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D. L. Sheth Micro-movimentos na Índia: para uma nova política de democracia participativa (texto não editado)
Introdução Quando o discurso global sobre a democracia se tornou unidimensional, fornecendo o modelo neoliberal de democracia de mercado como modelo único, universalmente adequado, e quando o Estado indiano se começou a ligar à hierarquia vertical dos poderes económico e político global, surgiram, a nível local e regional, fortes movimentos políticos e sociais de contestação. Estes micro-movimentos, liderados por organizações de base de activistas sociais, têm estado activos, há mais de três décadas, em diferentes partes da Índia, trabalhando em questões diversas, ainda que todas relacionadas com as lutas das populações pobres, economicamente marginalizadas e socialmente excluídas. Mas ultimamente, ou seja, na década de 90, muitos destes micro-movimentos associaram-se para protestar contra o Estado indiano relativamente à globalização, entrando mesmo em confronto directo com as instituições e organizações representativas do poder económico e político global. Neste processo de oposição à globalização, estes micro-movimentos introduziram, na Índia, um novo discurso sobre a democracia e inventaram práticas políticas, expandindo a arena de intervenção política muito para além das instituições eleitas e dos partidos políticos. Por isso, apesar de os micro-movimentos, muito antes de se juntarem ao debate da globalização, terem participado em combates políticos relativos a vários problemas respeitantes aos mais pobres, foi o desafio da globalização que juntou a maioria destes movimentos em plataformas políticas comuns, ao nível provincial e nacional, tornando as questões da democracia participativa uma parte integrante das lutas que desenvolvem. Este capítulo analisa o discurso e a política dos micro-movimentos - dentro deste contexto em que a globalização emerge - e o papel que desempenham na reinvenção da democracia participativa como forma de acção social e de prática política, criando novos espaços e infundindo de significados mais profundos a democracia no mundo que se globaliza.
1. Os micro-movimentos Os micro-movimentos na Índia representam um fenómeno variado e muito complexo. Na literatura especializada sobre movimentos, são descritos de formas diversas, como, «movimentos de base», movimentos sociais, processos ou formações políticas não partidárias, organizações de base comunitária ou popular, grupos de intervenção social e grupos-movimento (movement-groups). Estes termos serão utilizados alternadamente ao longo deste artigo, mas referindo-se especificamente a um tipo particular de movimentos sociais que se tornaram visíveis e que se salientaram politicamente em meados dos anos 70 e que, desde então, têm tido actividade sobre variedade de questões que, na perspectiva deles, estão directa ou indirectamente relacionadas com o que consideram ser o seu objectivo a longo prazo e que consiste na democratização do desenvolvimento e na transformação da sociedade (Kothari, 1984; Sethi, 1984; Sheth, 1984). Estas organizações-movimentos diferenciam-se bastante das instituições filantrópicas, de solidariedade social e de outras como ONGs não-políticas do mesmo tipo. Apesar de não haver um levantamento sistemático, as compilações, efectuadas por investigadores a partir de diferentes fontes, e as estimativas, fornecidas por observadores no terreno, sugerem um número de cerca de 30000 grupos de micro-movimentos em todo o país (Kapoor, 2000). Para que se possa entender os termos em que estes grupos-movimento concebem e expressam a ideia de democracia participativa, é importante conhecer o contexto em que surgiram e os desafios com que se confrontaram na fase inicial da sua formação. Uma parte bastante significativa de entre eles resultou da fragmentação dos primeiros movimentos políticos e sociais - movimentos que tiveram a sua origem no Movimento de Libertação, mas que se subjugaram e se dispersaram pouco depois da Independência, quando a elite dirigente, modernista e liberal (partidária de Nehru), começou a dominar o discurso político. Estes grupos eram herdeiros de vários movimentos, movimentos de seguidores de Gandhi, movimentos de socialistas e de comunistas e movimentos de reforma social mas, na sua maioria, mantiveram-se como grupos de activistas sociais e políticos independentes em relação aos partidos (Sheth e Sethi, 1991). Foram trabalhando nos espaços limitados e estagnados existentes na periferia do sistema eleitoral e da política partidária. Mas, após três décadas de Independência, novas áreas de intervenção política e social se abriram, quer para estes grupos quer para outros novos grupos de activistas sociais. Tal foi possível graças ao declínio da política institucional, que começou no fim da década de 60, dando lugar ao aparecimento de vários movimentos populares de protesto (Kothari, 1988a). Eram vários os temas de protestos, indo desde o aumento do custo de vida à corrupção. É, contudo, em meados da década de 70 que os movimentos de protesto ganham uma grande relevância, sendo o maior e mais forte de todos eles o movimento JP (que deve esta designação ao nome do seu líder, Jayaprakash Narayan). Vistos neste contexto, estes grupos-movimento, que hoje identificamos, emergiram e consolidaram-se nos espaços de intervenção que lhes foram sendo deixados pelo declínio das instituições convencionais da democracia representativa: legislaturas, eleições, partidos políticos e sindicatos. Este declínio, ainda que iniciado nos finais dos anos 60, ganhou maior visibilidade quando o estado de sítio foi imposto (1975-1977) pela primeira-ministra Indira Gandhi. O papel dos partidos políticos no aliciamento de novos grupos para a esfera política, através da participação no combate pelos seus direitos políticos e legais, foi consideravelmente reduzido. Também decaiu bastante a sua capacidade para incluir no processo político questões emergentes da economia, da sociedade e da cultura. Deixaram ainda de atrair a juventude idealista para a área política convencional. Tendo os partidos falhado na transformação das reivindicações económicas dos pobres e carenciados em exigências políticas eficazes, recorreram com frequência à abordagem dos temas económicos na perspectiva étnica e comunal como forma de obter ganhos eleitorais. Como resultado, o processo político, que nas décadas de 50 e 60 evoluíra no sentido da inclusão de um número cada vez maior de grupos na política eleitoral e partidária, foi interrompido em meados dos anos 70, mantendo largos sectores da população - como os ex-intocáveis, os povos tribais, os grupos extremamente pobres e marginalizados em função da actividade laboral, de entre os tradicionalmente pertencentes aos estratos inferiores do sistema de castas hindu e todos os outros pobres e sem-terra de entre as minorias - nas margens da política convencional indiana. Claro que este facto não afectou a participação eleitoral destes sectores da população, mas reduziu o seu sentido político da cidadania, na medida em que as suas lutas não tiveram expressão na esfera política da democracia representativa (Sheth, 1986). Contudo, as populações envolvidas neste processo de alienação política estavam dispersas e fragmentadas em várias dimensões para além da de classe. Por essa razão as suas lutas não encontraram uma linguagem política, nem mesmo no discurso dos partidos de esquerda. Eram simplesmente olhadas como massas não organizadas com votação dispersa. Em suma, os partidos políticos desistiram prematuramente, logo após a Independência, do carácter de «movimento» das suas actividades, tornando-se, num grau crescente, máquinas eleitorais funcionando, ao nível das bases, com expedientes feitos à pressa em altura de eleições. Entre outras coisas, esta situação teve como consequência o aparecimento, fora do quadro político-institucional da democracia representativa, de uma política de mobilização por parte de movimentos populares, recorrendo frequentemente à acção directa para apresentar ao governo as suas reivindicações (Kothari, 1988b). Os sindicatos - relativamente aos quais, para começar, se deve dizer que eram alas laborais dos partidos políticos, com pouca autonomia própria - tornaram-se praticamente lugares de negociação entre pessoas da mesma classe, supostamente representando interesses diferentes. Os sindicatos demonstraram uma incapacidade total para alargar as suas actividades ao crescente sector informal e não organizado da economia. Os trabalhadores do sector não organizado tinham pouco para oferecer, quer em termos eleitorais quer no pagamento de quotas de associados. A liderança sindical, cansada após longos anos de combate, habituou-se a um estilo de vida feito de facilidades e a um modo de funcionamento burocrático sem grandes exigências intelectuais (Pansay, 1981). O resultado disto foi a formação de muitos novos grupos de activistas, apoiantes da causa dos trabalhadores do sector informal da economia. Não se limitaram apenas às questões salariais, dedicaram-se também aos problemas da saúde, educação e do cuidado das crianças das famílias dos trabalhadores, tendo como objectivo principal aumentar nestes a consciência dos seus direitos e de construir capacidades organizativas para lutar pela sua realização. O declínio da política, no seu sentido mais lato, também se reflectiu nas legislaturas. Longe iam os dias em que, no parlamento indiano, um líder socialista como Ram Manohar Lohia podia suscitar e manter um longo debate sobre a pobreza. O discurso político parlamentar começou a ser cada vez mais dominado por posições legalistas estreitas mantidas pelo executivo, frequentemente endossadas pelos tribunais, em vez de se basear nas questões emergentes da política democrática. A Constituição indiana, que foi concebida não só como um instrumento de governação, mas também como um programa para a transformação social e política da Índia independente, era agora tratada como um documento expurgado do seu carácter político mobilizador representativo das aspirações democráticas do povo. É neste contexto que, na década que se seguiu ao estado de sítio, vários grupos-movimento começaram a recorrer à litigação em nome do interesse público e a prestar, gratuitamente, serviços de assistência jurídica aos cidadãos cujos direitos eram violados tanto pelas autoridades como pela administração das políticas de desenvolvimento e, neste processo, incutiam o seu activismo até mesmo nos tribunais. O declínio da política institucional levou à revitalização dos antigos movimentos sociais. Mas, mais importante ainda, no período entre meados dos anos 70 e os anos 80, provocou o aparecimento de milhares de novos micro-movimentos. Estes movimentos eram liderados por homens e mulheres jovens, tendo havido alguns que, para se lhes juntarem, deixaram mesmo as suas carreiras profissionais. Interessaram-se por assuntos e clientelas abandonados pelos partidos políticos e pelos sindicatos e ocuparam-se também dos que eram mal servidos pela administração pública. A forma organizativa para a qual evoluíram não foi a de partido político ou de grupo de pressão mas, sim, a de associação de cidadãos, conduzindo lutas políticas relacionadas com as questões que lhes eram apresentadas pelas pessoas directamente afectadas por elas. O conceito-chave com que trabalharam foi o da democratização do desenvolvimento através do aumento do poder das populações (Sethi, 1984). Importa sublinhar que a política dos movimentos de base surgiu fora do contexto das instituições políticas da democracia representativa e na intersecção da sociedade com a política, envolvendo directamente as pessoas nas lutas para alterar as suas vidas sociais e politicas.
