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Francisco de Oliveira.

Quem canta de novo L’Internationale ?

(texto não editado)

 

 

A ampla fase da "guerra de movimento"

A dinâmica do movimento sindical brasileiro nos últimos trinta anos constitui-se num formidável trabalho de invenção de espaços públicos e democráticos , no sentido de Lefort. Pode-se dizer, a salvo de cometer injustiças, que a redemocratização formal que se conhece desde a queda da ditadura em 1984, deve muito à iniciativa do movimento sindical questionando a capacidade de governo da ditadura, tornando concretas as denúncias sobre o chamado "milagre brasileiro" e ampliando a eficácia das operações que se passavam na política institucional; de outro lado, em interação dialética,.os movimentos na política institucional atuaram no sentido de inscrever o movimento sindical como atividade não-insurrecional , ajudando a criar uma cultura política não-schmittiana . A própria política institucional acolheu uma das formas daquele questionamento, o Partido dos Trabalhadores o qual, inquestionavelmente, surgiu de um amplo conjunto de categorias sindicais das forças do trabalho.Para resumir o argumento, pode-se dizer que , paradoxalmente, o período da ditadura constituiu-se numa espécie de prelúdio a um momentum tocquevilliano, posto que o fundo da nova sociabilidade "fordista" fazia côro com a forte reclamação pela democracia.

Depois de prostradas as organizações sindicais pela repressão e intervenção do Estado nos grandes sindicatos como sequência do golpe militar de 1964, entrou-se numa fase de " acumulação de forças". Diluida homeopaticamente, num aparente apoliticismo das organizações sindicais, e uma certa apatia e mesmo resignação otimista tanto com a situação econômica quanto com o não-protagonismo político , em evidente contraste com a situação anterior do último período populista.

De fato, a aparência de inação pode não ter sido senão as novas formas das decisivas mudanças na composição da classe operária, em vários sentidos. Em primeiro lugar, a de sua des-filiação política e desideologização;em segundo lugar, marcadas diferenças etárias e de origem regional, não apenas por que muitas lideranças haviam sido expulsas do contigente operário , operando-se até certo ponto um vácuo que não foi rapidamente preenchido, como por que uma nova fração da classe operária tinha uma origem regional com forte presença de imigrantes do Nordeste do Brasil; em razão mesmo do deslocamento geógrafico que se assinala em seguida.Em terceiro lugar, o deslocamento da centralidade locacional dos sindicatos , da antiga preeminência dos metalúrgicos de São Paulo para os metalúrgicos do ABC - os municipios de Santo André, São Bernardo e São Caetano, que formam o cinturão industrial da capital paulista - e em quarto o novo impulso "fordista", implantado com as montadoras internacionais de automóveis e seu específico "regime salarial" ..A marca do novo sindicalismo que emergiu nos fins dos anos setenta, era decididamente " fordista", e essa talvez tenha sido sua maior diferença em relação ao sindicalismo pré-64, a refletir-se, até agora, nas diferenças cruciais entre a CUT-Central Única de Trabalhadores e a Força Sindical, as duas centrais hegemônicas no movimento sindical brasileiro.A segunda tem sua maior implantação no município de São Paulo, e existe pouco no resto do país, enquanto a CUT é, de fato, uma central nacional, territorial e setorial, agregando até a mais importante confederação de sindicatos rurais, a Contag-Confederação Nacional dos Trabalhadores Agrícolas.

De outro lado, preparando essa passagem, não era indiferente a postura anti-politicista do regime ditatorial, procurando isolar a política da influência dos sindicatos..Até mesmo para as lideranças " pelêgas", que se mantiveram nos sindicatos depois de passado o período crucial das intervenções, caso do famosíssimo e desastrado Joaquinzão, dos metálurgicos de São Paulo; o regime nunca lhes concedeu lugar central nos emblemas da política.Nunca se viu Joaquinzão flertando, nos palanques e desfiles glorificatórios, com as lideranças militares e políticas da ditadura. Nem sequer era consultado sobre a política salarial, a não ser para ajudar a desbaratar os movimentos, moleculares, desagradáveis ao regime..Em poucas palavras, o sindicalismo oficialista funcionou, durante a ditadura, como negatividade, enquanto a recusa do regime em mobiliza-lo deixou o flanco aberto à reconstituição do movimento, sem relação com o Estado.

A primeira crise da cópia do pacto " fordista" não se dá com o esgotamento do seu esquema "produtivo-taylorista", mas com a crise do petróleo, a qual expôs, pela primeira vez, a fragilidade do " milagre brasileiro". Do período do "milagre"aos fins dos anos setenta , a negociação "fordista" manteve a pax automotivae. As empresas montadoras dispondo de poder quase monopolista, repassavam os custos de toda negociação aos preços, deslocando o Estado da relação salarial..De um lado e de outro da "mesa de negociações", patrões e empregados deram-se conta, pela primeira vez, dos limites de seu Welfare privado: tanto a alta do petróleo em 1973/1974 levou a um aumento do preço dos automóveis para além do poder do oligopólio, quanto o peso do serviço da dívida externa, agravada agora pelos aumentos do petróleo, elevou o custo financeiro dos financiamentos ao consumidor.. É nesse contexto que surgem as primeiras greves do ABC, as quais prosseguirão durante os primeiros anos dos oitenta, forçadas pelo impasse da dívida externa.A contribuição do novo sindicalismo à política se expressa no fato de que o desafio à política salarial que Delfim Netto, o todo-poderoso Ministro da Fazenda , tenta implementar , de greve em greve,derrota após derrota, desgasta a capacidade de governar e de prever por parte da ditadura, a qual havia sido seu trunfo durante os anos do " milagre".A derrota da política econômica retira à ditadura seu caráter de árbitro no conflito entre empresas e sindicatos, e no conflito competitivo entre empresas.É uma erosão poderosa , a qual torna plausível e palpável a "crítica das armas" operada pela "arma da crítica" da oposição.Da campanha do anti-candidato Ulysses Guimarães em 1974, à enxurrada dos novos senadores do Movimento Democrático Brasileiro na eleição de 1978, até os novos governadores de oposição em 1982, já no novo esquema partidário.São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro governados, os dois primeiros pelo Partido do Movimento Democrático Brasileiro e o terceiro pelo Partido Democrático Trabalhista.Este elegeu ninguém menos que Leonel Brizola, a maior liderança política de oposição que sobreviveu à derrocada geral de 1964, para o governo do Estado do Rio de Janeiro.

A "guerra de posições"

A nova fase pode ser caracterizada como uma "guerra de posições", nos termos de Gramsci. De fato, trata-se, agora, de consolidar o movimento, mudar de formas, adensar posições, diferenciá-las, proceder à centralização do movimento, criando-se as centrais, liga-las mais explicitamente às diferentes forças políticas que também se clarificam.Trava-se, agora, uma guerra de desgaste contra um sistema historicamente anti-sindical. Corresponde à queda da ditadura e à abertura da Nova República, à presidência de José Sarney ,à convocação da Constituinte e promulgação da Constituição de 1988.O movimento sindical não é mais um substituto dos partidos na luta contra a ditadura.. É a quebra do monolitismo oposicionista.São criadas a Central Única de Trabalhadores-CUT e a Confederação Geral de Trabalhadores-CGT como orientações sindical-políticas hegemônicas e opostas, reconhecidas pelo governo Sarney ao arrepio da própria legislação, que continuava interditando-as. Nesse período explicita-se a centralidade da relação CUT-esquerdas, mais particularmente CUT-Partido dos Trabalhadores , e o número de greves cresce exponencialmente; menos que representar expansão do movimento sindical, é a conjuntura de hiperinflação num quadro de descompressão política que multiplica os episódios grevistas.. O governo Sarney finda-se, melancolicamente, com mais de 80% de inflação ao mês, assinalando um intenso desgaste da redemocratização que havia se iniciado sob os auspícios de uma luta contra o "modêlo econômico" da ditadura e se encerra sob o signo da incompetência e da corrupção.

