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Paul Singer A recente ressurreição da economia solidária no Brasil (texto não editado)
1. Breve introdução conceitual 1.1. O que é A economia solidária foi inventada por operários, nos primórdios do capitalismo industrial, como resposta à pobreza e ao desemprego resultantes da difusão «desregulamentada» das máquinas-ferramenta e do motor a vapor, no início do século XIX. As cooperativas eram tentativas por parte de trabalhadores de recuperar trabalho e autonomia econômica, aproveitando as novas forças produtivas. Sua estruturação obedecia aos valores básicos do movimento operário de igualdade e democracia, sintetizados na ideologia do socialismo. A primeira grande vaga do cooperativismo de produção foi contemporânea, na Grã Bretanha, da expansão dos sindicatos e da luta pelo sufrágio universal. A empresa solidária nega a separação entre trabalho e posse dos meios de produção, que é reconhecidamente a base do capitalismo. A empresa capitalista pertence aos investidores, aos que forneceram o dinheiro para adquirir os meios de produção e é por isso que sua única finalidade é dar lucro a eles, o maior lucro possível em relação ao capital investido. O poder de mando, na empresa capitalista, está concentrado totalmente (ao menos em termos ideais) nas mãos dos capitalistas ou dos gerentes por eles contratados. O capital da empresa solidária é possuído pelos que nela trabalham e apenas por eles. Trabalho e capital estão fundidos porque todos os que trabalham são proprietários da empresa e não há proprietários que não trabalhem na empresa. E a propriedade da empresa é dividida por igual entre todos os trabalhadores, para que todos tenham o mesmo poder de decisão sobre ela. Empresas solidárias são, em geral, administradas por sócios eleitos para a função e que se pautam pelas diretrizes aprovadas em assembléias gerais ou, quando a empresa é grande demais, em conselhos de delegados eleitos por todos os trabalhadores. A empresa solidária é basicamente de trabalhadores, que apenas secundariamente são seus proprietários. Por isso, sua finalidade básica não é maximizar lucro mas a quantidade e a qualidade do trabalho. Na realidade, na empresa solidária não há lucro porque nenhuma parte de sua receita é distribuída em proporção às cotas de capital. Ela pode tomar empréstimos dos próprios sócios ou de terceiros e procura pagar os menores juros do mercado aos credores (internos ou externos). O excedente anual - chamado «sobras» nas cooperativas - tem a sua destinação decidida pelos trabalhadores. Uma parte, em geral, destina-se ao reinvestimento e pode ser colocada num fundo «indivisível», que não pertence aos sócios individualmente mas apenas ao coletivo deles. Outra parte, também reinvestida, pode acrescer o valor das cotas dos sócios, que têm o direito de sacá-las quando se retiram da empresa. O restante das sobras é em geral destinado a um fundo de educação, a outros fundos «sociais» (de cultura, de saúde, etc.) e eventualmente à repartição entre os sócios, por critérios aprovados por eles. Portanto, o capital da empresa solidária não é remunerado, sob qualquer pretexto, e por isso não há «lucro» pois este é tanto jurídica como economicamente o rendimento proporcionado pelo investimento de capital. A cooperativa de produção é a modalidade básica da economia solidária e as relações sociais de produção que a definem são as delineadas acima. Outra é a cooperativa de comercialização, composta por produtores autônomos, individuais ou familiares (camponeses, taxistas, profissionais liberais, artesãos, etc.) que fazem suas compras em comum e, quando cabe, também suas vendas. Sendo a produção individual, o ganho também é e as sobras das operações comerciais são em geral distribuídas entre os cooperadores em proporção ao montante comprado e vendido por cada um através da cooperativa. Outra modalidade de empresa solidária é a cooperativa de consumo, que é possuída pelos que consomem seus produtos ou serviços. A finalidade dela é proporcionar a máxima satisfação ao menor custo aos cooperadores. Mas, para ser empresa solidária, não pode haver separação entre trabalho e capital. Muitas cooperativas de consumo empregam trabalho assalariado, o que enseja lutas de classe em seu interior. Por isso não fazem parte da economia solidária. Só pertencem a ela as cooperativas de consumo que tornam seus trabalhadores membros plenos. Alguns a denominam por isso de cooperativas mistas. O mesmo se aplica às cooperativas de crédito. Estas são empresas de intermediação financeira possuídas pelos depositantes. Para que sejam solidárias, é preciso que os trabalhadores que as operam profissionalmente sejam sócios delas. As cooperativas de crédito comunitárias, formadas por moradores da mesma cidade ou membros do mesmo sindicato, etc. aplicam os depósitos em empréstimos pessoais aos cooperadores. Isso se chama crédito rotativo e resgata gente pobre das garras da agiotagem, já que os bancos comerciais estão quase sempre fechados para ela. As empresas solidárias tendem a se federar, formando associações locais, regionais, nacionais e internacionais. O que impulsiona esta tendência é o mesmo conjunto de fatores que produz a centralização dos capitais em grandes empresas multinacionais e conglomerados: os ganhos de escala que permitem reduzir custos; a necessidade de juntar recursos para desenvolver nova tecnologia e difundir a melhor tecnologia, além de outros empreendimentos de alto custo e alto risco.
