RES
English
NOTA: este documento representa uma versão não editada do texto final. Para referência ou citação recorra à publicação impressa.

João Marcos de Almeida Lopes

«O Dorso da Cidade»: os sem-terra e a concepção de uma outra cidade

 

 

Introdução

Por mais precisa e complexa que se pretenda a reflexão quanto a um determinado fato, no justo momento em que ocorre, num campo social e político importante - e efervescente - e com desdobramentos relativamente inusitados, seria equivocado pretender abarcar todas as nuanças, equívocos, acertos e potencialidades presentes no processo de seu desenvolvimento, principalmente se considerarmos o caráter primário dos eventos que o compõe. Além disso, se imersos no cotidiano desse fato, isto é, quando o lugar do enunciado provém do lugar da enunciação, sentimo-nos obrigados ao esforço da análise sistemática, devidamente distanciada. Mesmo assim, não estaríamos livres de colher, por vezes, apenas aparências. Por outro lado, o que aparece pode trazer, se atentos para isso, sinais cuja distintividade fixar-se-á apenas ao longo da evolução do fato: permitir-nos a eles seria também assumir o risco de sustentar, pela aparência, aquilo que o fato parece indicar.

O presente capítulo é um desses casos: trata de refletir quanto à potencialidade emancipatória possivelmente identificável no processo de concepção de uma cidade que se propõe à inversão da dinâmica de produção das cidades modernas: ao invés de pensá-la a partir de si mesma, pensá-la a partir de seu «avesso», isto é, neste caso, o campo; ao invés de concebê-la como puramente o lugar de circulação de mercadoria, imaginá-la como lugar de encontro e sociabilidade diferenciada; ao invés de construí-la tendo por referência as relações essencialmente mercantis, erigi-la a partir de seu significado político. Empreendê-la a partir daí, contudo, ainda tem sido apenas exercício de emancipação imaginária do estrito campo da possibilidade em direção ao campo das utopias: um processo ainda em curso.

O objeto em questão é a concepção de uma cidade da reforma agrária, no Centro-Oeste do Estado do Paraná, região Sul do Brasil, a qual emerge a partir da implantação de um dos maiores assentamentos de reforma agrária do país, o Assentamento Ireno Alves dos Santos.

Congregando em torno de 1500 famílias, este assentamento é resultado de um conflituoso processo de negociação entre o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST e o governo federal, através do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA, órgão responsável pela política agrária e fundiária rural no país. Faz parte desse processo, como será descrito adiante, uma arriscada investida do Movimento, em 17 de Abril de 1996, quando aproximadamente 15 mil pessoas invadiram e ocuparam parte de um extenso latifúndio - sobre qual parcela hoje se instala o assentamento -, situado no interior daquele Estado, junto a um grande lago formado por uma das muitas barragens do Rio Iguaçu, um dos mais importantes corpos d’água da região e do país. A Usina Hidrelétrica de Salto Santiago, que justifica aquela barragem, faz parte do complexo responsável pela geração de energia elétrica para toda a região Sudeste brasileira.

Já neste momento, tratava-se, portanto, de uma dupla condição adversa: por um lado, o campo de conflitos que se manifesta quando questionado o direito de propriedade e a função social da terra; por outro, a perigosa proximidade a um campo de domínio estratégico, qual seja, as instalações de um dos componentes do sistema responsável pela eletrificação de toda a região economicamente mais importante do país.

As tensões agravam-se ainda mais na medida em que, para além do contexto já tenso estabelecido com a desapropriação da fazenda para fins de reforma agrária, a municipalidade que abriga o novo assentamento se vê ameaçada de perder - jurídica e politicamente - quase metade de seu território. Ao propor uma «cidade» concebida pelo seu avesso, os Sem Terra disputam essa territorialidade estabelecida pelos estatutos legais que também conformam as condições da vida civil nas cidades brasileiras e que, portanto, conformam ainda os mecanismos de ordenação social que condenam a «descartáveis» aqueles considerados «incapazes» de inserção no mercado urbanizado e globalizado de nossos dias. Por isso a inversão: é essa população «descartável» que se recoloca na disputa não só pelo espaço da cidade, como também por uma nova concepção de «cidade». Além disso, ao propor a construção de uma «cidade da reforma agrária», os Sem Terra avançam para além do campo descrito pela lógica burocrática, simplista, compensatória e apaziguadora, estabelecida pelos programas oficiais de reforma agrária vigentes no país e trazem, constituindo um novo campo de conflitos, a possibilidade de imaginar, como sujeitos políticos que falam - ou que resgatam a possibilidade da fala -, uma cidadania no campo ou, como dizemos, uma «cidadania sem cidade» (Rizek e Lopes, 1999: 2). Por isso a cidade pelo seu dorso: é o próprio campo pensando a si mesmo em direção a uma urbanidade que se propõe transformada. Mas até que ponto trazer para fora dos muros da cidade a reflexão sobre ela mesma não inverte também a possibilidade de enunciar suas próprias contradições? Isto é, será possível imaginar a constituição de direitos e cidadania a partir justamente da não-cidade?

Além dessa questão, este estudo é concebido a partir dos restritos limites de uma ação essencialmente técnica e bastante contextualizada: uma associação de profissionais - da qual faz parte o autor do presente trabalho - composta principalmente por arquitetos e urbanistas e que tem trabalhado, nos últimos onze anos, diretamente com movimentos sociais que se articulam em torno da questão da moradia, é a entidade responsável pelo desenvolvimento das discussões, consultas e encaminhamentos técnicos - inclusive projetuais - para concepção e implantação da «cidade dos Sem Terra». Se por um lado é a própria experiência da entidade que a legitima nesta função, por outro há o que é inusitado na proposta que se inscreve: como pensar uma cidade pelo seu avesso? Como lidar com a objetividade de um planejamento ordenador e autoritário, muito próprio das concepções instaladas a partir do que conhecemos como Urbanismo Moderno, frente a um contexto pleno de conflitos, intercorrências, tensões, incongruências e disputas? Até que ponto não vemos reinstalar as utopias que deram origem ao pensamento urbano contemporâneo e as reeditamos mesmo reconhecendo o «esgotamento» de suas «energias», nos termos de Habermas (Habermas, 1987)? Até que ponto não arriscamos reproduzir os mesmos equívocos que hoje reconhecemos como tal?

A questão central que motiva a presente discussão - se é possível distinguir alguma potencialidade emancipatória nos trâmites de concepção e instalação dessa cidade - situa-se, por outro lado, imbricada ao cotidiano da própria organização do assentamento e do Movimento como um todo. Dessa forma, os parâmetros de diálogo sobre os quais se assenta o processo de discussão dessa outra cidade «com/fundem-se» no espaço de conflitos que o MST descreve e no qual se insere, abarcando não só o contexto local como também o campo de disputas que se desdobra nacionalmente. Tal permeabilidade acaba tolhendo uma avaliação isolada do termo em questão, impondo - pelo menos como referencial - a abordagem mais ampliada em relação a aspectos que, aparentemente, não demonstram vínculos imediatos com o caso em discussão. Tal expediente é justificável se argüirmos se essa permeabilidade também não contamina, por seus inúmeros vasos comunicantes, alguma essencialidade que poderia emanar de um empreendimento como este. Isto é, até que ponto o discurso da direção do corpo político que se faz sujeito deste fato - a construção de uma cidade da reforma agrária - não organiza e burocratiza os procedimentos, propugnando uma falsa «harmonia social» interna e formatando, pela linguagem, um paradoxal processo inverso de «roubo da fala» (Oliveira, 1999: 61 e 71)? Será que não estaríamos reproduzindo algumas representações que espelham a própria negação do que se pretende contra-hegemônico e emancipatório?

A partir da descrição do contexto em que se desenrola este fato, procuraremos enunciar algumas possibilidades para as questões aqui formuladas. Quanto à última, dado que se insere num campo mais amplo e que, de certa forma define os contornos que podem melhor focar a questão central deste trabalho, procuraremos melhor aprofundar no termo final desse capítulo.

 

1. A ação: imagem de um tempo vizinho

Tratava-se de ocupar uma enorme fazenda: um latifúndio de 84 mil ha, localizado na porção Centro-Oeste do Estado do Paraná, na região sul do Brasil. Sem a medida da produtividade - considerando que aqui se trata de um país de famintos - a Fazenda Giacometi estendia seus limites para além das fronteiras demarcadas pela geografia ou pelos municípios. Justificada perante a letra que defende a função social da propriedade no país, a Fazenda Giacometi registrava-se como «área de reflorestamento» e seus proprietários contribuíam para os fundos públicos, através do imposto que pesa sobre a propriedade rural, com uma quantia anual que não chegava somar dez dólares americanos.

As crônicas, memórias faladas e cantadas, as pequenas histórias contadas, por vezes, em forma de anedota e, por outras, dramaticamente, mas sempre formuladas como um épico constitutivo de uma identidade coletiva, resgatam a lembrança da madrugada do dia 17 de Abril de 1996: à semelhança de uma procissão, levantando quinze mil personagens quase fantasmagóricos deslizando sob a neblina, os Sem Terra marcharam para dentro dos limites da fazenda, certos de que ali transpunham também o limite entre o que foi e o que poderia vir a ser.

Aquela multidão que deslizava em cortejo por sobre a terra - não sem acompanhá-la o medo na garganta - esperava qualquer coisa pois coisa nenhuma lhe restara. Despossuídos de tudo, talvez aquela terra pudesse colocar sob seus pés alguma outra possibilidade de existência. A solenidade da procissão, contudo, não seria mais que um momento único; da romaria de pura necessidade destoariam também expectativas frente ao desconhecido, tecidas de possibilidades e desejos que, na pesada sombra da maioria, ainda se «com/fundiam» sobre a mesma trama e urdidura tecidas pela lógica da propriedade que aquele momento parecia negar.

 

2. Antes: construindo um cenário

Foram 22 dias de cuidadoso planejamento. Cada indivíduo, cada família fora instalando-se, a poucos quilômetros dali, em precárias barracas de plástico preto montadas às margens da rodovia que dá acesso a um dos limites da fazenda, mantendo-se ali ao longo do tempo necessário para «acúmulo de forças». Oriundas de diversas regiões, próximas e distantes, informadas quanto à existência do acampamento na beira da estrada por inúmeras fontes, as famílias organizavam-se em grupos que se alternavam em atividades necessárias à manutenção e à segurança do próprio acampamento e ao planejamento da ocupação.

Conduzir aquela multidão para dentro das cercas que demarcavam a fazenda, contudo, não se tratava de ação desprovida de risco: a mando de seus proprietários, avisados quanto aos quase nômades que acampavam à margem da estrada perto dali, a fazenda escondia quase uma centena de seguranças, vigiando armados os movimentos daqueles indigentes. Como numa emboscada, um momento de desatenção dos pistoleiros contratados para a defesa da propriedade - uma providência que no Brasil se tem feito corriqueira e duvidosamente «justificável» - permitiu neutralizá-los e abrir caminho para a ocupação conduzida pelos Sem Terra.