Da guerra de posições ao " assalto aos céus" : prolegômenos da contra-hegemonia

A summa da conjuntura com a ascensão , desde a ditadura, do movimento civil de sindicatos, organizações populares, organizações civis - tais como a Associação Brasileira de Imprensa, a Ordem dos Advogados do Brasil, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, e a ala da Teologia da Libertação da Igreja Católica - ao lado dos novos partidos que conseguiam traduzir melhor a nova complexidade da sociedade e da economia, deságua, por sua amplitude, no confronto mais radical da história brasileira entre dominantes e dominados.A eleição presidencial de 1989 coloca em campos opostos uma ampla formação de centro-esquerda, capitaneada por Luis Ignácio Lula da Silva à frente de uma quase homogênea coalisão de partidos, liderada pelo PT e congregando todas as siglas de esquerda, cujas bases sociais eram muito heterogêneas, e de outro, um outsider das classes dominantes, conduzindo, messiânicamente, toda a direita, Fernando Collor de Mello, o bufão da ópera da " falsificação da ira" popular. As forças burguesas convergiram maciçamente para êle, depois de verem seus candidatos originais rejeitados no primeiro turno das eleições. Todas as matizes do meio se esfumaram em meio a essa tormenta, que exigia definições: o velho guerreiro Ulysses Guimarães, timoneiro da odisséia da travessia do mare nostro da ditadura naufraga completamente, posto que em lugar da doce canção das sereias, o ronco surdo das ruas não permitia tergiversações: outros nomes menores , e alguns menos dignos e até indignos, conhecem o mesmo destino. O tempo era de decisões e, como diria o "corvo" Lacerda, não era para pessedistas e seus refinados maneirismos.

O novo governo desencadeou uma maciça e pertinaz campanha de desqualificação dos sindicatos tradicionalmente opositores, agora aglutinados na CUT, enquanto, pela primeira vez desde o regime político pré-64, chamava outra vez lideranças pelêgas. para postos no mais alto escalão governamental.,

A quebra do protecionismo comercial, que tornava o mercado interno brasileiro "cativo" das empresas aqui instaladas, foi o coup de foudre do incipiente pacto "fordista" periférico , e talvez o mais eficaz meio de anular a influência do sindicalismo sobre a política econômica. O tiro, entretanto, saiu pela culatra: enquanto o sindicalismo beneficiava-se do aumento da produtividade do trabalho pela implantação de indústrias "fordistas", conseguiu forjar o arremêdo de pacto com as grandes empresas, e estas, em operação já descrita, utilizavam esse ganhos para estabelecer a paz com seus trabalhadores, mediante a ampla concessão de toda classe de salário indireto..Mas, apesar das aparências, ao contrário de algumas interpretações da sociologia do trabalho brasileira, o ponto de vista aqui explicitado é o de que o sindicalismo oposicionista na verdade referendava o pacto "fordista" e não desafiava o capitalismo, embora tivesse sido um poderoso fator na desarticulação do regime político da ditadura.Em outras palavras, o sindicalismo oposicionista concorria positivamente para a hegemonia do regime "fordista" de acumulação e de sociabilidade. A melhoria do salário real dos trabalhadores metalúrgicos daí decorrente inscrevia-os na nova "norma de consumo", para usar um conceito dos regulacionistas. .Deve-se reenfatizar, para marcar o caráter extremamente contraditório desse processo, que o sindicalismo " fordista" esteve na raiz da criação do PT, a grande novidade da política brasileira desde o surgimento do Partido Comunista em 1922, e que uma sociabilidade "fordista", de confronto/negociação/contratação era, também, uma enorme novidade na tradição da política e das relações de trabalho no Brasil. Por isso, o sindicalismo "fordista" encaminhava-se, nitidamente, em direção a um modelo social-democrata de relações e de contratos, mas a sociabilidade elaborada através desses acordos era uma variante "americanista", também no sentido gramsciano..O Lula da época, já cortejado, costumava dizer que aos operários interessava salários e não política.

É na conjuntura de desaceleração e crise desse "pacto" - sem macroacordos explícitos, que buscou-se institucionalizar quando já se esboroava, caricaturando Moncloa - que se forjava a primeira tentativa pós-República Velha de hegemonia burguesa no Brasil. Entendida no sentido da produção de um amplo consenso, que é sempre o " consenso dos inocentes",produzindo o senso comum, cuja âncora naquela conjuntura era o combate à inflação. Sua expressão política falhada foi o governo Collor de Mello , que se metamorfoseou na ampla coalisão conservadora, e vencedora, do governo Fernando Henrique Cardoso. .Estava emergindo, depois de uma longa maturação, um senso comum de aceitação dos valores do capitalismo,a cultura do êxito, uma nova identificação com o mercado , com o abandono de outras referências. As novas condições da globalização projetavam sua sombra ideológica sobre os conflitos da sociedade brasileira.

