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Lino João de Oliveira Neves Olhos Mágicos do Sul (do Sul): lutas contra-hegemônicas dos povos indígenas no Brasil Treina-te a pensar em dois mundos ao mesmo tempo, de duas maneiras diferentes. Diz para contigo mesmo que, à noite, o adormecido observa os seus sonhos, mas uma vez acordado são os sonhos que o seguem e se metem na sua vida. Tenta modificar a tua percepção e verá o mundo com olhos mágicos (Bourre, 2000).
Introdução Este capítulo analisa ações e programas desenvolvidos pelo movimento indígena no Brasil em suas estratégias, formas de organização e mobilização, iniciativas estas que podem ser tomadas como exemplos de processos contra-hegemônicos de globalização. A abordagem aqui desenvolvida é conduzida a partir do cruzamento de três fatores: a) a consolidação do movimento indígena no Brasil; b) o papel ativo assumido pelas organizações indígenas, nas relações interétnicas com o Estado brasileiro e com segmentos locais da sociedade nacional; c) o meu interesse pessoal como indigenista, acompanhando de perto a luta dos povos indígenas na região amazônica, em particular no Estado do Amazonas. Além destes poderia ainda ser assinalado que é no Amazonas que está localizado o maior número de etnias, o maior contingente populacional indígena, o maior número de organizações indígenas e ainda o maior número de terras indígenas. As iniciativas consideradas são aquelas que apresentam um cunho mais marcadamente político, iniciativas responsáveis pela conquista da voz política do índio como agente ativo no campo do indigenismo brasileiro e pela afirmação de novas faces políticas do movimento indígena e de suas organizações locais; iniciativas étnicas caracterizadas pela negociação política que coloca em polos opostos de disputa os interesses dos povos indígenas e os interesses defendidos pela sociedade-Estado brasileiro. A primeira parte do capítulo faz um mapeamento das lutas indígenas, do final dos anos setenta até os dias de hoje, necessário para uma contextualização das iniciativas indígenas no cenário alargado da política brasileira. A partir de dados empíricos, a segunda parte discute estratégias adotadas, ganhos políticos, impasses, desafios, e riscos presentes no cenário atual dos processos interétnicos no Brasil, com ênfase especial às iniciativas visando a conquista do reconhecimento oficial das terras indígenas e a retomada pelos grupos étnicos do controle de seus territórios e recursos naturais neles existente. «Sul» é aqui empregado não somente no sentido de «terceiro mundo», de «países subdesenvolvidos». Mas «Sul» enquanto metáfora da hierarquia no sistema mundial, de modo a sugerir as dominações impostas às regiões periféricas (Santos, 2000: 340). Neste sentido, «Sul (do Sul)» refere-se os povos indígenas, aqueles mantidos à margem na hierarquia do mundo moderno, sujeitos às mais acentuadas e violentas formas de subordinação. Retomando as palavras indígenas utilizadas em epígrafe, «Olhos Mágicos do Sul» é, assim, o sonho que impregna a realidade, a utopia capaz de construir uma outra realidade; a «subjetividade emergente do Sul» (Santos, 2000: 341), a «subjetividade da transição paradigmática» (Santos, 2000: 340). E, por desdobramento, «Olhos mágicos do Sul (do Sul)» pretende ser uma contribuição, a partir de iniciativas contra-hegemônicas dos povos indígenas no Brasil, para um novo contexto de relações sociais que tomam a emancipação como princípio e como objetivo. Em resumo, pautado nas premissas do Projeto «Reinvenção da Emancipação Social: Explorando as Possibilidades da Globalização Contra-Hegemônica», as reflexões aqui apresentadas sobre mobilizações locais de distintos grupos e do movimento indígena no Brasil pretendem contribuir para uma discussão sobre os limites entre formas «emancipatórias» e formas «retrogressivas» de iniciativas, contribuindo assim para a construção de um referencial teórico-conceitual que se apresente aos diferentes grupos humanos como instrumento de apoio às suas lutas de afirmação de direitos étnicos diferenciados no cenário das relações interétnicas globalizadas. 1. Movimento indígena O surgimento de mobilizações e manifestações indígenas no Brasil está diretamente relacionado aos movimentos étnicas que a partir dos anos 70 emergem em diversos países da América Latina. As dimensões territoriais brasileiras, implicando em alto custo de transportes e locomoção entre regiões distantes; a dispersão da população indígena em todas as regiões do país; as diferenças de contextos regionais; os variados graus de contato interétnico; e a forma autoritária como o Estado brasileiro historicamente trata as questões indígenas, são fatores que dificultam a afirmação de um movimento indígena de âmbito nacional. Apesar destes fatores representarem sérios obstáculos para a formação de um «movimento indígena unificado», a razão fundamental é, sem dúvida, a grande diversidade étnica responsável por um grande mosaico cultural e lingüístico que coloca barreiras à comunicação entre os 215 povos indígenas ainda hoje localizados no Brasil. 1.1. Anos 70: as «assembléias indígenas» Para o movimento indígena no Brasil os anos 70 representam o período das «assembléias indígenas», marcado por descobertas mútuas e trocas de informações sobre os contextos interétnicos enfrentados por cada povo. A fase onde a troca de experiências e problemas vividos dá origem a um senso de solidariedade indígena nunca antes experimentado, constituindo um «espírito de coorporação» (Ramos, 1997: 51) que é a marca desta fase e que passou a ser a base de todas as mobilizações indígenas. A partir da primeira «assembléia», realizada em abril de 1974, e contando com a presença de 17 representantes indígenas, o número de assembléias e de participantes aumentou a cada ano. Além de possibilitar o encontro entre povos que na maior parte das vezes sequer se conheciam, o grande feito das assembléias foi a tomada de consciência da situação de dominação e discriminação a que estavam sujeitas todas as etnias, o que impulsionou as populações indígenas à busca de formas de organização política e de mobilização em suas disputas e embates com a sociedade brasileira. Da parte do órgão oficial indigenista, a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), e de outros órgãos públicos, como Polícias Federal e Militares, os povos indígenas passaram a sofrer oposição às «assembléias» e uma repressão aberta da ditadura militar contra os esforços iniciais de formação de um movimento indígena. Paradoxalmente, a repressão dos militares, cristalizada no «Projeto de Emancipação», de 1978, que pretendia anular os dispositivos legais especiais que normatizavam as questões indígenas, impulsionou uma aliança entre índios e setores da sociedade civil dando origem às condições políticas para a criação de uma entidade representativa dos povos indígenas de todo o país. Em abril de 1980, um reduzido grupo de estudantes indígenas residentes em Brasília, capital do país, criou a União das Nações Indígenas (UNIND). Criada por jovens com pequena representatividade em seus próprios povos e que mantinham fortes relações com a FUNAI, e sobretudo por não resultar das discussões que vinham ocorrendo nas assembléias de lideranças indígenas, a UNIND representou um atropelar do processo de organização política que vinha sendo construído em todas as regiões do território brasileiro. Não reconhecendo legitimidade na UNIND como representante do nascente movimento político dos índios no Brasil, lideranças indígenas reunidas em «assembléia», na cidade de Campo Grande, Estado do Mato Grosso do Sul, criam em junho deste mesmo ano uma outra organização, também denominada de «União das Nações Indígenas», adotando a sigla «UNI». Ainda em 1980, como resultado da fusão entre UNIND e UNI, foi criada a primeira organização que viria a conquistar credibilidade a nível nacional, impondo-se como legítima representante dos povos indígenas no Brasil. A nova UNI assumiu de imediato o papel de porta-voz do movimento indígena, organizando e coordenando por muitos anos as manifestações indígenas em todo o país. As disputas, competições, desencontros e, por fim, encontros que se conjugaram para a «invenção» e «re-invenção» da UNI atestam a maturidade e a urgência da idéia e os anseios de construção de uma organização pan-indígena (Ramos, 1997: 51), voltada para a defesa dos direitos das diferentes etnias. Paralelamente ao esvaziamento político da FUNAI, cujo processo de enfraquecimento acentuou com o passar dos anos, o movimento indígena consolidou-se em todo o país através de organizações indígenas que passaram a assumir o papel de agentes políticos e porta-vozes dos grupos indígenas. 