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José Manuel de Oliveira Mendes Uma localidade da Beira em protesto: memória, populismo e democracia (texto não editado) O universal é o local sem paredes Miguel Torga 1. Introdução Não pretendo neste trabalho testar teorias ou construir um quadro analítico geral sobre os movimentos de protesto. Pretendo sim, ver como na prática se produz e se mantém uma luta, que argumentos, recursos e relações são mobilizados e que adversários e aliados são indicados. Numa lógica mais descritiva é meu objectivo perceber a dinâmica, as contradições, os paroxismos e as continuidades do protesto, isto é, apreender uma prática e uma mundaneidade das acções de protesto. E aqui sigo as recomendações de Michael Lynch e David Bogen (1996), que partindo de uma perspectiva etnometodológica que chamam de pós-analítica, procuram explicitar como a história, o espectáculo e a memória são construídos activa e localmente pelos actores envolvidos. O grande contraste era, no caso que estudaram, entre os documentos escritos e as histórias contadas que eram localmente organizadas e relevantes a nível biográfico. A recomendação central destes autores é de que, em vez de aplicar ou testar uma dada teoria, as histórias e os documentos devem ser vistos como recursos que os intervenientes usam para clamar, repudiar, resistir ou imputar, de forma justificável e responsável, certas relações entre biografia e história. A memória, o esquecimento são mobilizados ou não para fazer algo, para justificar atitudes e acções. Escolhi como estudo de caso o Movimento de Restauração do Concelho de Canas de Senhorim. Este Movimento assumiu nos últimos três anos uma grande visibilidade na opinião pública nacional, devido sobretudo à espectacularidade das acções empreendidas. Esta maior visibilidade deriva de uma mudança na liderança do Movimento e num consequente alargamento das redes de contacto. O Movimento assume agora como interlocutores e interpela os orgãos políticos a nível nacional (Presidente da República; Assembleia da República; direcções nacionais do partidos, etc.). Assim, a exigência de reconhecimento político tem passado, neste caso, pela tentativa de projecção e de visibilidade do espaço local a nível nacional. Procuro ver neste estudo até que ponto o sentimento de injustiça tem afastado os participantes do Movimento dos marcadores de identidade e de proximidade com o país. Na relação tensa entre pessoas e espaços tento ver também como é que os imperativos globais (e nacionais) tendem a distorcer as lealdades locais, sobretudo na sua componente político-partidária. O capítulo encontra-se dividido em três partes. Na primeira parte apresento, de forma sintética, as balizas teóricas que me orientaram na pesquisa empírica e na análise dos dados recolhidos. Na segunda parte apresento uma longa descrição das origens do Movimento, a sua organização formal e o papel dos líderes, o reportório de acções utilizado, a importância da participação das mulheres, a presença da violência e das emoções e os processos identitários pessoais e colectivos dos participantes do Movimento. Na terceira parte procedo a uma reflexão sobre o potencial emancipatório desta luta concreta, dialogando com os objectivos e as proposições teóricas mais abrangentes do projecto onde se insere este trabalho. 2. Algumas considerações teóricas Se como referem Sonia Alvarez et al. (1998), a distinção entre velhos e novos movimentos sociais, os primeiros numa lógica reivindicativa de interesses e os segundos numa lógica identitária, é uma distinção que deve ser abandonada, porque todos os movimentos avançam argumentos culturais e identitários (Johnston e Klandermans, 1995), as propostas destes autores não enfatizam suficientemente a importância das emoções e do lúdico na dinâmica dos movimentos sociais (Jasper, 1996). Com efeito, e seguindo a proposta de Vincianne Despret, as emoções são modos de definição e de negociação das relações sociais e da pessoa numa ordem moral local (1999:302). O papel das emoções é crucial não só na negociação de identidades mas também como formas de saber viver numa ordem moral, como formas de resistência. As emoções, mais do que algo que invade ou domina os indivíduos, impõem-se aos dispositivos sociais e culturais existentes. Isto é, as emoções manifestam-se em corpos e em culturas, sendo articulações de possíveis, descobertas permanentes de possibilidades de ser e de fazer. Assim, cada indivíduo encontra-se inserido em teias e trajectórias de relações familiares, laborais, associativas, políticas e culturais que lhe conferem uma posição, provisória e negociada, numa hierarquia de credibilidade (Becker, 1970: 126-134). E, como sugere Roger Gould (1995), as identidades pessoais são baseadas em experiências directas e capacitam para a acção a partir da interacção de pequena escala, local. As organizações formais são importantes porque agregam redes interpessoais diversas e aumentam a escala da acção colectiva, permitindo o diálogo, a negociação e a confrontação com os outros identitários, num processo de equilíbrio provisório e instável entre transcendência e imanência. Por outro lado, e seguindo a análise proposta por Lena Jayyusi (1991: 241), procuro indagar dos fundamentos morais da mundaneidade, pois segundo esta autora, « [...] a constituição das pessoas, das acções, dos acontecimentos, da factualidade, da objectividade, da previsibilidade e da consequencialidade são irremediavelmente morais [...]». As controvérsias e os casos polémicos são o lugar privilegiado onde se explicitam as referências comuns, os esquemas perceptivos e os quadros axiológicos. Permitem ver os sistemas de valores em confronto, os argumentos e os princípios de justiça utilizados. Como exemplos paroxísticos dessas controvérsias e polémicas temos as situações que podem originar actos de violência. E como bem mostrou Allen Feldman (1991:20), embora num contexto de violência quotidiana como a Irlanda do Norte, é importante tratar a violência como uma prática transformativa que constrói novos pólos e modalidades de actuação e de recepção das ideologias políticas. Contra a linearidade causal e a aplicação de explicações socioestruturais há que salientar, segundo este autor, a autonomia prática e simbólica dos actos de violência, que constituem as identidades dos intervenientes e os limites das suas acções presentes e futuras. Pretendo também neste trabalho analisar as categorias da indignação (Boltanski e Chiapello, 1999; Heinich, 1999), procurando detectar que mobilizações se estabelecem, que redes se criam, que inscrições são feitas (em objectos, instituições ou espaços). Tendo como objecto as categorias comuns da indignação, pergunto que condições e constrangimentos conduzem ao distanciamento dos intervenientes que permite a crítica. Quando se transformam a indignação e a crítica em acção colectiva? Que democracia e que participação nesses processos de mobilização? Que aliados e que adversários são produzidos? Que recursos materiais, relacionais e discursivos são utilizados? Qual o papel dos líderes, e serão estes incontornáveis? Argumento também que a identidade e o reconhecimento pessoais são distintos da identidade e do reconhecimento colectivos. Cabe, assim, tentar perceber como se articulam este dois tipos de reconhecimento, tomando em consideração a pluralidade dos princípios de justiça ou de grandeza (Boltanski e Thévenot, 1991). É importante verificar quais os valores em que se baseiam as operações de avaliação dos actores, quais os modos de justificação das suas acções e o grau de estabilidade e reversibilidade desses valores (Boltanski, 1990). Para o caso concreto que irei analisar parece-me importante também invocar o mapa de leitura da relação estrutura/acção das sociedades capitalistas que propõe Boaventura de Sousa Santos (2000: 253-285), que permite articular uma análise mais estrutural com a produção de subjectividades pessoais e colectivas. Dos seis lugares estruturais ou seis modos de produção da prática social das sociedades capitalistas definidos pelo autor (espaço doméstico, espaço da produção, espaço do mercado, espaço da comunidade, espaço da cidadania e o espaço mundial), fixarei as características e as lógicas do espaço da comunidade e do espaço da cidadania. Isto sem esquecer que sendo cada espaço estrutural autónomo e animado por uma lógica endógena, articula-se com as relações sociais dos outros espaços estruturais. A lógica de desenvolvimento de cada espaço estrutural não é mais do que uma forma sustentada de hibridização. O espaço da comunidade assenta nas relações sociais de produção e reprodução dos territórios simbólicos e físicos e das identidades e identificações comunitárias. Apesar da produção e reprodução das identidades estarem presentes e incorporadas nos seis espaços estruturais, cristalizam-se no espaço da comunidade. Aqui a lógica de desenvolvimento, definida como a maximização da identidade, caracteriza-se por mobilizar uma forte energia emocional, uma busca contínua de raízes. A dinâmica deste espaço é organizada a partir de obrigações políticas horizontais (relação cidadão/cidadão, família/família). A forma de poder, que o autor salienta ser a mais complexa e ambígua, opera pela criação de alteridade, pelo privilégio de criar o outro, de separar o nós dos outros. A nível do direito, o espaço estrutural da comunidade pode ser reivindicado e instrumentalizado para a constituição de identidade agressivas e imperiais ou, pelo contrário, para dar expressão a identidades defensivas e alternativas. As formas de conhecimento sendo definidas, em cada espaço estrutural, como hegemonias locais, como produção de seis formas de senso-comum, são sempre parciais e contextualizadas. No espaço da comunidade o conhecimento local, a tradição e as culturas locais são preponderantes. O espaço da cidadania é o conjunto das relações sociais que constituem a esfera pública, em particular as relações de produção de obrigação política vertical entre os cidadãos e o Estado. Aqui a lógica de desenvolvimento, definida como a maximização da lealdade, assenta na legitimação e na hegemonia. Sendo o investimento emocional fraco, este tem que ser constantemente reproduzido pelo Estado simbólico. A forma de poder no espaço da cidadania é a dominação, caracterizando-se pelo sua forte institucionalização e pela auto-reflexividade. O direito territorial ou estatal marca o espaço da cidadania e, por estar disseminado pelos diferentes espaços estruturais, concebe-os como um todo integrado. As formas de conhecimento no espaço da cidadania são o nacionalismo educacional e cultural e a cultura cívica. Apesar de me concentrar nestes dois espaços estuturais convém relembrar o que diz Boaventura de Sousa Santos: A tarefa da teoria pós-moderna [ ...] é promover em cada um dos seis conjuntos de relações sociais, através da retórica dialógica, a emergência de topoi e de argumentos emancipatórios ou de senso-comuns contra-hegemónicos [ ....] Estas lutas de conhecimnto devem ser travadas em todos os seis conjuntos de relações sociais. Tal como o conhecimento-regulação, o conhecimento-emancipação também só funciona em constelações de conhecimentos. Negligenciar este facto equivale a correr o risco de a retórica emancipatória, conquistada numa das formas epistemológicas, se constelar «ingenuamente» com a retórica regulatória de outra forma epistemológica (2000: 285). 