O "assalto aos céus": a câmara do setor automotivo

Nessa conjuntura adversa, o sindicato de metalúrgicos de São Bernardo e Diadema, municípios-sedes das grandes montadoras automotivas - vizinhos do município de São Caetano, onde se localiza a primeira planta da General Motors - ousa uma cartada que remou contra a maré. No impasse entre a desregulamentação do protecionismo promovida por Collor de Mello e a ausência de uma nova política tanto para o setor industrial quanto para o ramo automotivo, com a demanda e a produção de automóveis recuando aos níveis de 1980 - 1 milhão de unidades em 1992 -, o sindicato dos trabalhadores com a Anfavea, Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores e o Sindipeças, Sindicato dos Fabricantes de Autopeças , propõem-se um acordo que ficou conhecido como a Câmara Setorial do Setor Automotivo. Contando com o encaminhamento do Ministério do Trabalho, exceção à feroz política anti-sindical do governo de Collor de Mello, o acordo previa a renúncia fiscal do Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços-ICMS por parte dos estados produtores de automóveis e peças, a isenção do Imposto sobre Produtos Industrializados-IPI federal, para forçar a baixa de preços e, de parte dos trabalhadores e empresários/empresas, a contenção das dispensas e uma trégua nas greves.Um acordo nitidamente keynesiano.O resultado surpreendeu a todos: com os preços em queda relativa, pois numa inflação que já havia retornado a patamares de 40% ao mês, os preços da indústria automobilística cresceram bem abaixo desse nivel, a produção recuperou o crescimento no ritmo alucinante de 20% anuais, superando rapidamente as metas estabelecidas, alcançando-se 1,8 milhão de veículos em 1996.O mecanismo é bem conhecido na literatura: como a soma dos impostos sobre circulação de mercadorias e sobre produtos industrializados alcançava a casa dos 34% sobre o preço dos automóveis, abriu-se um mercado correspondente a essa porcentagem, devido à alta elasticidade-renda do consumo de automóveis; isto é, a renda disponível para consumir automóveis ampliou-se no mínimo em 34%..Não houve sangria fiscal, pois os impostos derivados do ramo automotivo se de um lado caiam pelas renúncias fiscais, de outro aumentavam em volume pela progressão da produção e das vendas.Conteve-se também a dispensa de trabalhadores, sem embargo de que não se tenham criado novos empregos.A "virtuosidade" do acordo ganhou impulso quando o presidente Itamar Franco, que substituiu Collor de Mello após seu impeachment em 1992, aumentou a renúncia fiscal para o chamado "carro popular" modelos que atingiam até 1.000 cilindradas..A literatura mencionada dá conta do interessante processo que se desenrolou. Resumidamente, trabalhadores e empresários do ramo automotivo e do de auto-peças, nomearam representantes que, juntamente com membros do Ministério do Trabalho e dos estados mais importantes na produção de automóveis, caminhões e tratores, reuniam-se , periódica e publicamente, para tratar dos pontos de uma vasta agenda de negociações. Nestas, incluiam-se os novos investimentos , a reestruturação produtiva das fábricas, o possível desemprego a ser causado, a compensação com a criação de novos empregos, os problemas atinentes à exportação e importação de automóveis e peças, as questões fiscais, o contrôle de preços, etc. Esse processo desenvolveu-se.entre 1991 e 1995, entre o segundo ano do governo Collor de Mello e o primeiro ano do governo Fernando Henrique Cardoso.Os críticos mais ferozes do acordo, à direita e à esquerda, para os primeiros um escancarado acordo corporativista, para os segundos uma tipica capitulação para gerenciar a crise do capitalismo,ficaram calados.

A iniciativa inscreveu-se como radicalmente inovadora, em múltipla perspectiva. Em primeiro lugar, invertia o andamento da desregulamentação em curso; na verdade a desmontava.De contrôles de preços impostos por "pacotes" fechados, de surpresa, sem discussão democrática, a pretexto de surpreender os agentes econômicos e estancar a inflação a golpes de ypon, a acordos previamente anunciados.Em ramo importantíssimo - 5% do PIB industrial brasileiro - implantava-se um acordo claro, transparente, firmado publicamente, em que meios e fins reforçavam-se mutuamente, com mecanismos de cobrança pelos agentes, pelo Estado e pela sociedade. A invenção democrática da iniciativa residia precisamente nisto, ao tempo em que o que parecia uma quimera manheimiana, o planejamento democrático , ganhava concretude conduzido por agentes de remota periferia.A ampliação da experiência para outros setores da atividade econômica poderia ter significado uma inovação na política econômica talvez sem paralelo mesmo nos melhores dias do Welfare da Europa Ocidental: se preços não são mais que a forma do conflito pela distribuição do excedente, então o contrôle democrático dos preços pode ser muito mais eficaz e duradouro que as tradicionais medidas monetárias, fiscais e cambiais. Mas renunciar à soberania da moeda, é renunciar à sua violência intrínseca: a violência imperativa da desigualdade e da exploração. É preciso reconhecer que , faltava-lhe, ao acordo, ainda, a presença de outros setores da sociedade, na forma de organização de consumidores, por exemplo, de representantes do Ministério Público, e até mesmo dos partidos. Por isso, os críticos de direita atribuiram-lhe um caráter corporativo; é provável que o próximo passo do acordo fosse na direção de incluir outros setores da sociedade, mas sua interrupção não deu tempo para esse amadurecimento.A experência deixou inspiração e fincou raízes : não apenas tentou-se copia-la em outros setores industriais, como o químico, também em São Paulo, o da construção civil e o da indústria naval, no Estado do Rio. Tais tentativas não lograram avançar muito, mas a do setor químico, entre o sindicatos dos químicos de São Paulo e algumas das grandes indústrias químicas do estado, embora fracassada, como relatou e interpretou Leonardo Mello e Silva, abriu o passo para investigações no setor de fármacos, que repercutiram num novo contrôle,pela Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde, dos medicamentos fabricados no país . Câmaras regionais, para a articulação de interesses espaciais, estão sendo implementadas, por exemplo, em Santo André, um dos municipios do ABC paulista, numa tentativa de deter a desindustrialização; até mesmo as várias experiências dos orçamentos participativos recuperam, de alguma maneira, a memória democratizante da câmara setorial.

O risco da experiência para a democracia burguesa e mais, para o clássico autoritarismo brasileiro, com sua modernização "pelo alto", consistia em que se criava uma espécie de co-gestão dos trabalhadores na formulação e condução de política setoriais. A possibilidade de veto sobre medidas desviantes dos acordos específicos era efetivo..Isto foi percebido imediatamente e a gestão de Fernando Henrique Cardoso já no Ministério da Fazenda do presidente Itamar Franco sufocou-o, negando-se imediatamente a prorrogar os incentivos fiscais necessários, sob o pretexto de uma nova e rigorosa política fiscal, que a rigor, inexiste até no papel..A presidência de Cardoso, que se inicia em 1995, seguiu à risca o objetivo de desmobilizar a experiência, no que foi completamente exitoso.É evidente que o mecanismo da renúncia fiscal, que viabilizou imediatamente a retomada da demanda por automóveis, não poderia prosseguir indefinidamente, mas a estratégia neoliberal não estava preocupada com isso: sua preocupação dizia respeito à intervenção organizada de uma grande categoria de trabalhadores na política econômica.