1.2. Anos 80: da «União» à «atomização» A vida brasileira dos anos 80 foi marcada por inúmeras mobilizações reivindicando o fim da ditadura e a volta ao «Estado de Direito». As manifestações e lutas políticas pela redemocratização desencadearam profundas mudanças no contexto nacional, mudanças que estenderam-se ao indigenismo, resultando em alterações na correlação de forças entre os atores sociais envolvidos no trato da questão indígena. Os anos 80 representam para o movimento indígena no Brasil uma fase de afirmação de alianças com segmentos da sociedade civil e com setores populares que procuravam se re-organizar. Além de estreitar relações, estas alianças desencadearam ações conjuntas e cooperações com igrejas progressistas, organizações não-governamentais, entidades de apoio à causa indígena e com seringueiros da Amazônia, aproximação esta que deu origem à «Aliança dos Povos da Floresta», marco renovador do ambientalismo no Brasil. Por outra parte, os militares, ainda no poder, desencadearam na década de 80 uma forte repressão contra o movimento indígena, interpretando-o como um inimigo potencial do Estado e tomando o nome «União das Nações Indígenas» como uma ameaça à soberania nacional. A partir desta posição dos governantes da ditadura, índios e entidades aliadas da causa indígena passam a utilizar expressões como «populações indígenas» ou «sociedades indígenas», evitando também o uso de «povos indígenas», que na paranóia militarista atribuía à reivindicação indígena de «auto-determinação» uma conotação perigosa à integridade nacional. A «II Assembléia dos Povos Indígenas do alto rio Negro», realizada em abril de 1987, no município de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, representa para a história do movimento indígena no Brasil um importante marco político «pois pela primeira vez, as autoridades governamentais sentaram à mesa para negociar a questão das terras indígenas com lideranças da região» (Barbosa e Silva, 1995: 21). Este acontecimento adquire ainda maior importância se considerarmos que além de reunir cerca de 500 lideranças indígenas da região, membros de entidades de apoio, antropólogos, advogados e partidos políticos aliados dos índios, esta «assembléia» recebeu representantes dos governos federal e estadual, e de grupos econômicos com interesse na região. Em documento divulgado ao final das discussões, as lideranças indígenas exigiam a demarcação imediata das terras, o reconhecimento da exclusividade de seus direitos sobre os recursos do solo e subsolo, e o pagamento de indenizações para as prospecções e explorações ilegais realizadas por empresas mineradoras (Povos Indígenas no Brasil, 1991). O que os índios do alto rio Negro exigiam é que a política indigenista não fosse mais ditada de cima para baixo, a partir dos gabinetes do poder, mas que as discussões vindas do poder local das aldeias fossem consideradas como ponto de partida para as negociações interétnicas que deveriam orientar as ações desencadeadas nos territórios indígenas. Sem dúvida, o mais importante ganho dos anos 80, aquele que maior impacto provocou na questão indígena, foi o direito outorgado pela nova Constituição promulgada em 1988 dos povos indígenas fazerem-se representar por si próprios em questões políticas e jurídicas perante o Estado e os segmentos da sociedade brasileira. Até então tratados pela legislação como «relativamente incapazes» e subordinados à tutela do Estado, aos povos indígenas era destinado um papel passivo, sendo representados por órgãos públicos investidos na autoridade de porta-vozes de seus anseios e reivindicações. O novo «status» de porta-vozes de si mesmos abriu aos povos indígenas a possibilidade de conquistarem no espaço internacional a voz política antes reservada para si pelo Estado brasileiro. Antes da Constituição o movimento indígena sobrevivia a partir de uma «ilegalidade tácita» (Ramos, 1997: 53); após 1988, com a promulgação da nova Carta Magna, as organizações indígenas adquirem o «status» de organizações sociais, legalmente aceitas. E, pela primeira vez no Brasil, os índios podem exercer sua voz ativa e defender eles mesmos os seus interesses. Nos anos 80 o movimento indígena experimentaria uma multiplicação das organizações. Diferente dos demais países latino-americanos, onde as mobilizações indígenas ocorreram primeiro aos níveis locais e regionais, no Brasil a trajetória do movimento indígena deu-se em sentido contrário. Na medida em que as «assembléias» passavam de locais e regionais para nacionais, com uma maior compreensão da problemática e das questões mais amplas por parte das populações indígenas, as «organizações indígenas» tendiam a constituir-se em locais e regionais e não mais segundo uma única entidade de abrangência nacional. Seguindo esta dinâmica, a UNI constituiu representações locais; para em seguida, ao final dos anos 80, tendo como marco político a promulgação da nova Constituição Brasileira, ser gradualmente substituída em sua representatividade política por «organizações de base» formadas em todo o país a partir de demandas localizadas. Num contexto de relações sociais multiétnicas, como é o caso de todos os países da América Latina, o caráter antagônico dos interesses étnicos diferentes tende a impulsionar o surgimento de organizações que diferem entre si não apenas em razão de objetivos ou particularidades relacionadas a contextos histórico-sociais diferentes, mas também em razão de «diferenças étnicas devidas à permanência de estruturas ideológicas, semântico-culturais, lingüísticas e, em alguns casos, organizacionais que correspondem à base e a estrutura anterior (étnica)» (Varese, 1981: 127). Assim a formação das organizações em «associações», «conselhos», «uniões», «movimentos», «confederações», «coordenações», etc. atende, no plano interno, às diferenças étnicas e formas de organização política particulares, enquanto no plano externo busca atender as necessidades de uma melhor adaptação às diferentes situações de diálogo interétnico (Barre, 1983: 197). Apesar de uma aparente correspondência mimética entre a multiplicação das organizações e o grande número de sociedades indígenas, com pouco contato entre si e poucos interesses comuns diluídos pelo ideário nacionalista de um Brasil homogêneo, o movimento indígena brasileiro é mais do que uma resposta meramente reativa às condições e estímulos externos. No processo de busca de sua vocação política, o movimento indígena brasileiro experimentou alguns cursos originais de ação que de nenhuma maneira podem ser atribuídos ao envolvimento externo. Deve-se ter em mente que os povos indígenas têm uma longa experiência de andar alinhado em trilhos sinuosos. O que para um pensamento ocidental pode parecer desvios à toa, pode verdadeiramente representar o caminho mais curto entre dois pontos, proporcionando-nos lições inesperadas de produtividade (Ramos, 1997: 53). Este «alinhamento» do movimento indígena na «multiplicação» das organizações locais é alcançado a partir de uma maturidade do movimento indígena e de compreensão tanto dos contextos locais particulares e nacional como do contexto político internacional, que implica em ações localizadas formando conexões e articulações entre diferentes organizações locais, tanto através de articulações pontuais, em momentos históricos determinados, como através de articulações mais alargadas visando objetivos comuns ou mesmo visando objetivos específicos de uma das organizações. A manutenção da articulação entre «organizações de base» em vista de ações mais localizadas exige, assim, uma compreensão das diferenças sociais e políticas locais, que, sendo diferentes, exigem estratégias distintas. Portanto, antes de interpretar a proliferação das organizações como uma «fragmentação» do movimento indígena, o que poderia dar uma falsa idéia de diluição da ação política, o mais apropriado é tomar esta «multiplicação» como uma «atomização», diretamente relacionada ao processo histórico de dispersão a que estão submetidos os povos indígenas pela colonização de seus territórios tradicionais, ou um «fracionamento», onde as organizações de base, funcionando como «frações», como «átomos» constitutivos de uma mobilização maior, mantêm ligações entre si de modo a articular estratégias e ações locais dentro da perspectiva global do movimento indígena. 