2. O discurso da globalização No início dos anos 90 os movimentos de base contestaram todo um novo conjunto de termos justificativos da hegemonia da recente ordem mundial, estabelecida após a guerra-fria. Antes disso, uma parte significativa dos movimentos de base indianos tinham estado activos a protestar contra o Modelo de Desenvolvimento elitista e exclusivista, modelo esse concebido pelas instituições de Bretton Woods - criadas após a II Guerra -, e pelos países que as patrocinavam, que pretendiam aplicá-lo uniforme e universalmente. Contudo, esses protestos eram largamente expressos no contexto do discurso desenvolvido pelos novos movimentos sociais do Ocidente, onde as ameaças nucleares e ambientais que a guerra-fria produziu para o mundo inteiro eram sentidas mais intensamente. Foi por este processo que cresceu, no Ocidente, a ideia e a campanha pelo «desenvolvimento alternativo». Apesar desta ideia há muito ser propagada e praticada na Índia pelos activistas do movimento inspirado em Gandhi, depois da Independência foi empurrada para as margens do discurso sobre desenvolvimento, dominado pela elite dirigente modernista. Todavia, todo o discurso sobre desenvolvimento mudou repentinamente, na Índia e globalmente, quando a noção de desenvolvimento alternativo foi analiticamente formulada e propagada por diversos grupos, clubes e comissões globais. Alguns conceitos desenvolvidos por estes proponentes do desenvolvimento alternativo tornaram-se o jargão dos activistas dos novos movimentos sociais - tecnologia adequada, «small is beautiful» (a la Schumaker), pedagogia para os oprimidos (a la Paulo Freire), estilos de vida amigos do ambiente, limites ao crescimento (a la Clube de Roma), eram apenas alguns deles. Este discurso, lançado pelos novos movimentos sociais no Ocidente, obteve um eco enorme entre os activistas sociais na Índia, tendo praticamente um efeito emancipatório entre os mais ocidentalizados e menos politizados de entre eles. Deu um sentido cultural ao seu activismo e até os ajudou a redescobrir o seu próprio activista alternativo, Mohandas K. Gandhi. A ideia do desenvolvimento alternativo encontrou novos adeptos, até mesmo no núcleo consumista das sociedades ocidentais, durante a guerra-fria quando o espectro do holocausto nuclear pairava ameaçador e o que foi então descrito como «a crise petrolífera» provocava o receio de interrupção do acesso às reservas de petróleo. Em fóruns políticos mundiais sobre a «pobreza do Terceiro Mundo» manifestava-se grande preocupação. Ainda que hoje possa parecer estranho, sentia-se e expressava-se uma profunda ansiedade, especialmente acerca dos hábitos de consumo, em crescimento, das classes médias dos países do Terceiro Mundo, porque se temia que, juntamente com a fome e a pobreza da maioria da população, pudessem conduzir a políticas estatais que provocassem, a nível mundial, uma rápida redução dos recursos naturais. O argumento convencional em favor do desenvolvimento era agora feito com várias advertências provenientes da teoria do desenvolvimento alternativo. Deste modo, «sustentabilidade» tornou-se uma palavra-chave e o consumismo um «desafio» a resolver. A poupança de energia e a procura de fontes energéticas alternativas tornaram-se importantes merecedoras de atenção por parte dos decisores das políticas de desenvolvimento Tudo isto mudou com o fim da guerra-fria provocando uma ruptura enorme na política (global) do discurso. E isto quando a ideia de desenvolvimento alternativo estava quase a obter uma larga aceitação e tinha mesmo começado a animar os processos políticos tanto ao nível nacional como global. Um novo discurso entrou em cena submergindo os espaços políticos que os novos movimentos sociais no Ocidente e os movimentos de base na Índia tinham criado, graças ao seu trabalho de décadas em assuntos como a paz e o desenvolvimento ecologicamente sustentável e a favor dos pobres. O novo discurso fez uma entrada espectacular como uma grande narrativa triunfalista que, entre outras coisas, incluía no seu interior a velha ideia do Desenvolvimento (Wallgren, 1998). O seu efeito imediato, ainda que temporário, foi o de fazer com que os protestos dos movimentos de base contra o modelo hegemónico de Desenvolvimento, do tempo da guerra-fria, e as suas asserções para um desenvolvimento alternativo soassem estridentes e quezilentos, senão mesmo vazios. Assim era o discurso da Globalização. Concebido e liderado pelos vencedores da guerra-fria reclamava o estabelecimento de uma nova ordem global que iria acabar com a anterior que mantivera o mundo, economica, cultural e politicamente «dividido». No seu lugar não só prometia como transmitia uma experiência virtual (como se esse mundo estivesse acima de nós!) do mundo a tornar-se uma única economia, (possivelmente) uma única cultura e (eventualmente) uma única organização política! Um tal mundo poderia funcionar globalmente, sem as desordenadas instituições da democracia representativa, ainda que tais instituições fossem obrigatórias, internamente, para cada país. Seria assegurado que esta nova ordem mundial deveria ser dirigida por um conjunto de instituições globais (servidas por peritos e livres dos enfadonhos procedimentos de fiscalização da democracia representativa) que, sendo estabelecidas e controladas pelas poucas democracias «auto-responsáveis» e «avançadas», garantiriam a paz e a ordem em todo o mundo. Para além disso, como o monopólio da violência (incluindo a tecnologia respectiva) seria retirado a um grande número de Estados-nação, frequentemente «irresponsáveis» (naturalmente situados no Sul), e colocado colectivamente nas mãos de alguns outros, que são democracias «responsáveis» e «civilizadas» (naturalmente situadas no Norte), não só se eliminariam as guerras internacionais como se reduziria a pobreza onde quer que ela existisse. Estas estranhas afirmações ideológicas da globalização, feitas e disseminadas globalmente pelos países mais poderosos (G-8), foram aceites acriticamente por largos sectores da classe média indiana e pelos meios de comunicação social, como se representassem um pacote de políticas oferecido por um Governo Mundial realmente existente e democraticamente legítimo!
3. O contra-discurso dos movimentos Os movimentos de base demoraram bastante tempo para recuperar do violento ataque ideológico do Globalismo e a conceber o teor do seu próprio discurso para o contrariar. Isto aconteceu, principalmente, porque, na altura do fim da guerra-fria e duas décadas depois da imposição do Estado de Sítio na Índia, os grupos-movimento estavam bastante fragmentados numa existência quase isomórfica em que cada grupo combatia, independente, na sua pequena batalha. Muitos deles perderam o impulso da transformação social, tendo adquirido uma confortável e estável base financeira. Fundos cada vez maiores eram-lhes então disponibilizados pelas agências doadoras internacionais que tinham a sua própria agenda para influenciar a política de discurso nos países periféricos. Deste modo, muitos grupos-movimento tinham-se rotinado nas suas actividades e funcionavam como burocracias de ONGs. Para abreviar, no início dos anos 90 o panorama dos movimentos de base estava marcado por um vasto sentimento de pessimismo que se espalhara entre os observadores e os participantes dos movimentos (Kothari, 1989). Claro que houve alguns grupos, maioritariamente entre os da linha dos seguidores de Gandhi, da Esquerda e da social-democracia, que ficaram de fora e que continuaram, ao nível das bases, as suas batalhas por direitos e pela reconstrução socioeconómica, assim mantendo, tenazmente, o seu carácter de movimentos. Contudo, já não funcionavam com os anteriores altos níveis de energia e, como sempre, continuavam famintos de fundos. Tudo isto mudou, quase abruptamente, em meados dos anos 90, quando os protestos contra a globalização - liderados pelos poucos grupos-movimento que mantiveram viva a tradição das lutas durante o período de deriva - ganharam força assim que diferentes sectores da população pobre na Índia começaram a sentir intensamente o impacto negativo da Globalização. E obteve um grande estímulo à medida que mais grupos respondiam às pressões das bases e voltavam da sua existência de ONGs para o seio dos movimentos. Isto produziu um alto grau de convergência entre diferentes géneros de grupos e movimentos relativamente a um vasto conjunto de assuntos respeitantes à globalização. E revitalizou todo o espectro dos movimentos de base do país, dando lugar a um novo discurso e política destinados a contrariar as forças da globalização hegemónica (Sheth, 1999; Kothari, Smitu, 2000). O que se segue é uma narrativa dos termos pelos quais os movimentos encaram e resistem à globalização. Primeiro, os activistas dos movimentos de base consideram a globalização como a encarnação da velha ideia de Desenvolvimento (com maiúscula) mas, politicamente, representando mais explicitamente as instituições do poder hegemónico global e criando novas formas de exclusão social. Portanto, a globalização tem intensificado e expandido as forças destrutivas do Desenvolvimento - forças que desfazem comunidades, culturas e modos de subsistência dos pobres sem lhes oferecer uma alternativa digna e viável. De forma análoga àquela que o «establishment» do Desenvolvimento usou durante a guerra-fria, a globalização trabalha para os elementos constituintes da sua estrutura de poder - as elites tecno-científicas, burocráticas, militares, gestoras e empresariais e uma pequena classe consumista. Segundo, um sector dos activistas sociais, principalmente aqueles que eram relativamente apolíticos, ainda que anteriormente activos nos movimentos do desenvolvimento alternativo, tornou-se profundamente consciente do papel que a «política de discurso» representa, nacional e globalmente, influenciando as escolhas políticas dos governos e das organizações internacionais. Daí que alguns deles estejam agora a participar activamente na definição do conteúdo do discurso globalmente em temas como a biodiversidade, o aquecimento global, a construção de grandes barragens, as regulações respeitantes ao comércio internacional e aos direitos da propriedade intelectual, etc. Neste processo tornaram-se activos numa variedade de «convenções», fóruns e campanhas globais opondo-se às políticas da estrutura de poder hegemónico global, assim como na construção de alianças transnacionais duradouras com movimentos semelhantes dos países do Sul e também do Norte (Kech e Sikkink, 1998). Ao representar este «papel global» muitas vezes expressam explicitamente, ainda que superficialmente, os seus objectivos de longo prazo em termos de construir e sustentar processos institucionais para a solidariedade global. Posto de outra maneira, a sua intenção é a de criar uma política global de movimentos populares (da sociedade civil) com o intuito de construir uma estrutura institucional alternativa de governação global, baseada nos princípios democráticos de igualdade política, justiça social, diversidade cultural e de não-violência e nos princípios ecológicos de sustentabilidade e de manutenção da biodiversidade. A liderar globalmente este discurso, um grupo indiano de activistas interpreta a solidariedade global nos termos do antigo princípio indiano de Vasudhaiva Kutumbakan («a Terra é uma família») ligando-o com a visão de Gandhi de swaraj («autogoverno») e de swadeshi (política de estabelecer o controlo das pessoas sobre o seu ambiente - económico, social e cultural) (Pratap, 2001). É neste contexto que os movimentos se diferenciam relativamente aos dois tipos de políticas em que tomam parte: políticas destinadas a estabelecer a solidariedade global e políticas de oposição à Globalização contemporânea, uma distinção que foi pertinentemente descrita em termos conceptuais, por Boaventura de Sousa Santos, como globalização hegemónica versus globalização contra-hegemónica (Santos, 1997). Terceiro, outro tipo de movimentos - representando, em grande medida, as tendências de Esquerda e social-democratas, já anteriormente referidas - encara a globalização como levando a uma intensificação adicional das desigualdades económicas e sociais já existentes (Sainath, 1999). Portanto, enquanto os adeptos da globalização celebram o crescimento da classe média, os activistas sociais envolvidos nas lutas pela igualdade e a justiça social vêem este fenómeno de uma forma completamente diferente. Na sua perspectiva, as políticas de liberalização económica, que estão a ser concebidas e aplicadas como parte do pacote da globalização, vieram consolidar e enriquecer a antiga classe média. O «crescimento» desta classe, nessa perspectiva, representa amplamente o aumento do poder aquisitivo da pequena classe média que emergiu durante a época colonial e que se expandiu durante as primeiras quatro décadas posteriores à Independência, abrangendo largamente os estratos médio e superior da estrutura social tradicional. Os Programas de Ajustamento Estrutural (PEA), aplicados em nome das reformas económicas - a receita fornecida uniformemente para todo o mundo pelas instituições financeiras globais -, longe de melhorarem os padrões de vida dos que estão nos escalões mais baixos da sociedade, empurraram-nos ainda mais para baixo na escala social e económica, abaixo do limiar da pobreza (Kumar, Arun, 2000). De facto, uma pequena parte dos estratos sociais tradicionais mais baixos ascenderam à classe média, mas tal deveu-se às persistentes políticas sociais do Estado - como a da discriminação positiva. Na realidade, com o processo da globalização a implicar uma redução do Estado, houve uma reversão deste processo. As poucas avenidas de mobilidade ascendente, que foram abertas pelas políticas do Estado indiano para as populações com uma posição desfavorável