Uma nova conjuntura internacional mudou a estratégia das empresas automobilísticas.O rompimento do quase cartel automobilistico brasileiro formado pelas 4 grandes - Ford, GM. Fiat e Volks - prometido por Cardoso e em efetivo cumprimento, levou à renovação de planos com avanço tecnológico, à eliminação do projeto do "carro popular" ,e neste caso, a co-gestão com os sindicatos de trabalhadores revelava-se incompatível com a pesada reestruturação produtiva em marcha. As novas fábricas incluem todas as grandes montadoras internacionais: o Brasil, na contramão das tendências mundiais, tem hoje um parque produtivo automobilístico claramente superdimensionado, com a presença de pelo menos 15 montadoras de porte; a capacidade ociosa é sustentada apenas graças aos abundantes incentivos fiscais, creditícios e de investimentos da União Federal e dos Estados. As novas montadoras e as novas fábricas localizam-se fora do clássico eixo do ABC paulista e mesmo das proximidades da Fiat em Minas, numa clara política de greenfields, para evitar a "contaminação" com a experiência dos trabalhadores do ABC paulista.A Ford transferiu sua mais nova fábrica, que seria instalada no Rio Grande do Sul, estado hoje governado pelo Partido dos Trabalhadores, para a Bahia, governada pelo Partido da Frente Liberal..O objetivo da transferência foi claro: como a globalização flexibiliza, em grau extremo, a localização das plantas industriais, a empresa perde muito pouco em localizando-se na Bahia, longe dos principais mercados consumidores internos e do Mercosul. Mas, em compensação, ganhou vantagens financeiras que o Rio Grande do Sul não estava disposto a propiciar, e, mais, ganhou a chamada "vantagem cultural" formada por um meio ambiente social e político predominantemente patrimonialista-patriarcalista, hostil ao sindicalismo, com a manipulação do regionalismo bahiano/nordestino , contra o Sul "malvado e explorador",forte elemento ocultador do conflito.É o "Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro", título de belíssimo filme do cineasta bahiano Glauber Rocha.Fica evidente, se se toma em consideração as informações da nota 24, que o móvel da localização de grandes grupos internacionais no Brasil e em outros países periféricos, e ,dentro destes, entre suas unidades federativas ou departamentais, é fundamentalmente de natureza financeira; é esta que viabiliza as plantas produtivas, decide suas localizações e determina as taxas de lucro globais. A equação capital constante/capital variável do capitalismo de base industrial não é eliminada. A taxa de salários continua importante, como o próprio caso relatado demonstra, mas ela está subordinada aos ganhos financeiros propiciados pelo "leilão invertido" A taxa de lucro global compõe-se agora, em dois níveis: o primeiro, dada pela equação capital constante/capital variavel e o segundo pelo lucro financeiro determinado pelo mercado global de capitais. É uma espécie de sobredeterminação financeira do lucro industrial, numa linguagem que lembra Althusser. São os países hospedeiros quem financiam "sua" escolha , e o fazem recorrendo a empréstimos internacionais . A auto-degola transforma-se no mecanismo da dependência financeira e da perda da autonomia monetária.As privatizações das empresas estatais guiam-se pela mesma lógica. Cálculos de Aloysio Biondi, prestigiado jornalista econômico, já falecido, baseado nas fontes da instituição governamental encarregada das privatizações,o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social e em relatórios dos consultores encarregados da "modelização" das privatizações, apontam que, enquanto o governo brasileiro anunciou, até 1998, uma entrada de 85 bilhões de reais por conceito de venda das estatais, o próprio Estado brasileiro renunciou a receitas, subsidiou as compras, pagou por indenizações trabalhistas, deu créditos do próprio BNDES, investiu para "sanear" as empresas num montante, subavaliado, de 87 bilhões de reais. Isto correspondia, a preços correntes de 1998, a 15% do PIB brasileiro, o que confirma a sobredeterminação financeira da globalização e a auto-imolação dos paises dependentes, como o Brasil.Ainda assim, o efeito das privatizações, fusões, aquisições de empresas nacionais, sobre o PIB permanece subavaliado, pois não se dispõe de dados que indiquem o valor agregado das empresas privatizadas, adquiridas ou fusionadas. Minhas próprias estimativas situam a transferência de contrôle da propriedade pelos processos descritos entre 20 a 30% do PIB.

Deslizamento totalitário-neoliberal e a reinvenção democrática:

Como Perry Anderson assinalou, o neoliberalismo é uma ampla e profunda vitória ideológica conservadora e um desastre econômico ., dado que suas promessas de, afastado o obstáculo do Welfare State, voltar-se a duradouras, persistentes, estáveis e elevadas taxas de crescimento não chegou a cumprir-se nos trinta anos decorridos desde a primeira vitória de Mrs.Tatcher..Mas, inegavelmente, a vitória conservadora e a desregulamentação produzida, faces da mesma moeda, estão criando uma nova sociabilidade, a qual, por paradoxal que pareça, ancora-se na desregulamentação : a situação de permanente instabilidade resolve-se, sociologicamente, numa dupla contradição. Uma desesperada fuga para a vida privada, cuja mais forte consequência é o medo do outro e uma ânsia de segurança cujo resultado é a formação do " consenso dos inocentes", do "silence of lambs". Grades, muros eletrificados , guaritas em ligação direta com a polícia, pitbulls e rottweilers, contrôles eletrônicos sofisticados, "sorria, você está sendo filmado", câmeras indiscretas no interior dos elevadores, sinistras polícias privadas de segurança, photocharts nas portarias, até a arcaica forma dos muros ameaçadoramente eriçados de cacos de garrafa, de alto a baixo da escala social, dos ghettos dos ricos, passando pelos condomínios da classe média, até as moradias pobres, o outro é a ameaça. Os programas políticos, da esquerda à direita, prometem segurança como o item mais importante da cesta de consumo dos lambs. É isso que responde pela possibilidade da ofensiva neoliberal que apela à privatização da vida - e torna os valores do mercado seu sinônimo -, pelo amplo consenso em torno da estabilidade monetária no Brasil como signo da segurança , e pelos "bodes expiatórios" que conspirando contra a estabilidade e o refluxo à vida privada, produzem instabilidade e violência.A privatização da vida é a eliminação da política no sentido da pólis grega.O movimento sindical da CUT e o PT, que trabalham em íntima relação, como no modelo social-democrata clássico, são percebidos pelo " consenso dos inocentes" como a encarnação do mal.Além, evidentemente, do Movimento dos Sem-Terra, provavelmente a mais notável "invenção" democrática dos dominados na sociedade brasileira em todos os tempos.

No Brasil a vitória conservadora neoliberal resvalou para além dos limites da hegemonia, que Fernando Henrique Cardoso talvez tenha personificado nos primeiros anos de seu primeiro mandato presidencial. As exigências impostas pela globalização em combinação com as formas clássicas da dominação brasileira, resultaram numa perigosa tendência que denominei totalitarismo neoliberal.Algo dessa tendência estrutura movimentos de caráter mundial, como Boaventura de Sousa Santos explora em seu texto sobre o "fascismo societal" A expressão política dessa tendência tem levado, em alguns países da América Latina, a estranhas formas de "monarquias", com a tri-eleição de Alberto Fujimori no Peru, a reeleição de Carlos Saul Menem na Argentina, a própria reeleição de Cardoso no Brasil, contra uma antiquíssima tradição de não-reeleição, desde as independências e, no Brasil, desde a criação da República O que sustenta essa expressão política é uma espécie de " aceleração da aceleração", a qual pode ser brevemente descrita como o destampar da "Caixa de Pandora" imposta pela inserção na economia globalizada. Importantíssimos deslocamentos na estrutura de poder real das burguesias - com as privatizações no período de 1994/1999, algo entre 20 a 30% do PIB brasileiro mudou de mãos, incluindo-se entre os novos "donos do poder" poderosíssimos oligopólios internacionais. O Estado voltou-se inteiramente à tarefa de acelerar a transição, recebendo como trôco a perda quase total do contrôle sobre a violência privada, o rompimento in extremis do monopólio legal da violência. É evidente que um estado que destina mais de 30% de suas receitas ao pagamento dos serviços de suas dívidas externas e internas não tem mais nenhuma capacidade de atuar politicamente para controlar a violência que advém da projeção do conflito întra e inter-burguês sobre uma sociedade historicamente abissalmente desigual.