3. Contextualização e as razões de uma luta Canas de Senhorim situa-se na Beira Alta, no distrito de Viseu, num planalto entre o rio Mondego e o rio Dão. Tendo-lhe sido atribuído foral em 1196, este foi confirmado por segundo foral de 1514 (D. Manuel I), passando a reger-se como concelho até 1852. Nesta data, os antigos concelhos de Aguieira, Canas de Senhorim, Folhadal e Senhorim fundiram-se e deram origem ao concelho de Nelas (Vários, 1975). A nova organização administrativa de 1867 permitiu a Canas readquirir o seu estatuto de concelho. Com a revolução da Janeirinha de 1868 Canas de Senhorim passou a ser de novo uma freguesia do concelho de Nelas, situação que se mantém até hoje. Se já antes havia registo de escritos e de posições contra a situação existente, é após o 25 de Abril de 1974 que as reivindicações para a restauração do concelho se vão acentuar. Em 1975, em pleno processo revolucionário, e após algumas assembleias populares, foi elaborado um caderno reivindicativo e um abaixo-assinado, ambos enviados ao Ministro da Administração Interna. Nesse caderno reivindicativo pode-se ler que, « [...] Apesar da sua ampla participação na economia e no erário nacionais, [Canas] foi, desde sempre, vítima da mais dura opressão e exploração [...]» (Vários, 1975). A acção da Câmara de Nelas era denunciada como explícita na subtracção de infraestruturas à freguesia de Canas de Senhorim, e apelava-se à consagração jurídica da descentralização da administração local. Era fixado um prazo de 90 dias para a obtenção de respostas ao caderno reivindicativo, e, findo este prazo, a assembleia popular de Canas delegaria poderes na Junta de Freguesia para cobrar e aplicar os impostos localmente. Ainda segundo o manifesto, as sedes das grandes empresas que laboravam na freguesia deveriam ser transferidas para Canas, pois «Nelas e Lisboa não podem continuar a colonizar Canas». Neste documento eram referidos como interlocutores legítimos, para a aplicação das medidas propostas, representantes do povo de Canas livremente eleitos, delegados do governo ou do MFA (Movimento das Forças Armadas), considerando-se impossível qualquer negociação com as autoridades concelhias. Os mentores da acção reivindicativa procuravam projectar a questão da autonomia administrativa de Canas para um plano de relevância nacional, tentando mobilizar as autoridades recentemente constituídas no âmbito do processo revolucionário em curso no país. Faziam-no salientando a larga base operária da população de Canas e o poderio socioeconómico desta localidade no contexto do concelho, do distrito e do país. Basicamente, os argumentos permanecem na actualidade os mesmos. Em documento constante do "Processo Relativo à Restauração do Concelho de Canas de Senhorim" elaborado pelo Movimento de Restauração do Concelho de Canas de Senhorim (MRCCS) (1999), apela-se para que « [...] deixem de vez Canas de Senhorim ser livre e digna, expurgando-a definitivamente das velhas provocações sob a forma do chamado NEO-COLONIALISMO INTERIOR [no original]». Neste documento, o Movimento propõe também, como forma de contornar os critérios demográficos impostos pela Lei Quadro de Criação de Municípios, dois processos de criação de municípios: pela lei (concelhos quantitativos, urbanos ou administrativos) e pela vontade das populações (qualitativos, rurais ou histórico-municipalistas). São os argumentos apresentados para justificar esta segunda modalidade que me interessa realçar. Eles são justificados pela ideia de interioridade e da necessidade de desenvolvimento socioeconómico equilibrado e sustentado. Assim, para que seja criado um concelho é necessário, segundo o Movimento, existirem condições e estruturas iguais ou semelhantes às do concelho mãe; haver vontade da população, manifestada em vários actos públicos (argumento da representatividade local) e a existência de tradições municipalistas (argumento histórico). Entre os protestos e reivindicações anteriores e os actuais, emerge contudo uma diferença marcante. Antes eram feitas referências constantes ao facto de Canas ser das freguesias mais populosas e industrializadas do distrito de Viseu, contribuindo para metade do seu produto interno bruto. Actualmente, os documentos do Movimento salientam, após a perda da influência económica no concelho e no distrito, o espírito de progresso e a grande qualificação dos recursos humanos da freguesia de Canas. Considera-se que um dos principais obstáculos ao desenvolvimento de Canas é a necessidade que sentem os trabalhadores qualificados de procurarem emprego fora da freguesia (deslocalização forçada). Mas, a data fundadora das reivindicações em Canas, referida constantemente nas conversas e celebrada anualmente, é o 2 de Agosto de 1982. Em Março de 1982, o Centro Democrático Social (CDS) tinha apresentado na Assembleia da República um projecto de lei para a criação do concelho de Canas de Senhorim. Tal iniciativa legislativa, institucionalizando politicamente a luta pelo concelho e congregando os diferentes sectores da população de Canas, faria reactivar o processo reivindicativo na localidade. Em Maio desse ano, a Comissão Pró-Criação do Concelho dava uma conferência de imprensa onde apresentava como exigências a criação de um código postal próprio, a paragem dos comboios rápidos, um posto clínico e a subida a discussão na Assembleia da República do projecto apresentado pelo CDS (Jornal de Notícias, 1 de Maio de 1982). Este jornal adoptou, nesta época, uma posição favorável às reivindicações do Movimento de Canas publicando várias notícias que denunciavam as condições deploráveis das infraestruturas na freguesia e enquadrando historicamente a luta pelo concelho (JN, 20 de Maio e 1 de Julho de 1982). A 30 de Julho de 1982 o projecto de lei do CDS não foi votado na Assembleia da República por falta de quórum. A 2 de Agosto de 1982, a população de Canas concentrou-se junto à estação dos Correios para não deixar sair a correspondência e exigir um código postal próprio. Constatando as pessoas que a correspondência tinha sido retirada antecipadamente, o edifício foi tomado pela população. De forma espontânea decidiram de seguida ir cortar a linha de caminho de ferro. Como salienta o articulista do JN, esta medida tinha um grande impacte devido ao facto de a linha ser internacional e servir como ponto de passagem de muitos emigrantes. Foram retirados mais de 100 metros de carris. Entretanto, a Guarda Nacional Republicana (GNR), aproveitando o facto dos populares estarem concentrados na linha férrea, tinha ocupado o edifício dos CTT. Tocou a sirene e o povo voltou aos Correios. A GNR utilizou a força, resultando 5 feridos entre os populares e alguns guardas feridos sem gravidade. A população retomou o edifício, ficando de piquete. Quando os populares voltaram à linha depararam com a presença do Corpo de Intervenção da GNR. Foi estabelecido um acordo com o comandante da GNR. A polícia não intervinha e as pessoas permaneciam na linha. No dia seguinte, após reunião com autoridades no Governo Civil de Viseu, o Movimento, em plenário popular, decidiu levantar o bloqueio. Foi também decidido observar, a partir de então, o 2 de Agosto como símbolo do futuro concelho de Canas, contra o feriado municipal de Nelas que se celebra a 24 de Junho (JN, 4 de Agosto de 1982). A 26 de Setembro de 1982 seria inaugurada uma placa comemorativa do 2 de Agosto. Até à actualidade só por um ano esta data não foi comemorada. A comemoração reveste um carácter popular e solidário, sendo distribuídas sardinhas, vinho e broa gratuitamente a todos os presentes. Como afirma um dos entrevistados, após aquela data: A única acção do Movimento era o 2 de Agosto. [...] Falhou uma vez, um ano [...] A 2 de Agosto ficou a ser a festa do povo. A festa do povo. Muita gente tinha, tínhamos aqui, às vezes pessoas que apareciam e diziam: "eh pá", emigrantes e estrangeiros que apareciam aí, "eh pá, isto é inédito, num país destes haver uma festa em que a gente come, bebe e não paga. Onde é que se viu isto?" [...] A gente quotizava-se e as pessoas andavam a pedir (Carlos Henrique, 8 de Agosto de 2000). Mas, mais importante, esta data ficou a marcar na memória colectiva a capacidade de mobilização da população à volta do ideal de restauração do concelho, projectando a luta a nível nacional. Foi a primeira acção violenta no processo reivindicativo do concelho, mostrando a vontade de resistência local às imposições das autoridades concelhias, distritais e nacionais. A comemoração anual dessa data inscrevia na prática a memória da resistência e da solidariedade. Outra data politicamente marcante para o Movimento foi ter concorrido em 1986 com uma lista própria às eleições para a junta de freguesia, apresentando-se como único opositor o Partido Socialista (PS). Saíu vencedor o Movimento por uma larga margem. Esta data viria a coincidir com o início da crise da Companhia Portuguesa dos Fornos Eléctricos. A junta de freguesia tomou muitas posições denunciando a situação crítica daquela empresa, e a situação laboral difícil na localidade viria a sobrepor-se na prática às exigências de autonomia administrativa. Nas restantes partes deste capítulo, concentrar-me-ei nos anos mais recentes da luta pela restauração do concelho de Canas, renovada e intensificada a partir de 1998. 