na estrutura social tradicional, estão agora a ficar mais estreitas. O mercado está a tornar-se, cada vez mais, a única avenida para a mobilidade ascendente, mas também essa é monopolizada pelos estratos mais elevados da sociedade, usando os recursos do seu estatuto tradicional. Deste modo, a globalização económica oferece padrões de vida sempre crescentes àqueles que entram no mercado com alguns direitos, normalmente acessíveis aos membros das castas superiores, usando os recursos que lhes estão tradicionalmente disponíveis: terras, riqueza, prerrogativas sociais e educação. Para a maioria da população - que está à espera fora do círculo atractivo do mercado, ocupando posições de desvantagem na estrutura social tradicional - significa malnutrição, semi-inanição, doença e indigência. Esta relação entre a estrutura social tradicional e a globalização é apontada pelos movimentos mas, estranhamente, é ignorada nos debates académicos sobre globalização. Deste modo, os activistas dos movimentos consideram surpreendente o facto de, na assim designada economia aberta de mercado, poder perdurar e prosperar uma economia de tipo colonial de exploração dos produtores de bens de subsistência (que constituem a grande maioria da população e que inclui os povos tribais, artesãos, pequenos agricultores e assalariados agrícolas sem-terra) por uma pequena elite urbana e industrial e grupos seus aparentados da elite rural de casta superior. Em síntese, na Índia a economia de mercado não só não fez mossa na iníqua estrutura social como está a ser absorvida por ela. Quarto, os movimentos rejeitam a afirmação do Estado indiano de que, no processo da globalização, está a representar um papel positivo relativamente aos pobres, ao dar um «rosto humano» às reformas económicas. Longe de permitir que os pobres entrem no mercado e nele encontrem os seus lugares, o Estado enfraquece os seus direitos (das populações pobres) a manter qualquer género de fonte de subsistência que ainda lhes esteja acessível. Na perspectiva dos líderes de alguns movimentos urbanos para os direitos dos cidadãos, o Estado indiano discrimina, evidente e sistematicamente, entre ricos e pobres na aplicação das reformas económicas (Kishwar, 2001). Daqui resulta que uma população enorme, adversamente afectada pelo modelo de globalização económica, orientado para o mercado, é agora incapaz de fazer uma exigência suficientemente forte pela sua sobrevivência, já para não falar de «desenvolvimento», na esfera política convencional. À medida que o mercado se move das franjas para o centro da esfera política, a autoridade política de origem democrática está dar lugar a novas noções de «ordem» política e económica - noções que são derivadas dos princípios da organização empresarial que, pela sua natureza própria, não são consentâneos com o princípio da fiscalização democrática. Quinto, o impacto combinado desta situação política e socioeconómica emergente, ou seja, o recuo do Estado e a globalização da economia, é o de os mais pobres dos pobres não se conseguirem tornar inteiramente assalariados na economia nem cidadãos de corpo inteiro a nível político. Para eles não está à vista nenhum caminho de transição que os possa conduzir à economia de mercado. E também já não podem regressar à antiga segurança de dominados de que, discutivelmente, usufruíam na ordem social tradicional. Perderam, inclusivamente, as concessões que, pelo menos teoricamente, o Estado burocrático-socialista lhes atribuíra. Abreviando, a natureza sistemicamente social da sua exclusão continua sob a Globalização tal como era sob o Desenvolvimento. As políticas estatais, que, até recentemente, tinham o objectivo de remover as barreiras estruturais com que os pobres se defrontavam e trazê-los para o seio da economia política, estão agora a ser descartadas por serem «hostis ao mercado» (market unfriendly). Por último, na perspectiva dos movimentos, a nova ideologia da globalização tem tornado cada vez mais ininteligíveis no discurso global as questões da pobreza e da privação social nos países periféricos. Para além disso, tem embotado o gume transformador dos novos movimentos sociais que já estiveram na frente do movimento pelo desenvolvimento alternativo no Ocidente, assim como a nível global. Com efeito, as agências da globalização hegemónica foram capazes de produzir novas formas de justificação para o velho projecto de Desenvolvimento, ou seja, a manutenção, a nível global, da hegemonia política e económica dos poucos países ricos e militarmente poderosos e, a nível nacional, de uma pequena elite metropolitana. O resultado é que hoje, ao contrário do que sucedia durante a guerra-fria, o desenvolvimento é pensado e medido em termos da amplitude com que um país pode «integrar» (leia-se, subjugar) a sua economia no sistema económico (capitalista) mundial.
4. O discurso global dos protestos Uma modificação importante ocorreu também na forma como os movimentos na Índia se relacionam com o discurso global dos protestos. O crescente foco do actual discurso global em questões de «governação» tem, segundo eles, reduzido a importância das questões relativas à transformação social e política. O resultado disto foi o de as agências de globalização hegemónica procurarem, simultaneamente, despolitizar o desenvolvimento e debilitar os movimentos democráticos ao cooptarem financeira e politicamente alguns movimentos de protesto nos países em desenvolvimento e também na arena global. Neste processo, assuntos como ambiente, género, direitos humanos e até mesmo democracia estão a ser redefinidos em termos radicalmente diferentes daqueles que tinham sido desenvolvidos pelos movimentos de base no anterior paradigma do desenvolvimento alternativo. Por exemplo, a questão do ambiente já não é vista como aquela que implica um processo político (e os movimentos) para reorganizar a economia e a vida sócio-cultural, local e globalmente, na base de princípios ecológicos elementares. Em vez disso, as questões ecológicas estão a ser reformuladas em termos permanentemente alterados de «limites toleráveis» e «custos aceitáveis» de danos ambientais, que se prevê que aumentem a sua ocorrência, em proporções maiores, com taxas de crescimento económico cada vez mais elevadas - que também são esperadas e consideradas desejáveis. Se alguma «política» está envolvida nesta redefinição é sobre a transferência de custos ambientais de um sector da economia para outro ou, pior ainda, de uma região do mundo para outra diferente. O tema dos direitos humanos tem sido visto em função dos interesses de política externa e económica dos países ricos e poderosos. Estes interesses dizem respeito não só ao estabelecimento do seu poder oligárquico sobre o mundo, mas também a garantir um funcionamento «sem sobressaltos» das empresas multinacionais nos países periféricos. Procura-se conseguir tal desiderato obrigando os governos destes países a ceder às condições e termos que as empresas multinacionais impõem e que pensam ser necessários para esse funcionamento. Neste processo, as multinacionais surgiram como poderosos actores globais - nalguns casos até mais poderosos e ricos do que muitos Estados-nação - que, com frequência, reduzem insidiosamente direitos humanos fundamentais (direito à subsistência, ao habitat e à cultura) dos pobres nos países periféricos, mas que permanecem livres da fiscalização de qualquer órgão de governação global, ou de qualquer Estado-nação, pelas suas violações dos direitos humanos. Mesmo alguns grupos «internacionais» de direitos humanos parecem agora agir como grupos políticos de pressão por conta das forças hegemónicas globais, procurando impedir os países periféricos de fazer determinadas opções políticas em áreas como o uso da terra, legislação laboral, exportações, etc. Apesar de isto ser feito em nome da universalização dos direitos humanos, a selectividade dos temas e a selecção de certos países, frequentemente traem o seu carácter particularista e nacionalista (Ocidental). A consequência é que, neste novo discurso hegemónico, pensar em direitos humanos foi dissociado de questões como a da eliminação da pobreza, da satisfação das necessidades humanas básicas e da justiça social. A pobreza está cada vez mais a ser encarada como sendo a incapacidade das próprias pessoas pobres para criarem riqueza e não como um assunto que envolve os direitos dos pobres ou como uma questão moral. Por outras palavras, o discurso global sobre os direitos humanos deixou de ser um discurso acerca da transformação social e política e, em vez disso, tornou-se um discurso sobre que condições é que os países «desenvolvidos» poderosos devem impor aos outros países, tornando-se respeitados por produzirem um regime legal de direitos a nível global. Neste discurso sobre direitos, é com toda a conveniência que se presume que as instituições da sociedade civil global - para dotar todas as pessoas de cidadania global (igualdade política) - e os mecanismos de governação global - para assegurar a fiscalização das organizações transnacionais e o primado do direito no comportamento internacional - já se desenvolveram e já estão in situ! Tal assunção possibilitou que os poderes hegemónicos globais seleccionassem alguns países pobres e periféricos e «não jogassem» com eles por violarem os direitos humanos, enquanto ignoram idênticas violações por parte dos governos dos países que se vergam aos seus projectos hegemónicos. É uma boa medida para se avaliar a extensão do seu domínio sobre a cultura global de protesto o facto de, apesar desta prática de duplo critério, ser possível aos poderes hegemónicos afirmar o seu «compromisso» com a universalização dos direitos humanos e, em simultâneo, manter as empresas transnacionais fora dos limites do regime global de direitos humanos. No discurso sobre a democracia, a ideia de governação global está a ganhar terreno mas, paradoxalmente, a democracia ainda continua a ser encarada como o quadro adequado para a governação interna dos Estados-nação, e não para a governação global. Por este motivo não é difícil a uma instituição como a OMC (Organização Mundial do Comércio) funcionar sem se submeter a qualquer princípio de transparência ou de fiscalização democrática e, também, com autonomia perante as instituições das Nações Unidas, mesmo quando decide julgar assuntos que estão sob a alçada da lei internacional e de organismos como a OIT (Organização Internacional do Trabalho). Portanto, presume-se que as instituições de governação global sejam auto-responsáveis, não prestando contas for a do seu próprio âmbito. Só «prestam contas» aos seus patrocinadores que, normalmente, são os poucos Estados-nação com poderio militar e económico. No discurso feminista global, tem regredido a sensibilidade acerca das complexidades sócio-estruturais, económicas e culturais com que as mulheres dos países pobres se deparam para assegurar os seus direitos; em seu lugar adquiriram relevância as preocupações legalistas e metropolitanas acerca dos direitos das mulheres numa sociedade consumista. Por essa razão, na Índia, os activistas dos movimentos de base têm poucas dúvidas de que as agências da globalização hegemónica estão inclinadas para monopolizar o discurso global dos protestos visando a legitimação da ordem hegemónica global e o enfraquecimento dos processos de transformação social e política. Nesta cultura de protestos, globalmente homogeneizada, alguns grupos-movimento indianos consideram ser cada vez mais difícil participar nas campanhas internacionais, ainda que elas se dirijam a questões de grande interesse para eles. Na sua perspectiva, frequentemente tais campanhas procuram enfraquecer a soberania nacional do país e, na articulação dos temas a nível global, demonstram insensibilidade em relação ao contexto histórico e cultural onde esses temas estão incrustados. Como consequência, estes grupos abstêm-se amiúde mesmo de exprimir a sua oposição ao Estado indiano em termos e formas que possam, na sua perspectiva, deslegitimar o papel do Estado na sociedade. Não o fazem tanto por considerações «nacionalistas», mas pelo receio de que, se agissem de outra forma, poderiam enfraquecer a tradição (de autoridade política democrática), entretanto adquirida, de o Estado proteger as instituições laicas e democráticas do país. No seu conjunto, os movimentos-activistas na Índia vêem a globalização como a nova ideologia do pós-guerra-fria que justifica o domínio de uma estrutura de poder global hegemónica que procura estabelecer o monopólio dos poucos países economicamente ricos e militarmente poderosos sobre os recursos do mundo inteiro. Como tal, consideram a globalização como inimiga dos valores básicos da democracia e da ecologia - liberdade, igualdade, diversidade e sustentabilidade. Na sua perspectiva, o seu impacto tem sido, para os países pobres, o de produzir formas novas e mais desumanas de exclusão e de desigualdade - piores do que as que foram criadas pelo modelo de Desenvolvimento da guerra-fria e, antes dele, pelo domínio colonial. No que respeita à Índia, estão particularmente preocupados com o efeito negativo da globalização na democracia. É quando as classes pobres encontram na democracia uma aposta a longo prazo e começam a conquistar a parte que lhes é devida na governação, que o poder do Estado (governos eleitos) está a ser, ele mesmo, enfraquecido e desapossado pela estrutura global de poder em colaboração com as elites metropolitanas do país. Posto de uma forma simples, os activistas de base vêem a globalização como uma força que enfraquece, na verdade deslegitima, as instituições de governação democrática ao estabelecer a supremacia do mercado sobre a economia, a sociedade e a cultura. É uma força que, na perspectiva deles, procura desfazer a revolução democrática indiana.