Mas seria demasiado economicismo, aliás argumentado pelo próprio governo na forma de determinações que não deixam lugar a alternativas, supôr, na verdade conceder, que as tendências internacionais globais se impõem automaticamente, sem política, sem escolhas internas pelas classes e grupos políticos dominantes.. A respeito disso, pode-se dizer que o ato inaugural do governo Fernando Henrique Cardoso foi o esmagamento da greve dos petroleiros em 1995, uma espécie de tournant tatcherista que num só golpe o afiançou de vez junto às grandes burguesias e à "comunidade de negócios" internacional, encurralou o movimento sindical oposicionista, que sofreu uma profunda derrota política. Não tão paradoxalmente a derrota da CUT - pois é disso que se tratava - foi o elemento final para destampar a Caixa de Pandora: as burguesias perceberam que o governo havia liquidado o elemento capaz de conter a desregulamentação em seus traços mais selvagens e daí por diante foi o governo que perdeu o contrôle sobre a feroz luta competitiva entre as grandes empresas pelo contrôle dos grandes mercados privatizados pela desestatização.

Assim, produz-se, de alto a baixo, uma espécie de ausência de forma, caracterizada pela absoluta incapacidade de previsão, de que a edição das medidas provisórias pelo executivo presidencial não é apenas um reflexo da tendência mundial de reforço do Poder Executivo, mas uma implacável imposição da "caixa de Pandora" na periferia.No governo F.H.Cardoso, reeditam-se medidas provisórias para corrigir algo que se havia estabelecido na semana anterior. No que respeita a preços e às variáveis macroeconômicas fundamentais, o vai-e-vem denuncia a absoluta incapacidade de prever sua repercussão na cadeia produtiva e de serviços.As previsões podem variar na proporção de 1 a 10 em poucos meses, o que detona a capacidade de manter políticas econômicas consequentes, mesmo na sua insanidade. No ano de 2000, o governo brasileiro abriu o calendário com a perspectiva de um superavit da balança comercial em 11 bilhões de dólares, acabou revendo-a a meio caminho para modestíssimos 1 bilhão de dólares; e o fim da odisséia foi pior: com a disparada dos preços do petróleo a previsão de excedente de 11 bilhões de dólares terminou, melancolicamente, em um saldo negativo de 500 milhões de dólares.É a exceção permanente. Hoje, nos dias em que revejo este texto, o país encontra-se submergido na mais espantosa crise de geração e distribuição de energia elétrica, algo que não ocorria desde a década de 50, quando o presidente Juscelino Kubistchek deu inicio ao mais importante programa de modernização econômica do Brasil e quando o governo do Estado de São Paulo, sob a direção de Carlos Alberto de Carvalho Pinto, iniciou o aproveitamento dos trechos paulistas dos rios da bacia do Paraná..Cidades do porte de São Paulo, com 12 milhões de habitantes, Rio, com 5 milhões, e o país urbano, onde 80 % da população (130 milhões de habitantes) , habita em cidades, vê-se obrigado a uma dramática redução do consumo de eletricidade. As repercussões sobre a economia, ainda não podem ser completamente prognosticadas; o medo cresce espantosamente, com as cidades imersas em parcial escuridão. O presidente Fernando Henrique Cardoso declarou ter sido inteiramente surpreendido pela crise, de cuja iminência não foi avisado. Para além do cinismo larvar, não deixa de fazer sentido a declaração de impotência do presidente: a capacidade de previsão do Estado brasileiro foi devastada pela avassaladora globalização/desregulamentação.A "exceção permanente" mostra-se na criação de duas instâncias super-ministerial, uma para gerir a crise energética e outra para tentar minorar os efeitos de pavorosa sêca nos Estados do Nordeste do país, no momento mesmo em que o presidente extinguiu, por medida provisória, a Sudene, a agência de desenvolvimento regional que monitorava as ocorrências de sêca. As duas "câmaras de gestão" das crises já foram apelidadas pela ironia popular de "ministério do apagão" e de "ministério das sêcas". Uma crise no fornecimento de água potável para as grandes aglomerações urbanas já está anunciada para os próximos meses.Não há como não lembrar a análise de Franz Neumann acerca da acefalia que acometia o Estado nazista, paradoxal, pela multiplicação de instâncias, organizações, superposição de funções, permanente oscilação das políticas e instituições, simulacro de planejamento, movimentos erráticos de ordens e contra-ordens, formidável concentração do poder econômico que tornou o Estado supérfluo, desperdício inscrito até mesmo na máquina infernal do Holocausto, tratava-se, para Neumann, da ausência de formas de um não-Estado.

Há um total embaralhamento dos campos do público e do privado, que ademais nunca chegaram a clarificar-se inteiramente no Brasil, permanente atualização de nossa formação.Os escândalos se sucedem diariamente, e muito mais do que tendências atávicas , trata-se da ampliação da zona de sombra entre os negócios públicos e os negócios privados, como processo da feroz concorrência pelo contrôle dos fundos públicos, na etapa da globalização.A corrupção funciona , keynesianamente, como redutor da incerteza, devido ao seu crescimento exponencial num capitalismo financeirizado e às peculiariedades da transição brasileira para o interior do olho desse furacão; conforme já ressaltado, não menos de 20% do PIB brasileiro mudou de mãos nos últimos 5 anos.Esse processo está longe de haver se completado.Ainda restam importantes fatias das empresas estatais, como a Petrobrás e os bancos estatais, as quais constituem uma espécie de filet mignon da economia brasileira. A privatização avança, também, sobre a previdência social: o orçamento anual do Instituto Nacional de Seguridade Social-INSS para 2000 é de 60 bilhões de reais/20 bilhões de dólares, correspondentes a 6% do PIB brasileiro e à quinta parte do orçamento do governo federal..

Essa "aceleração na aceleração" - isto é , a aceleração promovida pela globalização financeira potencializada pela desregulamentação interna, compactadas em não mais que seis anos - parece produzir nas periferias modos criminais da atividade econômica, já notoriamente presentes na Rússia e em outros países ex-socialistas, reeditando os mais bárbaros processos de "acumulação primitiva". O processo no Brasil não é, ainda, de todo, criminoso, já que a organização capitalista da produção brasileira é imensuravelmente mais acabada que na Rússia ..Mas as proporções da transferência de poder econômico real entre grupos e classes estão desfazendo o poder do Estado em impôr as regras, e os sinais de crescente criminalidade econômica já são assustadores. A privatização do público é mais que a falta de publicidade, nos termos de Arendt: ela significa que a economia, a sociabilidade e a política não requerem , para sua reprodução, a presença do outro, isto é, o público não é mais um componente estrutural para a reprodução do sistema, Isto significa, necessàriamente, a volta ao reino da violência privada, o que, é preciso insistir, numa sociedade com as características da formação histórica brasileira, tem tudo para converter-se em exclusão.

L’Internationale à São Bernardo ?

A inserção do movimento sindical brasileiro no internacionalismo operário é interessante e originária, até certo ponto. Pode-se dizer que o sindicalismo brasileiro nasceu, também, pelas mãos dos imigrantes espanhóis, galegos , italianos e alguns poucos portugueses, ligados ao anarco-sindicalismo, no princípio do século XX.. Fora dos sindicatos, mas exercendo intensa doutrinação , o anarquismo foi a principal corrente política também no meio operário, ao lado dos esforços de socialistas e da Igreja Católica, e de alguns poucos grupos empresariais de "bôa vontade"..Era, se assim se pode dizer, um internacionalismo de militantes estrangeiros imigrantes, internalizados, menos que de organizações internacionais.Veio nos navios e instalou-se basicamente no Sudeste e no Sul do Brasil, lugares de fixação da mão-de obra estrangeira imigrante.