1.3. Anos 90: consolidação de projetos étnicos Os anos 90 trazem consigo mudanças significativas nas relações interétnicas. Vinculada a uma política de redução da máquina estatal e de terceirização de serviços, a ação indigenista do Estado fragmenta-se em políticas setoriais indígenas transferidas para a responsabilidades de diferentes órgãos dos governos federal, estaduais e municipais. A partir desta mudança fundamental na relação entre Estado e povos indígenas não é mais possível falar de um indigenismo como política do Estado, mas em indigenismos no plural. Neste contexto em que o Estado já não detem o monopólio da interlocução com os índios, «a linguagem dos direitos passa a ser a via da negociação, contestação e criação de sentidos na relação entre índios e Estado, que assume um caráter dialógico, com pontos de vista indígenas tornando-se relativamente reconhecidos como válidos na arena política indigenista» (Oliveira, Neves e Santilli, 2001: 84). Como observa Jorge León Trujillo para o cenário indígena equatoriano, ainda que de uma forma não evidente para um primeiro olhar à distância, as organizações indígenas mantêm um fundamento ou uma estreita ligação baseada no conjunto de relações sociais, econômicas, culturais, políticas e jurídicas próprias de cada um dos grupos étnicos. Reconhecidas pelo Estado, as organizações indígenas convertem-se em representantes de coletividades ou de povos, um fenômeno recente, que se consolida com a produção de discursos étnicos, formação de pessoal e de formulação de projetos políticos próprios (León Trujillo, 1991: 389). Além da própria consolidação das organizações, que como instrumentos de reivindicação indígena desempenharam importante papel como centros de formação de quadro de pessoal, há que se considerar ainda como fatores que facilitaram a sua multiplicação: o novo contexto político nacional marcado pela «transição democrática»; a diminuição da hegemonia de controle da FUNAI sobre a política indigenista; e a emergência de novos atores no campo do indigenismo, possibilitando a formação de novas e mais amplas redes de apoio aos povos indígenas. Apesar de referidas a momentos políticos muito distintos, a estratégia inidigenista do governo nos anos 90 tem algo de semelhante com aquela adotada nos anos 80 para a Amazônia, em que «numa contra-estratégia para assegurar a imposição de seus projetos, o Estado (...) Aceita que instituições oficiais discutam com índios, com ‘atingidos de barragens’, com garimpeiros, seringueiros, castanheiros, posseiros e trabalhadores rurais. Permite que sentem à mesa de discussões, assimilando pressões. Todavia, quem vai regendo o pano de fundo das negociações por parte do governo não aparece para discutir e, sem fazê-lo, dita as regras do jogo» (Almeida, 1994: 533). A diferença da década anterior, é que nos anos 90 os interlocutores da questão indígenas foram pulverizados em instituições públicas que representam os interesses do Estado, que continua a «ditar as regras do jogo». Não há dúvida que as organizações indígenas são instâncias políticas constituídas a partir de uma lógica, de uma razão, de um ordenamento, de uma funcionalidade e de uma estruturação não-indígenas, externas ao(s) universo(s) indígena(s). Apesar disto as organizações indígenas não podem ser tomadas simplesmente como entidades externas transplantadas para o contexto das questões indígenas. São, antes, estratégias políticas de viabilização de demandas nativas orientadas por concepções e valores étnicos que mesmo nas situações de contato fundamentam a vida e a luta dos povos indígenas nos novos cenários das relações interétnicas a que foram inseridos com a instalação do processo de colonização européia em seus territórios. Como formas de resistência, as organizações indígenas «são, em fim, facetas de uma mesma luta, permanente, tenaz: a luta de cada povo e de todos em conjunto para seguir sendo eles mesmos; sua decisão de não renunciar a serem os protagonistas de sua própria história», palavras de Guillermo Bonfil Batalla (1990: 14) sobre as lutas do movimento indígena no México, que podem ser tomadas para a situação indígena no Brasil. É importante não perder de vista que apesar do diálogo interétnico ser sempre desigual, com interesses divergentes e em sua maioria conflitantes, as relações entre sociedades diferentes são sempre conduzidas pelos universos simbólicos e materiais operantes tanto no campo partilhado do contato como no interior de cada sociedade, o que faz com que a aproximação de culturas e povos distintos seja mais do que um simples processo de homogeneização ou de descaracterização cultural (Neves, 1999a). E sendo assim, também as ações, programas, projetos e todos os tipos de iniciativas desencadeadas pelas organizações indígenas estarão orientadas por valores étnicos. A questão central que esta situação coloca está relacionada ao confronto entre universos simbólicos diferentes postos em interação a partir das relações de contato entre povos distintos: o choque entre sistemas epistemológicos diferentes; as disputas e conseqüentes negociações entre conhecimentos rivais mobilizados para o entendimento das práticas indígenas articuladas às práticas das sociedades envolventes; e a necessidade de reinterpretações, rearranjos e reconfigurações das estruturas sociais étnicas tradicionais conjugadas às novas demandas políticas decorrentes da situação de contato interétnico. Analisando o movimento indígena dos anos 70 na América Latina, Stefano Varese (1981: 120) refere-se ao seu potencial de criação política como «potencial de rebeldia e das opções alternativas», claramente visível mesmo em movimentos e organizações étnicas menos politizadas. Neste sentido, a expressão «realidades emergentes» (Santos, 1998: 13) parece indicada para designar as iniciativas indígenas, uma vez que sugere o potencial criador de um novo contexto de relações sociais interétnicas, em construção pelo movimento indígena. Seja a partir dos grupos locais, seja a partir de ações ordenadas enquanto «movimento indígena», o cenário interétnico brasileiro é marcado por iniciativas muito distintas entre si. Um grande número de ações, programas, projetos, cursos, treinamentos e todo uma enorme variedade de atividades atualmente implementadas por organizações indígenas no Amazonas poderiam caracterizar iniciativas potenciais de processos de «globalizações contra-hegemônicas», constituindo o que temos denominado de «cosmopolitismo» (Santos, 1998). Sem pretender relacionar todas estas iniciativas, até porque cada uma mereceria tratamento detalhado, são indicadas a seguir algumas «realidades emergentes» em construção pelos povos indígenas no Amazonas: - produção e difusão de programas radiofônicos destinados a levar informações relativas à política e à questão indígena nacional e regional. - utilização da informática para a construção de redes de apoio e para a divulgação de notícias através de boletins eletrônicos periódicos que, além de permitir ampliar e estreitar o leque de alianças, mostram-se eficientes instrumentos na luta pela afirmação e garantia de direitos. - implantação de sistemas de rádio-fonia destinados a permitir a comunicação entre as diferentes aldeias de um mesmo povo ou de uma região. - formação de entidades de cunho profissional, tais como associações de professores indígenas que a partir da retomada e da revalorização de conhecimentos tradicionais têm conseguido incorporar as línguas nativas aos programas de escolarização oficial. - realização de cursos de formação profissional destinados à capacitação e treinamento de pessoal indígena para assumir serviços e funções nas «organizações indígenas» ou em aldeias, como, por exemplo, cursos de contabilidade, cursos de mecânica de motores, cursos de multimeios e comunicação, cursos de formação de agentes de saúde indígena, etc.. - realização de cursos de capacitação pedagógica e lingüística para professores indígenas que lecionam em «escolas indígenas». - construção de sistemas econômicos de aceitação no mercado internacional, alternativos ao antigo modelo de economia de subsistência, como a venda de artesanatos através de redes de lojas de decoração espalhadas nas principais capitais do país, ou de guaraná vendido na Itália a partir de uma aliança com organizações não-governamentais. - desenvolvimento de técnicas e implementação de projetos de psicultura, destinados a criação de espécies nativas de peixes para consumo interno nas aldeias e para comercialização de excedentes. - implementação de programas e projetos voltados ao controle e proteção ambiental das terras indígenas e à apropriação de seus recursos naturais de modo sustentável. - desencadear de iniciativas autônomas visando promover o reconhecimento das áreas de ocupação indígena, processos estes denominados de «auto-demarcação», que orientados por conceitos e sistemáticas étnicas de reconhecimento e materialização de limites territoriais vêem se constituindo em novas bases de mobilização dos índios na defesa de suas terras. - administração dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI), instâncias públicas recentemente criadas com a atribuição de coordenar e executar as políticas de saúde para as populações indígenas. - participação de representantes indígenas de todas as regiões do Estado do Amazonas no Conselho Estadual de Educação Indígena (CEEI), e de representantes indígenas no Conselho Municipal de Saúde de São Gabriel da Cachoeira. Além destas iniciativas podem ainda ser citadas a construção de fóruns ampliados de discussão e encaminhamentos políticos, tais como a Comissão dos Professores Indígenas da Amazônia (COPIAM), entidade autônoma voltada para a formulação de diretrizes para a educação escolar indígena; a União Ticuna (TICUNIÃO), movimento em fase de discussão política, com o objetivo de criar uma união entre os índios Ticuna, agregando as populações localizadas do Brasil, Colômbia e Peru; e o Fórum de Debate dos Direitos Indígenas (FDDI), grupo formado por lideranças indígenas da região do alto rio Negro com o propósito de discutir e propor alternativas para a política local, e de constituir uma base que permita aos índios desta região conquistarem em um futuro próximo, pela via da eleição, o poder local. 