economias abertas surge com frequência a necessidade de criar alianças com companhias capitalistas. Este é um dos aspectos mais difíceis da evolução recente das alternativas de produção em todo o mundo, dado o risco de cooptação ou desvirtuamento que ele implica. Todavia, as relações de cooperação com empresas capitalistas não devem ser descartadas e, de facto, por vezes são indispensáveis. Do que se trata, então, é de negociar com cuidado as condições da relação e de inserção no mercado, de tal forma que se evite a desnaturalização das alternativas.

Tese 3. As lutas pela produção alternativa devem ser impulsionadas dentro e fora do Estado. Menção à parte merecem as relações entre as iniciativas de produção alternativa e o Estado. Tradicionalmente, as correntes de pensamento e acção progressistas que procuram alternativas económicas não capitalistas têm mostrado uma clara desconfiança relativamente ao Estado. Isto é assim tanto em relação ao cooperativismo como em relação às propostas de desenvolvimento alternativo e de alternativas ao desenvolvimento. Existem razões fortes que sustentam esta desconfiança, dado o risco de cooptação das alternativas por parte do Estado, a passividade deste perante os problemas das classes populares e o perigo de que as iniciativas se tornem dependentes da ajuda estatal.

Contudo, como demonstram os estudos de caso, as relações entre as alternativas de produção e o Estado são complexas e ambíguas. Em muitas ocasiões, o Estado actua como catalizador eficaz, e inclusivamente como criador, das alternativas. Isto sucede, por exemplo, no caso das associações de propriedade comunitária da África do Sul analisadas por Klug. Noutros casos, a acção contraditória do Estado - que passa do apoio ao abandono das iniciativas - pode ser altamente negativa e até mesmo pôr em perigo a própria sobrevivência das organizações. É este o caso, por exemplo, de várias das cooperativas estudadas por Bhowmik, que foram inicialmente apoiadas pelo Estado e logo a seguir estiveram quase a desaparecer quando o Estado lhes retirou injustificadamente o apoio. Num terceiro grupo de casos, existe uma relação tensa e ambígua entre o Estado e as organizações e movimentos. Isto é ilustrado de forma paradigmática pela relação entre o MST e o Estado brasileiro, descrita em pormenor por Navarro, que tanto inclui nexos de colaboração e apoio financeiro como relações de antagonismo e oposição política.

Face a todo isto, acreditamos que as alternativas não podem ser a escolha entre lutar dentro ou fora do Estado. Devem lutar dentro e fora do Estado. A primeira, para não ceder o terreno político ao poder económico hegemónico e mobilizar os recursos do Estado a favor dos sectores populares. A segunda, para manter a sua integridade, não depender das flutuações do ciclo político e continuar a formular alternativas ao status quo.

Tese 4. As alternativas de produção devem ser ambiciosas em termos de escalas. Este ponto já foi exposto na nossa crítica ao localismo que caracteriza algumas das propostas de economias alternativas. Contra este localismo, propomos alternativas capazes de actuar em diferentes escalas, desde a local até à global, passando pela regional e pela nacional. A ambição perante as escalas de acção e de pensamento opõe-se ao fundamentalismo relativamente ao privilégio de uma escala particular. Ainda que a escala local - as iniciativas comunitárias, a acção política concreta na escala em que habitamos e onde se encontram as nossas raízes - seja obviamente fundamental, não há razões para impedir que as redes de apoio e solidariedade, que descrevemos na Tese 2, se estendam a escalas maiores. A escala, ou a combinação de escalas, do pensamento e da acção deve ser escolhida de acordo com a natureza e as necessidades das iniciativas concretas em cada momento e não de antemão e definitivamente.

Esta tese é ilustrada com clareza pelo caso português de desenvolvimento local integral, apresentado por Melo. Ainda que os projectos descritos pelo autor estejam claramente concentrados na escala local, a sua criação e continuação foram possíveis graças à sua capacidade para utilizar os recursos e para se adaptar às condições em transformação da escala nacional, europeia e global. Com efeito, o apoio internacional, sobretudo da União Europeia, foi fundamental para impulsionar as actividades de desenvolvimento local examinadas. Ao mesmo tempo, a reacção local perante as circunstâncias económicas nacionais e europeias, que mudaram rapidamente ao longo dos anos de vida dos projectos, foi um dos factores centrais da sobrevivência e expansão dos projectos. De forma semelhante, Singer descreve como as associações brasileiras de apoio a cooperativas beneficiaram do apoio de experiências similares em França e Itália. Por fim, a necessidade de articular as diferentes escalas é evidente nos dilemas enfrentados pelas cooperativas estudadas por Cruz e Silva e Rodríguez, perante a dificuldade das cooperativas de desenvolverem estratégias de concorrência com o capital global, no contexto da abertura económica em Moçambique e na Colômbia, respectivamente.