A presença anarquista e anarco-sindicalista no Sul e Sudeste deu-se no ambiente de uma indústria pré-segunda revolução industrial, onde os "ofícios e artes", o cabedal de conhecimentos do trabalhador, era decisivo.A passagem à industrialização sob o paradigma da segunda revolução industrial , pre-fordista, exaure, por um lado, as reservas de mão-de-obra nas regiões de migração, Itália, Espanha, Galícia, um pouco Portugal, devido à própria reorganização social e política, fascismo entre outros poderosos reestruturadores, ao tempo em que as formas técnicas da segunda revolução industrial começam a dispensar o concurso do saber fazer dos trabalhadores.Então, desde os anos vinte, os lugares da industrialização sobretudo em São Paulo, começam a serem preenchidos pelos imigrantes do Nordeste do Brasil e de Minas Gerais.. Nacionalizava-se o operariado e se encerrava a primeira fase "internacionalista" do movimento sindical brasileiro..

A segunda fase é a da III Internacional. O Partido Comunista Brasileiro é fundado em 1922 e logo assume o lugar central na esquerda brasileira, ocupando, também, o movimento sindical. Mas, o internacionalismo passou a ser o das relações partidárias, menos que das organizações sindicais. A experiência internacional do sindicalismo brasileiro atrofiou-se seriamente, pois praticamente apenas os membros do Partido Comunista participavam do escasso intercâmbio, que, como se sabe, era pre-estabelecido do lado soviético e dos outros paises de sua órbita, pois falecia aos sindicatos da época soviética qualquer liberdade de ação. Do outro lado, os esforços dos norteamericanos em financiarem um sindicalismo pró-capitalismo nunca tiveram muito êxito, embora contribuissem para a corrupção do movimento operário. Esta fase é marcada também pelo descenso da presença da Internacional Socialista e dos sindicatos social-democratas

Internamente no Brasil, portanto, o único concorrente da organização sindical orientada pelo Partido Comunista terminou sendo o trabalhismo getulista, cujas relações internacionais eram também praticamente inexistentes.O populismo, forma de um consenso "pelo alto", característico da modernização brasileira, coincide, pois, com a nacionalização do operariado, com a introdução das cadeias de montagem e a tutela do sindicalismo pelo Estado varguista. A rigor, essa tutela desaparecerá apenas na década de oitenta.

A situação começou a mudar ainda durante a ditadura militar de 1964 a 1984, quando o movimento sindical renascido no ABC paulista praticamente ditou o modelo para a ação sindical brasileira.Esse sindicalismo medrou em meio a um ambiente de regulação fordista, e não por acaso, o ABC paulista é, também, a sede das maiores montadoras de automóveis no Brasil. Apoios internacionais começaram a sair da discrição em que se haviam mantido - mesmo por que a repressão da ditadura era fortíssima e se exercia pressão ao nivel dos governos de origem das empresas estrangeiras no Brasil - , sob várias formas, inclusive na de organizações não-governamentais.Hoje, as relações internacionais do sindicalismo brasileiro têm enorme relevo, sobretudo através da Central Única de Trabalhadores-CUT, menos da Força Sindical; existe uma Social-Democracia Sindical, que tenta ser o braço sindical do Partido da Social-Democracia Brasileira, mas não desfruta das relações com os sindicatos social-democratas da Europa Ocidental, que apoiam a CUT.Deve-se notar, entretanto, que na época de ouro da implantação desse fordismo periférico, entre 1950 e 1980, as empresas estrangeiras instaladas no Brasil praticamente não sofreram pressões dos sindicatos e centrais sindicais de seus respectivos países, para melhorarem as relações de trabalho no Brasil. Fiat, Volvo, Volkswagen, montadoras fortes nos ´paises originários, sendo Alemanha e Suécia símbolos do pacto social-democrata, não mantinham com os trabalhadores brasileiros, relações muito diferenciadas do padrão geralmente repressor e desestruturador dos sindicatos.A Fiat provavelmente foi a pior de todas, e até onde se sabe as orientações do sindicalismo italiano, então em seu auge, não mudaram uma vírgula da ação repressora da empresa italiana.O problema dessas relações é, agora, o oposto: enquanto o sindicalismo brasileiro necessita desesperadamente da cooperação dos trabalhadores dos principais países capitalistas , o sindicalismo nos países centrais experimentou um franco retrocesso, em parte como resultado do desmonte do fordismo.

Parece ser que uma das novas direções do sindicalismo internacional assume mais as formas de internacional de trabalhadores de empresas, como as de algumas grandes montadoras mundiais. Assinala-se, também, e surpreendentemente, uma forte ação da central norteamericana AFL-CIO no movimento de contestação à globalização, traduzindo-se no apoio e até no financiamento dos eventos anti-Seattle, Washington, Praga , Davos, Québec e pró-Forum Social de Porto Alegre. Mas toda essa movimentação ainda não se traduziu em protocolos concretos de lutas e pactos para melhorar as relações de trabalho no Brasil no interior das multinacionais norteamericanas.e de outras origens. Os casos trabalhados no âmbito deste projeto de "reinvenção da democracia", envolvendo Portugal, Brasil, Africa do Sul, Colômbia, Moçambique e India, mostram a precariedade da materialidade das formas de produção dentro das quais busca-se estabelecer conexões internacionais: trata-se, a meu ver, mais de exercícios de cidadania e de sobrevivência, enquanto a possibilidade de relações moldadas pelos mesmos interesses no plano material são fracas, do ponto de vista de projetos contra-hegemônicos.No Mercosul, o acordo de livre comércio e união aduaneira entre Brasil, Argentina, Uruguay e Paraguay, com o Chile como membro-observador, as centrais de trabalhadores já estabeleceram uma agenda de trabalho e de proposições, que se enfrenta justamente com o neoliberalismo das políticas econômicas praticadas, e particularmente na Argentina, com a desindustrialização que já vem sendo a anti-política industrial e operária desde a administração de Martinez de Hoz no Ministério da Economia, ainda sob a ditadura militar pós Isabelita Perón, em 1976..

O internacionalismo das Internacionais, desde a de Marx-Bakunin, e a II , a socialista, não levou na devida consideração as formas pelas quais se constituiram, nacionalmente, os vários proletariados, suas tradições, suas relações com a burguesia, com o Estado, e suas identidades étnicas, religiosas, morais.. Nos termos de Thompson, a experiência do "making" foi ocultada pela suposta unidade dada pela exploração e pelo trabalho abstrato - na verdade, tratava-se ainda, de trabalhos concretos. , Esta aguda questão, de ordem teórica, de um lado, e urgentemente prática do outro, não enfrenta, hoje, menores obstáculos.Apesar da tendência quase universal de radicalização do trabalho abstrato, que, outra vez, sentaria as bases de uma classe universal, as culturas nacionais , de variada natureza, e a abissal desigualdade entre trabalhadores dos países desenvolvidos e trabalhadores do Quarto (i)Mundo, não constróem nenhum patamar universal para a ação dessa suposta classe trabalhadora universal. É verdade que o "desmanche" globalitário de alguma maneira forja uma espécie de contemporaneidade entre todos os trabalhadores , o que ajuda a construir agendas comuns, como o mostram as manifestações anti-globalização: é a exclusão ou a desfiliação, nos termos de Castel, que está lançando pontes entre os continentes..