O compasso da longa espera chegara ao fim: ao sinal de que a vigilância subjugara, um comando se espalhava, de barraca em barraca e, levantando aquela massa de homens e mulheres, crianças, adultos e velhos, os Sem Terra percorreram o trecho que os separava da fazenda para, por um de seus flancos, romper a corrente que - não mais que simbolicamente - impedia a porteira de se abrir ao seu avanço.

 

3. Depois: um roteiro para enfrentar a precariedade

Como oferendas por uma graça concedida, fogões, móveis, ferramentas e utensílios domésticos acompanharam, passo a passo, a caminhada de 20 quilômetros até a antiga sede do latifúndio. Ali, no coração da fazenda, junto a algumas construções que um dia abrigaram colonos e deram suporte à intensa atividade extrativista que justificava seus proprietários defendê-la como «produtiva», os Sem Terra instalaram as barracas que haviam trazido das margens da estrada, instituindo um novo campo de resistência, já entre as dobras do território que pretendiam partilhar. Não se tratava mais do lugar da passagem, do efêmero, do tênue limite entre o precisar ir e o poder deixar-se ficar, o lugar do acúmulo de nada mais ter senão a companhia de quem também nada mais tem. Tratava-se de fincar as unhas naquele chão e construir, como quem constrói barricadas, o acúmulo de forças necessário para o enfrentamento dos dias que se seguiram.

Como lugar de plena manifestação da necessidade, o acampamento instalado nas entranhas da fazenda resgatava, todavia, outra possibilidade de trama para o enfrentamento coletivo das adversidades. Como na beira da estrada, premidos pela fome, pelo risco, pelo frio e até mesmo pela indiferença burocrática de quem os identificava apenas como vagos ocupantes de um «não-lugar», os Sem Terra aprenderam, por força estratégica, implementar mecanismos geridos em setores que se destinavam não apenas mitigar os espólios da necessidade mas, para além, subverter algumas práticas de ordem puramente funcional.

Assim, como nas fileiras de um vago exército, os acampados dividiam-se em tarefas, reguladas por um Regimento Interno, «com leis internas que todos deveriam cumprir» (Secretaria Regional do MST, 1999). A realização dessas tarefas era organizada a partir de Setores, responsáveis pela provisão às demandas oriundas daquele cotidiano inóspito. Para a fome e para a sede, um Setor de Alimentação, que «distribuía em partes iguais a alimentação recebida através de doações feitas por pessoas amigas, Sindicatos de Trabalhadores Rurais e outra entidades de ajuda humanitária». Para a ordem e para o medo, um Setor de Segurança, responsável não só pela «aplicação do Regimento Interno» como também para a vigilância e a defesa do próprio acampamento. Para o futuro e o cuidado com as crianças, um Setor de Educação que «organizava em simples barracos de lona, toda a educação de crianças, jovens e adultos do acampamento». Para o abrigo, um Setor de Infra-Estrutura, que «planejava e construía barracos, banheiros sanitários, organizava a distribuição de água, lonas e outros materiais». Para saber o que acontecia ali e no mundo, um Setor de Comunicação, responsável pela «divulgação e informação de todos os trabalhos do acampamento, dos acontecimentos político-sócio-econômicos nacionais, e também pelo lazer e entretenimento de todas as famílias acampadas». Para entender o que acontecia, um Setor de Formação, encarregado de «trabalhar a consciência social e política dos trabalhadores, e a importância da Reforma Agrária e da mudança para uma sociedade sem exploradores nem explorados». Para não deixar entrar a doença, um Setor de Saúde, promovendo a distribuição de remédios e patrocinando a realização de exames a partir de um programa de Medicina Alternativa, operado pelo MST. Para a imaginação, a «mística», re/apresentando a dimensão do possível - apesar da precariedade -, re/colocando a própria história - apesar de uma história que sistematicamente lhes fora negada - e re/afirmando, de si para si mesmos, a condição de sujeitos.

E para a condução daquele exército, uma Executiva Geral «composta por 13 integrantes, indicados pelas próprias famílias do acampamento».

Praticava-se, ali, uma «centralidade» de gestão que permitia amealhar as rotinas de enfrentamento das necessidades e (re)apresentá-las como possibilidades de inversão de uma prática meramente funcional. Isso significava construir tais possibilidades enfrentando diretamente a própria necessidade - o que difere radicalmente da situação quando se interpõe o fausto que apenas a segrega, relevando o contexto que a reproduz e afirma.

Por outro lado, essa «centralidade» quase militarizada, pressupõe um ordenamento rigoroso dos movimentos, dos gestos e dos olhares, reproduzindo o impacto de uma sociabilidade vigiada e temerosa: quem chega, quem sai, quem são, o que fazem, etc. No entanto, se tomado o acampamento como um «campo de guerra», essa «centralidade» vigiada talvez fosse o único meio de defesa daquele território do «nada ser», providência justificada pela agonia de um tempo que reluta permitir-se para além da cadência dos dias e das noites.

Quando, a partir de Janeiro de 1997, são distribuídos os lotes e firmados os contratos de assentamento com cada família - o que define sua condição de «assentada» -, ocorre um processo inverso de dispersão e aquela «centralidade» perde seu vigor e denota, como foi possível constatar neste caso, um certo enfraquecimento da coalizão inicialmente estabelecida em função da ordem pragmática demandada pela estratégia de ocupação. Cada família em seu lote, tendo, como veremos, como estrutura que lhe faz a mediação com o Movimento apenas a Cooperativa que lhe viabiliza a produção, acaba como que descolando daquela organicidade inicialmente estabelecida. Esse fato é importante para compreendermos os dois momentos que discutiremos neste caso específico: primeiro, um tempo onde o MST se estabelece como ordem articuladora inequívoca, onde as mediações entre indivíduos e comunidade política se estruturam a partir de demandas estratégicas e profundamente pragmáticas; depois, com a dispersão das famílias nos seus lotes, quando as possibilidades de mediação entre sujeito simples e sujeito coletivo diluem-se à medida que se submetem às exéquias exigidas pela micro-economia estabelecida pela rotina dos fluxos de produção inerentes à prática cooperativista.

Pois é justamente nesse segundo momento que surge a idéia de restabelecimento de uma nova «centralidade», concebida a partir do entranhamento das relações de vida ao território da utopia de uma cidade que se constitua pelo seu «avesso»: uma cidade da reforma agrária.

 

4. O contexto do Movimento: o MST como ação local

A ocupação da fazenda Giacometi, conduzida naquela madrugada com os cuidados de uma ação militar, foi promovida e organizada pelo MST - Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra -, como tantas outras realizadas em tantas outras partes do país e certamente contribuiu para aprofundar um pouco mais as raízes que o MST, enquanto movimento social organizado, tem cultivado ao longo dos últimos quinze anos. No rasto de outras tantas lutas campesinas, os Sem Terra - como acabaram sendo genericamente conhecidos - reeditam e reinventam, por exemplo, as lutas das Ligas Camponesas, dizimadas pelo regime militar instaurado pelo Golpe de 1964. Através de marchas percorrendo o país a pé, organizando ocupações como a daquela manhã, promovendo o cooperativismo como estrutura operacional para viabilização da produção coletiva, definindo e implementando programas para formação do agricultor ou propondo alternativas para a educação infantil, o MST tem conseguido estabelecer-se como um dos mais impertinentes sujeitos que - julguem-se os meios ou não - tem conseguido importunar a falsa tranqüilidade consensual imposta pelo neoliberalismo no Brasil.

Ocupar os flancos daquele enorme latifúndio, portanto, faz parte de um processo que transcende o porte de um conflito agrário regional, envolvendo um novo cenário que vem sendo construído no país, perante as mazelas de uma estrutura agrária que, mesmo para além da questão da propriedade, se mantém injusta e perniciosa desde o tempo em que aqui se transformou a terra num objeto de direito, ainda em tempos de domínio português.

Além disso, aqueles 15 mil camponeses debruçando sobre aquela terra, levavam consigo o eco de uma aritmética que se impõe - não tanto pela soma simples, que se realiza em quantidade, mas pela potência do ruído que produz - perante o exercício permanente de «docilização dos não incluídos», cadenciado pela uníssona cantilena consensual promovida pelos donos do poder.

Desta forma, a ocupação da fazenda Giacometi conseguiu chamar a atenção não só pelo porte, mas também pelo significado e pela ousadia.

O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA, responsável pela política agrária e fundiária no país, como já mencionamos, viu-se obrigado a promover a desapropriação de 16.800ha para o assentamento de 900 famílias (em 17 de Janeiro de 1997) e, posteriormente, mais 10 mil ha (em 13 de Agosto de 1998) para completar o atendimento a uma demanda de 1478 famílias, hoje acomodadas em lotes rurais de 5 a 6 alqueires (12 a 14ha).

Constituído como «Projeto de Assentamento de Reforma Agrária Ireno Alves dos Santos» - cujo nome homenageia uma liderança do MST local, morta em um acidente na estrada que atravessa toda a área - o assentamento abriga hoje uma população de mais ou menos 9 mil pessoas, quase 1,5 vezes a população do município que lhe constitui território. Logicamente, a admissão deste novo contingente de habitantes traz para o município uma enorme demanda por serviços públicos e por atendimento básico às necessidades de consumo, provocando o intenso reordenamento econômico da região como um todo, e do próprio município em particular.

 

 

5. O contexto do Município: entre o coletivo e o particular

Entre as cidades de Laranjeiras do Sul e Chopinzinho, localiza-se o município de Rio Bonito do Iguaçu, todos situados na região Centro-Oeste do Paraná. Abrigava, antes da instalação do assentamento «Ireno Alves dos Santos», em torno de 7 mil habitantes entre o pequeno núcleo urbano e sua área rural - esta sim, bastante extensa. Rio Bonito do Iguaçu encerra uma área de aproximadamente 70.140ha, sendo que quase 40% desta área é hoje ocupada pelo assentamento - o que já denuncia o porte dos conflitos que precederam e sucederam sua instalação.

Rio Bonito faz parte de um conjunto de cidades desta região que margeia o Rio Iguaçu e que sofreu - ou se beneficiou - com a construção de inúmeras hidrelétricas ao longo de seu curso, entre os anos 1970 e 80: Itaipú, na sua foz - a qual torna o Paraná um exportador de energia elétrica -, Segredo, Salto Osório e Salto Santiago, por exemplo. É esta última que se localiza no território daquele município e a história de sua construção não seguiu curso diferente daquele conduzido pela política desenvolvimentista da época. Promovida pela ELETROSUL - Centrais Elétricas do Sul do Brasil S/A, a Usina Hidrelétrica de Salto Santiago também resultou na criação de um grande lago artificial que expulsou inúmeros pequenos proprietários e submergiu imensas áreas de terra. Também promoveu profundas modificações estruturais nas cidades da região, principalmente as mais próximas das cotas limites de inundação, articuladas pelas demandas significativas de mão de obra e de serviços, além daquelas naturalmente constituídas com o êxodo das áreas alagadas e a conseqüente transferência de grandes contingentes de população para os municípios vizinhos, não atingidos com a formação do lago.

Com a chegada dos Sem Terra e a instalação do assentamento, de um dia para o outro a cidade viu sua população crescer de 7 mil habitantes para quase 16 mil, o que significa uma ampliação desmesurada do contingente de novos usuários dos serviços públicos, novos consumidores e, para aflição compreensível do poder local, novos eleitores.