Tese 5. A radicalização da democracia participativa e da democracia económica são duas faces da mesma moeda. Uma das características emancipatórias das alternativas de produção não capitalista consiste no seu potencial para substituir a autocracia típica da produção capitalista - isto é, a autoridade vertical que emana do «patrão» ou do manager - pela democracia participativa no interior das unidades de produção. Por outras palavras, o objectivo é alargar o campo de acção da democracia do campo político para o económico e apagar, desta forma, a separação artificial entre política e economia que o capitalismo e a economia liberal estabeleceram. Esse alargamento, todavia, implica mais do que uma alteração quantitativa. O efeito essencial da expansão do princípio democrático é a criação de possibilidades de transformação qualitativa da democracia, na direcção de uma democracia participativa. É este tipo de democracia que está subjacente às alternativas radicais à política liberal e ao capitalismo.

O tema da democracia interna atravessa todos os estudos de caso. No estudo de Klug, sobre as associações camponesas de produtores, o requisito da democracia interna é imposto directamente pela lei que criou essas associações, de tal maneira que, neste caso, é o Estado que promove o vínculo entre democracia económica e política que, com frequência, colide com a hierarquia estabelecida pelas regras e costumes ancestrais das localidades. Nas análises de cooperativas do Brasil, Moçambique, Índia e Colômbia aparece o assunto familiar da divisão entre os líderes das cooperativas e o resto dos trabalhadores. Com efeito, este foi um dos dilemas constantes das cooperativas desde o aparecimento do movimento cooperativo no início do século XIX. Como evitar o ressurgimento de hierarquias e da apatia em organizações cujo êxito depende da participação directa e do compromisso de quem nelas trabalha? Esta é uma pergunta difícil, a que nenhum dos capítulos dá uma resposta contundente. Singer sugere que a solução se poderá encontrar nos processos de educação que acompanham o funcionamento das cooperativas para mitigar a divisão entre «patrões» e «empregados». Melo assinala as vantagens de estruturar redes horizontais de apoio mútuo entre organizações económicas alternativas de todo o tipo que aumentem a possibilidade de estabelecer relações horizontais no interior de cada uma delas. Em qualquer caso, como confirma o estudo comparado de Bhowmik, quando surgem processos de participação democrática no interior das unidades de produção aumentam notoriamente as possibilidades de que estas mantenham a energia que deu lugar à sua fundação e que sejam capazes de se adaptar a condições adversas, dada a maior vontade de cooperação dos trabalhadores que participam na tomada de decisões.

Os estudos sobre o MST abrem toda uma série de perguntas sobre a relação entre alternativas económicas e democracia interna. Neste sentido, este livro serve para iniciar um debate que pode ser frutífero relativamente à evolução futura do movimento, cujas realizações são reconhecidas tanto pelos autores dos capítulos como por movimentos e organizações de todo o mundo. O debate refere-se à forma como as realizações do MST foram ou não acompanhados pela criação de uma estrutura interna democrática e aberta. Enquanto que Navarro sustenta que a organização interna do MST é altamente hierarquizada, Martins defende que é constituída por redes horizontais. Os estudos de Singer e Lopes, entretanto, formulam observações que podem ser úteis para avançar neste debate.