A exclusão contemporânea é precisamente, nos termos de Arendt, a superfluidade do outro; a política instaurada pelo neoliberalismo , fundada na nova globalização busca tornar supérfluas as organizações sindicais.Observadas atentamente, as reformas produzidas pela desregulamentação em curso no Brasil, obedecem a esse mandato que vem da "aceleração da aceleração", e operacionalizam a superfluidade das organizações da sociedade civil, nos termos de Gramsci. Neste, o conceito e a realidade da sociedade civil não são de oposição ao Estado, mas de um momentum deste. Por essa via interpretativa, a superfluidade da sociedade civil contamina inapelavelmente também o Estado, podendo ter como resultado formas diversas que vão desde o que Gramsci chamou de "democracia regulada" até as ditaduras abertas..A privatização radical, que se expressa na inexistência de políticas mais que em qualquer aspecto particular da privatização das empresas estatais, anula a possibilidade da própria política, pois não sobram muitos campos da institucionalidade pelos quais as classes sociais organizadas intervenham nos negócios do Estado; falta, nos termos de Rancière, a possibilidade da fala que instaura o dissenso, pois a ressignificação semântica em curso desqualifica os antigos termos da integração posta em marcha desde a Revolução Francesa.. É nesse ambiente que o "sindicalismo cutista" - o termo é de Roberto Veras - tenta elaborar propostas contrahegemônicas, com a desvantagem de que seu principal concorrente, a Força Sindical, opera nitidamente no sentido de acelerar a desregulamentação; esperando com isso, ocupar o lugar da CUT, o que tem acontecido parcialmente.

A luta mais importante da CUT, hoje, uma vez mais centralizada nos metalúrgicos de São Bernardo e, agora, ampliando-se em direção a todos os greenfields das novas montadoras e das novas fábricas , enfrenta-se com a desregulamentação no terreno da elaboração de um contrato nacional metalúrgico.Não se trata de um simples contrato que transcenda o contrato coletivo ao qual nunca se chegou, e que reviva o poder sindical nas formas que conheceu no período 70/80; é algo mais amplo , que tenta expandir a experiência da câmara setorial automotiva, sem, no entanto, colocar as grandes montadoras e as fabricantes de autopeças no interior do acôrdo. Por um lado, não busca a formação de um consenso entre trabalhadores e montadoras, ao modo da câmara automotiva, mas por outro desafia abertamente a tendência central de des-sindicalização.

Um contrato metalúrgico nacional propõe, resumidamente, um piso salarial nacional para todos os metalúrgicos em todo o país..Enfrenta-se, recapitulando, a algumas poderosas tendências em curso. A primeira diz respeito à própria superfluidade dos sindicatos: um contrato desse tipo torna, outra vez, o sindicato - o público - peça-chave para a reprodução do sistema, posto que o mercado, diga-se sem eufemismos conceituais, as montadoras, não apenas não teriam a capacidade de unificar ou mesmo atenuar o leque de remuneração em escala nacional, mas, muito ao contrário, beneficiam-se, precisamente, dessas diferenças.. Em segundo lugar, as montadoras e fabricantes de autopeças estão se deslocando para outros estados, para longe de São Bernardo, no rastro de um movimento liderado pela Fiat desde a década de setenta do século XX.. Existem montadoras em pelo menos seis estados da federação brasileira. Esse deslocamento junta duas peças da estratégia das montadoras: por um lado escapam de São Bernardo, com sua tradição de lutase em segundo, pelo mesmo mecanismo, dos níveis salariais vigentes. Ainda que a renda real dos trabalhadores hoje esteja muito aquém do que era nos setenta, incluindo-se os vários componentes do salário indireto perdidos nos últimos cinco anos e a chamada "qualidade de vida" fortemente deteriorada, com favelamento dos trabalhadores, exponencialidade da criminalidade, perda da qualidade dos serviços públicos, etc Na Bahia, local da nova unidade da Ford Motors Co. , o salário nominal é, pelo menos, a metade do que se paga em São Bernardo.

Em terceiro lugar, a guerra fiscal desatada entre os estados da federação transformou a luta pela atração de uma montadora num leilão invertido: os estados e municípios dão, de graça, localizações tipo real state e benefícios fiscais durante quinze a vinte anos, além de creditarem às empresas o equivalente dos impostos que deveriam pagar; trata-se de um duplo financiamento, incidindo sobre os mesmos impostos.A implosão da federação, em nome da ligação do local com o global, somente pode ser enfrentada se a União federal dispuser de políticas regionais. Desse ponto de vista, portanto, um contrato nacional metalúrgico também é um elemento contrahegemônico na dissolução da federação: uma economia política da federação não pode desconhecer os benefícios que a integração do mercado nacional propiciou à acumulação de capital no centro desenvolvido. Um contrato nacional metalúrgico seria um novo elemento para um novo pacto federativo, agora nos termos de um federalismo cooperativo..

A importância de uma intervenção desse porte no conflito pelo fundo público não pode ser minimizada. Objetivamente, ele pode lançar luz sobre o cone de sombra das relações entre o público e o privado, entre o Estado e o mercado, operando uma redução da incerteza - que, de fato, foi a grande aquisição do Welfare - tornando, outra vez, a política não apenas plausível, mas central; sem a política, como o mercado não pode ele mesmo regular a incerteza, a corrupção torna-se o único meio disponível - para além ou aquém do caráter dos individuos - capaz de contornar o que Marx chamava o "salto mortal da mercadoria". É republicana essa demanda.

Operando no interior da competição entre trabalhadores e entre empresas, um contrato nacional metalúrgico intervém, finalmente, na formação da taxa de lucro no ambito nacional e, sem exagerar muito, no ambito global. O Brasil é um dos sete maiores produtores mundiais de automóvel ; o conjunto Brasil-Argentina já desbancou a Itália .Do ponto de vista da constituição do Mercosul, qualquer modificação na taxa de salários no Brasil será decisiva, influindo sobretudo na Argentina..Mesmo descontando-se a perda relativa da indústria na nova divisão social do trabalho, o setor automobilístico ainda é um dos carros-chefes da acumulação industrial.Um contrato nacional metalúrgico pode intervir nessa equação, obrigando as montadoras a reavaliarem o papel e o lugar dos sindicatos . Finalmente pode-se dizer que um contrato nacional metalúrgico modifica a formulação da política econômica no Brasil e, de imediato, também no Mercosul. Contesta a tendência antipública no coração do Estado mínimo.