3.1 Organização formal e os líderes Em finais de 1997, após uma fase de estagnação, alguns dos dirigentes que tinham permanecido desde 1975 contactaram Luís Pinheiro para a reactivação do Movimento. Luís Pinheiro procurou instituir uma estrutura directiva do Movimento que fosse colegial e que congregasse os representantes de todos os partidos. Numa reunião alargada foi informalmente eleito como líder. A direcção do Movimento manteria a presença de dirigentes anteriores, que simbolizavam a continuidade da luta e o seu enraizamento popular, juntando-se-lhes representantes do Partido Socialista (PS), do Partido Social Democrata (PSD), do Centro Democrático Social/Partido Popular (CDS/PP) e de outros partidos de esquerda. Actualmente, o PS mantém permanentemente só um representante e os outros partidos de esquerda não contam com nenhum representante. Apesar do esforço de manter o Movimento como suprapartidário, as lógicas político-partidárias acabam por ser o factor de maior fricção e de tensão no interior do Movimento e dos simpatizantes. Com efeito, a identificação político-partidária é um marcador identitário crucial, sobretudo pelas divisões pessoais, familiares e relacionais que cria. Nesta fase da luta, o grande inimigo do Movimento é o Partido Socialista a nível nacional, distrital e concelhio, sobretudo algumas figuras marcantes, tais como o presidente da Câmara de Nelas, José Lopes Correia, o líder da distrital de Viseu, José Junqueiro, o presidente da Assembleia da República, Almeida Santos, e o líder da bancada parlamentar, Francisco Assis. Aqueles que na freguesia são do PS e se sentem também próximos do Movimento encontram-se divididos entre as solidariedades e as pressões locais e a fidelidade biográfica, política e ideológica ao partido. A resolução ou atenuação dos dilemas ideológicos em que se encontram enredados passa pela personalização das atitudes negativas do partido a que pertencem. Salvaguardando o partido, que em Canas sempre teve forte expressão eleitoral, os simpatizantes ou militantes do PS atribuem as posições negativas do seu partido em relação a Canas a traços de personalidade e a interesses pessoais de alguns dirigentes concelhios, distritais e nacionais. A orientação partidária pessoal de algumas pessoas que entrevistei, em quase todas decidida logo após o 25 de Abril, exerce uma influência decisiva e marcante nos níveis identitários activados e nos níveis de implicação política e social mais vastos. Esses níveis vão do pessoal e único, às identificações espaciais e intitucionais intermédias e às de cariz mais abrangente (por exemplo, com o país). Por razões de identificação com o líder do partido, por escolha ideológica assumida, por influência das dinâmicas locais, dos ódios e paixões, e sobretudo pela escolha partidária dos adversários pessoais e familiares, o partido escolhido marcará indelevelmente as opiniões e as posições políticas. No Movimento actual, estamos perante o cruzamento de diferentes memórias, com espessuras temporais distintas. Para o novo líder, as referências marcantes reportam-se aos anos mais recentes (1998-2000). Para aqueles que estão no Movimento desde 1975 o que é saliente, com altos e baixos, é a permanência da luta e da capacidade de resistência. E cabe referir que alguns entrevistados distinguiram claramente, nos objectivos e métodos adoptados, o Movimento actual do anterior. A capacidade estratégica de mobilização depende, assim, do apelo orientado às diferentes memórias e às histórias e narrativas comuns. Como afirma Jeffrey Rubin, « [...] estas ambiguidades e contradições sugerem que é a coexistência de formas múltiplas de diferença que anima um movimento social radical» (1998:160). A maior tensão que perpassa o Movimento, visível em muitas das reuniões que participei, advém do equilíbrio precário entre os radicais e os moderados. Os moderados, representados pelo líder, têm uma visão mais política e de médio e longo prazo. Situam a luta numa lógica de estratégia político-partidária, favorecendo a negociação e a viabilização institucional, aguardando, se necessário, um alinhamento nacional das forças políticas que seja mais favorável ao processo de constituição do novo concelho. Os radicais, menos ligados à lógica partidária, baseiam os seus argumentos numa lógica moral, de ofensa e de indignação pessoais e colectivas. O argumento central que fundamenta esta posição moral foi bem resumido por Manuel Alves quando afirmou que: Isto é assim. Há pessoas que gostam de viver sob o, debaixo do domínio de outros. Há outros que não gostam. Canas de Senhorim não gosta. É uma terra que acha que não deve viver subjugada a outras. Portanto, acham que deve ser libertada, como qualquer outra terra. Como Portugal achou e como outras nações acharam, para não serem subjugadas a outras (24 de Agosto de 2000). O grande atenuante para uma polarização de posições entre os participantes mais radicais e os moderados, e que permite alguma tolerância mútua, é a ideologia de irmandade e o papel crucial da família na estruturação das relações sociais. A grande proximidade entre os homens advém de um passado comum como empregados da Companhia de Fornos Eléctricos ou das Minas da Urgeiriça. Muitos participaram juntos em acções de protesto e o facto de terem trabalhado em conjunto dava-lhes uma comunhão e um capital de confiança muito difíceis de quebrar. Esta ideia de irmandade e a memória de trabalho comum obviem à radicalização de posições contra aqueles que se mostram menos favoráveis ou contrários ao Movimento. Embora se ouçam algumas vozes ameaçando com acções mais extremas contra aqueles que se mostram contrários ao Movimento, estas não têm sido concretizadas. Em muitos casos é avançado o exemplo do radicalismo de Vizela, mas com o intuito de lamentar a não aplicação local de acções semelhantes. Basicamente, pelas posições presentes no terreno, temos um contraponto entre um pragmatismo político e uma visão moral baseada nos princípios da dignidade, da honra e do familismo. Além das capacidades pessoais de organização e de retórica, o grande trunfo do líder actual foi de ter mobilizado e interessado um partido com grande projecção nacional como o PSD para a causa da elevação de Canas a concelho. O projecto apresentado em 1982 tinha sido da iniciativa do CDS, e nos anos seguintes (1983, 1986 e 1988) a iniciativa foi do PCP, dois partidos com representação parlamentar pouco expressiva. O apoio do PSD relançou a esperança daqueles que lutavam pelo concelho e alargou a base de apoio ao Movimento. A nível organizativo e logístico é importante o apoio da junta de freguesia de Canas ao Movimento. É na sua sede que se realizam as reuniões semanais do Movimento com a população. Estas reuniões, instituídas a partir de 1998, são um exercício de confrontação e de exposição de argumentos. Como referiu em conversa uma pessoa: As reuniões são pedagógicas. No início era uma grande confusão. Falava-se de tudo e mais alguma coisa. As pessoas vinham com os ódios e os rancores pessoais. Pensou-se em acabar com as reuniões. As pessoas aprenderam a estar nas reuniões. Aprenderam a apresentar temas pertinentes, a não se exaltarem e a exporem os seus pontos de vista. Esta aprendizagem de um debate democrático actualiza e ritualiza a proximidade da liderança do Movimento às pessoas. Embora as reuniões sejam pautadas pelos temas apresentados por Luís Pinheiro, dado o seu relacionamento privilegiado com os orgãos políticos nacionais e com os meios de comunicação, muitas pessoas assumem um papel interventivo nas reuniões. Estas são vistas pelos dirigentes como uma oportunidade para controlarem os elementos mais radicais, permitindo a vocalização do seu descontentamento e a racionalização dos argumentos. Mas, também obrigam os dirigentes a confrontarem-se com resistências, a explicitarem atitudes, afirmações e acções. Embora as decisões a tomar sobre acções concretas do Movimento sejam tomadas no grupo restrito dos dirigentes, a justificação semanal dessas decisões tornou-se um imperativo. Por outro lado, cabe referir que as pessoas que regularmente vão às reuniões são, na sua maioria, consideradas como mediadores políticos e de opinião privilegiados na localidade. Possuem redes alargadas de contactos e de conhecimentos, sendo-lhes atribuída uma posição destacada na hierarquia de credibilidade local. É de salientar também que os participantes nas reuniões activam constantemente uma política de vigilância em relação a tudo o que se diz ou escreve nos meios de comunicação locais, regionais e nacionais quanto a Canas. Desde os diários desportivos, com incorrecções quanto à localização de Canas ou dos seus lugares, até declarações de dirigentes políticos, jornalistas, etc. nas rádios e nas televisões, os participantes nas reuniões procedem a uma prática de leitura fina, desconstrutiva, das notícias ou dos relatos, imputando intenções, definindo aliados ou adversários, categorizando posições favoráveis ou desfavoráveis e, consequentemente, colocando os analisados num continuum de proximidade (valorização) ou de afastamento (desvalorização). As reuniões semanais, um exercício democrático e exigente de proximidade da população, são uma obrigação para os dirigentes de justificação e apresentação perante os seus representados. A liderança nunca está dada como adquirida, e obriga a um exercício constante de retórica, de argumentação e de justificação. É sempre vista e lida como provisória, como exigindo um trabalho constante de afirmação e confirmação. O saber ouvir e aceitar as críticas nas reuniões é um indicador da democraticidade da liderança. O saber falar e expor os seus pontos de vista mostra a capacidade do líder para representar o Movimento perante o exterior (meios de comunicação, políticos), onde se exige um bom domínio da linguagem, boa apresentação física e uma argumentação persuasiva. O carácter provisório da liderança, sempre dependente dos resultados concretos e da consecussão do objectivo de autonomia