5. A nova política dos movimentos Como vimos acima, do ponto de vista dos movimentos, o discurso da globalização, ao privilegiar a ideia de governação em relação à de transformação social, esvaziou o desenvolvimento do seu conteúdo político, ou seja, despolitizou quer, o conceito quer a prática do desenvolvimento. Num outro nível, a política da globalização, ao utilizar o poder financeiro e militar dos poucos países poderosos do mundo, começaram a colocar as instituições de governação democrática e de soberania popular dos países periféricos numa relação subordinada em relação à estrutura de poder hegemónico global. Baseados nesta avaliação do impacto negativo da globalização, tanto para o desenvolvimento como para a democracia, os movimentos de base direccionam a sua política e actividades para atingir dois resultados inter-relacionados: a) repolitizar o desenvolvimento e b) reinventar a democracia participativa.
6. Repolitizar o desenvolvimento Actualmente, o esforço principal dos movimentos consiste em manter vivo o debate sobre o desenvolvimento, mas reformulando-o em termos que possam nacional e globalmente contrariar efectivamente as estruturas do poder hegemónico,. Assim, continuam a enunciar as velhas questões do desenvolvimento em novos termos políticos, ainda que o seu objectivo permaneça o mesmo de sempre, nomeadamente, que os que estão na base da pirâmide encontrem o seu justo lugar enquanto produtores na economia e cidadãos na política. Em conformidade com isso, encaram agora o desenvolvimento como uma luta política para a participação das pessoas na definição dos objectivos do desenvolvimento e no planeamento dos meios para os atingir. A sua visão do desenvolvimento é, deste modo, um processo pluralista, não-hegemónico, em cuja articulação utilizam conhecimentos a que chegaram indutivamente e critérios desenvolvidos por eles através dos seus próprios combates. Nesta operação, relacionam cada vez mais os assuntos debatidos globalmente, como o feminismo, a ecologia, e os direitos humanos, com as especificidades económicas, sociais e culturais da Índia, nas quais aquelas questões estão incrustadas. Em consequência, a sua política é sobre fazer do desenvolvimento um processo ascendente, e uma experiência edificante, directamente relevante para os pobres e oprimidos. Deste modo, em vez de «optar por abandonar» o desenvolvimento por completo, procuram agora modificar as relações de poder em que assenta o modelo de desenvolvimento convencional. Neste processo, entraram no pensamento e na prática do desenvolvimento dos movimentos de base, alguns elementos novos, de natureza essencialmente política. Primeiro, a antiga crítica pós-colonial do desenvolvimento, que invocava uma nostalgia pré-moderna, deixou de atrair um grande sector dos movimentos de base. Apesar deste tipo de crítica permanecer um passatempo para alguns grupos esotéricos de activistas e de clubes académicos, já não encontra grande eco nas novas aspirações dos indianos pobres. Nestas condições, os grupos-movimento vêem, a determinado nível, os elementos de poder do antigo modelo de Desenvolvimento a ser codificados na estrutura hegemónica da Globalização a que eles se opõem. Mas, ao nível da política nacional, consideram que a ideia de desenvolvimento representa os direitos políticos e económicos das pessoas cujo acesso a esses direitos tinha sido negado por estarem colocadas numa posição desfavorável na estrutura de poder. Por isso, problematizam o desenvolvimento em termos da criação de uma política de alteração das relações de poder na sociedade. Esta mudança de perspectiva foi expressa de maneira eficaz pela conhecida activista social Aruna Roy quando, em meados dos anos 80, deixou uma ONG de desenvolvimento, para fundar um grupo-movimento. De acordo com ela, na época a necessidade era de «redefinir o paradigma do desenvolvimento - encarar todo o processo de desenvolvimento de uma perspectiva diferente». E uma tal mudança de perspectiva, defendia ela, deveria permitir aos activistas sociais ver o desenvolvimento pelo que ele realmente é, ou seja, um processo político. Citando-a: «Desenvolvimento é política e não pode haver desenvolvimento sem vontade política. [...] De facto, todos os actos da vivência social e económica são determinados pela natureza da política» (Aruna, 1996a: 51). Segundo, a mudança de perspectiva foi também uma resposta para a alteração na política global do desenvolvimento do pós guerra-fria. Os grupos-movimento, na Índia, têm agora um melhor entendimento da política global do desenvolvimento. Com as instituições de desenvolvimento global a desistir, aberta e oficialmente, da sua antiga promessa de universalizar o desenvolvimento para todos, os grupos-movimento são, agora, capazes de ver a verdadeira face do poder hegemónico global. Não estão, por isso, surpreendidos por este ter desmantelado as estruturas de ajuda e assistência da época da guerra-fria e que, no seu lugar, tenha sido montado um novo regime económico global de controlo comercial e fiscal. Para os movimentos, estas mudanças significam uma nova agenda política por parte da estrutura de poder global que pretende, por um lado, a dispersão dos controlos estatais sobre a economia dos países periféricos e, por outro, a centralização do poder político e militar global nas mãos dos países que já são ricos e poderosos. Na sua perspectiva, isto constitui a base da actual hegemonia global através da qual estes países procuram manter a estabilidade política e económica internacional sob persistentes, e mais intensas, condições de desigualdade entre nações e dentro delas. Esta tomada de consciência levou alguns grupos-movimento a formar alianças transnacionais com o intuito de democratizar a estrutura de poder global. Por exemplo, muitos grupos-movimento indianos estiveram activamente associados a iniciativas contra-hegemónicas globais como a «Convention on Biodiversity», Agenda 21, «World Commission on Dams», «Alliance for Comprehensive Democracy», etc. Por seu lado, estas iniciativas não estão confinadas ao espaço global transcendental, estão integradas concretamente nas actividades a nível local e nacional de consciencialização e de activação de organizações ao nível da base para identificar e opor-se a políticas específicas, programas e legislação que visam expandir o poder hegemónico global. Terceiros, hoje em dia todos os grupos de base, incluindo até algumas ONGs de desenvolvimento convencionais, equacionam as questões básicas do desenvolvimento no quadro dos direitos. Por exemplo, já não consideram a pobreza como um problema puramente económico. Encaram-na como uma consequência das localizações sócio-estruturais dos pobres cuja ocupação os exclui do mundo do desenvolvimento (que é protegido pelas imunidades e isolamentos legais, políticos e económicos que proporciona aos incluídos) e aprisionados no mundo da pobreza (o mundo constituído de vulnerabilidades e exposição à exploração dos seus habitantes não organizados politicamente e marginalizados economicamente). Contudo, não entendem a divisão entre dois mundos em termos unidimensionais de polarização entre duas classes económicas. Daí que, as suas estratégias de mobilização focam novas formações sócio-políticas que combinam a categoria de classe com a de casta, etnia e género. Vou ilustrar brevemente este ponto com a referência a três tipos principais de movimentos: dos direitos humanos, ecológicos e de mulheres. A questão dos direitos humanos, tal como é vista pelos activistas de vários grupos de direitos humanos, não está confinada à noção legal convencional de liberdades civis, alarga-se a situações nas quais é negada a satisfação das necessidades básicas dos indivíduos e dos grupos. É neste contexto que expressam o tema da pobreza em termos de direitos e garantias (e.g., direito ao trabalho) que os pobres devem ter como cidadãos e como seres humanos. Portanto, a política dos micro-movimentos não assenta meramente no combate contra infracções específicas de direitos legais dos cidadãos, mas na criação e extensão de novos espaços cívicos e políticos para eles, convertendo as necessidades de sobrevivência e desenvolvimento dos pobres e despojados em combates pelos seus direitos económicos, políticos e culturais, e não apenas de indivíduos enquanto indivíduos, mas de grupos e comunidades que sobrevivem nas margens da sociedade civil. Neste processo, os activistas dos movimentos fazem a ligação dos direitos de aceder e beneficiar do processo de desenvolvimento com os temas da identidade étnica e da dignidade humana, e consideram a satisfação das necessidades materiais como uma demanda não separada dos aspectos espirituais e culturais da existência humana. É por isso que muitos grupos de intervenção social, cuja auto-imagem não é de serem grupos de direitos humanos, quase rotineiramente se dedicam a questões de direitos e cooperam com movimentos de direitos humanos. De forma semelhante, os movimentos ecológicos de base, não encaram a ecologia meramente como um factor de custo no desenvolvimento, como fazem alguns especialistas do desenvolvimento. Nem estão interessados em especificar níveis toleráveis de destruição ecológica necessária para atingir níveis mais elevados de desenvolvimento económico, como fazem as políticas da globalização hegemónica. Em vez disso, consideram a ecologia como um princípio básico da existência humana, que, se reactivado, pode produzir princípios superiores para reorganizar a economia de uma forma humana e voltar a focalizar o desenvolvimento em termos de bem-estar, no qual, para usar a frase bastante conhecida de Gandhi, «everyone shall have enough to satisfy one’s need, but not greed». Ultimamente os activistas dos movimentos de mulheres têm vindo a definir os seus problemas não só em termos de obter, no presente sistema, vantagens e acesso iguais para as mulheres. Pegaram nessas questões conscientes de que o faziam principalmente para encontrar pontos de entrada no mundo submerso da condição feminina na Índia, mas o seu objectivo de longo prazo, conforme o definem, é a mudança de funcionamento do próprio princípio do género na economia e na sociedade, de tal forma que ambas, sociedade e economia, se tornem mais justas e humanas. Consideram a visão do mundo ecológica dos movimentos mais alinhada com a essência feminina. Argumentam que a fusão dos princípios ecológicos e de género conduz a uma mais humana organização económica e política da sociedade do que a que resulta do Desenvolvimento que, na sua perspectiva, se funda no princípio da dominação masculina sobre todos os aspectos da vida humana e da natureza (Shiva, 1988). Daí que o seu projecto, que muitas vezes se conjuga com os movimentos ecológicos e dos direitos humanos, seja a mudança das formas de organização e de consciência da sociedade. Guiados por esta ampla perspectiva, estes movimentos são capazes de, com frequência, estabelecer ligações entre eles na luta por questões ao nível das bases. Não é de todo acidental que os movimentos ecológicos, como o movimento Chipko, tenham uma grande participação de mulheres e que no movimento Bodhgaya pelos direitos dos sem-terra, no estado de Bihar, haja mulheres a desempenhar importantes papéis de liderança. As mulheres estão na linha da frente dos movimentos que lutam pelos direitos das populações deslocadas por causa de projectos de desenvolvimento, sobretudo nos estados de Madhya Pradesh e Maharashtra. De forma análoga, as organizações de direitos humanos muitas vezes trabalham em conjunto com as organizações de mulheres em assuntos como o dos dotes, da sati (auto-imolação das viúvas na pira funerária dos seus maridos), do estupro e da igualdade de salários. Do mesmo modo, activistas de grupos de mulheres desempenharam um papel activo na mobilização e na assistência às vítimas do desastre químico de Bhopal. Nunca, na Índia independente, em movimentos dirigidos por partidos e sindicatos, houve um tão elevado grau e sustentado nível de participação das mulheres como o que hoje em dia se pode testemunhar ao nível das bases dos movimentos políticos não-partidários. Quarto, os movimentos percebem agora mais claramente que as raízes da pobreza rural se encontram no padrão de crescimento