Tese 6. Existe uma estreita conexão entre as lutas pela produção alternativa e as lutas contra a sociedade patriarcal. Como se viu na análise do desenvolvimento alternativo e nas alternativas ao desenvolvimento, a intervenção da teoria e dos movimentos feministas nos debates sobre economias não capitalistas foi decisiva. De facto, boa parte do dinamismo recente destes debates deve-se à hibridização de correntes de pensamento e acção críticas, representadas, por exemplo, pelo movimento ecofeminista. Esta participação decisiva das mulheres e do pensamento feminista não é casual. As lutas pela produção não capitalista fazem parte das lutas contra todas as formas de opressão - o patriarcado, a exploração, o racismo, etc. As lutas económicas não têm prioridade sobre as lutas de género, raça ou outros tipos de movimentos emancipatórios. A prioridade de uma luta sobre outra depende das circunstâncias concretas de cada momento e lugar. Por esta razão, as iniciativas de produção alternativa alimentam-se, e contribuem para o impulso, das lutas contra a sociedade patriarcal. Uma vez que as mulheres não são apenas objecto de opressão de género mas, sim, as principais vítimas de exploração e de marginalização económica, as iniciativas e teorias sobre economias alternativas não podem avançar sem a participação destacada das mulheres.

De facto, como demonstram os estudos de caso, são grupos de mulheres que com frequência impulsionam as iniciativas económicas não capitalistas. Assim sucede, por exemplo, no caso das cooperativas de recicladoras de lixo de Calcutá, estudadas por Bhowmik. De igual modo, a extensa rede de cooperativas associadas à União Geral de Cooperativas de Moçambique, estudada por Cruz e Silva, é composta fundamentalmente por mulheres em condições de pobreza. De forma semelhante - dado que, como nota Klug, os principais factores associados à pobreza, na África do Sul, são: ser mulher, negro ou viver no campo -, um dos factores centrais dos conflitos gerados pela fundação das associações de camponeses nesse país tem que ver com as relações de género. Os princípios constitucionais igualitários estabelecidos pela lei que regula as associações colidem directamente com a hierarquia entre géneros tradicional na África do Sul e, por isso, foram um dos assuntos mais difíceis de solucionar no processo de constituição das associações.

Tese 7. As formas alternativas de conhecimento são fontes alternativas de produção. Na procura de alternativas à produção capitalista, o contributo de culturas minoritárias ou híbridas, marginalizadas pela hegemonia do capitalismo, e o da ciência moderna é fundamental. Como sustentaram convincentemente vários dos defensores de alternativas ao desenvolvimento, cujos trabalhos comentámos antes, existem formas de encarar/ver o mundo que estabelecem uma relação radicalmente diferente da capitalista/moderna entre seres humanos e natureza, entre produção e consumo, entre trabalho e tempo livre, entre o uso e o lucro e entre desenvolvimento e crescimento. O que é preciso, então, não é apenas respeitar a diversidade cultural que permite a sobrevivência destas visões do mundo, mas também aprender a partir delas para construir um paradigma de conhecimento e acção cosmopolita distinto do que está subjacente à globalização neoliberal.

Tanto na nossa alusão/menção anterior a este tema como nos estudos de caso, o exemplo mais saliente deste tipo de conhecimento alternativo é o conceito de Gandhi de swadeshi, cuja elaboração à luz das condições actuais da Índia é o contributo central do trabalho de Sethi. De igual modo, o estudo de Lopes sugere um paradigma alternativo de conhecimento urbano, uma forma diferente de conceber a cidade, por parte dos habitantes de um assentamento do MST no sul do Brasil. O desafio que emerge destes estudos de caso é o de como plasmar essas concepções do mundo em programas e acções concretas capazes de oferecer alternativas viáveis e credíveis perante as concepções e os programas hegemónicos.

Tese 8. Os critérios para avaliar o êxito ou o fracasso das alternativas económicas devem ser gradualistas e inclusivos. Num tempo de hegemonia do capitalismo global é fácil assumir posições desesperançadas ou cínicas relativamente a qualquer alternativa. O pessimismo apodera-se com facilidade das mentes impacientes e a ausência de uma ruptura radical com o status quo gera cepticismo perante qualquer alternativa gradual ou local. Mas a paciência da utopia, de que se nutre o pensamento e as acções de quem procura alternativas económicas, é infinita (Santos, 1995). Se o único critério de avaliação do êxito das alternativas não capitalistas é a transformação radical da sociedade no curto prazo, mediante a substituição do capitalismo por um novo sistema de produção, então nenhuma das alternativas que temos discutido vale a pena.