Ao contrário da tendência da primeira fase da reorganização sindical no Brasil que, mesmo movendo poderosas massas não era anti-hegemônica , a nova fase, embora trabalhe num ambiente hostil e acuse um refluxo dos grandes movimentos, é mais elaborada. Em termos gramscianos, é a combinação de uma "guerra de movimento" com uma "guerra de posições", e o pensamento gramsciano é justamente capaz de operar essa permanente mudança, por que ele não separa como instâncias estanques os movimentos conjunturais da rearticulação estrutural. Não é objetivo do sindicalismo cutista a contestação ao sistema: o espantoso é que não querem deixar parecer que se trata de uma ação anti-capitalista, perplexos com sua própria incapacidade de reproduzir as grandes movimentações da São Bernardo legendária;assumem, no máximo, a oposição ao neoliberalismo de Cardoso e do International Monetary Fund. Mas o movimento se transforma já que incide, como resumidamente se mostrou, em vários fronts da luta anti-neoliberal e especificamente na forma brasileira da desregulamentação mundial.Não há uma elaboração anti-hegemônica strictu sensu no movimento cutista: falta-lhe a perspectiva de assumir a liderança de um novo consenso, a proposição de novos valores, de uma visão de mundo alternativa. Se no passado, o movimento sindicalista nascido em São Bernardo foi antihegemônico na política anti-ditadura porque aspirava aos beneficios do Welfare privado com as montadores de automóveis, sendo, pois, pró-hegemônico no plano da sociabilidade, da produção de uma "cultura industrial" no sentido gramsciano do "americanismo", no presente ele é pró-hegemônico no plano da política , enquanto sua proposição de um contrato nacional metalúrgico é anti-hegemônico no terreno da sociabilidade.

O movimento sindical cutista é atravessado por todas as contradições tanto estruturais quanto aquelas ditadas especificamente pelo momentum da desregulamentação neoliberal; pode-se dizer mais: elas são constitutivas do "cutismo" , hoje. Por um lado, o contrato nacional metalúrgico aparece como uma necessidade, nos termos de Marx. Convém não idealizar a estratégia sindical: seu objetivo não é uma radical mudança nos termos da política, mas refazer as forças da própria central e do sindicato. Uma manifestação não completamente insuspeita da "classe para si", no plano de sua materialidade.

Isto convive com o fato de que talvez a maior parte do investimento em capital passe, hoje, no Brasil, por fontes de financiamento nominalmente de propriedade dos trabalhadores. Fontes como o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço-FGTS, o Fundo de Amparo ao Trabalhador -FAT e o fundo Programa de Integração Social/Programa de Assistência ao Servidor Público-PIS-PASEP, administrados e aplicados pelos bancos de investimento estatais, têm conselhos deliberativos com representações da CUT,da Força Sindical e da Confederação Geral dos Trabalhadores, em rodízio. À primeira vista, nesses fundos os trabalhadores tem agido como "sujeitos monetários", para usar a expressão de Robert Kurz, dando prioridade a aplicações com melhores taxas de retorno; enquanto tais agiriam como simples capitalistas, quase rentiers.É verdade que são minoria , cujo voto contrário - se os há - pode ser simplesmente aplastado pelos votos do governo; além disso, é quase impossível que possam argumentar contra as razões técnico-instrumentais da alta burocracia estatal ; este é um terreno onde a hipótese habermasiana da razão comunicativa é pouco plausível, para dizer o mínimo, pois a própria semântica das competências técnicas é construída como imperativo categórico..A modernização que se efetua com tais investimentos faz parte da própria desregulamentação.

"Os sujeitos monetários" podem ser, também, uma forma da desregulamentação, uma das tenazes da des-necessidade da política: pois deslocam a "centralidade do trabalho" duplamente. Seja por que os contingentes operários declinam com a própria modernização, seja por que endossam a razão do lucro do capital dos fundos. Há uma contradição, entre o fundo como reprodução do capital e o fundo que se institui e é eficaz exatamente pela existência do sindicato e das centrais.Na experiência internacional, tal contradição tem se resolvido, sempre, pela predominância da razão do lucro.:Esta contradição objetiva tem muita força, pois está no coração do processo de reprodução ampliada do capital no Brasil. Nos termos de Kurz, tratar-se-ia da contradição entre o fetiche do valor-trabalho, que esteve no centro da ação do operariado social-democrata, e a razão sensível, capaz de escapar do sistema.

Mas a metamorfose que se opera entre a "guerra de movimentos" e a "guerra de posições", tal como sugerida acima, se estrutura, de um lado ancorando na materialidade da forma da reprodução ampliada, e de outro na ampla erosão da legitimidade do neoliberalismo e sua forma cardosiana no Brasil de hoje. Essa erosão , que é surpreendente se se tem em conta que há apenas dois anos a coalisão neoliberal reelegeu Fernando Henrique Cardoso logo no primeiro turno de votação por ampla maioria, baseia-se no impasse a que a inserção subordinada na globalização levou .Tal impasse revela-se num desenvolvimento stop and go, numa instabilidade financeira que deteriorou o Estado a um ponto em que a manutenção da dominação requer , como se anotou acima, uma espécie de "exceção permanente".Toda forma é precária. Por sua vez, a materialidade de tal processo reside, ao contrário do suposto pela ampla literatura que trata da perda da centralidade do trabalho, no fato de que a ampla desregulamentação do trabalho terminou por envolver praticamente toda a população. Terminou por transformar um amplo conjunto de classes em reféns do trabalho abstrato, sob as não-formas da precarização intensa; as antigas restrições e formas de contrôle dos trabalhadores, de que resultaram as "arts et métiers" e a cooperação na primeira revolução industrial e o operário-Chaplin do taylorismo-fordismo na segunda, dando lugar ao clássico proletariado e ao trabalhador-massa, foram relegadas pelo progresso técnico, e o processo de acumulação atua apropriando "átomos de valor" de todo e qualquer trabalhador. Trata-se, na formulação de Laymert Garcia dos Santos, da vigência do paradigma molecular-digital. As distinções entre trabalho formal e informal já não fazem sentido: a precarização é a pedra de toque de alto a baixo da escala do trabalho.

Isto tem se transformado num movimento de unificação pelo lado da precariedade, que não transita para um movimento de classes anti-hegemônico, mas se desdobra num movimento de política anti-hegemônica.A agenda política hoje é pautada pelas demandas de ética na política, de transparência, até mesmo para delimitarem-se novos horizontes para a agenda social. Políticos importantes , até ontem inalcançáveis no Olimpo de oligarcas, renunciam a seus mandatos; eleições municipais em 2000 tiveram na ética, na participação popular, as diretrizes mais emblemáticas. Contumazes populistas de direita, ferozes cães cultivadores do medo, foram derrotados fragorosamente. Por isso, não faz sentido nem teórico nem prático, perguntar pelo caráter de classe de movimentos como o dos metalúrgicos no Brasil: a classe se faz em ato, pelo projeto que porta e pelo sentido antagônico com a dominação vigente.

É o medo da precarização, de que o governo Fernando Henrique Cardoso tornou-se o símbolo mais aterrador, que está erodindo fortemente o que a direita teórica chamou "governabilidade". A "caixa de Pandora" abriu-se de todos os lados: no burguês, soltaram-se os demônios de uma privatização acelerada e de uma transformação na propriedade e na estrutura do poder econômico, que torna qualquer previsibilidade uma quimera. Do lado popular, a precarização arruina também qualquer horizonte de futuro e o terror tornou-se cotidiano. Num movimento de pinças de intensa dramaticidade, abrem-se tanto perspectivas de uma urgente elaboração anti-hegemônica que ultrapasse as meras territorialidades de classe, e de outro a face aterradora do fascismo societal, na perspectiva de Boaventura de Sousa Santos.

É entre essas tensões que se dá concretamente a ação dos trabalhadores organizados no Brasil de hoje. Entre reinvenções da emancipação social e política e reforço da danação. Entre a descida aos infernos e o "assalto aos céus", onde pode brilhar o Cruzeiro do Sul ou... a efigie de George Washington.

 

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