urbano que foi seguido na Índia. Entre outras coisas, isto levou a uma maior interacção e à construção de novas ligações organizativas entre os grupos de intervenção social baseados nas cidades e os que actuam nas aldeias. Para além disso, os movimentos também compreenderam a inconsequência da lógica estabelecida de serem os inputs a servir como factor mais importante no desenvolvimento rural. Na perspectiva deles, isto representa um entendimento parcial e enviesado do problema do desenvolvimento rural, porque disponibilizar inputs a camponeses pobres é um assunto que é mais do foro político do que económico. A experiência, até agora, é de que isso não ajudou a uma larga maioria dos pobres, que não têm capacidade económica e organizativa para receber e utilizar inputs como o crédito, sementes, fertilizantes, irrigação, etc. Estes inputs são simplesmente absorvidos pelo estrato superior da sociedade rural. Por isso, a sua actividade concentra-se, agora, na criação de competências de auto-desenvolvimento entre as populações rurais pobres, mesmo à medida em que lutam pelos seus direitos a criar e assegurar recursos para o desenvolvimento colectivo. Deste modo, ao redefinir as questões do desenvolvimento em termos políticos, os grupos que trabalham separadamente em assuntos diferentes, como o género a ecologia e os direitos humanos, ou nas áreas da saúde e da educação, concebem agora as suas actividades em termos mais genéricos, como uma forma de acção política e social destinada a contrariar as estruturas hegemónicas de poder, a todos os níveis - local, nacional e global. Uma consequência importante desta mudança de perspectiva foi a de que os movimentos de base, que estavam num estado de fragmentação e de baixo moral no fim dos anos 80, começaram a reagrupar-se e a aproximar-se em plataformas comuns, relativamente à questão da globalização. Em meados dos anos 90 isto levou ao lançamento de várias campanhas novas à escala nacional e à formação de coligações e alianças organizacionalmente mais duradouras. Entre muitas destas iniciativas, a mais eficaz e que mais se expandiu, nos últimos anos, foi a campanha pelo Direito à Informação - uma série de lutas a nível local para assegurar salários correctos para os trabalhadores das obras públicas de «draught relief», culminando numa bem sucedida campanha a nível nacional para o direito à informação. O antigo, e ainda activo, movimento dos anos 80, o Narmada Bachao Andolan (um movimento para preservar modos de vida, ecologia e culturas mantidos pelo rio Narmada e ameaçados de destruição pelo projecto de construção de grandes barragens no curso deste rio), teve um novo impulso e deu origem a uma aliança com uma base bastante alargada de organizações e movimentos sociais activos a vários níveis e em diferentes zonas do país. Esta aliança, conhecida como «National Alliance for People’s Movements» (NAPM), tem promovido, apoiado e coordenado, de uma forma mais ou menos regular, várias campanhas de protesto contra os programas e projectos, do governo e das empresas multinacionais, representativos das políticas da globalização hegemónica. Tem havido mais iniciativas destas, mas as mais recentes de entre elas incluem: a «Campaign for People’s Control over Natural Resources», que abrange várias organizações activas nas áreas rurais e tribais, cobrindo cerca de treze estados indianos; o movimento «There Is An Alternative», que, entre outros dirigentes, conta com dois antigos primeiro-ministros; o «The Living Democracy Movement», para a ligação da tomada de decisões ao nível da democracia local à manutenção da biodiversidade; o movimento para o desarmamento nuclear, designado por «Indian Coalition for Nuclear Disarmament and Peace», etc. Apesar de na próxima secção se descreverem com mais detalhe alguns dos citados movimentos, o facto de aqui se mencionarem apenas estes é para mostrar como o desafio da globalização revitalizou politicamente o panorama dos movimentos sociais na Índia, que, no fim dos anos oitenta, estavam a perder relevância e direcção; e, o que é mais interessante, como é que se tornou possível para os líderes destes movimentos manter a sua política num alto nível de intensidade e, nesse processo, recuperar a esperança de iniciar uma política de longo prazo de não-cooperação e de não-reconhecimento da legitimidade das estruturas de poder dominantes. Em síntese, as políticas de diferentes grupos e movimentos, que começaram a convergir em meados dos anos 90, conseguiram uma direcção comum e uma base organizativa razoavelmente duradoura. Esta convergência foi alcançada até ao ponto de resistência aos esforços desenvolvidos pelas elites burocráticas, tecnocráticas e metropolitanas para apoiar as políticas de globalização e de despolitizar o desenvolvimento. E isto porque, segundo os movimentos, é apenas através da politização dos pobres que eles podem contrariar o impacto negativo da globalização e fazer do desenvolvimento um processo justo e equitativo e uma experiência colectivamente edificante. Deste modo, ao estabelecer, tanto conceptualmente como na prática, um sistema de ligações entre as questões do desenvolvimento e da democracia, os movimentos de base começaram a articular as suas políticas em termos de democracia participativa.
7. Reinventar a democracia participativa Nas discussões teóricas e na prática da política representativa, a democracia participativa tem sido tratada, respectivamente, como uma ideia parapolítica e uma actividade política marginal - uma característica desejável, mas não essencial, de uma democracia moderna. É na política dos movimentos de base, onde o alcance da democracia é activamente procurado e expandido através dos seus combates políticos quotidianos, que a democracia participativa é concebida não apenas como desejável mas como uma forma organizativa e uma prática política necessária. Sob as condições da Globalização - em que as instituições da democracia representativa ao nível nacional são subordinadas ao poder hegemónico global, com as estruturas políticas e económicas de tomada de decisão a ficarem mais remotas e, até mesmo, alienadas das populações, a política continuada de democracia participativa por parte dos movimentos obteve uma nova relevância. 7.1. A democracia participativa e a teoria política Na teoria democrática contemporânea, a noção de participação política expressa-se em termos de deveres políticos e de direitos legais e constitucionais dos cidadãos no que respeita à eleição de governos representativos e a assegurar o seu funcionamento democrático (Almond e Verba, 1963; Milbrath, 1965). Ao conceber a participação em termos passivos de limitação do papel e das actividades dos cidadãos ao âmbito institucional das eleições, partidos e grupos de pressão, a teoria resguarda (ou, pelo menos, pretende fornecer justificações para resguardar) os procedimentos de tomada de decisão dos governos eleitos da política de alta intensidade da mobilização de massa e da acção directa que os movimentos populares, que por vezes surgem à superfície, produzem na democracia representativa. De facto, em grande parte, esta noção tem sido bem sucedida a proporcionar estabilidade institucional e legitimidade política à democracia representativa liberais, fazendo com que pareça que esta é a única forma natural que a democracia pode ter. Mas, ao mesmo tempo, a imaginação política desta teoria afundou-se em questões pragmáticas relativas às velhas democracias «de facto existentes», do Ocidente. Neste processo, esvaziou as opções das novas democracias em desenvolvimento para evoluírem e fazerem experiências com alternativas institucionais para aprofundar a democracia e para escolher formas adequadas aos respectivos contextos históricos e culturais. Mais do que isso, esta teoria, ao tratar persistentemente e durante muito tempo a democracia representativa liberal como a forma definitiva de democracia, encorajou o ponto de vista de que, com ela, a humanidade tinha atingido o estado mais elevado de desenvolvimento político, para além e fora do qual não existia nenhuma possibilidade democrática. Este ponto de vista, inclusivamente, encorajou um pensador político norte-americano a considerar a chegada e universalização da democracia liberal como anunciadora do fim da história! (Fukuyama, 1992). Este discurso de alta intensidade defendido durante o período da guerra-fria produziu, ironicamente, um conjunto de argumentos teóricos que obteve sucesso em manter a democracia representativa ao nível do que Boaventura de Sousa Santos apropriadamente descreve como democracia de baixa intensidade - que provavelmente também se ajusta à política contemporânea de globalização hegemónica (Santos, 1999). Daqui resultou, contudo, uma importante perda teórica, ou seja, o conceito de democracia participativa foi empurrado - se não completamente descartado - para as margens da teoria democrática. Manter a democracia como uma operação de baixa intensidade ao nível nacional pode conduzir à integração da economia (capitalista) mundial porque isso ajuda os governos nacionais dos países periféricos a dispersar e afastar os movimentos democráticos populares que se opõem à implementação de ajustamentos estruturais e a outras políticas que a estrutura de poder global transmite aos governos nacionais. Mas é precisamente por esta razão que os países periféricos do mundo que passa pelo processo de globalização precisam de criar uma forte infra-estrutura democrática, ao nível da base, sem a qual as suas democracias não podem sobreviver ao nível do Estado-nação ou, pior ainda, podem pôr em perigo a própria sobrevivência dos seus cidadãos pobres. Dois movimentos efectuados pelos teóricos da democracia representativa tornaram possível, por um lado, incorporar o conceito de participação dentro do paradigma estrutural-funcional da teoria (ou seja, a participação concebida como uma forma particular de comportamento político dos cidadãos através da qual elegem governos e devem manter o seu funcionamento numa trajectória democrática através dos seus representantes, e, por outro lado, tratar a democracia participativa quer como uma forma arcaica de governação quer como um ideal impraticável que - se efectivamente aplicada ou mesmo experimentada - está repleta de consequências perigosas para a própria democracia. O primeiro argumento é elaborado fazendo a história da democracia em termos lineares e evolutivos. A história da democracia é reconstituída desde a sua origem na cidade-estado de Atenas, onde funcionava como uma democracia directa e participativa, passando pelas sucessivas formas que assumiu, até que atingiu uma forma complexamente desenvolvida de democracia representativa, tornando possível o seu funcionamento a uma escala muito mais vasta como a do Estado-nação (e, por vezes, até à de estados do tamanho de continentes). Esta transmutação, segundo esta perspectiva, equipou a democracia representativa liberal para funcionar a uma escala global e levar a cabo uma enorme quantidade de programas e políticas respeitantes a todos os aspectos da vida dos seus cidadãos (Dahl, 1989: 1-24). A finalidade deste exercício, ao que parece, é mostrar que as convicções e práticas historicamente associadas a democracia participativa de uma cidade-estado não têm, hoje, qualquer relevância para a democracia ao nível do Estado-nação e, muito menos, no futuro em que é provável que venha a abranger todo o globo como seu campo de acção territorial. A democracia participativa é de facto uma ideia nobre, admite a teoria, e alguns dos seus elementos devem ser funcionalmente incorporados na democracia representativa, mas é um retrocesso pensar nos cidadãos a controlar e participar directamente nas tomadas de decisão governamental e pode, até, no mundo actual, acabar por ser uma receita para o desastre. No discurso teórico da democracia indiana daí deduzido, este fixar da democracia participativa no passado morto e enterrado do Ocidente deslegitimou qualquer exploração histórico-teórica baseada na sua existência no passado da Índia. Por este motivo, a ideia da democracia como sendo simbolizada no conceito de república-aldeia é tratada pelos especialistas indianos de teoria política como uma ideia atávica que não merece