2. Realidades indígenas emergentes Paralelamente à reorientação da vida política brasileira, da ditadura militar ao neo-liberalismo adotado pelos governos Collor de Melo, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, passando pelo período de «transição democrática» do governo Sarney, a neutralização dos instrumentos básicos de ordenamento da política fundiária, provocou o esvaziamento político da FUNAI, conduzindo à uma quase total paralisação dos processos de demarcação de terras indígenas, deixando com isso o caminho aberto ao acirramento dos conflitos em torno dos interesses sobre as terras ocupadas pelos povos indígenas. Neste cenário de completa falta de iniciativa do Estado em favor dos índios, o autoritarismo do atual governo foi expresso em duas ações extremamente violentas. A primeira, uma violência de ordem jurídica, em que, através de duas medidas legais impostos em janeiro de 1996, o Estado brasileiro efetivou a juridificação do processo de demarcação das terras indígenas, modificando radicalmente a sistemática de reconhecimento das terras, reduzindo a participação dos índios no processo de demarcação a uma mera presença formal com o sentido de legitimar o procedimento jurídico de definição de limites territoriais. Com a juridificação da demarcação, a luta dos povos indígenas sofreu um violento processo de regulação social, diluindo a mobilização política alcançada na década de 80 e minando, com isso, o movimento indígena. A segunda, uma violência física desencadeada por forças policiais em abril de 2000 contra os representantes indígenas presentes nos manifestos indígenas contra as celebrações governamentais dos 500 anos de descobrimento do Brasil. Antes de representar uma exceção de comportamento, estas duas atitudes violentas demonstram a continuidade da política repressiva do Estado em relação aos povos indígenas, uma continuidade que apesar das mudanças políticas tem atravessado séculos e regimes. Da parte dos índios, os anos 90 foram marcados pela consolidação de programas e projetos étnicos destinados ao atendimento de demandas imediatas e bastante definidas, além de iniciativas locais e nacionais de ocupação dos espaços políticos institucionais, como estratégia decisiva para romper o marco da dominação interiorizado pela condição de colonizado. Dentre as iniciativas de construção de realidades indígenas emergentes, merecem destaque especial: a grande mobilização nacional da «Marcha Indígena» que percorreu todo o território nacional e culminou com a realização da «Conferência Indígena», em Porto Seguro, no Sul da Bahia, o mesmo local do desembarque da esquadra portuguesa há 500 anos, e as mobilizações desencadeadas por grupos locais com o objetivo de demarcação de suas terras, que a partir do termo genérico de «auto-demarcação» difundiram-se por todo o país. 2.1. «Marcha» e «Conferência Indígena» Sem qualquer sombra de dúvida uma das mais importantes iniciativas populares dos últimos anos foi o Movimento «Brasil: 500 Anos de Resistência Indígena, Negra e Popular - Brasil Outros 500», organizado por segmentos excluídos da sociedade brasileira em resistência às comemorações oficiais pelos 500 anos de descobrimento do Brasil. Numa retomada das estratégias políticas dos anos 70, onde as coalisões transnacionais ofereceram um suporte decisivo para o movimento indígena em construção no Brasil, os índios redescobriram a importância e o peso da pressão política que têm as alianças e mobilizações realizadas em conjunto com outros segmentos da sociedade civil. O ponto de viragem que marca a retomada destas alianças foi o «II Encontro pela Humanidade e contra o Neoliberalismo», que reuniu em Belém do Pará, na Amazônia brasileira, em dezembro de 1999, 2.686 delegados de 24 países das Américas e da Europa, estando representadas 31 nações indígenas e numerosas organizações políticas e sociais de todas as partes do mundo. Inspirados nos zapatistas que sustentam suas reivindicações em redes internacionais de apoio, em Belém do Pará os movimentos populares brasileiros reencontraram-se com os representantes do internacionalismo solidário conquistando forças para a organização das mobilizações nacionais de resistência ao tom festivo e a euforia das celebrações governamentais triunfalistas desencadeadas pelo Governo Fernando Henrique Cardoso e pela Rede Globo. A participação dos índios no «Movimento Brasil Outros 500» ficou marcada em dois momentos: «Marcha Indígena 2000» e a «Conferência dos Povos e Organizações Indígenas do Brasil», que constituem-se desde já marcos na história do movimento indígena no Brasil. Partindo dos quatro cantos do país a «Marcha Indígena» mobilizou cerca de 3.600 índios em caravanas. Traçando o caminho inverso da ocupação européia, num movimento simbólico de retomada do Brasil, a «Marcha» deu ao país um exemplo gritante de exercício de cidadania na defesa de direitos fundamentais das populações indígenas, realizando manifestações em diversas cidades por onde passou. Concebida como fórum para reflexão sobre o passado e definição de estratégias comuns e alianças para o futuro a «Conferência» reuniu, de 18 a 21 de abril de 2000, na aldeia Pataxó de Coroa Vermelha, município de Santa Cruz de Cabrália, cerca de 6.000 índios, representando 140 povos indígenas de todo o país. O desastroso desfecho das festividades em Porto Seguro não representa apenas a crise de valores por que passa o Brasil de 500 anos; «o que aconteceu em Porto Seguro, em abril de 2000, foi algo muito mais grave do que a imprensa fala. Não nos assumimos como nação brasileira, com as nossas raízes» (Betto, 2000: 26). O fiasco das celebrações dos 500 anos, demonstra a virulência, o autoritarismo de um Brasil que a todo custo utiliza a força do poder, da exclusão e da negação do diálogo para impor um projeto nacional único, que ignora as raízes indígenas, negras e populares que fundam e que movem a sociedade brasileira, raízes vivas que sustentam a sociedade de um Brasil «profundo». Os acontecimentos sociais das malfadadas comemorações oficiais indicam que o Brasil não pode continuar a ver a si próprio a partir de uma visão européia, e que tampouco pode continuar a construir uma imagem para o restante do mundo pautada num mundo exterior à realidade brasileira pluriétnica. Há ainda dois aspectos importantíssimos que merecem ser assinalados sobre o a participação dos índios no «Movimento Brasil Outros 500». O primeiro refere-se ao local onde ocorreu a «Conferência Indígena», o Nordeste, justamente a região onde deram-se os primeiros e mais intensos contatos com a colonização européia, e, por conseguinte, a região onde as etnias estão mais descaracterizadas. Certos grupos, que até então incorporavam o estereótipo nacionalmente difundido de que «no Nordeste não tem mais índio», ou que «os índios do Nordeste não são mais índios», começaram a ver que os povos do Nordeste são tão índios como todos os índios do Brasil, apesar de ao longo do processo de contato terem perdido alguns de seus sinais culturais diacríticos. Os índios do Nordeste que ao longo do tempo foram perdendo tudo, perderam a terra, perderam a língua, perderam a dignidade, com a participação no «Movimento Brasil Outros 500», com o «interapoio» dos outros povos e com o reconhecimento como índios, tanto o reconhecimento de si próprios como índios como o reconhecimento dos outros índios, acabam reconquistando direitos (Marés, 2000b). Este contato entre povos indígenas, ao mesmo tempo que fortalece os índios do Nordeste perante a sociedade brasileira, reforça as outras áreas (Amazônia, Centro-Oeste, Sul) do movimento indígena. O segundo aspecto importante é que o «Movimento Brasil Outros 500» contribuiu para que, pela primeira vez, os índios tivessem a percepção da «terra indígena Brasil», ou seja, do Brasil como uma terra indígena ampla, uma terra formada pelos espaços originalmente ocupados pelas diferentes etnias (Marés, 2000b). Esta percepção, este reconhecimento do Brasil como «terra indígena» é uma dimensão nova para o movimento indígena. Uma dimensão nova que supera a limitação da visão local e etnocêntrica conformada aos limites da ocupação territorial de cada povo. A partir da «Conferência Indígena», o Brasil passou a ser para os índios a «terra indígena» de todos os povos indígenas no Brasil, a terra do conjunto dos povos indígenas que se encontram localizados em território brasileiro. O mais fantástico de tudo, é que este sentimento de pertença à uma terra comum foi provocado pela repressão do aparato militar que atingiu indistintamente todas as etnias, inclusive algumas que nunca haviam sofrido agressão por parte de forças públicas. Sem que tivesse sido sua intenção, e talvez sem que ainda tenha tomado consciência deste fato, o Governo Brasileiro deu uma enorme contribuição para o fortalecimento das lutas indígenas no Brasil. Como marcos políticos contra-hegemônicos de afirmação de uma identidade indígena profunda que alicerça a identidade nacional de um Brasil pluricultural, «Marcha Indígena 2000» e «Conferência dos Povos e Organizações Indígenas do Brasil» marcam um começar de novo, um redescobrimento de um Brasil não-europeu, a retomada de uma consciência nacional indígena fundadora de uma identidade compósita indígena-negra-européia do perfil do Brasil atual. 