administrativa, e do equilíbrio de forças entre os elementos mais radicais e os que propõem uma estratégia política e negociada, estava bem presente na entrevista que me concedeu Luís Pinheiro: Eu tentei, e só consegui que as pessoas estivessem comigo e passassem por cima da lógica dos partidos e do partido de cada um. Sempre se respeitou o partido de cada um. Este foi o grande exercício do meu mandato, chamemos-lhe assim, no Movimento. Foi abrir o jogo às pessoas. Abrir tudo às pessoas. Temos reuniões abertas para toda a gente. Nenhum político faz isto. Eu se o quisesse não o fazia. Era respeitado na mesma. As pessoas acompanhavam-me na mesma. [ ...] E é complicado a gente enfrentar as pessoas todas as semanas. Aliás, porque nem todos pensam da mesma forma. Toda a gente pode dar a sua opinião. Uns acham que se deve partir, outros acham que não se deve partir. Isto é muito difícil de gerir e poucas pessoas se querem expor a este tipo de situações. [ ...] Eu aprendi muito com as pessoas e as pessoas ensinam-me muito [ ...] Agora compreendo que a nível político, uma Câmara qualquer, não pode abrir isto assim senão instalava-se o caos. Mas é bom que as pessoas se convençam que as pessoas, o povo, cada vez é menos burro. O povo cada vez sabe mais, cada vez vê mais. E já ninguém é mais esperto que ninguém. Está-se a ver estes políticos cada vez irem-se mais abaixo de um momento para o outro, porque realmente eles pensam que continuam a trabalhar para burros. Não conseguem perceber que à volta deles hoje em dias as pessoas estudam. Hoje em dia as pessoas têm outro nível cultural, as pessoas têm internet, têm televisão, as pessoas lêem jornais, ouvem rádio e estão informadas. Começam a perceber todo o sistema. Há que ter outro respeito pelas pessoas. [ ...] E eu acho que isso é um exercício que eu vou fazer e vou continuar até ao fim. E se tiver que cair por isso, caio com gosto e caio com honra. Porque eu vou até ao fim a dizer a verdade às pessoas (19 de Setembro de 2000). Aqui, o entrevistado volta a enfatizar a intenção de manter o Movimento como um aglutinador das pessoas para além ou com as opções político-partidárias de cada um. Salientando que se pensa como um democrata, refere que as reuniões semanais foram uma ideia sua e que tinha sempre a opção de não as fazer. Aqui, acentua o seu papel como líder, como capaz de impor uma orientação e uma prática. Mas, tendo instituído o ritual das reuniões, acabar com as mesmas seria um exercício perigoso para a sua liderança. Ele próprio reconhece que as pessoas estão muito mais informadas, e as reuniões servem também para canalizar paixões, emoções, sentimentos e explicitar e tornar públicas críticas e radicalismos. Sem as reuniões, a capacidade de controle dos elementos mais radicais seria quase uma tarefa impossível. Sem qualquer enquadramento, as suas acções tornar-se-iam imprevisíveis e poderiam pôr em risco toda a estratégia de negociação institucional do Movimento. A verbalização dos radicalismos torna-os visíveis, e os argumentos apresentados podem ser constestados, normalizados e apaziguados. O entrevistado também assume que tal política de exposição e de debate contínuo só tem eficácia e é viável numa fase de luta, para manter a adesão das pessoas e dar credibilidade à liderança do Movimento. A normalização e institucionalização da vida política, para obviar à instalação do caos, obrigará a uma suspensão dessa prática democrática de diálogo. O que separa a liderança do Movimento dos restantes simpatizantes tem a ver com os meios para atingir o objectivo da elevação a concelho. Enquanto os primeiros adoptam uma postura assumidamente política, reflectindo e sopesando estrategicamente todas as acções, procurando mobilizar os orgãos políticos a nível local, regional e nacional, os segundos, com memórias de longas e duras lutas, exigem resultados imediatos, propondo acções drásticas, sobretudo orientadas contra o poder local que os domina. Este desfasamento entre as estratégias e os níveis territoriais de pertinência da acção gera ambiguidades, contradições e compromissos que têm que ser constantemente negociados, avaliados e controlados. A relação da liderança do Movimento com os simpatizantes, na linha do que sugere Boaventura Sousa Santos (2000; 309), aparece como uma forma negociada de transformação do poder em autoridade partilhada. Os dilemas na escolha entre acção institucionalizada/não institucionalizada, entre acções legais/não legais e entre acções violentas/não violentas com que se confrontam todos os movimentos sociais (McAdam e Tarrow, 2000), restringem-se mais à liderança dos movimentos do que aos seus simpatizantes e, muitas vezes, estes acabam por ultrapassar ou obrigar os líderes a acções mais radicais não previstas e não programadas. 3.2 O reportório de acções O Movimento a partir de 1998 adoptou um conjunto de estratégias de acção que o projectaram a nível nacional, e que apareceram como um corte com as acções passsadas. A modernização do reportório de acções passou pela atenção extrema à mediatização da luta, adoptando formas de actuação espectaculares. O líder do Movimento reconhece que essa mediatização foi a parte mais difícil da luta, porque há sempre o risco das afirmações ou acções serem interpretadas negativamente, prejudicando os objectivos do Movimento. O alvo das acções passou a ser, salvo em casos pontuais, os orgãos e as instituições políticas a nível nacional, sobretudo a Assembleia da República. O momento mais significativo na intensificação da luta seria o dia 19 de Novembro de 1998, data em que estava agendada a discussão da elevação a concelho de mais de 20 localidades. A conferência de líderes no parlamento acabaria por assentar na discussão e votação somente de dois novos concelhos, Trofa e Odivelas (JN, 19 de Novembro de 1998). Para as pessoas que entrevistei este foi o momento mais negativo de todo o processo de luta desde 1975. O alinhamento partidário nesta data era favorável a Canas (todos os partidos da oposição tinham apresentado projectos), como aconteceu com Trofa, em que só o Partido Socialista votou contra. A notícia do não agendamento de Canas foi recebida por aqueles que se encontravam no parlamento com grande emotividade. Como me disse Carlos Henrique, Quando a gente estava na Assembleia da República, há tempos, quando subiu, quando estava previsto subir a plenário e quando só subiu Vizela [ foi Trofa e não Vizela] e Odivelas e nós não subimos, eu estava lá na Assembleia da República. E quando nos vêm dizer: "eh pá, Canas não subiu!". Eh pá, era uns a chorar, éramos quatro, estávamos nós quatro, eram uns a chorar e eu gritava, gritava. [ ...] Nós chorávamos, uns para um lado outros para outro. Gritávamos, chorávamos, pá. Tomámos conta da Assembleia, gritávamos, era tudo a fugir, tudo a espreitar, era tudo, aquilo foi, foi, foi o momento mais dramático, para mim foi esse (8 de Agosto de 2000). A indignação contra o poder político e os seus jogos de estratégia ficava a marcar a partir de então a atitude das pessoas mais directamente ligadas à luta de Canas. E era uma indignação contra a assimetria de poder e o não respeito dos compromissos assumidos. Como referiu Carlos Henrique, «Isto é chocante, pá. Fazem pouco da gente, e depois se, a gente a saber que eles estão a gozar a gente e a gente sem poder fazer nada. Já viu ? (uh). Julgam-se os maiorais, sobranceiros, são os maiores, são os deputados, são os maiores e vocês aguentem e acabou». Logo em Janeiro de 1999 foi enviada uma petição ao presidente da Assembleia da República, exigindo a discussão e votação dos projectos de lei sobre Canas. A 2 de Fevereiro era feita uma manifestação junto da Assembleia da República, com 234 cidadãos de Canas, um por cada deputado. A 2 de Março iniciava-se uma greve de fome de 12 homens de Canas nas escadarias da Assembleia da República. Esta seria suspensa no dia seguinte, em sequência dos apelos de alguns deputados do PSD e da promessa deste partido em agendar a discussão do projecto sobre Canas. A 9 de Março pessoas de Canas manifestam-se em frente da Assembleia da República com cordas de enforcado ao pescoço. Para esse dia estava marcado o agendamento da discussão dos projectos dos partidos sobre Canas. A comunicação social escrita atribuiu o não agendamento à intervenção directa, pela primeira vez desde que ocupava o cargo, do presidente da Assembleia da República, Almeida Santos (Diário de Notícias, 24 de Março de 1999). Estas últimas acções tiveram repercussões assinaláveis nos meios de comunicação de âmbito nacional. Significativos foram os cartoons publicados no Diário de Notícias e no Público. A 18 de Março, depois de uma sessão de esclarecimento pelo Movimento em Canas, populares cortaram a linha da Beira Alta. No dia 28 de Março, pelas comemorações a Almeida Garrett no Porto com a presença do Presidente da República, populares de Canas manifestaram-se pelo concelho. Segundo o relato do jornalista Domingos de Andrade do Jornal de Notícias, Jorge Sampaio não gostou desta acção e apelou à unidade nacional contra as divisões administrativas (JN, 28 de Março de 1999). Mais significativo foi o acto simbólico de recusa de cidadania política de muitos manifestantes que, nesse mesmo dia e no Porto, queimaram em urna de voto improvisada os seus cartões de eleitores. Demonstravam, assim, o seu afastamento das instituições e do sistema político português, abdicando do seu direito de voto. Estas acções traduzem uma estratégia explícita de pressão contínua sobre os orgãos de soberania, procurando dar visibilidade ao Movimento e embaraçar as autoridades nacionais. Mas, mostram também uma grande capacidade de mobilização da população que consegue estar presente em número significativo em diferentes cenários e situações. A partir de 19 de Abril de 1999 iniciou-se uma greve de fome por 10 elementos da direcção do Movimento nas escadarias da Assembleia da República. Esta prolongou-se até ao dia 25 de Abril. A memória desta acção é dolorosa para os que nela participaram. O líder do Movimento foi acompanhado na greve pela sua mãe, uma senhora de idade avançada, que o tornou mais vulnerável e sensível ao sofrimento dos que o acompanhavam. Também quando entrevistava um dos participantes na greve de