qualquer discussão teórica séria. O outro argumento - ao contrário do anterior, que vê a história da democracia em termos estrutural-funcionalistas - é construído em termos normativo-analíticos. Parece basear-se no medo do apelo romântico (imagens utópicas) que a ideia de democracia participativa evoca. Segundo aqueles que apresentam este argumento, propagar o ideal da democracia participativa promove, frequentemente, ideias simples e populistas acerca da democracia. Argumentam ainda que os proponentes da democracia participativa não reconhecem o facto de que os governos modernos tem que depender, com frequência, nas suas tomadas de decisão, de especialistas e peritos já que os assuntos envolvidos são tão complexos e técnicos na sua essência que estão para além da capacidade de compreensão dos próprios representantes eleitos, quanto mais da dos cidadãos normais. Conceitos como democracia directa ou participativa apenas servem para desviar a atenção da teorização da democracia para o mundo que se globaliza (Schmitter, 1999). Um sector das elites indianas, que acredita que a meritocracia proporciona uma melhor forma de democracia e de boa governação, utilizou este argumento para sustentar politicamente esta sua posição. Alegam que, para preservar as normas institucionais da democracia representativa, é necessário limitar estritamente, tanto em termos de procedimentos como de estruturas, os poderes dos representantes eleitos através de instituições legais-racionais da burocracia e do poder judicial. Na sua perspectiva, dar legitimidade à ideia de democracia participativa apenas exporia ainda mais as instituições da democracia representativa às pressões maioritárias e populistas por decisões frequentemente imperfeitas e irracionais que, normalmente, não são do interesse público. O domínio deste discurso na Índia, durante as décadas iniciais da Independência, levou à consolidação do domínio hegemónico, ainda que democraticamente consentido, de uma pequena minoria social e política, constituída por elementos das castas superiores urbanas, com educação inglesa. Ocuparam um grande número de lugares em diferentes sectores e instituições do Estado, especialmente nos altos cargos administrativos e judiciais, durante mais de quarenta anos após a Independência. O que se havia tornado uma perspectiva instituída, e de senso comum, de governar a Índia, começou, contudo, a ser desafiada no fim dos anos 70, quando os movimentos das classes subalternas ganharam força, tanto ao nível da política eleitoral como na sociedade civil (Sheth, 1995). 7.2. A política de democracia participativa dos movimentos A ideia de democracia participativa era central no pensamento e prática política de Gandhi e inspirou muitos activistas do movimento de libertação. Gandhi articulava esta ideia através dos conceitos de swaraj (autogoverno) e de swadeshi (controlo comunitário sobre os recursos) e pela invocação da imagem de «república-aldeia» (gram swaraj) como representante da tradição democrática indiana. Depois da Independência, estas formulações foram, contudo, energicamente refutadas e praticamente banidas do discurso político convencional por representarem o idealismo impraticável de Gandhi. A ideia da democracia participativa foi, todavia, não apenas mantida viva, mas desenvolvida, conceptualmente e na prática, por um sector dos activistas de base que usaram livremente o pensamento económico e político de Gandhi - apesar de muitos deles poderem não querer exibir o emblema de Gandhi (Bakshi, 1998). O primeiro manifesto abrangente sobre democracia participativa veio de Jayaprakash Narayan (J.P.), um líder socialista popular do movimento independentista que, cinco anos depois da Índia ter obtido a Independência, se juntou ao movimento inspirado em Gandhi. Narayan elevou bastante o perfil político do movimento quando, em 1954, fez uma proclamação pública em que declarava dedicar toda a sua vida ao movimento ou, nas suas palavras, ao «caminho de Gandhi». O tema do aprofundamento da democracia era central na sua agenda para o movimento, pois acreditava que, sem isso, apenas o domínio da elite se perpetuaria em nome da democracia. Daí resultou, em 1959, a publicação do seu tratado sobre a democracia não-partidária (Narayan, 1959). Era crítico da ideia da representação por partidos políticos e defendia uma forma mais participativa e abrangente de democracia, que constituísse uma base democrática alargada a partir da qual o poder brotaria e ascenderia para células que utilizariam o poder que lhes fora atribuído pelas células do nível inferior, tudo isto em condições de responsabilização e transparência. A quantidade e género de poder a ser atribuído a uma célula colocada a um nível superior seria mediante a necessidade dessa célula. Todavia, a tese de Narayan causou um impacto muito escasso fora dos círculos dos seguidores de Gandhi. De facto, atraiu críticas agudas dos teóricos democráticos liberais, assim como dos políticos dos partidos, que viam esta tese como um exercício ingénuo de um idealista inconsciente das suas perigosas consequências para a própria democracia (Kothari, 1960). O documento foi praticamente «retirado» do discurso público mas, no prazo de dois anos, Narayan surgiu com um manifesto politicamente mais potente e abrangente sobre a questão da democracia participativa (Narayan, 1961). Nele, rebatia os argumentos dos seus críticos e elaborava a sua tese básica afirmando teórica e historicamente, a necessidade de uma democracia abrangente na Índia, onde o poder económico e político fosse essencialmente mantido e exercido directamente pelo povo a partir da base da organização social. Não demorou muito para que a sua visão da democracia encontrasse uma expressão política poderosa. No início dos anos 70, lançou um sólido movimento com o objectivo de, usando a sua expressão, restaurar o poder do povo (lokshatkti) na democracia (Narayan, 1975). Esta ideia do poder do povo inflamou a imaginação de muitos jovens que, para além de atraírem a atenção do Governo em Delhi, deram origem a um novo género de micro-movimentos, celebrizado e caracterizado pelos teóricos actuais como «processo político não-partidário» (Kothari, 1984). Este género de grupo-movimento, que emergiu a partir do que se tornou conhecido como o «movimento J.P.», tem desde então trabalhado ao nível das bases. Articulam a democracia participativa em termos de aumento de poder do povo através de combates quotidianos pelos seus direitos, assim como através do aproveitamento dos seus esforços colectivos para desenvolver os recursos locais para proporcionar o bem-estar colectivo. O mais notável, neste género, foi o movimento lançado, em 1978, por Chhatrayuva Sangarsh Vahini, conhecido como o Movimento Bodh Gaya (uma organização juvenil para a transformação social e política que inclui estudantes e não-estudantes). Desde então tem servido de fonte de inspiração, a nível nacional, para muitos grupos-movimento. Este movimento foi bem sucedido na apropriação de cerca de 5,000 hectares de terras que pertenciam a uma instituição religiosa de Bodhgaya, um distrito do estado de Bihar, através da acção directa não-violenta. Os campos foram legalmente redistribuídos a famílias de trabalhadores rurais que a elas estavam ligados há gerações. No decurso da redistribuição, os direitos legais de posse da terra foram atribuídos, igualmente, a homens e mulheres. Mais importante do que este resultado em forma de redistribuição de terras foi o processo de mudança através do qual os objectivos mais amplos e os valores de transformação política e social do movimento foram mantidos vivos, transmitidos e, ainda que parcialmente, institucionalizados, tendo afectado, naquela área, a vida de cerca de 3,000 famílias participantes. De facto, o grupo-movimento assegurou que os dalits (ex-intocáveis), cujo direito à terra levou ao lançamento deste movimento, se mantivessem na linha da frente, tendo as mulheres desempenhado papéis de liderança decisivos. Este movimento criou uma nova esperança em todo o país, entre os grupos de intervenção social, relativamente à eficácia da utilização da militância não-violenta como um meio para a transformação social e económica. Nos anos mais recentes, um outro movimento do mesmo género, igualmente significativo, tem sido dirigido por Tarun Bharat Sangh (União dos Jovens Indianos) e é conhecido no exterior graças ao seu líder, Rajendra Singh, distinguido com o prémio Magsaysay. Ele aderiu à organização e revitalizou-a com o seu trabalho nas aldeias do Rajasthan desde 1985. Com outros membros do seu grupo começou a trabalhar com a profunda convicção que o povo tem os conhecimentos e as capacidades para desenvolver e gerir colectivamente os seus assuntos, para assegurar o seu próprio bem-estar (foi assim que ele interpretou a mensagem de Narayan de «poder para o povo»), desde que deixem de esperar ajuda do Governo e estejam motivados para trabalhar por sua conta. Utilizando as próprias palavras de Singh: a nossa luta [é] contra o Estado para que as comunidades tenham uma palavra a dizer sobre o seu desenvolvimento, [...] o sistema administrativo [...] tenta impingir a sua própria visão do desenvolvimento às comunidades, sem se preocupar em saber o que é que as pessoas querem. De facto, é um mito afirmar que o desenvolvimento é para o povo, na verdade é contra o povo [...]. Guiados pelos ideais de Jayaprakash Narayan e Acharya Vinoba Bhave, trabalhar para a mudança social foi uma escolha óbvia [para nós]. Tendo iniciado o seu trabalho em meados dos anos 80, este grupo de activistas sociais foi capaz de estabelecer, ao longo de década e meia, um sistema de auto-governo das terras e de gestão da água em cerca de 700 aldeias de Rajasthan, perpetuamente afectadas pela escassez de água e extremamente pobres. Isto foi conseguido através do reavivar de competências e conhecimentos recessivos das próprias populações, relativamente à construção de estruturas para captação de águas, conhecidas localmente como Johads. Neste processo os aldeãos não só prosseguiram e construíram uma rede de diques e de pequenos reservatórios, sem qualquer ajuda governamental, como, ultrapassando o governo, tomaram decisões sobre a utilização das terras, construíram muros nos limites dos terrenos comuns e florestaram uma área enorme de solo árido. Esta situação tornou-se possível graças à confiança social que a população recuperou por ter passado a dispor de água como resultado dos seus próprios esforços. As antigas formas de interdependência económica e de cooperação social foram, então, retomadas e impregnadas com novos significados económicos e político-democráticos. Para Singh esta é uma pequena conquista, provavelmente de pouca duração. Ele antecipa uma longa batalha pela frente para que seja possível alcançar uma verdadeira democracia para o povo. Passamos a citá-lo: Infelizmente, o Estado, na Índia, não aprecia que as comunidades tentem ajudar-se a elas mesmas. Se as populações começam a participar no desenvolvimento e a questionar o dinheiro que ostensivamente é gasto com elas, isso cria dificuldades para aqueles que dirigem o sistema. Para uma burocracia treinada na tradição colonial de mandar em vez de trabalhar com as pessoas, a democracia de base é um conceito estranho. Por isso, em vez de o desenvolvimento ser um esforço cooperativo entre as pessoas e o Estado é, de facto, povo versus Estado. Mas o Governo encara tudo isto de uma forma assaz diferente: como uma invasão do seu território e uma usurpação das suas funções. A administração interpôs centenas de acções judiciais contra o grupo-movimento e os aldeãos e ameaçou-os com a demolição dos diques por terem sido construídos sem a autorização do Governo e sem a orientação de peritos («engenheiros civis»). Foi aqui que a política do grupo de base de mobilização de massas e de integração em alianças mais alargadas, foi útil; tornou possível que o movimento, em conjunto com os aldeãos, resistissem à pressão e, por fim, obtivesse a confirmação governamental para o modo de auto-governo que eles desenvolveram através das lutas políticas no terreno. Mais uma vez, Rajendra Singh encara este facto como uma moratória conseguida pela vitória numa batalha mas não na