2.2. «Auto-demarcação» A nova Constituição Federal promulgada em 1988 trouxe para o campo do indigenismo um novo parâmetro: os direitos originais à terra; uma «terra indígena» entendida não mais como uma opção do Estado, mas como um direito dos povos indígenas. Antes o Estado reconhecia a terra. Na verdade, para a sociedade nacional o reconhecimento de terra indígena significava o Estado conceder terras aos índios. Depois da Constituição, sendo a terra um direito dos índios, ao Estado cabe apenas promover a legalização deste direito. Para os índios, antes da Constituição, a terra era percebida como um direito histórico reivindicado; depois da Constituição, a terra indígena é um direito constitucional, que reconhece aquele direito histórico. Foi ainda a Constituição que abriu a possibilidade de reconhecimento oficial da participação dos índios nas demarcações de seus territórios. Antes, os índios eram entendidos como povos em transição a serem integrados na sociedade nacional, perdendo a condição de povos para tornarem-se «cidadãos». Em seu artigo 231, a nova Constituição garante aos povos indígenas «o direito originário e coletivo sobre as terras que ocupam, apesar de reconhecer um direito individual, porém público, de propriedade sobre essas terras, entregando a titularidade à União Federal» (Marés, 2000a: 14). Sendo um «direito coletivo», a titularidade da terra indígena não é individualizada. Assim, todos os membros de uma comunidade indígena são sujeitos do mesmo direito sobre a terra que lhes pertence histórica e constitucionalmente; todos têm disponibilidade da terra mas ao mesmo tempo ninguém pode dela dispor individualmente, «porque a disposição de um seria violar o direito de todos os outros» (Marés, 2000a: 07). Não havendo a possibilidade de relacionar a terra indígena «com um titular, que seja pessoa, nos termos da dogmática tradicional, aparentemente estamos diante não de um direito, mas de um simples interesse» (Marés, 2000a: 07), que faz com que ainda hoje a terra indígena seja percebida, na maior parte das vezes, como uma «terra de ninguém» tanto pela população envolvente com interesse nestas terras como por políticos e autoridades constituídas, o que abre a possibilidade de que as demarcações de terras indígenas sejam contestadas por invasores e pretensos proprietários. Foi esta ambiguidade legal que permitiu ao Governo Federal impor, em janeiro de 1996, o Decreto Nº 1.775, do Ministério da Justiça, que «dispõe sobre o procedimento administrativo de demarcação das terras indígenas» e a Portaria Nº 14, da FUNAI, que «estabelece normas para a elaboração de relatório circunstanciado de identificação e delimitação de Terras Indígenas», transformando o embate político em torno da negociação de limites territoriais em uma questão de ordem jurídica onde a ocupação da terra passa a ser percebida não como direito histórico, mas sujeita à uma sentença que conceda aos índios a possibilidade de permanecerem em terras que sempre foram suas (Neves, 1999b: 120). Num paralelo com a situação exposta por José Manuel Pureza (2000), o único argumento que pode evocar o Estado brasileiro para reivindicar a sua legitimidade de controle sobre as terras indígenas, e por conseguinte o controle sobre os processos de demarcação, é aquele da «efetividade dos fatos consumados». À luz dos princípios internacionais que defendem a auto-determinação de todos os povos, a questão indígena no Brasil constitui-se assim em mais um dos muitos exemplos mundiais de «evidente caso ‘a preto-e-branco’, de um manifesto incumprimento dos princípios básicos do Direito Internacional» (Pureza, 2000: 11). Seja a partir da FUNAI, seja a partir de outras agências estatais destinadas ao atendimento das demandas indígenas, o Estado brasileiro continua a reivindicar para si a gestão sobre a vida das populações indígenas, através do controle que exerce sobre as políticas setoriais e de modo mais incisivo através dos processos de reconhecimento legal das terras ocupadas pelos povos indígenas. O processo de demarcação das terras indígenas compreende uma sucessão de fases sequenciadas e hierarquizadas que vai da situação em que a terra não conta com nenhum reconhecimento oficial à situação extrema onde a sua situação fundiária é regularizada através de registro no Serviço de Patrimônio da União e cartórios imobiliários. Para os objetivos deste capítulo basta assinalar que são quatro as fases do processo: Identificação e Delimitação; Demarcação; Homologação; e Regularização Fundiária. De modo simplificado, o reconhecimento oficial das terras indígenas é comumente chamado de «processo de demarcação». Após a expansão da colonização européia, que se estendeu a todas as partes do Brasil, as «terras indígenas» representam hoje partes menores dos antigos territórios indígenas tradicionalmente ocupados. O número total de terras indígenas varia de acordo com os critérios utilizados por cada agência na manipulação dos dados. Segundo levantamento do Conselho Missionário Indigenista (CIMI), atualizado em março de 2000, existe no Brasil 739 terras indígenas, sendo que 179 (mais de 24% do total) são terras reivindicadas por povos indígenas mas que ainda não contam com nenhuma providência. Das 560 terras reconhecidas oficialmente pela FUNAI, apenas 231 (cerca de 31%) têm a sua situação fundiária regularizada conforme as normas oficias, enquanto outras 220 (quase 40%) sofrem invasões e pressões de interesses não-indígenas (Reportagem, 1999). Em virtude das ambiguidades legais e da inoperância do Estado no cumprimento de sua obrigação constitucional de promover a demarcação das terras indígenas, os próprios índios tomaram em suas mãos a tarefa de demarcar e garantir as suas terras. Uma das primeiras iniciativas neste sentido foi desencadeada pelos índios Kulina da região do alto rio Purus, no Estado do Acre, na fronteira entre o Brasil e o Peru, que realizaram a demarcação física de sua terra abrindo picadas na mata e fixando improvisados marcos e placas de madeira construídos por eles próprios. Apesar de totalmente fora dos padrões oficiais, as placas e marcos indicativos utilizados pelos Kulina serviram para afirmar o seu direito territorial junto a população regional, que passou a não mais invadir a área como até então o fazia (Monteiro, 1999: 156). Embora o Estado não reconhecesse aquele procedimento Kulina como uma «demarcação» legal, na perspectiva dos índios a sua iniciativa constitui-se numa «demarcação» de fato, definindo como «terra indígena» as terras que histórica e miticamente identificam como suas. Na assembléia do povo Kulina realizada em 1990, os índios do alto rio Purus, a partir da experiência acumulada em sua terra, incentivaram os seus parentes moradores no rio Juruá a promover a abertura das picadas nos limites da Terra Indígena Kulina do Médio Rio Juruá, que apesar de delimitada em 1988 pela FUNAI nunca fora demarcada, e que estava constantemente invadida por madeireiros, pescadores, seringueiros e principalmente seringalistas que se recusavam a admitir aquela terra como «terra indígena». Decididos a levar a ação por conta própria «os Kulina, ainda na mesma assembléia, planejaram aumentar os roçados para sustentar os árduos trabalhos da demarcação» (Monteiro, 1999: 156). Com a proximidade do início dos trabalhos a população regional reagiu contra a iniciativa assumida pelos índios Kulina do médio rio Juruá. Visando dissipar estas tensões, foi realizado um seminário onde membros das equipes indigenistas que apoiavam os Kulina e representantes da UNI-Acre e Sul do Amazonas explicaram à população e às autoridades locais a natureza e razões das atividades que estavam sendo realizadas. A partir deste momento ficou evidente para todos que a iniciativa visava exclusivamente atender os direitos indígenas e que «os Kulina iam fazer esse trabalho com o objetivo de sinalizar os limites da área indígena para acabar com os conflitos, justamente porque o Governo Federal se omitia e não cumpria as obrigações que eram suas» (Monteiro, 1999: 157). Numa primeira fase, os trabalhos foram conduzidos a partir de uma metodologia bem prática desenvolvida em pequenos cursos de topografia realizados nas aldeias para o treinamento dos índios. Baseados na utilização de bússolas, balizas e ainda de fogos de artifício e sinais de fumaça para orientar a direção das picadas a serem abertas na mata, os trabalhos foram marcados por muitos erros e imprecisões que seriam corrigidos posteriormente. Além das questões técnicas, outro obstáculo enfrentado pelos Kulina foi o abastecimento de alimentos, pois na medida que as frentes de trabalho avançavam, distanciavam-se das aldeias responsáveis pelo suprimento de farinha de mandioca, carne de caça e peixe salgado, a base da alimentação. Esta situação perdurou durante os dois primeiros anos dos trabalhos. Numa segunda etapa, o esquema dos trabalhos modificou a partir do apoio recebido da agência de cooperação internacional «Pão