fome, a esposa lembrou em silêncio e com um olhar turvo pelas lágrimas, que procurou disfarçar, esses dias de espera e de ausência. Mas, o que mais impressionou os participantes e as pessoas de Canas foi a indiferença dos deputados e dos políticos para com os grevistas. Ninguém veio falar com eles ou saber das suas razões. Esta greve prolongada culminou no dia 25 de Abril, com o início das comemorações da Revolução de Abril. Na Assembleia da República decorreu a sessão solene, com a presença do presidente da Assembleia Nacional da Guiné-Bissau e do presidente da República de Moçambique. Os manifestantes de Canas chamaram de fascista o presidente da Assembleia da República e o Presidente da República quando estes chegaram para a sessão solene (JN, 26 de Abril de 1999). Nas histórias que as pessoas de Canas contam sobre os acontecimentos, e não relatadas pelos jornais, também figura a surpresa que tiveram pela pouca segurança montada na Assembleia da República naquele dia, o que lhes permitiu chegarem muito próximo do primeiro-ministro e verem o medo e a surpresa estampados no seu rosto. Era uma dessacralização e uma inversão momentânea da assimetria e da hierarquia de poder. Mas, os acontecimentos mais mediatizados estavam guardados para as comemorações oficiais no Parque das Nações. Os manifestantes que vinham de Canas, com as bandeiras ornamentadas com cravos negros em sinal de luto, iam acompanhando pela rádio e por comunicação dos conhecidos e familiares o que se estava passando na Assembleia da República. Segundo os seus relatos posteriores, os ânimos estavam muito exaltados e quando chegaram ao Parque das Nações iam preparados para o pior. As principais figuras do Estado, sobretudo o Presidente da República e o presidente da Assembleia da República, foram recebidos pelos pessoas de Canas com gritos de «fascista, fascista». Quando foi tocado o hino nacional os protestos, gritos e cânticos continuaram. Segundo alegam alguns dos participantes, eles não se aperceberam que a banda estava executando o hino. Este foi considerado, pela maioria das pessoas que entrevistei ou com quem conversei, o momento mais significativo da luta por Canas a concelho. A projecção nos meios de comunicação foi enorme e, argumentam alguns, conseguiram mostrar a governantes estrangeiros e ao corpo diplomático a situação de injustiça e opressão existente em certas regiões e localidades do país. Estes acontecimentos, por outro lado, foram avaliados de uma forma bastante negativa pelos comentadores dos orgãos de comunicação social nacionais. Como exemplo, na sua crónica na revista Visão (29 de Abril a 5 de Maio de 1999), com o título «25 de Abril merecia mais», Cáceres Monteiro, após escrever que as comemorações do 25 de Abril se revelaram decepcionantes e rotineiras aborda mais à frente a acção dos populares de Canas. Citando: [ ...] Verificou-se, para mais, a lamentável manifestação dos habitantes de Canas de Senhorim, nas escadarias de São Bento (nem faltaram os insultos aos Presidentes da República e do Parlamento) e na parada militar - com vaias e assobios ao hino nacional. Depois deste acto de extrema má educação cívica, e a menos que a população de Canas desautorize a delegação de hooligans políticos, a localidade bem pode desistir da sua pretensão. Ruim freguesia! Este comentário de Cáceres Monteiro insere-se numa lógica jornalística inerente ao próprio formato de artigo de opinião, que Shanto Iyengar (citado em Jasper, 1997:79) chama de enquadramento episódico (histórias contadas como acontecimentos únicos) em contraponto com um enquadramento temático (acontecimentos são colocados num contexto social mais vasto). Nenhuma informação é dada pleo cronista sobre os motivos da manifestação. Além do mais, a aplicação da categoria hooligans, normalmente associada a jovens desordeiros do futebol, e num processo claro de estigmatização, denigre os manifestantes de Canas, incluindo na mesma categoria mulheres, pessoas saídas de uma greve de fome de muitos dias, crianças, jovens, operários com uma longa tradição de luta e de resistência, funcionários públicos, empresários, etc. Na longa tradição de luta populista de Canas, os manifestantes, contra uma visão intelectual e jornalística do 25 de Abril (lógica de apropriação, normalização e institucionalização), procuraram desconstruir na prática as categorias reificadas de liberdade, democracia e povo. Ao entoarem os slogans da revolução procuraram criar um espectáculo dentro do espectáculo, desmontando e denunciando a lógica exibicionista da comemoração. Procediam à recuperação, por invocação, da origem revolucionária e popular da celebração da liberdade. Tal intenção pode ser lida nos argumentos apresentados por Manuel Alves: A imprensa tem estado mal ao não se informar devidamente o porquê destas manifestações, destas lutas. Não é chegar e criticar. Como o fizeram por exemplo no 25 de Abril [ de 1999] , em que criticaram aquilo que para mim não deve ser criticado. Porque, repare, eles até aí falham, porque o 25 de Abril é um tempo de luta e liberdade. E não é por acaso que ele foi feito. Exactamente para libertar as pessoas. E nós achámos que o dia 25 de Abril era o ideal para a gente apelar à nossa liberdade. E assim o fizemos. Agora, dizer que houve excessos, que houve, mas qual é a luta que não tem excessos? Também o líder do Movimento, Luís Pinheiro, considera que esta foi a data marcante desde que assumiu a liderança do Movimento, embora a sua visão seja mais estratégica: Não, eu penso que nós tivemos ali, o momento mais marcante que nós tivemos foi, pode ter sido negativo mediaticamente, foi o 25 de Abril. O 25 de Abril marcou decisivamente na cabeça dos políticos que isto era um problema que eles tinham que o tratar de outra forma. Pode ter sido uma forma complicada, mas marcou decisivamente. [ ...] Foi um processo que tivemos que levar a pulso para ganhar a tal mediatização, para ganhar uma posição na cabeça e no espírito dos políticos. E nós ganhámo-la. No fundo, isso está perfeitamente consagrado. [ ...] Eu hoje entro na Assembleia da República e toda a gente me conhece. As acções do Movimento continuariam ao longo do ano, com grande visibilidade mediática. Estariam presentes em Tondela quando o primeiro-ministro inaugurou um aterro sanitário. Apupariam o presidente da Assembleia da República aquando da sua entronização em Viseu pela confraria gastronómica do Dão (Público, 24 de Maio de 1999). E, no dia 10 de Junho, dia de Portugal, de Camões e das comunidades portuguesas, compareceriam em Aveiro amordaçados (Público, 10 de Junho de 1999). Também seriam boicotadas as eleições europeias (em Junho) e as legislativas (em Outubro), assim como as que visavam constituir nova assembleia de freguesia de Canas. Parece pertinente referir, para terminar este ponto, que uma notícia da revista Visão (edição de 25 de Novembro a 1 de Dezembro de 1999) indicava que o Presidente da República tinha revisto a sua posição quanto a Canas de Senhorim. Citando: «[ ...] Os seus assessores fizeram um levantamento das causas históricas e sociológicas que estão por detrás da vontade de separação do concelho de Nelas e Jorge Sampaio promete acompanhar o caso de perto, ajudando a atacar os problemas de fundo daquela comunidade». O Presidente da República tornava-se num potencial aliado, mantendo até à actualidade um assessor em contacto regular com os dirigentes do Movimento. As acções do Movimento, de grande intensidade e frequência no ano de 1999, podem ser vistas como tentativas de, na prossecução do objectivo de elevação de Canas a concelho, e na relação com os poderes local e nacional, redefinir as posições e as acções do Estado, contrapondo a uma visão centralista e centralizadora um localismo de resistência, a uma lei despótica uma lei democrática (Santos, 2000:309-319), baseada na memória de uma luta e de ideais populistas e igualitários. No espaço estrutural da cidadania o apelo é a uma democracia radical, tanto na sua componente vertical (relação cidadãos/Estado) como na componente horizontal (relação entre os cidadãos e suas associações) (Santos, 2000: 309-319). 3.3 A participação das mulheres As mulheres em Canas têm uma forte e constante presença nas acções públicas levadas a cabo pelo Movimento. São elas que entoam os cânticos nas manifestações e nas sessões de esclarecimento. Estiveram presentes nos boicotes aos actos eleitorais que presenciei, pernoitando toda a noite em vigília permanente. Participam também nas reuniões semanais. As mulheres ocupam, assim, uma posição própria e visível no espaço público. Mas, não ocupam nem ocuparam no passado qualquer lugar de destaque na estrutura dirigente do Movimento. O papel e a presença das mulheres é um dado adquirido para as pessoas, não se questionando estas sobre a divisão sexual do trabalho político de representação. Alguns entrevistados atribuiram a visibilidade das mulheres no espaço público de protesto a um traço de personalidade das mulheres beirãs, desde sempre muito determinadas e participantes em questões que as afectem directamente. Outros procuraram razões socioeconómicas, pois desde o encerramento das grandes empresas que estavam sediadas na localidade foram as mulheres que mais sentiram os primeiros anos de recessão e de dificuldades económicas, vendo-se obrigadas a procurar trabalho, muitas vezes por turno e fora de Canas. O próprio líder do Movimento reconheceu que este é um tema que tem dificuldade em abordar e de explicar, embora tenha salientado que as mulheres são muitas vezes as mais radicais e as mais difíceis de controlar nas acções públicas empreendidas pelo Movimento. Nas próprias reuniões semanais do Movimento, as mulheres intervêm com comentários e sugestões mas em raras ocasiões assumem protagonismo. Esta delegação do trabalho de representação e de mediação com o exterior é assumida como natural, e nunca assisti a um momento em que tal situação fosse questionada ou até discutida. Os argumentos apresentados por Clara Simões, na entrevista que me concedeu, parecem-me interessantes. José Mendes: Eu tenho reparado que há muitas mulheres que vão às reuniões, que vão às manifestações, mas não há nenhuma na direcção. Clara Simões: Sim, na direcção realmente eles não puseram nenhuma