1.2. A inserção econômica e política da economia solidária Muitas empresas que nasceram como solidárias acabam por se adaptar ao capitalismo e por isso deixam de ser solidárias. O caso mais notório foi o das cooperativas de consumo, que alcançaram grande importância na Europa, e que optaram por assalariar os seus trabalhadores e administradores. Esta decisão provocou viva resistência por parte dos cooperadores mais antigos. O conflito foi travado em relação às cooperativas de produção criadas pelas cooperativas de consumo e sobretudo pela grande central cooperativa atacadista inglesa, que abastecia as demais. Os trabalhadores destas indústrias cooperativas tinham participação no capital, nas sobras e nas instâncias diretivas, além de dificilmente perderem o trabalho, mesmo em épocas de crise. Aos olhos dos demais trabalhadores, associados das cooperativas de consumo e portanto «donos» das cooperativas de produção, os que trabalhavam nelas estavam sendo privilegiados em relação à condição deles, de meros assalariados (Cole, 1944: Cap. IX). O abandono da autogestão nas empresas criadas por cooperativas de consumo foi posteriormente imitado pelas de comercialização. Ela representou na prática uma ruptura jamais admitida com os seus princípios. O que não impediu que o movimento cooperativista, representado em plano mundial pela ACI (Aliança Cooperativa Internacional), continuasse sustentando os princípios de Rochdale, que definem a cooperativa como democrática e igualitária. Assim, em tese, as cooperativas continuam sendo autogestionárias, mas na prática muitas assalariam os que a operam. Devido à veneração dos valores da economia solidária no cooperativismo, parte importante do mesmo procura praticá-los, aproximando-se em menor ou maior grau do perfil da empresa solidária. Muitas cooperativas provavelmente passaram por períodos em que eram empresas solidárias e outros em que se assemelhavam mais a empresas capitalistas. Estas oscilações se devem à inserção econômica e social de cada cooperativa - muitas surgem a partir de lutas operárias ou camponesas - e ao «espírito da época», que impregna os cooperadores ora de valores solidários e democráticos, ora de individualismo e culto à competição. A economia solidária se compõe das empresas que efetivamente praticam os princípios do cooperativismo, ou seja, a autogestão. Ela faz parte portanto da economia cooperativa ou social, sem no entanto se confundir com as cooperativas que empregam assalariados. Na realidade, a grande maioria das empresas apresenta graus muito variados de autogestão, não apenas de cooperativa para cooperativa, mas para a mesma cooperativa em diferentes momentos. A economia solidária constitui um modo de produção que, ao lado de diversos outros modos de produção - o capitalismo, a pequena produção de mercadorias, a produção estatal de bens e serviços, a produção privada sem fins de lucro -, compõe a formação social capitalista, que é capitalista porque o capitalismo não só é o maior dos modos de produção mas molda a superestrutura legal e institucional de acordo com os seus valores e interesses. Mesmo sendo hegemônico, o capitalismo não impede o desenvolvimento de outros modos de produção porque é incapaz de inserir dentro de si toda população economicamente ativa. A economia solidária cresce em função das crises sociais que a competição cega dos capitais privados ocasiona periodicamente em cada país. Mas ela só se viabiliza e se torna uma alternativa real ao capitalismo quando a maioria da sociedade, que não é proprietária de capital, se conscientiza de que é de seu interesse organizar a produção de um modo em que os meios de produção sejam de todos os que os utilizam para gerar o produto social.