Este fato não é desconsiderado pelos assentados. Na fala de uma das lideranças do assentamento, «enquanto estamos acampados na beira da estrada» - o primeiro momento que mencionamos - «somos considerados bandidos. Quando conquistamos a terra e o crédito e nos tornamos consumidores» - o segundo momento - «passamos a ser considerados ‘muito importantes’ para a economia local». São, então, assediados por um sem número de comerciantes de tudo: de sementes à maquinaria agrícola, de roupas à comida, de benefícios comerciais a benefícios políticos.

Também não lhes escapa a precariedade da infra-estrutura do próprio município ao qual passaram a integrar como «habitantes». Em se tratando de uma prioridade do MST e no que diz respeito à municipalidade, a educação básica foi motivo imediato de negociação entre os assentados e a prefeitura local. É significativo que um dos primeiros conflitos após a superação daqueles oriundos do processo que vai da ocupação da terra até o parcelamento dos lotes rurais e o efetivo assentamento das famílias em tais parcelas, ocorreu com a administração do município, quando era reivindicada a implantação de ensino básico na área do assentamento. Na defesa de interesses políticos e comerciais locais, o próprio Prefeito de Rio Bonito promoveu a tentativa de cooptação de famílias assentadas, oferecendo, além de um farto churrasco, facilidades e regalias públicas desde que questionassem a obrigatoriedade de vinculação do novo pequeno produtor às organizações cooperativas que o MST mantém como parte fundamental da política de Reforma Agrária que defende.

Com efeito, os assentamentos desta região contam com a COAGRI - Cooperativa de Reforma Agrária dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra do Centro-Oeste do Paraná -, uma das maiores do país vinculadas ao MST, congregando em torno de 4.500 famílias, entre assentados e pequenos produtores rurais, e movimentando algo em torno de R$3 milhões anuais (atualmente, perto de U$1,74 milhão). Comercializa mais ou menos 1 milhão de sacas de grãos, principalmente milho, soja, feijão e arroz. A COAGRI, como a quase totalidade das Cooperativas de Reforma Agrária ligadas ao MST, se faz responsável não só pelo suporte e pela comercialização das safras, como também pela gestão do crédito destinado aos assentados, isto é, toda a aplicação dos recursos deste crédito obedecem a diretrizes estabelecidas a partir de parâmetros fundados por um padrão mínimo de viabilidade e de subsídios apresentados por técnicos contratados pela própria cooperativa.

Seria oportuno ressaltar que o MST vem enfrentando inúmeros problemas com o modelo de produção que tem tomado como alternativa: incompatibilidades entre os padrões culturais de produção familiar e a estrutura de produção cooperativada, resistência à implementação de novos procedimentos, limitações gerenciais que acabam se impondo em virtude da insuficiência dos mecanismos de capacitação de pessoal ou da inexistência de quadros adequadamente formados, descompasso entre quantidade de trabalho investido e retorno auferido - relação [(produto/área)/trabalhador], etc. Estas dificuldades, quando enunciadas pela direita, justificam a acusação de ineficiência, de incapacidade do Movimento articular soluções apropriadas a um mercado agrário dinâmico, competitivo e globalizado, de posturas retrógradas que mantêm a condição de miséria estrutural no campo, etc. Quando explicitadas pela esquerda, introduzem o discurso de que as propostas de solução para a questão agrária não é «socialista», uma vez que não promove a efetiva abolição da propriedade privada e a socialização dos meios de produção, ou que não dão conta do «estrangulamento» da produção agrária, ou ainda que não são propostas amplamente aceitas pela «massa agrária» (Sampaio, 2001: 8). Não caberia aqui desenvolvermos tal discussão. De qualquer forma, procuraremos enunciar o contexto em que esse modelo se estabelece e o quanto acaba determinando, para o segundo momento que definimos, condições que circunstanciam as possibilidades, inclusive, de uma cidade da reforma agrária.

As Cooperativas de Reforma Agrária são hoje um dos principais alvos da «artilharia» do governo brasileiro contra o MST: apresentam inúmeros flancos frágeis, atuam mormente sob condições de extrema precariedade técnica e financeira, lançam mão de expedientes administrativos pouco recomendáveis (se considerarmos que o que se recomenda é a estrita submissão a regras que foram instituídas para que tais cooperativas nunca existam), etc. Dessa forma, um amplo espectro de juízos - à direita e à esquerda, como já vimos - têm fustigado a estrutura cooperativista operada pelo MST: desde atribuir às cooperativas a condição de «aparelho», destinado à cooptação de desinformados, à promoção de desvio de recursos para financiamento do próprio Movimento ou à formação de «bandos de invasores de terras», até, num outro extremo, de instituto hierárquico manipulado por poucos, em detrimento de uma possível «democracia produtivista», orientada a partir de uma perspectiva coletivista de produção (Navarro, 1997). Pelo que nos foi possível detectar no caso em pauta, tanto uma versão quanto a outra são bastante plausíveis se filtrarmos os ouvidos pelo discurso oficial, tanto aquele promovido pelos detratores do Movimento como aquele formulado pelas suas lideranças. Por outro lado, cada assentado enuncia sua própria versão e compreende, à sua forma, o mecanismo que o vincula à cooperativa. E é exatamente aqui que a análise corriqueira parece derrapar. Primeiro porque os assentados - pelo menos no contexto com o qual convivemos - cultivam uma postura exacerbadamente oportunista: seu vínculo com o sistema de produção promovido pelo Movimento é calibrado em função das vantagens que, momentaneamente, lhe são oferecidas. Se é possível obter crédito junto aos fornecedores de insumos agrícolas através da cooperativa (para aquisição de sementes e adubos, por exemplo), os assentados são céleres em compor seu quadro de associados. Quando vem a colheita, se alguma oferta melhor lhes é feita, os assentados não relutam entregar sua produção a um intermediário local em troca de favorecimentos que não se resumem no «melhor preço», relevando qualquer compromisso inicialmente firmado com a Cooperativa. Essa dinâmica não é colocada, normalmente, nas análises que se promovem acerca do sistema de produção defendido pelo MST. Perpassa, quase que exclusivamente, a avaliação do discurso oficial, acalentando a idéia de que os assentados constituem-se mera «massa de manobra» nas mão das cooperativas geridas pelo Movimento, disposta ao despotismo de uma direção centralizadora e excludente.

Retomando o rumo, essa questão é vital para compreendermos o quadro em que se desenrolam os conflitos com o poder público municipal em Rio Bonito. O que ocorre é que, invariavelmente, os interesses que a COAGRI procura articular não se coadunam com os interesses políticos e comerciais locais. Num quadro típico de tensão, os conflitos afloram, por vezes, em questões que não explicitam nem esses interesses e nem o conjunto de seus interlocutores.

Entendendo a ameaça representada pelas facilidades oferecidas pelo Prefeito, o MST local promoveu uma grande manifestação em frente à sede da prefeitura de Rio Bonito do Iguaçu, mobilizando as famílias já assentadas mais os novos integrantes de um novo grupo acampado na mesma beira de estrada que abrigara os agora «parceleiros» da Giacometi, reivindicando a infra-estrutura necessária para o atendimento básico do assentamento: escolas, abertura de estradas e calçamento com cascalho, atendimento básico à saúde, transporte público, etc. Instados pela liderança do Movimento e do assentamento, os 800 camponeses que, literalmente, «abraçaram» o prédio da prefeitura, viram-se demonstrando uma reação essencialmente coletiva às intenções de comprometimento propostas pelo Prefeito, em contraponto a uma certa confusão já instalada em virtude da mobilização de algumas vontades particulares dos assentados. Frente à manifestação, o Prefeito relutou, quase irredutível, em reconhecer o MST como instância de representação dos assentados, insistindo na tese de que «cada um era livre para escolher seu próprio caminho». A reunião na Prefeitura, organizada às pressas, contava com a participação de integrantes do Governo Estadual - Saúde, Educação e Meio Ambiente - e do INCRA, além de secretários e funcionários da prefeitura de Rio Bonito e de lideranças do MST. Com a irredutibilidade do Prefeito, num dado momento, os próprios funcionários das instâncias estaduais e federais de governo procuravam demovê-lo, argumentando que «até o presidente da República reconhece o MST!». Vencido, o Prefeito amargou ainda a derrota de comprometer-se publicamente, frente aos manifestantes, com as quotas de responsabilidade que diziam respeito à municipalidade. Não bastasse, ainda se viu constrangido, pelas mãos de uma das crianças do assentamento, a vestir um boné do Movimento - um de seus ícones mais conhecidos.

O relato anterior procura delinear minimamente o contexto de conflito gerado pela presença do assentamento na região e a diversidade de posturas e interesses que medram o interior do próprio Movimento e de suas estruturas de produção. Tal contexto reverbera os ruídos entre o poder local e aquela massa de destituídos, principalmente por se tratar de uma região que tradicionalmente sempre se viu às voltas com as ações violentas de grileiros, pistoleiros e grandes latifundiários - muitas vezes constituídos numa só pessoa. Além disso, também amplifica os ruídos gerados pelos conflitos e interesses particulares difusos que apenas são suspensos - mas nunca deixam de existir - a partir da ação coletiva que manifesta a expressão de uma comunidade política, no sentido arendtiano do termo. Na fala de uma direção local, é necessário que o Movimento aprenda a «administrar no conflito» e não «administrar o conflito». Não seria, pois, a partir da soma simples e da preponderância de um termo da equação sobre outros que se constituiria essa comunidade política. Buscando uma imagem mais complexa, o que nos parece é tratar-se de uma equação diferencial, onde cada termo abriga outra equação, composta por variáveis e funções que a lógica matemática jamais permitiria conjugar.

 

6. O contexto do assentamento: centralidade como condição de sustentabilidade

Com a implantação do assentamento, todas as demandas referentes às necessidades básicas daquele grupo organizaram-se em torno de duas vertentes de ação: por um lado, o «abraço» no poder público, exigindo-lhe o posicionamento ativo para o pronto atendimento das necessidades relativas à infra-estrutura local, isto é, escolas, postos de saúde, estradas, eletrificação rural, telefonia, etc., além de crédito para a produção e uma política de suporte técnico que se adequasse às dinâmicas pretendidas pelos sistemas produtivos articulados pelo MST: cooperativas de produção e de crédito, promoção de técnicas alternativas de criação e cultivo, programas de formação de técnicos, etc.