guerra. Nas suas palavras: «A menos que as comunidades sejam empoderadas e encorajadas a desenvolver a aposta no desenvolvimento, ganhar a guerra vai ser difícil». Neste processo de oposição à globalização hegemónica, os movimentos acrescentaram uma outra dimensão à sua política - fazer dos actos legislativos um terreno importante de acção/luta política e social. No decurso da aplicação dos Programas de Ajustamento Estrutural e de outras políticas relacionadas com a globalização, o Estado ajudou activamente as empresas indianas e multinacionais a adquirirem terras e outros recursos das aldeias a preços fictícios. Isto envolveu a retirada de garantias constitucionais dadas às tribos (ou seja, a garantia de que não seria permitida a alienação das suas terras) e, em consequência, a extensão dessas garantias às empresas multinacionais, ao disponibilizar-lhes terras, água e recursos florestais a baixos preços, mas com enormes custos para o modo de vida das populações e para o equilíbrio ecológico das regiões. A aprovação ou aplicação de legislação e de decisões do Governo como estas são, agora, desafiadas pelos grupos-movimento não apenas nos tribunais, mas também na esfera mais alargada da sociedade civil. As acções de litigação em nome do interesse público, que anteriormente ficavam sobretudo confinadas aos tribunais como contencioso entre o Estado e os activistas sócio-jurídicos, tornavam-se agora matérias de interesse e envolvimento directos das próprias populações, constituindo a política quotidiana dos grupos-movimento. Neste processo iniciaram-se novos fóruns de participação, tais como, a documentação dos efeitos sobre as populações de determinadas políticas e legislação governamentais, através da colaboração em inquéritos participativos estudos levados a cabo pelos activistas sociais (incluindo alguns técnicos) conjuntamente com as próprias populações e da divulgação dos resultados ao público em geral, incluindo os meios de comunicação social. O modo mais eficaz e inovador de consciencialização e de mobilização política, que foi desenvolvido neste processo e que entretanto se tornou numa prática política comum para os grupos-movimento de todo o país, é a organização de grandes marchas (Pad yatras). As Pad yatras, literalmente, marchas a pé, são normalmente planeadas por activistas representativos de organizações de diferentes partes do país, mas que partilham uma perspectiva e um interesse comum por um determinado assunto que pretendem destacar para mobilizar a opinião pública. Caminham longas distâncias juntamente com as pessoas que são atraídas de vários locais, mas que enfrentam um problema semelhante - por exemplo, o seu modo de vida a ser ameaçado por um projecto do Governo ou de uma empresa multinacional - numa área específica. No decurso da marcha efectuam paragens em aldeias, interagindo com as pessoas, mostrando filmes, apresentando peças de teatro, tudo isto para sublinhar os assuntos em causa. Um entre muitos casos como estes é o do movimento contra as minas de bauxite nas áreas tribais de Visaka, no estado de Andhra Pradesh. Em 1991, uma marcha, que ficou conhecida como a manya prante chaitanya yatra, uma caminhada para promover a consciencialização sobre a destruição ecológica enfrentada por uma área geográfica, foi organizada por uma série de grupos-movimento com actividade nessa zona. Juntaram-se à marcha mais de 50 grupos de intervenção social que prepararam um relatório sobre a destruição ambiental que observaram e experimentaram durante a marcha. O relatório descrevia a forma como a região ficou sob séria ameaça, tanto em termos ecológicos como para o modo de vida das populações residentes na zona, e mencionava também o facto de que, caso os danos não fossem controlados, daí poderia resultar um desastre ecológico para toda a península do sul da Índia. O relatório falava ainda da deslocação de 50,000 pessoas das tribos, da enorme desflorestação e do problema das cheias repentinas e das lamas que daí resultavam. Esta Chaitanya yatra (marcha para melhorar o estudo e a consciencialização das populações) serviu, desde então, como base para o movimento de intervenção social e jurídica que existe há uma década, e que persiste, no estado de Andhra Pradesh. Nos últimos cinco anos expandiu-se bastante, cobrindo muitos outros temas semelhantes e grupos-movimento a trabalhar neles a partir de diferentes partes do país. O que aqui tem interesse é o tipo de política que o movimento desenvolveu para expandir as suas actividades e resistir tanto tempo. A um nível, ao levar a tribunal a questão da ameaça ao modo de vida das populações, criou uma aliança de movimentos com expressão nacional recolhendo, assim, uma ampla base de apoio para as suas actividades. Ao funcionar através dessa aliança, foi possível projectar o seu trabalho nos meios de comunicação nacionais e contribuir para a construção de laços de solidariedade entre os grupos-movimento. A outro nível, mais decisivo, o movimento, graças às suas marchas de mobilização e de consciencialização e de uma miríade de outras actividades, foi capaz de motivar as populações da região para fundarem as suas próprias organizações que agora reivindicam o auto-governo como um direito e como a melhor forma de proteger e desenvolver os recursos do seu modo de vida e da sua cultura. Para resumir a história, a Chaitanya yatra foi prosseguida de forma persistente por dois grupos, SAMTA e SAKTI, através da criação de uma rede de grupos de intervenção social no distrito de Vishaka, sob a bandeira do Visvasamakhya (um fórum para a equidade mundial). Este fórum organizou várias marchas deste género noutras zonas do estado e preparou relatórios que realçavam a forma como a usurpação das terras das tribos pelas empresas, com pretensos meios legais, privou as populações do seu modo de vida, identidade e cultura. Ao preparar relatórios e ao divulgar a informação e as análises que eles continham, procurou-se obter a ajuda de organizações bem conhecidas, dirigentes de movimentos e profissionais-activistas, activos no estado e noutras partes do país. Foi neste pano de fundo de constantes combates que os grupos da região levaram a cabo durante cerca de uma década que se tornou possível para eles, ou seja, para o SAMTA, apresentar uma petição ao Supremo Tribunal da Índia para fechar as minas de calcite da região por colocar em perigo a permanência da população das tribos locais e constituir uma ameaça ecológica para aquela zona. O SAMTA alegou que a mina deveria ser fechada, uma vez que as tribos estavam protegidas pelo Anexo Quinto da Constituição contra a alienação das suas terras e a mina ameaçava destruir o seu modo de vida e, mais do que isso, violava um direito fundamental, o direito à vida, que a Constituição outorga a todos os cidadãos. Aceitando em grande medida a petição do SAMTA, o Supremo Tribunal proferiu uma sentença de 400 páginas, em 1997, em que traçava, em linhas gerais, as medidas que precisavam de ser tomadas para fazer das tribos parceiros no desenvolvimento das áreas do Anexo (ou seja, áreas constitucionalmente protegidas povoadas pelos povos tribais). O Supremo deliberou que todas as organizações do sector público ou privado que funcionassem nessas áreas deveriam atribuir não menos que 20 por cento dos empregos às populações locais e idêntica percentagem de lugares para as suas crianças nas instituições educativas. O Tribunal também estipulou que cada unidade industrial dessas áreas cedesse 20 por cento dos seus lucros e os disponibilizasse para o género de desenvolvimento que fosse proveitoso para a população local. Essencialmente, o Supremo reconheceu as populações locais como depositárias legais do desenvolvimento da área em que habitam, o que tornou indispensável a sua participação nesse desenvolvimento e deu legitimidade à sua reivindicação a uma parte dos benefícios daí provenientes. Este julgamento, que constituiu um marco importante, ficou conhecido em toda a Índia como o processo SAMTA, ou seja, pelo nome do grupo-movimento que levou o caso a tribunal. A partir de então tornou-se um ponto de convergência à volta do qual muitas lutas são agora empreendidas em conjunto por vários grupos de acção. Primeiro, para assegurar a aplicação das decisões do Supremo, assim como das suas recomendações. Segundo, para examinar e alargar os significados legais e jurídicos do julgamento a uma aplicação mais alargada. Terceiro, utilizar politicamente a decisão do Tribunal para criar um bastião de resistência para impedir a aplicação da política governamental que, ao fazer parte do pacote da globalização e estando sob pressão das multinacionais, procura retirar garantias outorgadas às populações pelo Anexo Quinto da Constituição. Ao longo de quatro anos, ou seja, desde a decisão do Supremo Tribunal, em 1997, no caso SAMTA versus Estado de Andhra Pradesh, uma série de marchas, demonstrações e assembleias foram levadas a cabo, de forma mais ou menos regular, em diferentes partes do país, por grupos-movimento social envolvidos no movimento mais amplo de tornar o desenvolvimento directamente relevante para as populações. Estes esforços culminaram, entretanto, na preparação de uma campanha de expressão nacional a que se juntou uma centena de grupos-movimento e um número significativo de intelectuais e profissionais socialmente empenhados. Esta campanha é apoiada a nível organizativo pelo SAMTA, no estado de Andhra Pradesh, e pelo SETU - Centre for Social Knowledge and Action no de Gujarat, e é conhecida como Campaign for People’s Control over Natural Resources. Adoptou para si própria um amplo mandato de planeamento de estratégias para opor às políticas do Governo concebidas para apoiar as forças da globalização hegemónica, na Índia. Essas políticas dizem respeito à aquisição de terras, deslocação e reabilitação das populações afectadas por projectos, biodiversidade, florestas, aquacultura, agricultura, gestão dos recursos hídricos, alterações ao Anexo Quinto, etc., todas elas enfraquecendo directamente os direitos e os modos de vida das classes subalternas - ex-intocáveis, populações das tribos, pequenos agricultores e trabalhadores agrícolas sem terra, pastores e pescadores. Diferente da campanha acima mencionada para impedir o Governo de legislar em determinadas matérias, há um movimento que pretende obrigar o Governo a aplicar as suas próprias regras e regulações de uma forma séria e eficaz. A sua política centra-se em levar a cabo consultas públicas e tribunais populares com o intuito de criar sanções políticas e sociais para a administração local para a obrigar a cumprir e a tornar públicas as regras e regulações pelos quais se rege na aplicação dos programas de desenvolvimento. Na sua génese esteve uma luta iniciada por uma organização de base popular numa aldeia do estado do Rajasthan, fundada por Aruna Roy, que desistiu do seu emprego nos Serviços Administrativos Indianos (IAS) «para trabalhar com o povo». A organização adoptou a designação de Mazdoor Kisan Shakti Sangathan (MKSS) - organização para reforçar o poder dos operários e agricultores. A referida luta estava dirigida ao problema que as populações sentiam mais intensamente, ou seja, impedir que os funcionários públicos ludibriassem os operários que trabalhavam na construção de obras públicas, não lhes pagando os salários mínimos fixados pelo Governo. Para além de receberem salários inferiores aos que lhes eram devidos, as pessoas da zona não arranjavam trabalho que tivesse uma duração suficiente ao longo do ano. Isto acontecia porque os programas de desenvolvimento aprovados pelo Governo ficavam muitas vezes no papel, com o dinheiro que lhes era destinado a ir parar ao bolso dos funcionários públicos e dos dirigentes eleitos. Uma vez que tudo isto era feito com o conhecimento dos de «cima», não era com petições, por muitos que fossem, que se resolvia; só a acção directa das populações se afigurava como solução possível. O MKSS levou a cabo, de Dezembro de 1994 a 1995, várias consultas públicas, Jan Sunvai, em que os trabalhadores eram encorajados a expor os seus problemas com a administração pública - descrevendo sobretudo os detalhes do pagamento de salários inferiores aos devidos e os esquemas com os programas de