2. A economia solidária no Brasil de hoje 2.1. Autogestão a partir da falência ou crise de empresas - a Anteag A economia solidária surge no Brasil, nesta etapa histórica, provavelmente como resposta à grande crise de 1981/83, quando muitas indústrias, inclusive de grande porte, pedem concordata e entram em processo falimentar. É desta época a formação das cooperativas que assumem a indústria Wallig de fogões, em Porto Alegre, a Cooperminas, que explora uma mina de carvão falida em Crisciuma (Santa Catarina) e as cooperativas que operam as fábricas (em Recife e em S.José dos Campos) da antiga Tecelagem Parahyba de cobertores. Todas elas continuam em operação até hoje. O fechamento de empresas e a demissão de numerosos trabalhadores prosseguem durante os anos 80 e 90, as duas décadas perdidas. Pouco a pouco se desenvolve uma tecnologia para aproveitar as oportunidades, oferecidas pela legislação aos trabalhadores, de arrendar ou adquirir a massa falida ou o patrimônio dos antigos empregadores e assim preservar seus postos de trabalho. O sindicato, como representante legal dos trabalhadores, intervém perante a justiça e promove a formação duma associação dos empregados da firma em vias de desaparecer que depois dá lugar eventualmente a uma cooperativa. A questão crucial do processo está em levar aos trabalhadores os princípios da economia solidária, convencendo-os a se unirem numa empresa em que todos são donos por igual, cada um com direito a um voto, empenhados solidariamente em transformar um patrimônio sucateado num novo empreendimento solvável. A alternativa convencional seria criar uma outra empresa capitalista, controlada não por todos os trabalhadores mas pelos mais antigos e melhor remunerados, detentores dos maiores créditos trabalhistas e portanto possuidores das maiores cotas de capital. A equipe que melhor desenvolve esta tecnologia tem sua origem na antiga Secretaria de Formação do Sindicato dos Químicos de São Paulo, onde tinha por missão agir dentro das empresas «conscientizando os trabalhadores, avaliando a sociedade em seu conjunto e os políticos, a partir do que representavam do ponto de vista dos interesses da classe dominante nacional e internacional» (Anteag, 2000: 15). Em 1991, muda a diretoria do Sindicato dos Químicos e a Secretaria de Formação é fechada. No mesmo ano, em função da abertura do mercado interno às importações, entra em crise uma grande fábrica de sapatos, a Makerly de Franca (SP), que empregava então 482 trabalhadores. O Sindicato dos Sapateiros se empenha em impedir que tantos trabalhadores percam seus empregos e chama um dos integrantes da antiga equipe dos Químicos, Cido Faria, então no DIEESE (Departamento Intersindical de Estudos Estatísticos Sociais e Econômicos) para transformar a empresa em vias de falir numa «fábrica de trabalhadores». O DIEESE, uma antiga e prestigiosa entidade de apoio aos sindicatos, não só cedeu o seu funcionário mas contribuiu com literatura sobre os «ESOPs» («Employee Stock Ownership Plans»), que são planos de participação dos empregados no capital acionário das empresas, nos Estados Unidos, onde recebem incentivos por lei e tem se difundido bastante. Naquele momento, em S. Paulo, não se conhecia qualquer modelo de passagem da posse duma empresa capitalista às mãos de seus antigos empregados organizados em associação. Os trabalhadores encamparam a idéia do sindicato e se propuseram a adquirir o maquinário dos donos da Makerly por 600000 dólares. Para conseguir o crédito correspondente do Banespa (Banco do Estado de São Paulo, banco oficial do Estado de São Paulo, hoje vendido ao Santander) foi necessária intensa luta política, que culminou com a ocupação da sede do Banespa em Franca. Após 91 dias de pressão e negociações, assinou-se um acordo pelo qual, como garantia do empréstimo, 49% das ações da empresa ficaram com o banco. Por esse acordo, a Makerly teve de continuar sendo uma sociedade anônima e não uma cooperativa. Controlada pelos trabalhadores, a empresa funcionou nos anos seguintes com êxito, até que em Março de 1995 o governo federal interveio no Banespa e suspendeu a linha de crédito à Makerly, o que impôs o encerramento de suas atividades. A experiência da Makerly foi a base que permitiu desenvolver uma metodologia de transferência de empresas capitalistas a seus empregados. «Gente de todo o país, sindicalistas, políticos, trabalhadores, imprensa, todos iam até Franca para conhecer a experiência que eles denominaram ‘fábrica de trabalhador’» (Anteag, 2000: 56). Outras empresas, em geral grandes e antigas, entraram em crise e acabaram se tornando autogestionárias: Cobertores Parahyba, Facit, Hidro-Phoenix, etc. Em 1994, foi realizado em São Paulo o 1º Encontro