ainda, vá lá, penso que não está nenhuma, não é?, embora haja muitas a colaborar. José Mendes: Mas nunca houve nenhuma na direcção? Clara Simões: Não, penso que não. José Mendes: Porque é que acha que é isso? Acha que seria importante ter ... Clara Simões: Quer dizer, naquela altura, pronto, também ainda havia aquele, na minha ideia pessoal, acho que ainda era naquela fase em que o homem era o homem e ele é que sabia falar com os políticos, pois ele é que tinha, vá lá, um bocadinho de machismo, pronto. Hoje, claro, a coisa continuou assim e tem continuado, e ainda não se lembraram talvez de meter alguma guerreira, sei lá! Ainda não surgiu a ideia, não é? (uh, uh) E nós como também sabemos que a coisa está bem entregue, também deixamos andar, não é? (uh, uh). Pois realmente eles têm sido extraordinários, têm sido, pronto, coitados, por vezes noites mal dormidas e tudo, a caminho de Lisboa e a vir. Pronto, e coitados, realmente têm sido impecáveis. No aspecto de não haverem ainda mulheres, esperamos que para a próxima, para as próximas eleições eles metam alguma, não é?, não sei (27 de Julho de 2000). A entrevistada, que até esta pergunta concreta, falara sempre no Movimento como uma estrutura aglutinadora dos habitantes da localidade, sobretudo como superação das lógicas e das identificações partidárias de cada um, usando sempre o pronome «nós», num claro processo de identificação colectiva, vai aplicar neste tema o pronome «eles» para caracterizar o Movimento. Ao argumentar que o Movimento anteriormente começou por aplicar uma política sexista («machismo») na escolha dos líderes, por se considerar que os homens estavam mais bem preparados para dialogarem com os políticos, ela procurou distanciar-se dessa lógica e dessa prática sexistas. Na fase actual, onde se pressupõe uma maior igualdade nas relações entre homens e mulheres, e classificando as mulheres simpatizantes do Movimento de «guerreiras», Clara Simões atribuiu a continuidade dessas práticas sexistas a um esquecimento, mostrando até que ponto este tema é um interdito da retórica envolvendo as acções do Movimento. Esperando que num futuro próximo tal situação se altere, Clara Simões procura logo reparar as suas afirmações enfatizando o esforço, a dedicação, o sacrifício e a abnegação dos actuais dirigentes. Na descrição rápida que faz das atribuições dos líderes, como, por exemplo, as idas a Lisboa, as noites longas de trabalho e de reuniões, aplica a lógica tradicional da maior disponibilidade de tempo dos homens, fruto de uma divisão sexual entre o trabalho doméstico e o trabalho de apresentação e representação públicas. A resolução do dilema ideológico que a minha questão lhe colocou, passou também para Clara Simões pelo reiterar das qualidades da liderança, não sendo necessária, segundo ela, qualquer intervenção das mulheres. 3.4 Violência e emoções No caso concreto de Canas, esta comunidade é marcada por uma grande desconfiança em relação a tudo o que lhe é exterior. Uma vigilância constante é mantida sobre os estranhos, procurando-se avaliar das intenções e das orientações quanto à causa em que se encontram envolvidos. Tendo participado desde 1982 em algumas situações violentas, as pessoas vêem a violência como um último recurso para dar visibilidade às suas reivindicações. Como me disse Carlos Henrique, comentando a situação de desenvolvimento em Canas quando comparada com 20 anos antes: «Só dá vontade de um tipo se atirar à pedrada a estes gajos. E matar um. Isto só vai lá quando a gente matar e morrer gente. Isto só vai quando morrer gente. É capaz de ser eu». Também Carlos Joaquim apresentou argumentos semelhantes: Temos que seguir para a luta custe o que custar, tenhamos que levar porrada, isto tem que ser resolvido. Conhecemos a história da política portuguesa. Só quando corre sangue é que se resolvem os problemas. É ver a IP 5. Morreram cento e tal pessoas para fazerem a terceira via. [ ...] Tem que haver sangue para eles se sentarem à mesa e resolverem. Quando as coisas é antes que têm que se resolver. [ ...] Temos aqui homens activos. Se isto der para o torto eles [ os políticos] são responsáveis. Para descrever o papel da violência e das emoções na produção e reforço das identidades pessoais e colectivas e na definição de mundos possíveis, passo a narrar dois episódios que presenciei. O primeiro relacionou-se com a marcação de eleições intercalares para a assembleia e junta de freguesia de Canas. Por consenso de todos os representantes locais dos partidos políticos mais representativos nenhuma lista foi apresentada, mantendo-se a intenção de boicote às eleições. Mas, para surpresa de todos, apareceu uma lista do Partido de Solidariedade Nacional (PSN). As reacções das pessoas, nas reuniões semanais, foram bastante negativas. Consideravam esses candidatos mercenários, pois não tinham nada a ver com a localidade e não eram conhecidos de ninguém. A sua candidatura era considerada uma ofensa e uma degradação completa da integridade e dos valores políticos, e vista como uma intromissão do exterior na vida e na ordem locais. Para o dia 8 de Maio estava marcada, pelas 18 horas, a apresentação na sede da junta de freguesia da lista candidata. Trinta minutos antes já centenas de pessoas se tinham colocado em frente do edifício da junta de freguesia. As mulheres, próximo da porta, entoavam os cânticos da luta de Canas. Havia uma grande ansiedade e quase a certeza de que os candidatos daquele partido não compareceriam. Mais tarde, chegou um tractor que ostentava uma grande bandeira de Canas e um cartaz onde se podia ler a seguinte inscrição: «Isto [ um pau com uma forca] é para aqueles que queiram atraiçoar Canas». Esta viatura foi recebida com muitos aplausos por parte das pessoas. No jardim do edifício contíguo à junta de freguesia, onde funciona o posto da Guarda Nacional Republicana (GNR), notava-se um reforço dos efectivos e a presença de um graduado. Pelas 18h15m, perante um murmúrio de espanto das pessoas, aproximaram-se, subindo a avenida, três veículos. Minutos mais tarde um desses veículos era rodeado pelas pessoas que começaram a bater e a amolgá-lo, conseguindo quebrar o pára-brisas. A condutora, em pânico, acelerou sobre a multidão e acabou por sair do local. As pessoas estavam exaltadas. Dirigiam-se a mim, dizendo: «Já viu isto? Isto é uma ofensa. É uma humilhação terem o descaramento de virem para aqui». Um dos ocupantes de outro veículo, que depois se verificou ser um polícia encarregue da segurança dos candidatos, veio dialogar com o comandante da GNR, mas acabou por se retirar ameaçado pela população em fúria. Durante todos estes acontecimentos a GNR não saíu nunca do jardim do posto, nem efectuou qualquer intervenção. Este episódio revelou vários factos importantes. Uma população em fusão momentânea contra uma força externa, resistindo à intromissão do exterior. Os representantes do PSN, para além do seu estatuto como candidatos à junta de freguesia, transportavam consigo a lógica assimétrica e opressora do poder político nacional, cristalizavam naqueles breves momentos anos e anos de luta contra a indiferença, a superioridade e a dominação do exterior. Por outro lado, as mulheres, que se tinham colocado à porta da junta, admitiram que a sua intenção primeira era despir a candidata, num acto de humilhação e de despojo, numa intenção clara de envergonhamento. A violência desta intenção e a violência dos acontecimentos concretos justificavam-se pela construção dos candidatos como representantes de categorias de distanciamento, como políticos, como mercenários, despersonalizando os seus traços ou características. Nada permitia atenuar essa categorização negativa, nenhuma pertença, nenhuma identidade. Por outro lado, a inacção das forças policiais mostrava à evidência a autarcia absoluta da localidade, e a impotência do Estado para deter o monopólio da violência e sancionar os infractores. Refira-se que este episódio praticamente não teve eco nos meios de comunicação social, mas foi e é ainda tema das conversas das pessoas. Relembra-se frases, acções, gestos e intenções, e redescobre-se do que se foi ou não capaz. Neste exercício de narrativização acho pertinente salientar que mesmo aqueles que reconhecem ter sido protagonistas directos dos acontecimentos, legitimam as suas acções pelo força incontrolável das emoções, da cegueira momentânea da razão, atribuindo a causa dos acontecimentos à noção abstracta de povo. Por exemplo, com frases como «o povo em fúria é incontrolável», «quem controla uma multidão ofendida?», «isto com a multidão é imprevisível», «com eles à solta não se consegue fazer nada». O apelo a uma entidade abstracta como o povo ou a multidão é uma forma culturalmente aceite de enquadrar a violência e de a legitimar, de activar extremismos sem que os actuantes se sintam responsabilizados. Mais do que heróis o que se produz é toda uma comunidade unida contra o exterior. Ninguém tem o direito, neste contexto, de reivindicar impunemente o protagonismo. O outro episódio que vou analisar, pelo contrário, teve grande repercussão nos meios de comunicação social, sendo tema de abertura dos jornais da tarde de todas as televisões nacionais. Tratou-se da inauguração do programa Polis pelo primeiro-ministro, António Guterres, em Viseu. Uma manifestação do Movimento foi marcada para esse dia na capital de distrito. Apesar de um dos assessores ter assegurado um encontro dos dirigentes do Movimento com o primeiro-ministro, a manifestação não foi desconvocada. Em Viseu, após um desfile pelas principais artérias da cidade, em que foram entoados os cânticos do Movimento, os manifestantes concentraram-se na baixa. Os dirigentes já se tinham deslocado para o Governo Civil para o encontro com o primeiro-ministro. Uns minutos mais tarde, alguns dos elementos mais radicais começaram a circular a informação de que o primeiro-ministro encontrava-se sentado na esplanada com o deputado e presidente da distrital do PS, José Junqueiro. Os ânimos exaltaram-se e começaram os comentários e apupos contra os dois. O cordão policial conseguiu suster o avanço dos manifestantes. A comitiva oficial iniciou, então, o paasseio a pé que estava previsto no programa. Apesar da maioria dos manifestantes de Canas ter