para o Mundo» (PPM) e, principalmente, em função do convênio firmado entre o Estado brasileiro e os índios que garantiu o reconhecimento legal da demarcação feita pelo povo Kulina. A partir da assinatura do Convênio a orientação de rumo das picadas e a implantação de marcos e placas na floresta passaram a ser realizados com instrumentos sofisticados de agrimensura, como teodolitos e GPS, que garantiram maior precisão técnica à demarcação. Contudo, a necessidade de atender os padrões e normas técnicas exigidos pelo Convênio para a abertura das picadas que compõem os limites das terras indígenas fez com que os trabalhos tornaram-se ainda mais demorados que na primeira fase. Por outro lado, a dependência da equipe técnica aos procedimentos administrativos e burocráticos dos órgãos de governo para a liberação de recursos econômicos, além de reduzir a eficácia dos trabalhos, contribuiam para o «descrédito e desânimo, que atingiam os Kulina» (Monteiro, 1999: 159). As turmas de serviços que realizavam os trabalhos na mata eram compostas basicamente de homens adultos, geralmente acompanhados pelos chefes das aldeias. As mulheres contribuiram decisivamente, promovendo o abastecimento da alimentação necessária e, em alguns casos, acompanhando os seus maridos nos trabalhos de derrubada de árvores para a abertura de picadas. Vale destacar que todas as aldeias localizadas na Terra Indígena Kulina do Médio Juruá tomaram parte da demarcação, umas contribuindo mais intensamente que outras, mas todas participando do processo. A demarcação física estendeu-se de 1991 ao início de 1998, período este que trouxe enormes conquistas para os Kulina: o fortalecimento de suas organizações políticas, o conhecimento mais pormenorizado de as suas terras, o aprendizado técnico que lhes permite o domínio de mapas, de coordenadas geográficas, de balizamentos, de rastreios por satélites, etc. (Monteiro, 1999: 163). Considerando que «a demarcação de um território indígena constitui-se numa trama de relações sociais, tanto internas à comunidade indígena, quanto com a população envolvente e, sendo assim, para ser duradoura, requer algo mais que a simples aplicação do instrumental técnico e legal» (Monteiro, 1999: 163), a demarcação Kulina funcionou ao mesmo tempo como procedimento e afirmação de direitos sobre as terras ocupadas e como processo de afirmação da auto-estima Kulina no contexto das relações interétnicas. É incontestável que «o respeito aos povos indígenas cresceu significativamente no seio da população urbana e rural da região, devido à coragem e à capacidade que os Kulina demonstraram ao tomar para si a responsabilidade de demarcar suas próprias terras» (Monteiro, 1999: 162). Surgia assim no campo das lutas indígenas a «auto-demarcação», cuja forma mais acabada foi aquela desencadeada pelos índios Kulina, no médio rio Juruá, no Amazonas. Além de afirmar perante a sociedade local os seus direitos indígenas a «auto-demarcação» Kulina gerou e consolidou uma metodologia de demarcação construída a partir da efetiva participação dos grupos locais nos trabalhos de demarcação física de suas terras, terras estas que foram legalmente reconhecidas como «terra indígena» através do Convênio entre a FUNAI e os índios. Como estratégia para forçar o Estado brasileiro proceder o reconhecimento de terras, o modelo da «auto-demarcação» difundiu-se por todas as partes do país sendo adotado por inúmeros povos indígenas. No mesmo rio Juruá, por exemplo, os Kanamari e os Deni, dois povos vizinhos dos Kulina, empregaram a sistemática de colocar marcos de madeira e abrir caminhos na mata para assinalar as divisas das terras que tradicionalmente ocupam no rio Juruá, e cujo reconhecimento oficial há muitos anos aguardavam. Apesar de destituída de qualquer legalidade formal a iniciativa Kanamari realizada em 1991 foi fundamental para afirmar o direito deste povo sobre as suas terras, fato este que contribuiu para o cessar da invasão ao território Kanamari. Inicialmente contestada por latifundiários regionais que se opunham à iniciativa, os improvisados e precários marcos divisórios implantados foram adotados pelo grupo de trabalho técnico que procedeu a identificação e delimitação da Terra Indígena Mawetek, cujo relatório antropológico (Neves, 1998) reconheceu os direitos indígenas e validou como legítimos os limites estabelecidos através dos trabalhos de «auto-demarcação» efetivados pelos Kanamari. Quanto aos Deni, que tiveram a sua terra identificada e delimitada em 1985, permaneceram 16 anos à espera de que o processo de demarcação superasse as intermináveis burocracias administrativas da FUNAI. Cansados de aguardar uma solução que nunca se concretizava, recentemente, em setembro de 2001, os próprios índios Deni, apoiados por entidades indigenistas e ambientalistas, deram início à demarcação de suas terras nos mesmos moldes da «auto-demarcação» Kulina. É interessante observar que após uma primeira reação negativa da Presidência da FUNAI exigindo que os Deni parassem os trabalhos de abertura de limites na floresta e implantação de marcos, um decreto governamental garantiu a posse dos Deni à sua terra e estabeleceu um prazo próximo para o início dos trabalhos oficiais de demarcação. Através da FUNAI e de outras agências relacionadas às questões indígenas, o Estado brasileiro apropria-se de ações e procedimentos inovadores gerados pelos povos indígenas, incorporando-os às políticas públicas. A «auto-demarcação» Kulina não fugiu à regra. A partir de iniciativas efetivadas em conjunto entre o Estado, ONGs indigenistas e organizações indígenas, a «auto-demarcação», em sua metodologia e forma de organização das atividades no terreno, foi submetida a um empobrecimento de sua dimensão emancipatória, a uma «interpretação da abreviação» (Santos, 1998), reduzida pelo PPTAL/FUNAI/GTZ a um modelo de demarcação física de terras. E como modelo, as estratégias e sistemáticas criadas e aprimoradas pelos índios Kulina durante o processo de «auto-demarcação» foram isoladas do contexto político, histórico, geográfico e interétnico da região do médio rio Juruá, sendo convertidas em uma nova forma de conhecimento institucional, agora re-batizado como «demarcação participativa», a ser estendido pelo PPTAL, como modelo de demarcação, às 119 terras indígenas localizadas na Amazônia brasileira. Conforme sua proposta inicial, o PPTAL «propôs-se a identificar 55 áreas, a demarcar e regularizar 58 e a promover a revisão de limites de 6 outras áreas» (Arruda, 1998: 06). O PPTAL assume, assim, o papel de regulador de uma experiência contra-hegemônica exitosa a ser replicada em diferentes realidades indígenas, que, por serem diferentes, deveriam exigir tratamentos e procedimentos também diferentes para cada uma das demarcações a serem realizadas. A partir desta dinâmica institucional replicada, o PPTAL promoveu dois processos de demarcação em caráter experimental com a finalidade de aprimorar tecnicamente o seu modelo de «demarcação participativa», após o que teve início a demarcação da Terra Indígena Vale do Javari, a maior terra indígena no Brasil, localizada na fronteira Brasil-Peru. A Terra Indígena Vale do Javari «foi demarcada no decorrer de 2000 e homologada agora em abril de 2001. A demarcação foi feita por uma empresa de topografia contratada pela FUNAI via licitação pública, SETAG. A FUNAI, através do PPTAL, contratou o CIVAJA para que este mobilizasse os índios para promover o acompanhamento da demarcação, sua divulgação e apresentasse um plano de vigilância a ser executado após concluída a demarcação» (Mendes, 2001). Conforme informação pessoal do antropólogo Gilberto Azanha, funcionário da FUNAI, que acompanhou os trabalhos no Vale do Javari, a demarcação desta terra indígena restringiu-se em verdade à uma «auto-demarcação burocrática» (Azanha, 2000), uma vez que os índios participavam apenas como observadores, e não como partes ativas no processo de demarcação de sua terra, o que configuraria a «auto-demarcação» segundo a sistemática criada pelos índios Kulina. Embora reconhecendo que as «parcerias» com ONGs indigenistas e índios alcançaram um certo êxito operacional na demarcação das terras indígenas Waiãpi, do alto rio Negro e do Vale do Javari, a análise do desenvolvimento do processo de regularização fundiária pelo PPTAL indica que tanto qualitativa como quantitativamente o seu desempenho «ainda deixa a desejar» (Arruda, 1998: 07). Segundo a descrição do Coordenador do PPTAL, a «demarcação participativa», conduzida em parceria «consiste basicamente na contratação de uma firma de topografia para a realização do levantamento geodésico, abertura de picadas e colocação de marcos», sendo os índios paralelamente mobilizados «seja diretamente pela organização indígena local ou, indiretamente, por alguma ONG indicada por eles, para o acompanhamento de todas as frentes de trabalho, colocação de placas indicativas e divulgação nas aldeias e no entorno da área da demarcação e do que ela implica em termos de direitos territoriais indígenas» (Mendes, 1999: 19). Detalhado desta forma, sobressai a diferença entre a «demarcação