Por outro lado, o Movimento propunha articular ações que permitissem conduzir o assentamento ao que chamaríamos de «sustentabilidade auto conferida», entendendo que mesmo que alcançasse uma eficiente estrutura de produção de riqueza, efetivamente autogerida, a eqüitativa distribuição desta riqueza entre seus produtores e a plena participação destes na formulação da política de condução de todo o processo, não seriam por si só finalidades capazes de realizar acúmulo significativo perante um desejo de efetiva superação das condições de precariedade. Não ousar ir além significaria perpetuar um ciclo que apenas atenua tensões momentâneas. Assim, pensar uma «sustentabilidade auto-conferida» enquanto projeto de existência no campo não significaria apenas realimentar o processo produtivo ali realizado, referendando um ciclo que não se dispõe à ruptura interna dos mecanismos de reprodução de um modelo que condena o camponês aos domínios da precariedade. Significaria também estender novos territórios para a reinvenção de práticas, para a instituição de novos ofícios, para a criação de alternativas para os processos produtivos tradicionais, para constituição de uma nova sociabilidade, etc. Significaria alçar propostas também no campo da vida coletiva, do lazer e da cultura, da saúde e da educação, do conhecimento e da tecnologia, da possibilidade de uma existência no campo sem abdicar de todos os benefícios que a urbanidade conquistou ao longo de séculos. Significaria imaginar possível uma «pólis» reinventada, onde sua «ágora» se estendesse para além do restrito território das cidades. Significaria reafirmar a «vontade de permanecer no campo, inventando uma perspectiva, à primeira vista bizarra, de construção de uma ‘cidadania sem cidade’» (Rizek e Lopes, 1999).

Desde que foi definida a desapropriação de parte da Fazenda Giacometi e o assentamento das 1478 famílias de Sem Terra, o MST regional vinha discutindo a necessidade de pensar e implementar alternativas que subvertessem as tautologias de uma ordem mecânica que a inércia de um programa de «inclusão domesticada» - imerso no bojo do programa de Reforma Agrária oficial - procura sempre estabelecer como condição única, assegurada pela cantilena consensual de uma «Reforma Agrária sem conflitos», para o sucesso de um processo qualquer de assentamento rural.

Dessa forma, o processo de discussão promovido em Maio de 1997 e sob o ensejo de pensar o «assentamento que queremos», levou os assentados a refletir quanto às próprias precariedades, às limitações impostas pelo reduzido volume de recursos destinados ao financiamento da produção e às perspectivas que se desenhavam a partir dos pressupostos estabelecidos pelo programa oficial de Reforma Agrária. Já a partir deste momento, ficava claro que era preciso ir além do âmbito da produção e da gestão desta produção. Fazia-se necessário discutir os meandros da vida coletiva, a constituição da vida para além da estrita satisfação da existência material, buscando romper aquele visgo que a necessidade teima entremear no tecido da existência.

Ficava claro, contudo, que se tratava de um projeto de proporções descabidas: um exercício de utopia maniatado já nos primeiros passos de sua concepção. Dessa forma como pensar, como proposto no primeiro documento que discute o assentamento - «Ireno Alves dos Santos - o assentamento que queremos» -, numa «agrovila principal com centralização de todos os serviços e os grandes investimentos comunitários», atendida «por um sistema de transportes interno planejado e eficiente»; ou num «grande centro educacional de pré a 2º grau, com amplas estruturas, serviços de qualidade e profissionais bem preparados», onde são previstas «vagas para todos» além de «todas as condições materiais e humanas para oferecer uma educação de qualidade»; ou ainda num «grande centro de lazer e cultura [...] vinculado ao centro educacional», desenvolvendo «múltiplas atividades voltadas para todas as faixas de idade, mas principalmente para a juventude, como forma de ser mantida no assentamento e não ir para as cidades»; ou na quase intangível perspectiva de «levar a cidade e seus benefícios ao campo», sem que as menores condições estruturais sequer se manifestavam predispostas? Pelo contrário, o programa oficial pressupõe o isolamento dos assentados, tanto físico como funcional, reservando-lhes apenas a condição de «pequeno produtor», reduzido a um «sujeito econômico» que talvez venha conquistar, no futuro, algumas migalhas das improváveis benesses de um mercado agrário e fundiário regulado apenas por si.

Muito em função deste crivo, as lideranças locais, a coordenação do assentamento e os assentados do «Ireno Alves dos Santos», vinham discutindo a idéia de construir uma «nova centralidade» para o grupo, perdida desde o fim do acampamento e com a condução de cada família para seu lote, uma espécie de estigma na passagem do primeiro para o segundo momento que inicialmente mencionamos. Esta «nova centralidade» permitiria melhor articulação do grupo, com a intenção de estabelecer regimes mais orgânicos de gestão do assentamento, contrapondo-se à dispersão e ao isolamento que, paradoxalmente, se acentuavam à medida que os assentados se instalavam em suas parcelas. Assim, também seria possível implementar algumas alternativas de produção que exigem a articulação com infra-estrutura centralizada: postos agroindustriais para beneficiamento da produção do assentamento, micro-indústrias (marcenaria de mobiliário e tecelagem, por exemplo), atividades alternativas de geração de emprego e renda (cooperativas de consumo e de construção civil, sistemas de lazer e recreio, atividades culturais e de formação, etc.) ou pequenas instalações para serviços (oficinas mecânicas, sapataria, barbearia, etc.).

Além disso, a «centralidade» pretendida permitiria a aglutinação de determinados serviços que, com a dispersão nos quase 27 mil ha de assentamento, tornaram-se praticamente inviáveis: ensino de 2º grau, serviço hospitalar, centros de formação, centros para atividades esportivas e culturais, etc.

Para tanto, fora reservada então uma área de 264ha que, inicialmente batizada de «centrão», deveria abrigar todos estes equipamentos e serviços - à revelia, lembre-se, da precária porém consolidada infra-estrutura já instalada na sede do município de Rio Bonito.

 

7. O pretexto da cidade: centralidade como condição de produção da existência

Entretanto, o dorso da área que margeava o grande lago formado pela barragem de Salto Santiago escondia os restos de uma «vila barrageira»: uma cidade-acampamento construída para acomodar operários, técnicos e encarregados, ocupados na construção da Usina Hidrelétrica de Salto Santiago. Produto da política desenvolvimentista dos anos 1970, a vila havia sido planejada e construída tendo em vista sua total desmobilização posterior. Assim, todas as moradias, equipamentos públicos e instalações deveriam ser concebidas e executadas prevendo sua total remoção com o final das obras - o que aconteceu em 1983: como que da noite para o dia, um contingente populacional, que no pico do processo de construção da barragem atingiu cerca de 13 mil habitantes, teve que buscar outro rumo e um outro lugar para morar. As ruínas do que restou - todo o sistema viário, instalações de drenagem, esgoto, reservação e abastecimento de água com capacidade de em torno de 1,4 milhões de litros, duas piscinas, pisos do cinema e da rodoviária, os restos de um antigo hospital para 68 leitos bem como as fundações de todas as edificações, ocultaram-se sob a mata, permanecendo assim ao longo de quinze anos.

Em meados de 1998, alguns dos assentados que chegaram a morar naquela cidade-acampamento, propuseram-se resgatar aquelas ruínas de entre as matas. Após os primeiros esforços, todo o assentamento e a própria direção do Movimento compreenderam que ali poderiam fundar as bases para a construção daquela «centralidade», promovendo a constituição de um núcleo urbano que poderia estender as concepções de produção, gestão e vida coletiva, a partir da reinvenção da própria idéia de cidade.

Nessa mesma época, fomos conduzidos, por indicação da Secretaria Nacional do MST, numa visita ao assentamento «Ireno Alves dos Santos». Já nessa primeira visita, as ruínas da antiga Vila Barrageira estavam em processo de limpeza e emergiam de sob a mata, propondo a instalação, ali, daquela nova «centralidade» que se discutia como possível alternativa para a sustentabilidade do assentamento.

Já nos primeiros contatos ficava claro que havia uma grande preocupação do Movimento quanto ao possível direcionamento de suas propostas para os assentamentos: caberia ainda insistir no argumento de uma Reforma Agrária exclusivamente defendida pela lógica da produção do alimento, como condição irredutível para a erradicação da miséria? Isto é, bastaria repartir a terra, plantar mais, colher mais e alimentar mais para que se desfizessem os alicerces de uma estrutura social injusta e espoliatória? Muito se tem discutido quanto à propriedade deste argumento: é lógico que, a partir de recursos tecnológicos altamente desenvolvidos, é possível extrair da terra o máximo de produtividade, atendendo, senão com excedente, pelo menos a estrita demanda por alimento e riqueza. Se isso é possível, por que o MST se recusa aderir ao padrão estabelecido pela política oficial de Reforma Agrária e não admite tornar-se «parceiro» para implementação dessa política, compondo esforços para esse processo de tecnologização do campo?

Em primeiro lugar, se analisarmos o próprio conceito de «produtividade» - objeto de constante embate entre as instâncias do poder público (particularmente o INCRA) e o MST - veremos que oculta posturas políticas, onde os técnicos responsáveis por sua delimitação utilizam-se de parâmetros tendenciosos, inclusive aplicando-os para excluir inúmeras propriedades dos processos de desapropriação para a Reforma Agrária.

Em segundo lugar, basta argüir o óbvio: quem são os donos dos «recursos tecnológicos altamente desenvolvidos»? E também é óbvio que esse processo de tecnologização do campo nada mais faz que contribuir para a constituição de imensos contingentes de miseráveis que permanecem vagando pelo campo ou, em sua maioria, acabam migrando para as cidades - acarretando resultados bastante conhecidos.

No limite, a questão que se colocava era questionar quanto ao objeto envolvido na luta pela terra. Não bastaria atear fogo ao círculo e eximir-se questionar o que poderia estar para além. Não se tratava promover o isolamento do assentado em sua condição - novamente - de precariedades, condenando-o ao ritual de um processo que apenas retarda seu degredo, compensando temporariamente as pressões geradas pelas tensões deste movimento.

Se é o modelo - associando estrutura fundiária injusta, concepção tecno-burocrática tendenciosa dos elementos de avaliação e de gestão das ações em prol da Reforma Agrária e o restrito domínio dos meios de produção, de qualificação dessa produção e de circulação da mercadoria produzida no campo - que promove a perpetuação deste círculo de fogo, tratar-se-ia, portanto, de pensar a sustentabilidade de uma proposta de Reforma Agrária que se projetasse para além deste modelo. Inclusive, combatendo o próprio modelo.

Esta possível sustentabilidade se desenharia - ou se auto conferiria -, então, a partir da construção de alternativas que assegurassem a possibilidade de superar os limites do campo de ação do MST, buscando subverter o confinamento imposto pelo roteiro estabelecido pelo poder.

A própria Superintendência Regional do INCRA, explicitando a precariedade de uma postura governamental coesa e uniforme, manifestava tendências distintas do discurso oficial nacionalmente perpetrado pelo órgão. Também impressionada com a possibilidade de construir a primeira cidade da reforma agrária do país, a Superintendência investia decisivamente - com recursos financeiros, inclusive - no resgate daqueles escombros. Por outro lado, estabelecia-se um novo flanco de conflitos e embates, uma vez que, obviamente, a «cidade» pretendida pelo MST não era a mesma pretendida pela instância regional do INCRA. Se por um lado o Movimento não dispunha de recursos para promover a limpeza da vila e, além disso, pretendia manter relações cordiais com aquela Superintendência, por outro discutia a idéia de uma nova «cidade» em direção oposta à àquela pretendida pela representação do INCRA.