As alternativas de que dispomos implicam transformações graduais que criam espaços de solidariedade dentro de ou nas margens do sistema capitalista. Para quem nelas participa, as alternativas deste tipo implicam transformações fundamentais das suas condições de vida. O acesso à terra dos camponeses sul-africanos ou brasileiros implica uma ruptura crucial com o sistema de exclusão latifundiário existente até à poucos anos. O gozo de benefícios mínimos de cidadania - como o acesso a serviços médicos ou a subsídio de férias -, no caso das cooperativas mais pobres de Moçambique, Índia ou Colômbia, implica igualmente um marco na vida destas pessoas. Como sustentaram Shiva e Mies (1993) e Dietrich (1996), a própria sobrevivência pode dar lugar à reavaliação do paradigma produtivista e consumista. Para além disso, em muitos casos as mudanças graduais, as pequenas alternativas, abrem portas para transformações estruturais também graduais. Na abertura deste tipo de oportunidades radica o seu potencial de emancipação a grande escala.

Por outro lado, ao avaliar o êxito ou o fracasso das iniciativas económicas alternativas é crucial recordar o carácter holístico destas, que explicamos na Tese 1. Neste sentido, a avaliação deve ser inclusiva: deve incluir tanto as realizações e fracassos na procura de objectivos económicos como os relativos a objectivos não económicos. Hirschman (1984) reclamou eloquentemente este tipo de avaliação inclusiva relativamente às cooperativas:

As cooperativas tendem a ser julgadas apenas pelo seu balanço financeiro, dado que a sua saúde financeira é frequentemente precária e a sua capacidade para coexistir com empresas exclusivamente orientadas para a produção de bens, numa sociedade de mercado individualista, é com frequência posta em causa. Contudo, tal como os efeitos sociais e políticos do capitalismo devem ser considerados em qualquer avaliação geral desse modo de produção, necessitamos de averiguar os benefícios e os custos não monetários das cooperativas para efectuar uma avaliação completa do seu funcionamento. Acontece que, para além disso, estes efeitos não monetários ou intangíveis são frequentemente decisivos para entender o seu desempenho no mercado (Hirschman, 1984: 58).

Tese 9. As alternativas de produção devem entrar em relações de sinergia com alternativas de outras esferas da economia. Ao longo desta introdução, e nos capítulos que se seguem, enfatiza-se a produção. Todavia, existem alternativas muito diversas que organizações e governos progressistas de todo o mundo têm vindo a promover e até mesmo a implementar em esferas tão diversas como o comércio (v. g., as iniciativas de fair trade), o investimento (v. g., o respeito de normas éticas por parte de investidores estrangeiros em países do Sul), a imigração (v. g., as políticas de fronteiras abertas), a tributação (v. g., a taxa Tobin), o rendimento mínimo garantido (v. g., a proposta de rendimento mínimo universal), a coordenação da economia global (v. g., a democratização do Banco Mundial e do FMI), etc.

Dado que boa parte destas iniciativas se tem vindo a articular recentemente, sob a forma do movimento contra a globalização neoliberal, em espaços como o Fórum Social de Porto Alegre, existem hoje condições para promover a articulação de alternativas de produção com alternativas económicas de outro tipo. Na nossa opinião, esta relação de sinergia entre propostas económicas alternativas é fundamental para a sobrevivência e a expansão das alternativas de produção. Por exemplo, como demonstram os dilemas que hoje enfrentam as cooperativas de Moçambique e da Colômbia perante a concorrência do capital transnacional, a inserção dessas cooperativas em mercados alternativos, como os propostos pelas iniciativas de fair trade que pagam preços justos no país de origem e no exterior pelos produtos das cooperativas, poderiam evitar o desaparecimento das cooperativas ou a sua absorção por parte de empresas capitalistas. Este tipo de associações tem-se vindo a tentar com êxito em mercados alternativos como os do café orgânico. Relações de complementaridade várias entre as iniciativas mencionadas e muitas outras mantém a promessa de promover com maior solidez o potencial das alternativas de produção não capitalistas.

Os desafios e dilemas que condensámos nas teses precedentes são imensos. As probabilidades de êxito são incertas. De facto, uma característica comum aos estudos de caso deste volume é o carácter aberto das suas conclusões, que tem origem na incerteza em relação ao futuro das experiências analisadas. Mas os homens e mulheres de diversas raças e nacionalidades que decidiram, ao participar nessas experiências, nadar contra acorrente, são a prova viva da capacidade de imaginação e da vontade de procurar alternativas de produção para além do modelo dominante. Nessas e noutras iniciativas semelhantes em todo o mundo se amplia quotidianamente o cânone da produção e se recria a promessa de emancipação social.

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