participativa» e a «auto-demarcação», que vem a ser aquela demarcação onde os próprios índios residentes na terra indígena assumem todas as atividades direta e indiretamente relacionadas com construção física e a consolidação legal de seu território segundo as normas ditadas pelo Estado brasileiro. Por um lado, «demarcação», como uma iniciativa externa, de atribuição do Estado, trás em si uma conotação de configuração de espaços de confinamento, de redução, de fechamento societário com a exclusão de relações com o mundo externo. Enquanto «auto-demarcação», como mobilização indígena para a construção territorial sugere o exercício de uma organização interna que alarga a possibilidade política de organização indígena no fortalecimento do grupo étnico em suas relações com o Estado e com a sociedade envolvente. Embora a «auto-demarcação» e a «demarcação participativa» tenham por objetivo atingir o mesmo resultado de regularização fundiária das terras indígenas, resultado este muitas vezes alcançado a partir de metodologias e procedimentos semelhantes, elas são substantivamente diferentes uma vez que a participação indígena nestes dois modelos de demarcação são totalmente distintas. Enquanto a «auto-demarcação» é o espaço por excelência de exercício da mobilização política, de formulação de propostas e da emancipação étnica, na «demarcação participativa» a presença indígena é acessória e meramente de apoio aos trabalhos no terreno com a participação étnica regulada por normas técnicas, por cronogramas de execução de tarefas e por planejamentos administrativos totalmente alheios ao universo indígena. Quanto ao modelo de «demarcação participativa» difundido pelo PPTAL pode-se ainda questionar se verdadeiramente existe diferenças em relação ao ineficiente modelo de «demarcações pela via das licitações», o modelo tradicionalmente utilizado pela FUNAI, uma vez que suas dinâmicas são em tudo semelhantes. Um outro questionamento pode ainda ser feito: em que medida «parcerias» desta ordem garantem, a longo prazo, a sustentabilidade de iniciativas indígenas contra-hegemônicas frente os riscos de institucionalização do movimento indígena, de burocratização administrativa das organizações e de formalismo de suas ações e mobilizações? Indícios desta perda de sustentabilidade contra-hegemônica podem ser detectados tanto na «burocratização» da demarcação do Vale do Javari como no processo crescente de institucionalização e formalismo que a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN) e CIVAJA vêm imprimindo ao movimento indígena no rio Negro e no Vale do Javari, respectivamente. O mais assustador é que o enfraquecimento da dimensão contra-hegemônica das organizações indígenas tem lugar a partir da incorporação pelo próprio movimento indígena da «interpretação da abreviação» que pasteuriza e conduz à estagnação as iniciativas indígenas reduzindo a sua eficácia enquanto «realidades emergentes». A efetivação de convênios para a realização das «parcerias» representa a incorporação pelo Estado brasileiro da «rotina de mobilização» indígena, pasteurizada e convertida pela lógica do Estado em «mobilização de rotina», que passa a ser transferida ao movimento indígena organizado e/ou organizações indígenas como uma forma de fazer política. A «demarcação participativa», formulada pelo PPTAL a partir da «auto-demarcação» Kulina, é uma idéia institucional nova; uma idéia nova que adapta a criatividade indígena da «auto-demarcação» à burocracia institucional obsoleta do indigenismo do Estado brasileiro. Um modelo de demarcação que se por um lado aproveita inovações e dinâmicas introduzidas pela iniciativa Kulina, por outro, mais uma vez reserva aos índios um papel secundário de acompanhamento e fiscalização dos trabalhos técnicos, uma participação coadjuvante no processo de construção política do território indígena. Um olhar sobre os aspectos positivos dos modelos de demarcação propagados pelo PPTAL ressalta a sua inspiração na «auto-demarcação» inventada pelos índios Kulina durante a mobilização em defesa de suas terras assinala: Demarcações participativas não são uma utopia possível, nem são produtos artificiais de rumos indefinidos, que precisam ser maquiados para poder expor-se em vitrines. Não correspondem a obras de fachada nas políticas governamentais, mas representam experiências com enorme densidade e consistência social. Não são uma invenção do PPTAL, nem resultam da pura e simples aplicação de um modelo de engenharia social; são construções dos indígenas, diferenciadas culturalmente, com enquadramentos históricos distintos e projetos políticos heterogêneos (Oliveira, 2001: 32). A demarcação de terras indígenas não pode ser encarada como uma simples aplicação de técnicas de agrimensura para delimitação de terrenos ou como um exercício de zoneamento ambiental. Demarcar terras indígenas é um fato político muito mais complexo de «construção de uma nova realidade sociopolítica, em que um sujeito histórico, um grupo étnico que se concebe como originário, ingressa em um processo de territorialização e passa a ser reconhecido, sob uma modalidade própria de cidadania, enquanto participante efetivo da nação brasileira» (Oliveira, 2001: 34). Por esta razão a «auto-demarcação» não pode ser vista apenas como os índios fazendo um trabalho da competência do Estado. Se assim fosse a «auto-demarcação» perderia mito de seu potencial político inovador. A «auto-demarcação» é muito mais do que os índios assumirem a ausência do Estado; é o caminho mais seguro de um povo indígena estabelecer as bases para o seu fortalecimento étnico. É o começo do processo de reorientação das relações interétnicas; um passo em direção a um «processo de construção social por parte dos habitantes de um território que os impulsiona a buscar soluções para os seus problemas e necessidades a partir de autodiagnósticos da sua própria realidade» (Fundación Gaia Amazonas, 2000: 236). Tomado desta forma, a «auto-demarcação» assemelha-se ao processo de «ordenamento territorial» concebido pelas comunidades indígenas na Amazônia colombiana como o conjunto de relações que têm implicação na vida da população de um determinado território, como «a coluna vertebral que regula os princípios dos governos próprios e de todas as relações culturais, políticas, econômicas e sociais, seja a nível interno ou externo» (Sanchéz, 2000: 102). Ao invés de uma idéia institucional, a «auto-demarcação» Kulina, é uma prática concreta construída a partir do protagonismo indígena no processo integral de construção política de seus territórios, uma iniciativa que revoluciona a forma institucional de demarcação de terras indígenas, configurando-se como uma «realidade emergente». Menos como metodologia demarcatória desenvolvida empiricamente pelos Kulina e mais como uma iniciativa de mobilização de afirmação de direitos sobre as terras ocupadas, a «auto-demarcação» irradiou rapidamente por todo o país, fazendo hoje parte da agenda política de todos os povos indígenas. Com a demarcação da Terra Indígena Kulina do Médio Rio Juruá, reconhecida oficialmente através do convênio entre a FUNAI e os índios Kulina, a «auto-demarcação» afirmou-se definitivamente como a mais importante e inovadora mobilização política dos povos indígenas, revolucionando todo o processo e sistemática de demarcação das terras. Estes três casos de «auto-demarcação» concretizados no Amazonas, a «auto-demarcação» dos Kulina, cujos trabalhos técnicos foram reconhecidos pelo convênio firmado entre a FUNAI e os índios; a «auto-demarcação» dos Kanamari, cujos sinais e marcas implantados no terreno foram validados como limites da terra indígena; e a «auto-demarcação» dos Deni, que levou o Estado a tomar uma atitude que há anos protelava, demonstram a dimensão emancipatória da «auto-demarcação» que não reside apenas no seu aspecto de mobilização das populações locais com o objetivo de conquistas territoriais, mas na sua capacidade de construção de um novo sistema possível de relações entre povos indígenas e Estado. 