Numa reunião com as coordenações e integrantes do assentamento e do MST regional, em Agosto de 1998, propusemos um conjunto de questões com o intuito de iniciar o debate sobre a concepção daquela cidade e que começava com uma pergunta aparentemente simples: «O que cada um entende por ‘cidade’?». Apesar de aquela reunião pretender esboçar a discussão sobre outras inúmeras questões, buscando estabelecer um parâmetro inicial para nossa atuação, aquela primeira pergunta mobilizou de tal forma a manifestação dos participantes que o restante das questões acabaram ficando inócuas.

«Pensamos numa cidade de outro tipo [...]», diferente daquela cidade identificada como lugar de «exploração»; uma cidade onde fosse possível congregar, «ao mesmo tempo», produção agrícola e atividades urbanas, que se permita uma «condição mais ampla», associando «vida campesina ou rural com vida urbana»; não se tratava de imaginar uma cidade cujo espaço físico fosse diferente de outras da região, mas deveria ser um lugar onde o diferencial se desse pela «forma de organização»; uma «cidade sem discriminação», isto é, sem exclusão dos próprios camponeses das atividades tipicamente urbanas, onde o «próprio assentado» possa «gerar o emprego para ele mesmo», onde ele possa fazer-se «dono de si próprio»; uma cidade que não seja procurada exclusivamente «por uma questão de sobrevivência», apenas pelo «emprego que pode oferecer»; enfim, uma cidade que se constitua como «meio em que se reúne», como «estrutura montada sobre outra concepção social» e que se faça permeável à «consciência e ao modo de viver» que o meio rural produz.

Vítimas de certo «assombramento dialógico» frente a um discurso que, minimamente, refletia um pouco do imaginário daqueles camponeses quanto à sua concepção de «cidade», viamo-nos, enquanto técnicos do ofício de planejar e construir tais cidades, por outro lado, contraditoriamente imersos num discurso de aparente submissão aos desígnios e encaminhamentos propostos pelo INCRA. Assim, noutra reunião, agora com a presença do Superintendente Regional daquele Instituto, os rumos da conversa insinuavam-se sob sua condução, determinando os próximos passos, os critérios para distribuição dos lotes na Vila, o encaminhamento dos processos necessários para sua recuperação e sua dotação de infra-estrutura mínima para funcionamento e, inclusive, o próprio nome da cidade. Bastante incomodados com a displicência no trato das questões do planejamento urbano e um tanto surpresos com a aparente subserviência daquele grupo que havia enfrentado a ocupação do maior latifúndio do Estado do Paraná, empenhamo-nos na defesa de uma abordagem mais cuidadosa das questões urbanísticas, assegurando, inclusive, a não exclusão dos futuros usuários da cidade da discussão quanto à sua concepção. Estavam postos ali em questão, além dos cânones próprios da metodologia de planejamento contemporâneo - bastante afeito à ilusória capacidade ordenadora do planejamento urbano - também nossa experiência junto aos movimentos sociais urbanos e com a lógica impressa por esses movimentos no embate com o poder público. Após a defesa de seu ponto de vista, alegando já ter «criado inúmeras cidades» e que «cidades começavam assim», com «um morador aqui outro ali», o Superintendente amenizava seu discurso - ao mesmo tempo que desqualificava o dos arquitetos: «Como diz o caboclo: é no andar da carroça que as abóboras se ajeitam!»

O que orientava aquele grupo naquele momento, era o percurso de uma ação estratégica, onde cada palavra, gesto ou olhar consentiam ou se interpunham no embate dos interesses frente à possibilidade de construção de uma nova cidade. Não bastassem os interesses próprios da municipalidade, do poder local, dos comerciantes da região, dos grandes produtores vizinhos, que viam no assentamento um poderoso concorrente, também o próprio INCRA, na figura de seu Superintendente Regional, depositava ali suas intenções. Por outro lado, a questão central para o assentamento era a garantia do acesso aos créditos. Distender momentaneamente com o INCRA significava evitar dificuldades e possíveis conflitos que pudessem atrapalhar a negociação daquilo que era central: o crédito para a produção. Mesmo que, para isso, fosse necessário submeter o projeto da cidade às pretensões políticas do Superintendente Regional. Ao questionarmos o grupo quanto a esta postura, afirmavam que se tratava de uma estratégia momentânea. Como dizia, naqueles dias, uma das lideranças do assentamento: «O superintendente passa. A gente fica».

 

8. O subtexto da cidade: distâncias entre concepção e gesto

E o superintendente passou.

Já em meados de Novembro de 1998, o assentamento iniciava o processo de habilitação para recepção dos créditos referentes ao apoio à construção das moradias. Estes recursos correspondiam, na época, a R$2.500,00 por família (aproximadamente U$1.450,00), o que é uma quantia irrisória, se imaginarmos que um automóvel novo, de uma linha popular, não sai por menos de R$14.000,00 (em torno de U$8.000,00).

Apesar da transferência, por volta desta época, do Superintendente Regional do INCRA, e de uma relativa menor ingerência do Instituto nos rumos estabelecidos para ocupação da antiga vila barrageira, alguns encaminhamentos, neste sentido, já haviam sido implementados. Entre eles, o parcelamento, a demarcação e a distribuição dos primeiros 500 lotes na vila. Este fato gerou, obviamente, uma série de interrogações e contratempos, uma vez que mal se fazia idéia de como seria uma cidade da reforma agrária, quanto menos «morar» em dois lugares ao mesmo tempo: inúmeras famílias consideravam inútil dispor de um lote na «cidade», uma vez que «o lugar do agricultor é junto da plantação, do gado e do pasto»; outros, imaginavam que surgia uma possibilidade de melhor adequar sua rotina familiar, mantendo apenas um rancho no lote rural, para sua estada ao longo da semana, e a família na vila, próxima dos serviços ou dos empregos que ali poderiam estar sendo oferecidos; ainda outros propunham destinar o lote urbano para acomodação de agregados - pais ou parentes próximos - mantendo seu núcleo familiar no lote rural. De qualquer forma, não havia sido questionado, em nenhum momento, se era ou não o caso de dispor um lote na vila para cada família assentada. Além disso, pouco se questionava - a não ser o Prefeito de Rio Bonito - quanto ao fato de a vila situar-se às margens do grande lago formado pela barragem da hidrelétrica - o que fazia de todo aquele território, em função da legislação brasileira, uma área de preservação ambiental.

Apesar disso e das inúmeras ponderações que levantamos, procurando assegurar uma rotina operacional que instruía primeiro cuidar de planejar a cidade para depois ocupá-la, tratava-se, naquele momento, de fincar as unhas nas ruínas daquilo que um dia havia sido uma «cidade» para, por sobre elas, edificar o que se pretendia como seu «avesso». Tratava-se, portanto, de estrategicamente começar pelo fim, de plantar os pés naquele território que um dia servira à política desenvolvimentista do governo militar. Ao invés da cidade-acampamento, estratificada, administrada e vigiada, suporte à mecânica de desmesurada exploração de mão-de-obra volante, uma cidade que se predispusesse ao exercício de alguma cidadania; ao invés da cidade-empresarial, erigida e povoada já com data certa para terminar, dispondo de faustosos recursos e da vida de seus habitantes como se recursos e vidas fossem descartáveis, uma cidade onde a existência digna se fizesse possível, um espaço não homogêneo e permanente de produção da vida.

Mas como instruir objetivamente os passos para construção desta outra representação de «cidade», se a concretude de um espaço fragmentado e desordenadamente partilhado, resultado de um processo conduzido de forma tão disparatada, reproduzindo o desenho de uma cidade completamente loteada, hierárquica e singularmente vigiada e administrada - como o era a antiga vila barrageira - e sem qualquer processo de discussão mais cuidadoso, se interpunha de forma tão determinante?

Talvez o sólido terreno das adequadas condições predisponentes, levantado sobre um território sujeito a embates e conflitos de tal ordem e de tal monta, não exista, como muitas vezes esperamos, arquitetos e urbanistas. Na fala de um dos agrônomos que atuam junto ao assentamento, defendendo a concepção da nova «cidade» como pelo menos uma possibilidade de «acúmulo» a partir do exercício de «experiências novas»: «As cidades grandes acabam descaracterizadas por razões econômicas [...] Mas a cidade é sempre o ‘lugar do encontro’, de realização de acúmulo».

Seria então sobre este terreno instável e com os recursos e condições dispostos para aquele momento, que se iniciou a construção das primeiras casas da vila. A partir de um processo de discussão com cada grupo de famílias do assentamento, buscando estabelecer um programa que contemplasse desde a cultura construtiva local até o cotidiano do uso da moradia, desenvolvemos os projetos necessários e auxiliamos os assentados na montagem de uma cooperativa de serviços de construção civil - a COOPROTERRA -, com o objetivo de habilitar e capacitar o grupo, não só para receber e gerir os recursos destinados à construção das moradias, como também para executar os serviços, abrindo espaço para um pequeno contingente de assentados na prática de ofícios vinculados à construção civil - desde já, uma alternativa de ocupação para integrantes das famílias assentadas, disponibilizadas em virtude da constante redução da necessidade de aplicação de mão-de-obra na produção agrícola.

Ao longo de nossa experiência com os movimentos de moradia urbanos, desenvolvemos um procedimento para a discussão da distribuição dos espaços numa moradia que procura evitar ou a simples exposição e consulta de opções frente a «modelos» previamente formatados - ou seja, completamente imbuídos da lógica de quem molda este «modelo» - ou representações formuladas pelos próprios interlocutores, sem nenhum critério técnico ou de viabilidade - declinando da responsabilidade de assumir justamente a função, enquanto técnicos, para a qual fomos chamados, acatando, maioria das vezes, representações de uma moradia referenciadas por um imaginário dificilmente realizável. Assim, lançando mão de elementos da pedagogia proposta por Paulo Freire - um dos grandes educadores brasileiros - temos procurado construir uma abordagem que busca destituir ao máximo os referenciais de forma, buscando iluminar, como conteúdo, as sutilezas da organização da vida cotidiana no interior da moradia, tomando-a como tema gerador para formulação das diretrizes de projeto. Desta forma, acreditamos possível construir um «programa», propriamente dito, que emerge dos rituais cotidianos, expondo assim a própria «cultura do morar», praticado por aquele interlocutor, valorizando mais os referenciais estabelecidos pelo tempo - a história das relações do morador com o espaço - que aqueles enunciados pelo espaço - a forma como ordenadora de relações no tempo.

Não seria muito comentar que, quando levado este procedimento para os Sem Terra, entre outras situações, deparamo-nos com posturas diametralmente diversas daquelas experimentadas junto a grupos urbanos. Tal fato pode parecer óbvio, mas a trama que resultava desse diálogo apontava um conjunto de relações que pareciam explicitar um imaginário para além de uma propalada «cultura camponesa». Há uma intensa miscigenação de elementos da cultura rural a anseios burgueses, profundamente urbanos, que formatam rotinas cotidianas a um imaginário bastante denso e complexo. Apesar das distintas concepções do que é «morar», permeia sempre a lógica patriarcal da casa como um «reino», do lugar do morar como «estabilidade», «acúmulo» e «prosperidade», elencados como reprodução da idéia de propriedade e individualidade burguesa que parecem destoar da bandeira coletivista reputada ao MST. Além disso, simples atividades cotidianas conduzidas no interior da moradia manifestavam demandas por um cuidado que negava a condição de precariedade anteriormente vivida, onde sequer alguma privacidade era possível. Uma das situações do diálogo com os assentados chamou muito a atenção: o fato de dispor o banheiro fora da casa. Não que não fosse conhecido o recurso, que é muito próprio da cultura camponesa. Como não havíamos atentado para isso, um dos argumentos lançados para explicação da providência trazia um pouco do humor contido paranaense: um dos assentados, comentando quanto a uma visita realizada a um «compadre», ao sentir uma indisposição intestinal, solicitara usar o banheiro. Para seu constrangimento, o banheiro era dentro da casa, junto à sala. Como não havia opção e a cólica o impedia esperar mais, concluía o relato dizendo: «O senhor não imagina a sinfonia que foi!».