dos Trabalhadores em Empresas de Autogestão, em que participaram representantes de seis empresas. Neste encontro decidiu-se criar a Anteag (Associação Nacional dos Trabalhadores em Empresas de Autogestão e Participação Acionária). A Anteag surge não só para ajudar a luta dos trabalhadores pela preservação dos seus postos de trabalho e ao mesmo tempo pelo fim de sua subordinação ao capital, mas também para assessorar as novas empresas solidárias. Os projetos precisavam ser coordenados porque, mesmo que inicialmente pressionados pelo desemprego, quando os trabalhadores assumiam as empresas tinham de enfrentar inúmeras questões, novas para eles, dentre elas aquelas relativas ao mercado e à comercialização dos produtos, ao acesso a crédito e controle orçamentário da empresa, à organização do trabalho e da produção, à tecnologia, à legislação. Se, por um lado, as relações de solidariedade entre trabalhadores, o apoio de alguns sindicatos às suas iniciativas eram fundamentais, por outro não eram suficientes. Havia necessidade de articular pessoas e instituições, democratizar informações, criar um espaço para o debate e produção de alternativas. Enfim, havia a necessidade de uma entidade que assumisse esses papéis. Era o começo da Anteag (Nakano, 2000: 68). No processo de transformação duma empresa falida ou em vias de falir numa empresa solidária, há uma série de etapas cruciais. A primeira é ganhar a anuência dos próprios trabalhadores, que precisam se propor a trocar seus créditos trabalhistas por cotas de capital da «sua» nova empresa, o que só acontece se eles acreditarem de que são capazes de assumir coletivamente a gestão da empresa em crise e reabilitá-la. A alternativa é deixar que a empresa seja fechada pela justiça e assim fique até que vá a leilão, quando do valor arrecadado eles receberão uma fração de seus créditos. Em geral passam-se anos entre o lacramento da planta e o seu leilão e neste período instalações e maquinário sofrem desvalorização quase total. Logo, nesta opção, grande dos créditos rescisórios se perdem, ao passo que se forem investidos numa cooperativa, sempre há a possibilidade de que preservem seu valor e até de que este aumente. São vários os fatores que levam trabalhadores a assumir o risco de se apossar do patrimônio da empresa ou pelo contrário a preferir procurar outro emprego assalariado: o seu grau de coesão e confiança mútua, o apoio externo ao projeto autogestionário, a maior ou menor probabilidade de encontrar outro emprego com remuneração e condições de trabalho satisfatórias, etc. Em geral, nos casos em que a refundação da empresa nas mãos dos trabalhadores dá certo, o operariado se divide entre uma maioria que se engaja na proposta e uma minoria que se recusa. O fato da massa falida ser mantida em funcionamento pela nova firma preserva o seu valor, o que é vantagem de todos os credores, inclusive dos trabalhadores que não querem integrá-la, pois estes também acabam recebendo uma fração maior dos seus créditos trabalhistas. A segunda etapa é conseguir que o patrimônio da firma passe para os trabalhadores associados, o que muitas vezes requer um crédito, cuja garantia é o próprio patrimônio transacionado. Em geral, crédito volumoso de prazo longo só pode ser obtido em bancos oficiais, o que depende de uma decisão política de sua direção. «Arrancar» tal decisão exige em geral forte mobilização e intensa pressão sobre ela, que no caso da Makerly (como vimos) tomou a forma de ocupação da sede do banco. O sindicato conta em geral com a solidariedade de outros sindicatos e de sua central e, se o número de trabalhadores for grande, consegue conquistar o apoio da mídia, de partidos de esquerda e seus parlamentares, da Igreja, eventualmente do prefeito e governador. Tudo isso conta como meio para viabilizar a futura cooperativa que, para seguir operando, tem que continuar com o apoio tanto da justiça, como do banco. A terceira etapa consiste na viabilização da nova empresa mediante a recuperação da clientela, dos fornecedores e dos créditos da antiga empresa. Os primeiros tempos são muito duros pois os trabalhadores têm de acumular capital de giro, o que significa que durante certo período eles não vão ter a retirada «cheia» (nível almejado de ganho mensal, em geral igual ao que tinham quando empregados) mas muito menos. É o chamado «período heróico», que pode durar meses, em que os trabalhadores às vezes não conseguem sequer um rendimento de subsistência. Uma vez superado o período crítico, grande parte da antiga clientela volta e nova é atraída, os fornecedores ganham confiança na cooperativa e a retirada se torna cada vez mais cheia. É só a partir deste momento que a empresa solidária entra em sua normalidade. Os