ficada retida pela polícia, cerca de 20 acompanharam a comitiva oficial com gritos e apupos. Após uma tentativa frustrada de o primeiro-ministro dialogar com os manifestantes, o passeio da comitiva teve que ser interrompido e os governantes e outras personalidades foram recolhidos por autocarros. Os manifestantes voltaram à baixa, confrontando-se com o relato dos dirigentes do Movimento de que só tinham sido recebidos pelo assessor do primeiro-ministro. Os ânimos exaltaram-se, sendo estes acontecimentos lidos pelos manifestantes como mais um episódio de incuprimento de palavra dos políticos, indignando-se as pessoas contra a indiferença das autoridades nacionais. Agora, em número compacto, dirigiram-se para o teatro onde decorria a cerimónia solene de apresentação do programa. No fim da rua estreita, a polícia tinha montado um cordão de segurança. Após alguns confrontos, em que se evidenciaram as mulheres e os mais idosos, o comandante da força deixou os manifestantes concentrarem-se no largo fronteiro ao teatro. Cânticos foram entoados e o líder do Movimento continuamente apelou ao primeiro-ministro para ser recebido, denunciando o incumprimento da promessa de encontro com o Movimento. Quando as autoridades saíram da sessão oficial foi entoado, de forma simbólica, pelos manifestantes o slogan. «Nós somos portugueses, nós somos portugueses.» Este episódio insere-se numa longa série de acções que têm como objectivo manifestações públicas com a presença de autoridades nacionais, para dar mais visibilidade ao Movimento. O objectivo é, além da mediatização do Movimento, embaraçar publicamente as autoridades políticas nacionais. Neste caso, o objectivo foi plenamente conseguido, colocando, segundo os dirigentes do Movimento, o primeiro-ministro numa situação difícil de incumprimento da palavra perante os orgãos de comunicação social de âmbito nacional. Há que salientar a imprevisibilidade dos acontecimentos e dos desenvolvimentos que os mesmos tomam. A acção de alguns elementos mais radicais, fora do controlo e da presença dos dirigentes do Movimento, desencandeou uma acção de protesto de grande eficácia e visibilidade mediáticas, aliada à descoordenação e incapacidade de actuação das forças de segurança. O bloqueio policial posterior, confrontando mulheres e idosos, mostrava a desproporção da actuação das autoridades policiais. O Estado aparecia, então, como um agente repressor, actuando numa lógica não democrática. Por outro lado, não pode ser subestimada a componente lúdica e festiva da manifestação. O prazer de caminhar e cantar juntos, e, mais significativo, ter a sensação de dessacralização do poder, vendo nos rostos dos governantes o medo, a reprovação, a perplexidade. Estas acções e, por vezes, a violência a elas associada, são vistas como legítimas pois colocam em confronto cidadãos que lutam por uma causa que consideram justa contra um Estado distante, arrogante, e dotado da possibilidade de mobilização de forças repressivas de grande escala. Mas, se o Movimento é levado muito a sério pelos simpatizantes, e as suas implicações pessoais e afectivas são profundas, é importante também referir o tom irónico com que são analisadas as acções do Movimento. Como exemplo, no dia da reunião posterior a estes acontecimentos, todos os comentários se concentravam nas histórias pessoais da vivência dos mesmos. Havia satisfação e euforia pela projecção mediática das acções empreendidas e lamentava-se que as mesmas não tivessem sido mais radicais. Quando chegou o senhor que as televisões mostraram caído durante os confrontos com os polícias, tornou-se, por breves momentos, o centro das atenções. Muitos dirigiram-lhe comentários jocosos e ele, rindo-se, relatava como tudo acontecera. A ironia relativizava os acontecimentos e permitia a reintegração do episódio na narrativa da comunidade e, mais importante, produzia essa própria comunidade, a proximidade cúmplice entre o que caíra e todos os presentes. Como bem refere Allen Feldman (1991:14), «O acontecimento não é o que acontece. O acontecimento é o que pode ser narrado». 3.5 Processos identitários pessoais e colectivos A identidade colectiva de Canas baseia-se num passado de pujança económica e de vivência operária. Como referiu o líder do Movimento numa reunião, «Nós [ a localidade de Canas de Senhorim] não somos agricultores ou camponeses. Trabalhava-se nas fábricas, com mais de mil trabalhadores. Temos uma mentalidade industrial e urbana. Não é rural como se vê à volta» (14 de Março de 2000). Esta realidade, que se manifestava no voto político de esquerda, num distrito considerado conservador, fez com que Canas fosse conhecida, segundo o relato de alguns entrevistados, como o Barreiro ou a Cuba das Beiras. Esta vivência operária e fabril, concretizada em lutas colectivas dos trabalhadores, disseminou uma cultura populista e radical, fortemente oposta às elites locais, acusadas muitaz vezes de terem apoiado, aquando das lutas liberais no século passado, a integração de Canas no concelho de Nelas. Como referiu Manuel Alves: Canas é um bocado feudal. Estou contra esta atitude dos que se chamam ricos. Não há ricos nem pobres. A riqueza é mais na herança ou em estatuto que herdam. Na vida não são mais que nós. O rico é quem trabalha e sabe trabalhar. Não têm nada de ricos. O filho do empregado fabril faz uma licenciatura e continua a ser o Manuel e o João. Os filhos desses indivíduos tiram uma licenciatura e são senhores doutores. Continua a acontecer. Nunca me verguei, trato de igual para igual. Não me vergo (24 de Agosto de 2000). O que o entrevistado valoriza é a ética do trabalho contra as hierarquias tradicionais. Assume uma atitude de resistência e de igualdade radical e de desconfiança em relação às elites locais. Esse orgulho num passado glorioso conduz, por vezes, a nostalgias contraditórias. Assim, um dos dirigentes do Movimento, que sempre foi de esquerda e esteve presente em todas as lutas sindicais e do Movimento, quando lhe pedi para analisar a evolução social na localidade, relembrou o passado de glória e culpou o 25 Abril de 1974 pela perda do mesmo. À segurança no emprego, ao movimento constante de comboios e camiões carregando matérias-primas, contrapôs a decadência económica posterior, os contratos a prazo, o trabalho à hora ou à tarefa (por parte de empresas que chamou de «negreiras»), a necessidade de procurar emprego nas localidades circundantes. A unidade e a solidariedade operárias desfaziam-se, situação acentuada pela política de desinvestimento e abandono por parte do poder local. A identidade pessoal como trabalhador fabril sobrepunha-se, nesta narrativa, à identidade política de esquerda. A identidade colectiva inscreve-se também num longo trajecto de luta e de resistência, num percurso de sofrimento e de abandono, num quadro de injustiça (Gamson, 1992). Esta comunhão de sentimentos alimenta a luta e é o suporte dos argumentos de socialização dos mais novos para as razões que movem o Movimento e os seus simpatizantes. As identidades pessoais e o reconhecimento pessoal entrecruzam-se com essa identidade colectiva de luta, resistência e sofrimento. Cada pessoa situa-se, auto-avalia-se, avalia e é avaliada pelos outros na hierarquia de credibilidade e nas carreiras morais locais. Embora um factor marcante para a posição nessa hierarquia de credibilidade seja a naturalidade, alguns dos que se encontram próximos do Movimento não nasceram na localidade, tendo, contudo, ido residir para lá enquanto crianças. Dois componentes permitem legitimar e reforçar a sua posição moral na localidade: a) o estatuto e o comportamento da família de origem; b) a integridade e a coerência pessoais e familiares nas atitudes em favor do Movimento (tradição e biografia) e nas acções em prol da localidade. No primeiro, é factor de valorização o estatuto como trabalhador (contra, por exemplo, o que acontecera com os engenheiros e técnicos que vinham trabalhar para as empresas existentes na localidade) e a integração da família nas redes locais de sociabilidade. No segundo, avalia-se a capacidade dos indivíduos de aderirem e estarem próximos dos valores e dos ideais locais para a restauração do concelho. Todas as pessoas que entrevistei activaram como primeira identificação pessoal, a nível espacial, o serem canenses. Aqueles que eram naturais de outras localidades colocaram a terra de origem em pé de igualdade ou logo a seguir a Canas na intensidade de identificação. Muitos também se consideravam beirões e todos se diziam portugueses. Contrariamente às minhas expectativas iniciais, a história longa de luta contra o poder local e central não afectou o grau de identificação dos habitantes de Canas para com o país. O seu descontentamento virava-se contra as autoridades e os políticos nacionais e locais, e não contra a comunidade imaginada portuguesa. A luta pela restauração do concelho permite a afirmação pessoal quase quotidiana de valores como a integridade, a honra, o sofrimento e a capacidade de resistência, produzindo um espírito de comunidade e de solidariedade bastante arreigados, que se consolidam numa ideologia solidária, fraterna e familista. 