Foi a partir desses elementos que os projetos foram desenvolvidos e executados. É claro, contudo, que não foi possível evitar os percalços, os conflitos e os equívocos.

Por um lado, para surpresa até mesmo dos técnicos envolvidos, foi possível construir uma boa casa, com 48 m2, alvenaria de tijolos cerâmicos, com todas as esquadrias e o mínimo necessário de instalações - o que parecia, a princípio, impossível, dada a exigüidade de recursos. Além disso, foi possível, também, remunerar minimamente os assentados que integravam a cooperativa.

Por outro lado, a capacitação do grupo não lograra sucesso, muito em função de uma enorme dificuldade de, em meio a um processo acelerado de produção, compatibilizar cronograma de obra e tempo adequado para esta capacitação. Esse descompasso acabou acarretando, também, equívocos administrativos, implicando num déficit, ao final do processo de construção das primeiras 500 casas, de quase 10%, do valor total aplicado que só agora está sendo auditado. É claro que este fato ensejou conflitos e acusações de toda ordem: desde improbidade - particularmente por parte da Prefeitura do município, que se utilizava deste fato como munição contra o MST local - até questionamentos internos, quanto à capacidade operacional dos responsáveis. Claro que não justificava, como assim propuseram algumas lideranças, alegar a falta de capacitação como desagravo às confusões administrativas. Tal fato anuncia, no entanto, o universo de precariedades em que operam os assentamentos e as suas estruturas de produção, em contraponto à acusação fácil de improbidade, tantas vezes veiculada pela imprensa, pelo governo, por algumas análises provenientes da academia - como já visto - e até mesmo pelos próprios assentados. Por outro lado, o contexto também serve prato farto para uma comparação imediata: numa avaliação muito superficial, devem ter sido literalmente abandonados na vila barrageira, recursos em torno de U$8 milhões, denunciados pelos restos de infra-estrutura, pavimentos, ruas, construções, etc. Perante tal número, como estabelecer juízo justo quanto à capacidade administrativa desta ou daquela estrutura de gestão dos negócios públicos?

 

9. Prospecção: nas entrelinhas do desejo por um tempo vizinho

De qualquer forma, a construção das casas promoveu a definitiva «posse» da antiga vila. Era nítida a impressão de que a vivência cotidiana com aquele contexto, limpando os terrenos, lançando fundações, levantando alvenarias e coberturas, promovendo alguma habitabilidade daquele lugar, promovia também a apropriação do próprio lugar. Talvez um pouco daquele acúmulo pretendido, explicitado na fala do técnico citado anteriormente, se realizasse através de paredes, telhados e, principalmente, de novos moradores.

É importante comentar que nem todos os contemplados na primeira etapa decidiram aplicar seu quinhão de recursos destinados à moradia na construção de uma casa na antiga vila. Garantida, desde o início, a opção, muitos preferiram construir suas casas no lote rural, resultando hoje um total de aproximadamente 300 casas construídas nos lotes urbanos.

Contudo, a ocupação manteve-se precária: ainda hoje não há rede de água instalada, energia elétrica ou sistema de coleta de esgoto ou lixo. Prevalecem, portanto, recursos tradicionais para lançamento de esgotos - acumulados em fossas, construídas, muitas vezes, sem muito critério de higiene -, captação de água - algumas dezenas de metros, todo dia, até as minas de água -, conservação de alimentos - na falta de geladeira, salga-se a carne - ou descarte de lixo - acumulados em valas para posterior queima. Nada diferente, no entanto, da situação nos lotes rurais: ali também não há coleta de lixo, rede de energia elétrica ou de tratamento de água, muito menos de tratamento de esgotos. Isto é, o contexto de precariedades se mantém, independente se no novo núcleo urbano ou nos lotes rurais do assentamento.

De qualquer forma, será sobre este parco resíduo de urbanidade inicialmente instalado que o assentamento construirá meio de crítica, de avaliação, de realimentação dos mecanismos de reflexão, sobre um imaginário que nos parecia difícil de se constituir por si só.

Ao longo do segundo semestre de 1999, mantivemos contatos com o Programa de Gestão Urbana - PGU, gerido pelo Centro das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos - HABITAT / Organização das Nações Unidas - ONU, e através de seu Escritório Regional para América Latina e Caribe, foi possível levantar recursos para, finalmente, promover uma seqüência de Seminários com os assentados, que pretendiam estabelecer um conjunto de referências que permitissem consolidar uma «concepção de cidade», orientando um planejamento para o novo núcleo urbano que se estabelecesse a partir da realidade vivida por aqueles camponeses, associando «vida campesina ou rural com vida urbana».

É lógico que construir uma base de referenciais para conceber uma «cidade» tendo como interlocutores mais de 9 mil camponeses, sendo que poucos deles viveram, efetivamente, uma experiência urbana mais perene, tratava-se de tarefa semelhante a pensar alguma coisa a partir de uma realidade não empírica.

O processo de «Consulta Urbana» - como foi denominado o conjunto de Seminários que vem sendo realizado desde Julho de 2000 - pretendeu dispor, da mesma forma como estabelecemos para a discussão da moradia com os Sem Teto urbanos, de um argumento que destituísse, momentaneamente, a discussão do espaço físico da cidade, ajustando o foco sobre a trama de relações que ali se instalariam. Tal procedimento permitiu construir os referenciais, como temas geradores, a partir das representações propostas pelos assentados, articuladas a partir da economia interna de suas práticas, de seus cotidianos, suas experiências e desejos, manifestas na forma como lidam com sua própria história e na forma como lutam para se constituir como sujeito. É significativo o depoimento cantado de um assentado: quando instado a contar sobre o dia da ocupação, mal conseguiu balbuciar uma palavra. Foi necessário colocar um violão em suas mãos para que uma extensa ode àquele «herói coletivo», que se constituía à medida que se afirmava como sujeito, brotasse em uma complexa trama, vertida em música por aquele assentado que sequer sabia ler e escrever. Ou a asserção de outro assentado, que trabalhara na construção da vila barrageira, quando viu algumas fotos do tempo em que a vila ainda existia como «cidade»: contando que um dia fora barrado na entrada do setor destinado à moradia dos engenheiros, depois de ali tanto trabalhar, imaginava-se convidando, «para um churrasco», o engenheiro que morara no mesmo lugar onde ele hoje mora. Ou as reações de um atento público de mais de 400 assentados, assistindo a um espetáculo teatral levado, para o primeiro Seminário, por um grupo de São Paulo, que discutia as relações entre capital e trabalho no mundo contemporâneo, nas ruínas do antigo cinema da vila. Ou ainda, a visceral identificação com a história contada, pelo mesmo grupo teatral, da morte de um companheiro da região, vítima da truculência da polícia do Estado.

«Produção», «Gestão» e «Vida Coletiva» foram os temas geradores, constituídos a partir das primeiras etapas da Consulta Urbana. Na esteira de um questionamento inicialmente proposto quanto à «cidade que queremos», o pano de fundo se ampliava, estendendo a questão, em função de demanda formulada pelos próprios assentados que participaram do evento, para o «assentamento e a cidade que queremos», trazendo à pauta discutir como se entranhavam as relações entre a produção da existência, a gestão autônoma e coletiva das atividades comuns, a construção de uma possibilidade de vida que transcendesse as limitações impostas pelo jugo das precariedades e o território de uma cidade que se espraiava para além do espaço tradicional da cidade formal. Esta noção de territorialidade, muito mais imbricada ao modo de articulação e ocupação do assentamento, acabou implicando na extensão do processo de Consulta Urbana e na promoção dos Seminários das Comunidades, onde as discussões passaram a acontecer em cada uma das 5 comunidades em torno das quais os diversos grupos de famílias assentadas se agregam territorialmente, estabelecendo núcleos intermediários de articulação de serviços - escola primária, comércio de gêneros de primeira necessidade, entreposto da Cooperativa, etc. - e pontos de encontro para o lazer a atividades religiosas.

Para os técnicos envolvidos nas discussões, iluminar a idéia de «cidade» a partir de sua extensão num tecido que transpõe a própria geometria urbana à qual estamos acostumados, levava também à inversão dos cânones do planejamento contemporâneo, lançando-nos, novamente, a idéias de origem do próprio urbanismo moderno, provocando-nos considerar a idéia de «cidade como região» (Geddes, 1994) ou a partir das concepções pré-marxistas de cidade, particularmente aquelas vinculadas ao pensamento anarquista. Remete, ainda, às representações formuladas a partir das concepções utópicas que sempre têm se manifestado na história da humanidade e, até mesmo, na nossa história.

Mas, para além das práticas usuais do ofício, há uma questão que transcende seu cotidiano e arremata outros conteúdos para uma lógica de planejamento que nos faz acreditar possível detectar alguma potencialidade realmente transformadora. Trata-se da forma como são estabelecidos os parâmetros que referenciariam os trabalhos de planejamento: como já visto, não existiam ali as condicionantes pré formatadas e predispostas, como gostaria de esperar os procedimentos usuais na prática de planejamento. O campo de tensões que descrevemos acaba constituindo terreno pouco sólido para tanto e parece-nos bom que assim seja. Dessa forma, é possível resgatar o tempo e a história para a discussão do espaço e parece-nos que isto só ocorre na medida em que operamos os trâmites de planejamento a partir do conhecimento das relações entranhadas no espaço. Ora, tais relações, se nos permitirmos a sua plena manifestação, são permeadas por inúmeras contradições, concepções diferenciadas, vontades particulares veiculadas, grande parte das vezes, de forma bastante pragmática, etc. É, portanto, um campo de conflitos por excelência. Eliminar o conflito seria sufocar a fala e, nos termos de Ranciére, eliminarmos a possibilidade da Política. Pensar urbanisticamente uma cidade como o lugar da Política significaria amplificar e dar espaço à explicitação do conflito, pela fala qualificada e democraticamente construída a partir da heterogeneidade das relações vividas, invertendo a lógica do espaço homogêneo que é o espaço da mercadoria e das relações puramente mercantis.