desenvolvimento que continuavam por aplicar - na presença de jornalistas locais e de pessoas de diferentes posições sociais das aldeias circundantes. Foram necessárias várias destas consultas públicas para persuadir alguns dos implicados - empreiteiros, engenheiros e dirigentes locais eleitos - a aceitar o convite do MKSS que lhes pedia para aproveitarem a oportunidade para se defenderem, respondendo às acusações de corrupção na aplicação dos programas de desenvolvimento. Nada disto teve grande impacto na administração e nas pessoas de fora da zona, até que foi organizado, em 1996, um enorme sit-in, um dharna, durante 40 dias, numa cidade próxima, Bewar, seguido de outra série de consultas públicas, demonstrações e marchas. Isto obrigou o Governo do Estado do Rajasthan a alterar a lei do governo local (Lei Panchayat Raj), autorizando os cidadãos a obter cópias autenticadas das facturas e dos recibos dos pagamentos efectuados e das folhas de salários que indicavam o nome dos trabalhadores empregados (porque os pagamentos muitas vezes eram processados através de recibos forjados e registados em nome de pessoas que nunca tinham trabalhado nas obras). Esta situação resultou numa campanha a nível estadual, exigindo que o governo do estado do Rajasthan aprovasse legislação geral garantindo aos cidadãos e organizações o direito à informação. Tudo isto culminou na organização de uma campanha à escala nacional - National Campaign for People’s Right for Information — que preparou uma proposta de lei para o Direito à Informação. Ao obter um enorme apoio político para a proposta de lei, esta campanha foi bem sucedida, com meia dúzia de estados a aprovar legislação semelhante nas respectivas assembleias estaduais. Actualmente, o Parlamento Indiano está em vias de aprovar uma lei como esta para ser aplicada a nível nacional. Para resumir, a política inovadora do grupo-movimento MKSS - assim como a de muitas outras organizações semelhantes que aqui não foram referidas -, ao trabalhar de forma explícita pelo princípio de tornar a democracia participativa e responsabilizável, iniciou um amplo e longo processo político através do qual as populações podem participar eficazmente na elaboração das leis, ao obrigar os legisladores, ao nível local, estadual e nacional, a produzir legislação de acordo com a vontade popular - conseguindo, até, nalguns casos, que o poder legislativo adopte projectos de leis preparados pelos movimentos de base e fundamentados na informação e no conhecimento adquirido durante as suas próprias lutas e através de consultas alargadas a diferentes fóruns da sociedade civil. Existem muitos outros casos de grupos-movimento que articulam diferentes elementos da democracia participativa no decurso das suas lutas para democratizar o desenvolvimento (Kothari, Smitu, 2000). Face à falta de espaço, far-se-á apenas uma breve referência a alguns deles. Por exemplo, há grupos-movimento de base urbana como, por exemplo, a SEWA (Self-employed Women’s Association), em Ahmedabd, fundada e dirigida por Ela Bhatt que tem um longo e excelente desempenho na intervenção junto das mulheres que trabalham por conta própria para que reforcem a sua capacidade política e económica e se emancipem socialmente (Rose, 1992). Existe também uma outra organização, recentemente criada em Delhi por Madhu Kishwar, o Manushi Forum for Citizen Rights. Estas duas organizações têm desenvolvido campanhas para proteger os direitos económicos e expandir as liberdades dos trabalhadores por conta própria pobres das cidades - como os vendedores ambulantes e os condutores de rickshaw (Manushi, 2001: nº 123, 124). Integrando esta campanha, realizaram-se documentários que foram exibidos em vários fóruns da sociedade civil, mostrando como os funcionários públicos os perseguem, não propriamente para fazer cumprir as leis, mas para lhes extorquir dinheiro. Foram efectuadas várias consultas públicas que demonstraram como a aplicação das reformas económicas discriminou de forma notória entre ricos e pobres e em que se apontou para a necessidade de alterar, senão mesmo de abolir, as leis e regulamentos que impedem as pessoas de exercer o seu direito a ganhar a vida (Manushi, 2001: n.º 124). Existem também os movimentos para que seja concedido às assembleias de aldeia (gram sabhas) o poder de gerir, através da participação directa das populações, os assuntos das próprias aldeias (Kothari, Smitu, 2000). Um desses movimentos, por exemplo, exprime claramente a sua concepção de democracia participativa como sendo um «antídoto contra a globalização». A sua política consiste em dar uma forma organizativa às ideias de Gandhi de swaraj e swadeshi, ao nível das bases. Liderado por um activista que ganhou experiência no movimento J.P., Mohan Hirabai Hiralal, o movimento motivou as pessoas a instituírem, numa primeira fase, a sua própria gestão das zonas florestais da região. Hoje em dia, são as próprias populações que preservam o equilíbrio ecológico da floresta fazendo uma utilização judiciosa dos produtos florestais (Desphande, Vivek, 21 de Maio de 2000). Actualmente, o movimento para o auto-governo está-se a expandir para muitas outras aldeias, abarcando mais áreas da vida colectiva. O seu credo é: na nossa aldeia o Governo somos nós e deve haver um Governo nosso na região, no país e no mundo. Digno de registo é o facto de o grupo-movimento também ter elaborado, ao nível teórico, um «plano» das estruturas organizativas necessárias para uma democracia participativa desde a aldeia até ao nível global, especificando os objectivos de longo prazo e os valores que os devem animar (Hralal, 2000).
8. Conclusão A característica distintiva da política dos movimentos é, assim, construir um novo discurso sobre a democracia através de uma prática política sustentada. Isto é realizado a três níveis: (a) ao nível das bases, através da construção das capacidades e do poder das próprias populações, o que envolve, inevitavelmente, lutas políticas para instituir direitos, assim como um grau de autonomia local para as populações gerirem os seus próprios assuntos colectivamente; (b) ao nível provincial e nacional, através do lançamento de campanhas de âmbito nacional, do estabelecimento de alianças e coligações para mobilizar os protestos sobre temas gerais (contra «projectos e políticas antipopulares») e da criação de redes organizativas de apoio mútuo e de solidariedade entre os movimentos; (c) ao nível global, por um pequeno sector de activistas dos movimentos que nos últimos anos começaram a participar em vários movimentos e alianças transnacionais para a promoção de uma política anti-globalização hegemónica. Nisto tudo está implícito o objectivo de longo prazo dos movimentos de trazer o meio envolvente próximo (social, económico, cultural e ecológico), em que as populações vivem, para dentro da esfera de acção e de controlo destas. Contudo, esta política dos movimentos leva-os com frequência à confrontação com o Estado, a administração pública, a máquina legal e policial, as estruturas do poder local e, cada vez mais, com as multinacionais que invadem os espaços rurais e tribais. Algumas vezes, os micro-movimentos também entram em conflito com os partidos políticos e com os sindicatos instituídos. Todavia, os activistas dos movimentos encaram estes confrontos como uma expressão da luta mais ampla, de longo prazo, para a transformação política e social e não como um meio para competir com os partidos políticos no âmbito da política da democracia representativa, para conquistar o poder estatal. Consideram, portanto, as suas lutas quotidianas como um processo de expandir translocalmente os espaços políticos através da consciencialização das populações e da construção das suas próprias organizações. Neste processo, tem contribuído para criar uma cultura política de democracia participativa nas zonas em que têm actuado. Os activistas dos movimentos desenvolveram a sua própria crítica das macro-estruturas predominantes de representação política, assim como uma visão da política local. A sua crítica não provém da teoria, emergiu da experiência quotidiana no terreno das lutas políticas. Na sua perspectiva, as instituições representativas aprisionaram o processo de democratização na sociedade. A saída deste impasse é a propagação do seu tipo de política - a política dos micro-movimentos. Os movimentos, crêem eles, ao envolver profundamente as populações na política irão, a longo prazo, mudar os termos que justificam que o Estado mantenha e utilize o poder. Provavelmente, isto explica a sua preferência epistémica em expressar a sua política em termos de «reconstrução do Estado» em vez de «conquista do poder do Estado». Apesar de normalmente os movimentos trabalharem a nível local, definem as questões locais invariavelmente em termos translocais. A sua política local é, portanto, de uma nova espécie, que, ao contrário da política convencional dos governos locais, não está verticalmente ligada às macro-estruturas do poder e da ideologia, seja a nível do Estado-nação ou da Ordem Global; também não é uma política paroquial. Expande-se horizontalmente através de vários micro-movimentos constituídos por pessoas que vivem em diferentes áreas geográficas e provém de meios sócio-culturais diversos, mas que sofrem a situação comum de diminuição de poder causada pelo desenvolvimento errado e pelas formas contemporâneas de governação que são arrogantemente distantes, ainda que suficientemente próximas para fazerem sentir a sua face coerciva. Vista deste modo, a política de longo prazo dos movimentos é sobre a retirada de legitimidade às estruturas do poder político hegemónico e excludentes e é também sobre conversão para o nível horizontal das estruturas verticais da hierarquia social, através do reforço da política paralela de democracia participativa local. Neste processo, os micro-movimentos, por um lado, visam o problema de tornar as instituições de governação, a todos os níveis, mais responsáveis, transparentes e participativas e, por outro, criam novos espaços políticos fora da estrutura do Estado em que as próprias populações sejam capazes de tomar decisões colectivamente sobre assuntos directamente relacionados com as suas vidas. Se bem que não tenha tendência para criar novos termos, parece-me ser mais adequado caracterizar esta nova política dos movimentos como «sócio-ética» (socioethics). Todavia, isto não significa que os actores ao nível das bases e as organizações definam a política dos movimentos em oposição directa ao quadro institucional da democracia indiana. De facto, encaram a democracia institucional como uma condição necessária, ainda que não suficiente, para prosseguir a política paralela dos movimentos, através da qual procuram aumentar a consciência social das populações e democratizar as estruturas hegemónicas do poder na sociedade. Neste sentido, a sua política é sobre como contornar e transcender as estruturas institucionais predominantes da democracia liberal - em vez de as confrontar directamente com uma perspectiva de conquista do poder do Estado. Em síntese, os movimentos concebem a democracia participativa como uma política paralela de intervenção social, criando e mantendo novos espaços para a tomada de decisões (ou seja, para o auto-governo) pelas populações nas matérias que afectam directamente as suas vidas. Como uma forma de práxis, a democracia participativa é para eles um processo político e social que se destina a criar um novo sistema de governação, múltipla e sobreposta, que funcione através de uma participação e de um controlo mais directos das populações envolvidas (ou seja, daqueles que são abrangidos por essas governações). Pretende-se que, através desta política, o quase total monopólio de poder que é detido pelo Estado (totalista) contemporâneo se disperse por diferentes entidades auto-governadas mas que, ao mesmo tempo, a macro-governação do Estado, embora confinada a alguns sectores decisivos nacionais, seja levada a cabo através de corpos representativos democraticamente eleitos que, a um nível, supervisionam o sistema de micro-governação e, a outro nível, dêem resposta e prestem contas a esses mesmos micro-governos.
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