4. O potencial emancipatório de uma luta Procurando reflectir agora sobre o potencial emancipatório do caso concreto que estou analisando, dialogo com as propostas de Boaventura de Sousa Santos quando procura estabelecer os princípios que podem orientar a construção de um conhecimento-emancipação e de um senso comum emancipatório (2000: cap. 6). Convocando sobretudo os espaços estruturais da comunidade e da cidadania, e atendendo às suas formas específicas de poder (diferenciação desigual e dominação, respectivamente), procuro precisar as diferentes formas de resistência activadas pelos participantes no Movimento de Restauração do Concelho de Canas de Senhorim e as sociabilidades alternativas que estes criaram. No espaço da comunidade, há a necessidade de congregar os participantes no Movimento sob uma estratégia de unidade e de acções concertadas. Este unanimismo estratégico, associado à grande desconfiança perante os estranhos e o exterior, poderia levar à produção de uma comunidade-fortaleza, com fortes hierarquizações internas (Santos, 2000: 314). Mas, a prática das reuniões semanais, um exercício democrático de partilha de poder, assim como as sessões de esclarecimento para a população em geral, permitem o confronto, o debate, a assunção de ideias, identidades e identificações distintas, confluentes num objectivo comum mas não normalizador. A liderança colegial e o confronto semanal com os participantes do Movimento são inovações organizacionais que propiciam a criação de um espaço público dialógico e participado. Se a existência dos líderes é vista como incontornável na representação do Movimento perante o exterior, é uma liderança sempre provisória, obrigada, pela participação democrática das pessoas, a uma proximidade constante aos participantes e às suas opiniões, problemas e perplexidades. A ideologia igualitária e fraterna, proveniente da história operária da localidade e do vocabulário e reportório de acções do período revolucionário pós-25 de Abril, obriga a ouvir cada voz e cada opinião de forma igual. Concomitantemente, a prática de debate e de análise constante dos acontecimentos mais relevantes para o Movimento e para a localidade induzem um grau bastante elevado de politização de todos os participantes. A grande tensão advém, e aqui poderá residir um dos principais obstáculos à criação de um senso comum emancipatório, da necessidade de submissão das lógicas e das identificações político-partidárias dos participantes no Movimento aos interesses da luta pela elevação a concelho. Como as identificações partidárias marcam de forma indelével as identidades pessoais dos participantes, tal situação conduz a dilemas ideológicos e identitários profundos, podendo criar linhas de fractura, de silenciamento e até de censura na comunidade. Por outro lado, a base popular do Movimento exclui do mesmo a maior parte dos representantes das elites económicas e culturais da localidade. Este populismo assumido, associado a uma visão negativa e crítica das lógicas de dominação tradicionais, estabelece também tensões dinâmicas no interior da localidade e na sua articulação com os poderes exteriores. A participação das mulheres no espaço público da comunidade e no espaço político mais vasto assume especial importância na análise deste Movimento. Esta visibilidade das mulheres deriva do seu papel decisivo nos acontecimentos fundadores que marcaram a localidade em 1982. Desde essa data a sua presença é inquestionável e encontra-se totalmente legitimada. O grande obstáculo a uma prática emancipatória completa assenta na quase ausência de mulheres nos cargos de liderança do Movimento, reproduzindo a lógica patriarcal dominante no espaço doméstico. E, como bem afirma Boaventura de Sousa Santos (2000: 285), as lutas emancipatórias têm que atender a todos os espaços estruturais e não se confinarem àqueles onde as práticas contra-hegemónicas são mais visíveis. Mostrando as entrevistas que realizei e as conversas com mulheres que participam no Movimento uma consciência clara desta situação, embora justificando a delegação do poder de representação nos homens, é de esperar que haja no futuro uma maior pressão para as mulheres terem um peso mais significativo e relevante nas estruturas dirigentes do Movimento. É no espaço estrutural da cidadania que o Movimento mais marcou a sua posição. Com efeito, a estratégia nos últimos anos foi de confrontar o Estado e os seus representantes nacionais (Governo e Assembleia da República), projectando a luta para o âmbito nacional. Reivindicando uma democracia participativa e radical, os líderes e os participantes do Movimento optaram por acções rebeldes, tentando como diz Boaventura de Sousa Santos « [ ...] redistribuir socialmente a ansiedade e a insegurança, criando condições para que a ansiedade dos excluídos se transforme em causa de ansiedade para os incluídos [ ...] (1998: 32). Além de criarem espaços-tempo que promovem as deliberações democráticas, como vimos atrás, procederam à dessacralização dos representantes nacionais e locais do Estado. Este afastamento real e simbólico dos participantes do Movimento aos representantes do sistema político nacional não induziu um afastamento dos marcadores identitários de uma comunidade imaginada portuguesa. A crítica ao sistema político vigente não perpassa para uma crítica do regime democrático. O alvo privilegiado das críticas dos participantes do Movimento é a incapacidade do Estado para elaborar desenhos institucionais alternativos (Santos, 1998:47). A divisão administrativa portuguesa mantém-se quase inalterável desde o 25 de Abril, não havendo configurações institucionais que permitam uma fiscalização efectiva da prática discriminante do poder municipal. A alternativa passaria, segundo os argumentos dos simpatizantes do Movimento, pela revisão dos critérios geo-demográficos de criação de concelhos e por uma maior atribuição de autonomia e competências ao poder local na sua dimensão de freguesia. O acto mais radical dos participantes e simpatizantes do Movimento foi a destruição dos seus cartões de eleitor e o boicote sistemático a todos os actos eleitorais na localidade. Estas foram accões que se constitiram como uma afirmação extrema dos seus direitos de cidadania política, forçando os poderes municipais e nacionais a uma atenção continuada ao processo político da localidade. É uma recusa clara e uma denúncia do falhanço da democracia representativa e do sistema político actual. Esta recusa dos direitos formais de cidadania política coloca a localidade no centro do debate político e mediático nacional. Neste artigo dei especial ênfase aos processos de identificação subjectiva e colectiva dos participantes do Movimento. Para aquilitar da produção de subjectividades emancipatórias, individuais e colectivas, recorro aos topoi definidos por Boaventura de Sousa Santos: a fronteira, o barroco e o sul (2000: 321-352). E isto, porque como afirma este autor, estes topoi «[ ...] presidem à reinvenção de uma subjectividade com capacidade e vontade de explorar as potencialidades emancipatórias da transição paradigmática» (2000: 352). As metáforas de fronteira e do sul devem ser lidas neste caso concreto como a afirmação da interioridade, de um espaço periférico no interior do país que permite uma desconstrução crítica das lógicas hegemónicas de um Estado centralizador. Da metáfora da fronteira parecem-me relevantes reter o uso selectivo e instrumental das tradições, a invenção de novas formas de sociabilidade e a produção de hierarquias fracas (Santos, 2000: 322-323). Da primeira temos como exemplo a invocação do facto da localidade ter sido concelho durante mais de 700 anos, dando legitimidade e espessura históricas às pretensões actuais. Por outro lado, a tradição operária da localidade alimenta a retórica de irmandade e de solidariedade e as dinâmicas congregadoras de um familismo ideológico. As tradições alimentam a utopia política da localidade. Quanto às novas formas de sociabilidade e às hierarquias fracas, as reuniões semanais, as sessões de esclarecimento e a comemoração anual dos acontecimentos de 1982, produzem e reproduzem um espaço público de proximidade, de solidariedade e, sobretudo no último tipo de sociabilidade, uma comunhão não mercantil entre cidadãos iguais. Da metáfora que permite a elaboração de uma subjectividade barroca (Santos, 2000: 330-340), saliento a espacialidade predominantemente local ligada ao Movimento. Este localismo radical mobiliza política e socialmente os participantes do Movimento e torna-os cidadãos informados da vida política e partidária de âmbito nacional. Como descrevi antes (no ponto 3.4), as actividades do Movimento, das mais banais às mais expressivas, são marcadas por momentos constantes de distância lúdica, de ironia e riso e até por uma lógica de subversão. A recusa de menoridade da localidade e o igualitarismo extremo expressam-se em celebrações constantes de inconformismo, de revolta e de lógicas e acções contra-hegemónicas. Da subjectividade do sul o mais relevante para este contexto são as memórias pessoais e colectivas que enfatizam, de forma constante nas conversas quotidianas e nalgumas acções do Movimento (greves de fome), a ideia de sofrimento, de uma perda no tempo de condições de vida decentes e dignas na comunidade. Esta fenomenologia do sofrimento (Santos, 2000:351) cria laços de solidariedade e permite a construção de analogias com situações de exploração e opressão que vão do espaço nacional ao espaço mundial. Por diversas vezes ouvi a comparação do caso de Canas com a situação de Timor Lorosae ou com a do País Basco. Se estas comparações puderam parecer exageradas a muitos comentadores e jornalistas, estes esqueciam-se do fio que as tecia e ligava, o sofrimento, a recusa da falta de reconhecimento da localidade e a procura permanente de uma maior dignidade dos participantes no Movimento enquanto pessoas e cidadãos. 5. Conclusão As histórias e as narrativas contadas, a memória colectiva de luta, cristalizada nalguns momentos marcantes, além de serem marcadores concretos da capacidade de luta e de protesto, representam uma possibilidade efectiva de criar práticas emancipatórias e interpelantes da hegemonia do Estado. Os narratemas dos habitantes de Canas que simpatizam com o seu Movimento, e as suas acções concretas de protesto, procuram reespecificar e desconstruir, com base num igualitarismo radical, os conceitos de liberdade, de democracia e de poder. No entrecruzar entre memórias pessoais e colectivas, o sonho é a afirmação da sua autonomia e a prática é uma de resistência e de afirmação perante o exterior, na busca do reconhecimento pessoal e colectivo. Estas práticas produziram sociabilidades alternativas de participação efectiva das mulheres no espaço público e acesso igual de todos os participantes à possibilidade de fazerem ouvir a sua voz. O espaço público é dialógico e participado, embora marcado por várias tensões. Os maiores obstáculos à criação de um senso comum emancipatório derivam da reprodução da lógica patriarcal no trabalho de representação do Movimento, isto é, do não acesso das mulheres à liderança do mesmo, e do populismo que conduz à exclusão das elites, criando tensões internas na comunidade e no relacionamento desta com os poderes exteriores.
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