É significativo que, já nas discussões com cada uma das comunidades, os aspectos que mais vitalidade apresentaram, sob nosso ponto de vista, referiam-se à «Vida Coletiva» enquanto tema gerador. O colorido pragmático que acabava sustentando a discussão quanto à «Gestão» e à «Produção», os outros dois temas, perpassa justamente pela lógica econômica e financeira que nem mesmo uma Cooperativa como a COAGRI, não conseguiu assegurar bom termo. Parece que há uma redução, nesse segundo momento do movimento, quando o MST já não mais se estabelece como aglutinador inequívoco das vontades individuais, do assentado a um «sujeito econômico», agente puro de produção e consumo, o qual conta como mais uma peça na lógica da dinâmica cooperativista. Talvez aqui sim o MST não alcança o mesmo resultado que no momento anterior e justamente por imprimir a mesma redução das relações da vida às relações de mercado que o neoliberalismo e a própria ideologia burguesa vêm sustentando, como veremos mais adiante. Quando nos colocamos a pensar o urbanismo fora dessa dinâmica de redução, avançamos num campo novo de operação do ofício e é justamente nesse contexto que também viram no «avesso» as possibilidades imersas em todo o processo de concepção da cidade.

 

10. Considerações finais

Há uma dificuldade muito grande neste processo, uma vez que são inúmeras concepções de «cidade» que estão em jogo. Particularmente, quando promovemos a reflexão a partir das relações que preenchem de conteúdos a forma urbana, explicitam-se também as tensões inerentes ao jogo político. Nessa trama de interesses, difusos ou plenamente delineados, entram em cena as mazelas, desconfianças, anseios e desejos de inúmeros assentados; as concepções políticas, muitas vezes permeadas pelas concepções ou pelos discursos oficiais, formulados pela direção do assentamento e da instância local de direção do Movimento; as necessidades objetivas da Cooperativa local, envoltas muitas vezes pela sombra da inépcia no cuidado administrativo; as propostas que orientam o MST em nível nacional e que, grande parte das vezes, articulam o discurso oficial proferido localmente; os interesses políticos do poder público, dos comerciantes e das forças políticas locais, que vêem os assentamentos com bons olhos se considerados apenas seus assentados, ou como ameaça se considerados como locus de ação do MST; as estratégias para implementação da política de Reforma Agrária veiculadas pelo INCRA e em constante mutação, buscando neutralizar as ações do Movimento; os cuidados policialescos e o descaso da multinacional detentora do direito de exploração da Usina Hidrelétrica de Salto Santiago; e, até mesmo, nossos anseios urbanísticos e arquitetônicos que se entranham na urdidura desse tecido. Nesse intrincado conjunto de posições e oposições, como julgar a potencialidade emancipatória eventualmente presente na concepção e construção de uma cidade da reforma agrária?

Parece-nos, contudo, que há um conjunto de referências que circunscrevem um campo de diálogo comum, capaz de estabelecer alguma coesão interna no MST e que consegue estabelecer um sistema de conexões entre posturas díspares e aparentemente contraditórias. Não acreditamos que seria possível conjugar tal coesão pela força de um discurso unificado ou por uma «tecnologia» de mobilização popular ou pela condição refém que a Cooperativa possa impor aos assentados em relação ao Movimento (já vimos que não é o que efetivamente ocorre) ou ainda pela devoção que eventualmente possamos identificar em alguns militantes em relação ao MST.

Por mais forte, coesa, centralizadora e autoritária que possa se manifestar a estrutura de condução e orientação de um determinado corpo político, caberia ainda questionar se qualquer forma de alienação ou de concessão dos indivíduos partícipes desse corpo em favor dessa estrutura subsistiria, consciente ou inconscientemente, apenas pelo jugo imposto através de uma obscura «tecnologia» de dominação, gestada a partir de interesses particulares engendrados por pequenos grupos, instalados como liderança do corpo político em questão. Além disso, caberia argüir também se a convenção estabelecida originalmente para constituição desse corpo não carregaria os elementos de sua própria constituição particular, onde os interesses individuais compreenderiam também os resíduos de composição da vontade geral, abstraída, a partir de aí, como autônoma em relação às vontades particulares.

Até que ponto a constituição de uma «comunidade política» prescindiria da adesão, consciente ou inconsciente, de seus participantes, a não ser que pela força? E mesmo que seja pela força, não caberia verificar qual sua natureza e se ela mesma já não fazia parte das condições predispostas para ingresso naquela comunidade, isto é, até que ponto a presunção não acaba excluindo uma latente «consciência popular trágica», onde aquele que ignora que sabe, sabe que ignora (Chauí, 2000: 311 e 312)? E, à medida que ocorra essa adesão, como os elementos particulares formatariam a vontade geral - que não é , em absoluto, inerme nem inerte - e promoveriam sua autonomização na forma de constituição de um novo sujeito coletivo?

Ora, pensar uma «cidade» pelo seu «avesso», é reconsiderar e rever o lugar do acordo original, resgatar o espaço da cidade para o pleno exercício da composição de óikos e nomos, de uma economia das relações que se articulam no espaço e no tempo. Se há um acordo - e parece-nos que há - é a partir de interesses particulares manifestos na forma das contradições que muitas vezes anuviam nossa capacidade de intelecção. Isentar qualquer racionalidade aos elementos atômicos do corpo político parece-nos também uma forma arrevesada de paternalismo acanhado.

Por outro lado, por que o Movimento não se remete à estrutura vigente que sustenta a municipalidade local e não propõe alterar, ainda que pondo no «avesso», a correlação de forças ali instalada? Não estaria o MST promovendo a subversão de uma institucionalidade socialmente legítima, sustentáculo de uma ordem urbana que mantém aquela municipalidade e frente à qual o Movimento estaria promovendo ataques desestabilizadores sem reconhecê-la sedimentada e legítima, fundada no direito e na razão - como prescrevem até mesmo os dicionários? Essa questão se desloca em direção à postura assumida pelo Movimento em relação à institucionalidade, por exemplo, que lhe viabiliza a própria Reforma Agrária. Por que o MST parece quase incansavelmente insistir numa aparente desestabilização dessa ordem que justamente sustenta um programa de Reforma Agrária que poderia, como afirmam seus defensores, ser implementada sem conflitos? Caberia lembrarmos Rousseau:

Dirão que o déspota assegura aos seus súditos a tranqüilidade civil. Seja, mas qual a vantagem para eles, se as guerras em que são lançados pela ambição do déspota, a sua insaciável avidez, as vexações impostas pelo seu ministério os arruinam mais do que as próprias dissensões? Que ganham com isso, se mesmo essa tranqüilidade é uma de suas misérias? (Rousseau, 1997: 61).

Basta verificar que as representações da institucionalidade em direção à qual o MST promove várias de suas ações - inclusive a Prefeitura de Rio Bonito, no caso em questão -, não têm cumprido formalmente com seu papel, teoricamente, atribuído pelo próprio direito que lhe institui, qual seja, «assegurar o bem comum» - se pelo menos ainda valem alguns pressupostos da teoria política clássica. Seria equivocado, nesta análise, concebermos apenas a idealidade de um Estado mediador, provedor e promotor de benefícios coletivos, legitimado pela possível «tranqüilidade civil» que sua institucionalidade poderia, eventualmente, assegurar, descolada dos profundos desajustes - paradoxalmente também institucionais - promovidos pela intensa prática de corrupção, de «imposições vexatórias impostas pelos nossos ministérios» (tenha-se em vista - se luz houver - a crise energética pela qual passa o país, resultado de total imperícia administrativa e de planejamento estrutural) e de despotismo praticado em nome de uma suposta «tranqüilidade civil» (tenha-se, aqui, em vista, a quantidade de Medidas Provisórias promulgadas por um governo que se pretende democrático, expediente resultado de mecanismos constitucionais que asseguram a permanência de um estado ditatorial no país, ainda que camuflado), verificados sem muito esforço na vida política brasileira recente e que mais têm contribuído para a perpetuação da condição de «miséria apaziguada» que historicamente aguilhoa o povo desse país («Vive-se tranqüilo também nas masmorras e tanto bastará para que nos sintamos bem nelas?» Rousseau, 1997: 61 e 62). Ora, pelo contrário, arriscaríamos afirmar que o MST, por este aspecto, pouco tem de emancipatório: na verdade, as ações dirigidas frente à institucionalidade vigente mais têm a ver com o restabelecimento de suas bases primárias, aquelas que poderiam - ou deveriam - sustentar o acordo pelo qual aquele Estado existe, isto é, a promoção do bem comum e não o de interesses particulares - nada mais que aqueles direitos que se preservam como «direitos burgueses» - do que a instalação de um processo permanente de deslegitimação do Estado e desestabilização institucional. Oque pretenderia o MST seria, portanto, nada mais que cobrar desse Estado - e da municipalidade de Rio Bonito - sua condição de «sujeito de direito», e aqui como sujeito promotor legítimo de uma «vontade coletiva», na acepção clássica do termo. Dessa forma, o MST não estaria mais que defendendo, pelo contrário do que se julga, a própria legitimidade desse «sujeito de direito» para, através dele, ser possível a constituição de uma urbanidade livre, democrática e efetivamente promotora de cidadania. Inverter essa lógica, seria também propô-la ao seu «avesso»: ainda que apenas se constitua num outro termo da mesma equação. Por isso fazer emergir, pelo mesmo território, uma outra concepção de «cidade».

Se insistirmos nesta análise, seria cômodo, através dessa matriz, associarmos a idéia de construção de uma nova «centralidade», concretamente estruturada nas formas de gestão de um novo território urbano, à «visão militarizada de estruturação social das novas áreas reformadas, quase nada democrática e pouco tolerante às vontades e histórias familiares dos próprios agricultores» (Navarro, 1997: 126). Acreditamos que aflora aqui, novamente, a prevalência do equívoco de atrelar «vontade coletiva» à soma simples das «vontades particulares», isto é, como se pelo domínio ou imposição de «vontades particulares» bastante particulares fosse possível estabelecer uma ordem consensual formatada, isenta de diversidade, conflitos e indecisões, identificada como «vontade coletiva», como procuramos evidenciar ao longo do capítulo. Ora, por esta chave, uma linha de análise poderia apontar que, através da força de uma «centralidade democrática» disciplinar que comanda o confronto permanente com a ordem pública local - e também a regional e nacional -, o MST pretenderia subverter a ordem institucional vigente para nela instalar a que defende. Caberia lembrar, contudo, uma das máximas rousseaunianas, que «a força não faz o direito»: se o efeito toma o lugar da causa (como em Aristósteles ou em Hobbes, onde o direito do mais forte é tratado como «natural»), apenas há sucessão no exercício da força. Logo, não é o direito que está em jogo e sim o lugar do exercício dessa força. Não nos parece que seja esse o projeto proposto para aquela cidade da reforma agrária. Nem mesmo do MST. O fato de integrantes do Movimento e até mesmo assentados participarem da disputa eleitoral em Rio Bonito, recoloca a base institucional que sustenta a lógica de poder local no centro de disputa pelo espaço da cidade. E novamente é aqui que o MST parece perder fôlego: o fato de nesse momento de sua trajetória sua proeminência junto aos assentados não ser tão inequívoca como quando no momento da lida para a conquista da terra, parece que o resultado de sua ação acaba confundindo-se na disputa pelo lugar do exercício da força - apesar de não ser isto que tem como objetivo. É sintomático observarmos que, na disputa eleitoral de 2000, dos mais de 20 candidatos às câmaras municipais da região, nenhum tenha sido eleito. Nem mesmo o candidato lançado com o apoio do Movimento e que cedia a vice-prefeitura a uma das lideranças do assentamento alcançou sucesso, sequer considerando o número majoritário de assentados eleitores. A única exceção é o vice-prefeito atual, que é um assentado que se dispôs compor com o candidato da situação. Se por um lado o Movimento se empenhava nessa disputa, acreditando auferir condições para, a partir da institucionalidade vigente, alcançar as condições de implantação de sua concepção de «cidade», por outro perdia o domínio que uma aparente «centralidade» política determinante poderia conduzir o resultado do pleito municipal, justamente por aceitar as regras do jogo.