3. Trilhas sinuosas em caminhos certos Muito antes da formação de um movimento indígena organizado, os conflitos de terras estão presentes na história do contato dos povos indígenas com a sociedade européia. A luta pela defesa da terra é marco comum na vida de todos os povos indígenas da América Latina; a luta pela demarcação das terras está na gênese do movimento indígena. Para o índio a terra não é vista apenas como meio de produção, «a terra é um conceito totalizante e aglutinador de todos os demais: cultura, etnicidade, indianidade, história, religião, política, economia, etecétera» (Barre, 1983: 162). A reivindicação da «demarcação» não confunde o conceito de «territorialidade» que emerge da luta indígena com o conceito de «propriedade», que numa visão economicista reduz a terra à meio de produção. Neste sentido a luta pela demarcação da terra tem uma dimensão claramente emancipatória, uma vez que questiona todo o conjunto de pressupostos e valores ocidentais a serviço de uma hegemonia do «Norte». O potencial emancipatório, revolucionário, subversivo dos povos indígenas oferece ao mundo ocidental «perspectivas de mudança tanto estrutural como cultural e civilizatória, que de fato, significará a recuperação e o desenvolvimento das estruturas comunitárias, de suas culturas e civilizações, que poderão naturalmente ‘modernizar-se’ seguindo uma outra trajetória» (Barre, 1983: 239). O movimento indígena representa um passo decisivo para romper a exclusão a que os índios foram historicamente sujeitos pela colonização européia. Para o movimento indígena romper o marco da dominação, interiorizado pela condição de colonizado, «é como tratar de saltar as fortalezas dos ‘outros’, do ‘alter’ ao ‘nós’ comunitário, para o qual em primeiro termo este ‘nós’ se reforça a si mesmo, se convence de suas razões e de suas forças. Ganha espaço nas demandas e ratifica assim maior controle nas mudanças vividas. Igualdade e diferença são os dois âmbitos das reivindicações étnicas» (León Trujillo, 1991: 398); é a ruptura com o Sul imperial, o Sul à imagem e semelhança do Norte, o Sul que reproduz, reafirma e reifica a dicotomia Norte-Sul que subordina o Sul. É uma «luta política paradigmática» tendo no horizonte a construção de novas relações sociais, configurando um novo paradigma alternativo de sociabilidade democrática interétnica (Santos, 2000: 314). A demarcação de terras, que ocupa o centro das reivindicações indígenas, é a forma mais explícita e objetiva de rompimento com essa ordem reguladora que os estados nacionais impõem às minorias étnicas. Porém, demarcar terra não é o objetivo final do movimento indígena. «Terra indígena» representa apenas um primeiro passo na afirmação da territorialidade como fundamento de um projeto étnico para o futuro. Para os índios: Menos que uma atividade topográfica, cartográfica ou jurídica, demarcar é criar condições para que surja, dentro desse grupo étnico territorializado, uma forma de organização política que seja capaz não só de promover uma adequada administração dos recursos fundiários e ambientais que possui, mas também de atualizar a sua própria cultura, enriquecendo-a com novas experiências, sem prejuízo da reprodução de seu patrimônio cognitivo e da manutenção de valores tidos por seus membros atuais como centrais (Oliveira, 2001: 34). Estes são ensinamentos ditados pelo modelo de «auto-demarcação» inventado pelos índios no processo histórico de defesa de suas terras. A «auto-demarcação» abriu caminho, traçou as trilhas, ensinou os passos, indicou a direção por onde deve passar a construção de um sistema social pluriétnico e multicultural onde igualdade e diferença sejam os princípios orientadores das relações entre os povos. Contudo, mesmo representando processos de afirmação de particularidades sócio-culturais distintas no cenário das relações interétnicas, algumas iniciativas podem não realizar seu potencial emancipatório, perdendo sua dimensão contra-hegemônica e vindo a constituir-se em «localismos globalizados», e, portanto, em processos de «globalizações hegemônicas». No caso dos grupos indígenas a verdadeira dimensão «contra-hegemônica» das iniciativas, tenham elas a sua origem em grupos locais ou em organizações indígenas, repousa na distinção entre afirmação étnica e subordinação aos Estados nacionais. Para o Estado brasileiro, aos índios estiveram sempre reservadas apenas duas possibilidades: 1) «isolados da civilização», como sociedades paradas no tempo; 2) «integrados à civilização», como cidadãos marginais à sociedade nacional. É contra esta limitação que mobilizam-se os índios. As iniciativas indígenas, «emergentes», «contra-hegemônicas», ou seja lá os nomes que lhes sejam dados, demonstram que uma outra possibilidade existe: aquela em que os povos indígenas assumem como sujeitos ativos a condução das relações interétnicas. A mobilização dos índios não é um modismo impulsionado pelo internacionalismo solidário das redes de ONGs, é um «senso comum emancipatório», uma «ordem subversiva» (Santos, 2000: 254), uma proposta «pluri-multi» de uma sociedade pluriétnica e multicultural (Patzi Paco, 1999: 13), que subverte a democracia construindo uma democracia plural. O movimento indígena não é apenas um movimento «anti»; é acima de tudo, um movimento que propõe um modelo societário, um modelo societário diferente do modelo societário ocidental, e que se realiza como anti-ocidental pela recusa do pensamento ocidental em aceitar a diversidade, a possibilidade de coexistência de diferenças. E nisto o poder das mobilizações indígenas «revela-se incomodativo pelo caráter democratista» (Almeida, 1994: 531). No campo das lutas indígenas no Brasil, auto-determinação está focada no direito histórico à terra e seus recursos naturais, a partir de uma organização social autônoma compatível com os princípios de soberania nacional reclamada pelo Estado brasileiro; uma «auto-determinação interna» que reivindica uma equalização étnica em alternativa à homogeneização (Santos, 1995: 321). «Auto-determinação» e «emancipação», entendidos como «reconquista de direitos imemoriais», sintetizava o conjunto de questões locais e problemas específicos vividos pelos diferentes povos indígenas, enquanto «demarcação das terras» representa o mecanismo imediato de acesso aos direitos e o pressuposto básico para alcançar a auto-determinação e a emancipação demandadas, a autonomia. A proposta de «autonomia» defendida pelo movimento indígena no Brasil representa uma superação da situação histórica de exclusão que no campo das relações interétnicas configurava as «comunidades defensivas-exclusivas» fechadas em si em defesa contra a dominação (social, cultural, ambiental, fundiária, política, epistemológica, etc.) exercida pelo Estado, como uma «comunidade agressiva-exclusiva» (Santos, 2000: 314). A partir de seu objetivo de construção de um país plural, pluricultural e pluriétnico, o movimento indígena aproxima-se do «paradigma das comunidades-amiba», associado ao «princípio da auto-determinação interna» componente do novo paradigma emergente de «sustentabilidade democrática e soberania dispersas» (Santos, 2000: 317). Para o movimento indígena no Brasil, «emancipação» expressa um sentido aproximado à «autonomia», sem contudo apresentar a conotação de «liberação nacional» ou «autonomia regional» com que é mais frequentemente empregado este termo pelos demais movimentos indígenas na América Latina. A palavra de ordem dos povos indígenas no Brasil sempre foi «auto-determinação». Mais recentemente, a partir do envolvimento das organizações indígenas com o Estado para a execução de atividades e programas destinados a atender as demandas imediatas, «auto-determinação» cedeu lugar no discurso político indigenista a outros termos como «parceria», «aliança», «colaboração», que embora não sendo novos ganharam uma força que até então nunca tinham tido no campo do indigenismo brasileiro. A linha tênue entre emancipação e regulação oscila conforme a ambiguidade que assumem as «parcerias» que, por razões táticas, podem combinar iniciativas de emancipação pela qual se luta com instrumentos de regulação social (Santos, 2000: 319). Do ponto de vista teórico, a questão que se coloca é: existe possibilidade de compatibilizar o interesse «emancipatório» do movimento indígena com o «paradigma burocrático» Ocidental no qual são inseridas as organizações indígenas através das «parcerias», «alianças» e «colaborações»? Um balanço rigoroso do movimento indígena no Brasil indica que hoje os índios perderam parte da força que possuiam na década de 80 de conquistar a adesão e solidariedade de outros segmentos da sociedade em torno de sua causa. Contudo a questão indígena continua sendo um potencial de emancipação social. Este potencial reside em dois fatos. Em primeiro lugar, na herança de um passado recente onde o movimento indígena representava uma grande força organizada (e talvez a única grande força organizada) de resistência ao «projeto de integração nacional» da ditadura militar que deu partida ao processo de homogeneização cultural e social imposto ao país. Em segundo lugar, e o mais importante fator, de, por suas características inerentes, o movimento indígena contrapor modelos de sociedades diferentes - sociedade nacional versus sociedade(s) indígena(s) -, emergindo desta contraposição uma «rivalidade» entre conhecimentos, valores, princípios, sistemas políticos e formas de organizações sociais diferentes, uma «rivalidade societária». Apesar dos riscos antevistos e de revezes já enfrentados as lutas dos povos indígenas no Brasil não podem ser definidas pelo fracasso. As iniciativas contra-hegemônicas, e antes, a capacidade dos povos indígenas gerarem iniciativas contra-hegemônicas demonstra que as bandeiras de luta dos anos 70 não foram esquecidas, mas, apenas, por vezes deixadas à espera num «varadouro», num atalho da floresta, para numa manobra estratégica serem retomadas no momento mais oportuno pelo movimento, ou por organizações locais, ou por povos indígenas em suas lutas contra-hegemônicas, sempre renovadas, contra a colonização, a subordinação e a exclusão de 500 anos.
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