A partir do caso em questão, não parece sustentável a suspeita de uma organicidade vertical profundamente articulada a uma centralidade «militarizada» promovida pela direção do Movimento, capaz de isolar o fato de que o que move a grande massa que se dá o nome de MST, não é apenas uma voz de comando. Novamente lembrando Rousseau - e correndo o risco de parecermos rousseauístas - frente a um comando despótico

afirmar que um homem se dá gratuitamente constitui uma afirmação absurda e inconcebível; tal ato é ilegítimo e nulo, tão-só porque aquele que o pratica não se encontra no completo domínio de seus sentidos. Afirmar a mesma coisa de todo um povo, é supor um povo de loucos: a loucura não cria direito (Rousseau, 1997: 62).

É certo que o MST não tem conseguido fazer vingar sequer alguma proeminência mais significativa que o alarde promovido pela imprensa e, por vezes, pelo próprio governo. Se imaginarmos que o país ainda abriga no campo em torno de 25 milhões de habitantes, o que significa parco meio milhão? É certo também que seu campo de ação se estreita, à medida que se lhe associa apenas o fato de «ocupar terras», obscurecendo todo o conjunto de propostas que o Movimento tem formulado para além do puro enfrentamento do conflito fundiário. Também não há dúvida quanto à planejada precariedade que é imposta aos seus assentamentos, estancando qualquer possibilidade de desenvolvimento de recursos tecnológicos mais adequados, aumentando produtividade e, consequentemente ampliando condições para além da mera subsistência.

Suas representações, construídas ao longo dos últimos anos, não se objetivam quando imersas na - ou emergem da - ordem estabelecida. É certo o quão questionável é, se a História se faz presente, imaginar possível algum processo radical de transformação sem que se pretenda, ao menos, abalar os marcos das representações da ordem vigente. Por outro lado, na circunscrição do campo de um «pensamento único», o Movimento - enquanto sujeito que se constitui e logra se afirmar - tem conseguido, ao menos, provocar a explicitação do conservadorismo arcaico que se abriga por trás da pretensa modernidade neoliberal, fazendo exposto um pouco do que o fasto hegemônico não consegue digerir.

Porém, até que ponto também a absorção das ações promovidas pelo MST pela ordem hegemônica não é uma questão de tempo? Até que ponto essas ações não se tornam compensatórias, na medida em que - apesar do arco de conflitos que atualmente geram - deixam se fazer perder no campo de uma utopia que acaba se realizando pelo seu «avesso», domesticando-se e passando a compor o conjunto de estratégias com as quais se pretende transformar a sociedade brasileira numa inofensiva «comunidade solidária»?

Uma chave, talvez, para compreendermos o que faz o MST conseguir aglutinar um contingente inédito de população camponesa em torno das lutas que promove e, a partir delas, estabelecer-se ainda como um corpo político minimamente coeso e embasado como em trincheiras de resistência frente à ordem hegemônica, poderia ser as formas individuais de representação e elocução pelas quais os sujeitos particulares que o compõem se enunciam. Ao tratar do movimento neoliberal e de como, a partir desse movimento, se manifesta um de seus discursos ideológicos, Francisco de Oliveira analisa, identificando como simulacro, a «redução da volta ao indivíduo com a prevalência exclusiva do mercado como única instituição reguladora, auto-reguladora tanto da alocação dos recursos econômicos como das relações sociais e da sociabilidade em sentido geral». Dessa forma, entender o indivíduo como entidade molecular reduzida a uma fração da lógica de mercado - que se constitui a partir da soma simples de vontades individuais - ofusca e mantém «sob suspeita» o «entendimento do mercado como uma instituição de regulação auto-construída». E conclui:

Se a redução ao indivíduo permanece no terreno meramente ideológico, ainda que se constitua hodiernamente como a expressão ideológica «par excellence» do movimento neoliberal, a redução ao privado - que não é a mesma coisa que o indivíduo - assenta-se noutras raízes, sociologicamente distintas, das quais é possível pesquisar seus fundamentos no próprio processo de acumulação de capital e de sua concentração e centralização (Oliveira, 1999: 55 e 56).

Parece-nos, a partir da reflexão sobre o contexto aqui descrito, que o deslizamento promovido pela compreensão equivocada de que o MST constitui-se a partir de um discurso centralizado e operado de forma centralizada é nada mais que projetar por sobre o Movimento a mesma redução que o neoliberalismo promove como formato consensual para estabelecimento de um pensamento único. A pretensão de formatar o Movimento a partir de um filtro analítico que reverbera esta redução não seria mais que uma tentativa de «domesticar» sua compreensão. Por outro lado, o próprio MST, centrando o cooperativismo como uma de suas principais estratégias de articulação do assentamento - observando a questão a partir do caso em estudo -, acaba refém, como que numa armadilha, do próprio sistema que, paradoxalmente, lhe garante ampliar as lutas para além da conquista da terra. Pelo viés econômico e pela lógica produtivista que acabam sendo implementados pela prática cooperativista, o Movimento não faria mais que deslizar e reproduzir a mesma «redução da volta ao indivíduo com a prevalência exclusiva do mercado». Além disso, este fato acaba também obscurecendo a expressividade de outros campos de ação do Movimento, em particular a potencialidade do trabalho de formação e do programa de educação que vem desenvolvendo nos acampamentos e assentamentos com os quais mantém vínculo.

Não relevamos, é certo, a compreensão de que a viabilidade do assentamento passa pela ordem produtiva. Mas parece-nos que o fato de o Movimento dispor de uma real capacidade de compor efetivamente indivíduos - e não exclusivamente sujeitos privados - acarreta uma tensão permanente entre seu próprio esgotamento e a efetiva potencialidade transformadora que pode ter nas mãos.

Quando o Movimento se prescreve como sujeito coletivo a partir do indivíduo que produz a vida e não exclusivamente mercadoria, parece-nos, a partir de nossas impressões no «Ireno Alves», que alcança maiores avanços em termos de emancipação social: emerge a possibilidade de um projeto de construção de cultura, salta aos olhos os conteúdos ministrados em suas escolas, não é possível deixar de reconhecer diferenciais nos programas da rádio comunitária, chama a atenção as demandas dos assentados por espaços para o teatro, a música e a dança, etc. Talvez seja aí o campo da ordem contra-hegemônica e efetivamente emancipatória.

Seria no mínimo trabalhoso defender a «mística» operada pelo MST como uma prática pedagógica onde se faz possível tratar o imaginário como mediação entre entendimento e pura sensibilidade, isto é, como o campo possível de unidade entre conceito e intuição. Se compreendida como uma vaga «paidéia», um exercício pedagógico que se faz operar no e a partir do universo cultural daqueles indivíduos, constituindo para si uma «história coletiva» e permitindo vislumbrar a consciência de um sujeito que opera sobre si mesmo, talvez seja possível compreender o quão falso é atribuir a relativa proeminência que o Movimento hoje desfruta apenas em virtude do puro exercício de uma fé cega nas «procissões» que tomam de assalto a propriedade alheia, ou em virtude de uma racionalidade dogmática que formata um exército de autômatos.

Parece ser através de um «quase-ritual» «quase-simbólico», onde se pre/escrevem os conteúdos de uma nova forma, que as representações se delineiam intangíveis pela ordem hegemônica: não fazem parte do roteiro preestabelecido, não dialogam sem mediações com a ordem vigente, não se prestam à pura instrumentalização e realizam-se no campo do próprio conflito.

Permitindo-nos a redundância, seria a partir desse imaginário que se admite conceber possível imaginar uma possível «outra cidade»: uma cidade que se permita ao seu «avesso», que se faça germinal no dorso obscuro da terra que a abriga e nega. Instituída em sua potencialidade transformadora, pelo tanto que se propõe ali construir, pensar e realizar esta «outra cidade» compõe espectro na amplitude da ação do próprio MST: no embate pela subversão das estruturas hegemônicas de domínio através da reinvenção da ação prática investida como ação política, o Movimento reinventa o lugar da própria Política.

 

Bibliografia

Castel, Robert (1998), As Metamorfoses da Questão Social. Petrópolis: Editora Vozes.

Chauí, M. (2000), «Marilena Chauí» (entrevista), M. Nobre e J. M. Rego, Conversas com Filósofos Brasileiros. São Paulo: São Paulo Editora, 34, 299-336.

Foucault, M. (1987), Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão. Petrópolis, Rio de Janeiro: Editora Vozes.

Geddes, P. (1994), Cidades em Evolução. Campinas, São Paulo: Papirus Editora.

Governo do Estado do Paraná (1998), Paraná, Estado de Vida. Propaganda institucional.

Habermas, J. (1987), «A Nova Intransparência - a crise do estado do bem-estar social e o esgotamento das energias utópicas», Novos Estudos, 18, CEBRAP (Setembro/1987), 103-114.

Martins, J. S. (1997), «A Questão Agrária Brasileira e o Papel do MST», J. P. Stédile (org.), A Reforma Agrária e a Luta do MST. Petrópolis, Rio de Janeiro: Editora Vozes, 11-76.

Navarro, Zander (1997), «Sete Teses Equivocadas Sobre as Lutas Sociais no Campo, o MST e a Reforma Agrária», J. P. Stédile (org.), A Reforma Agrária e a Luta do MST. Petrópolis, Rio de Janeiro: Editora Vozes, 111-132.

Oliveira, F. (1999), «Privatização do Público, Destituição da Fala e Anulação da Política: o totalitarismo neoliberal», F. Oliveira e M. C. Paoli (orgs.), Os Sentidos da Democracia. Petrópolis, Rio de Janeiro: Editora Vozes, 55-81.

Rizek, C.; Lopes, J. M. A. (1999), «A Cidade dos Sem-Terra: conflitos, imagens e práticas em torno da fundação da primeira cidade dos sem-terra do Brasil», comunicação apresentada no Colóquio Cultures Civiques et Democracies Urbaines. Cerisy-la-Salle, França -12 a 17 Junho 1999 (mimeo).

Rousseau, J-J. (1997), Do Contrato Social. Coleção «Os Pensadores». São Paulo: Editora Nova Cultural Ltda.

Sampaio, P. (2001), «A Questão Agrária Brasileira e a Luta pelo Socialismo», palestra em seminário promovido pelo Partido dos Trabalhadores, em 21 de Maio 2001. São Paulo (mimeo).

Secretaria Regional do MST / Coordenação do Assentamento «Ireno Alves dos Santos» (1999), «Você Sabe Como se Originou o Assentamento Ireno Alves dos Santos?», Cantagalo, Paraná (mimeo).