trabalhadores escolhidos para exercer funções gerenciais fazem cursos e vão adquirindo habilidades novas. O hábito de realizar assembléias vai se consolidando e os trabalhadores que continuam nas linhas de produção se acostumam a tomar conhecimento das dificuldades sofridas e dos êxitos obtidos e a decidir em conjunto a condução da empresa. Por surpreendente que seja, a grande maioria das tentativas de transformar firmas meio ou inteiramente falidas em empresas solidárias tem tido sucesso. Ele se explica em primeiro lugar pelos sacrifícios feitos pelos cooperadores, que se dispõem a trabalhar durante meses por ganhos mínimos, algumas vezes apenas em troca de cestas básicas (conjunto padronizado de alimentos que devem suprir as necessidades essenciais duma família por determinado período). Mas também pela enorme dedicação e amor ao trabalho não mais alienado, do que resultam aumentos inesperados de produtividade e grande redução de perdas e desperdícios. E finalmente pelo aprendizado por parte dos novos administradores das técnicas e manhas da gestão de comprar e vender, de receber e dar crédito, de inovar produtos e processos e de tecer relações solidárias com outras autogestões. A Anteag foi crescendo ininterruptamente. Com o êxito das primeiras empresas solidárias, foram se multiplicando as iniciativas de sindicatos e trabalhadores no mesmo sentido e para viabilizá-las solicitavam a assistência dos técnicos e formadores da Anteag. A partir de 2000, a Anteag começou a ser contratada também por governos que decidiram dar prioridade à economia solidária. O governo do Rio Grande do Sul de Olívio Dutra fez um convênio com a Anteag que provocou a ampliação de seus quadros no Estado para poder atuar em todas suas regiões e os resultados não se fizeram esperar: em um ano surgiu algo como uma centena de novas cooperativas, possibilitando a preservação de dezenas de milhares de postos de trabalho. Outros governos estaduais também já mostraram interesse de contratar a Anteag e em 2001 um bom número dos novos prefeitos estão fazendo o mesmo. Em Janeiro de 2001, estavam recebendo a assessoria da Anteag cerca de 160 empresas solidárias em todo o Brasil, inclusive a maior de todas, a Usina Catende, que cobre 5 municípios em Pernambuco, em que trabalham 3.200 famílias. A Catende faliu em 1995 e desde então funciona como empresa autogestionária, contando com o apoio dos sindicatos de trabalhadores rurais, da Agência de Desenvolvimento Solidário da CUT, do governo de Cuba (que fornece agrônomos especialistas no cultivo de cana) e da Anteag.
Conforme vimos, a história da Anteag deixa claro que a transformação de empresas em crise ou falidas em cooperativas de produção exige a intervenção ativa do sindicato da categoria. A Anteag se origina do movimento sindical e acabou se transformando numa organização de apoio, independente do sindicalismo mas permanentemente envolvida em parcerias com sindicatos empenhados na conversão de empresas capitalistas em solidárias. Vamos agora tratar duma outra organização, com objetivos análogos, formada mais recentemente por dois sindicatos do ABC, conjunto de municípios industriais da Grande São Paulo, famoso pelo seu sindicalismo combativo. Estes sindicatos foram o dos Metalúrgicos do ABC e dos Químicos do ABC. O dos Metalúrgicos é o mais poderoso, pois representa os trabalhadores da indústria automobilística, que até recentemente concentrava a maioria das montadoras em São Bernardo do Campo, com numerosas fábricas de componentes localizadas nos municípios vizinhos. Foi o Sindicato de Metalúrgicos que organizou em 1978, em pleno regime militar, uma greve com ocupação da fábrica que surpreendentemente acabou não sendo reprimida, o que foi o sinal de que a partir de então o direito de greve voltava a ter vigência no Brasil. O que desencadeou enorme vaga de greves que atingiu o país inteiro e deu fama nacional ao chamado «novo sindicalismo», do qual Lula se tornou a figura emblemática. O Sindicato dos Metalúrgicos tomou várias iniciativas de repercussão nacional contra a eliminação em massa de postos de trabalho pela indústria. A mais celebre foi o acordo negociado em câmara setorial, que trocou certa renúncia fiscal do Estado, salarial dos trabalhadores e de lucratividade das empresas, traduzidas em baixa dos preços, por forte aumento das vendas de veículos e correspondente aumento da produção, com plena manutenção do emprego. Os ganhos de escala compensaram as renúncias. Acordos análogos foram negociados em outras cadeias produtivas. É no contexto de «um sindicalismo propositivo, que formula propostas de intervenção nas políticas públicas, nas políticas industriais e setoriais e nas mudanças conduzidas nas fábricas» (Oda, 2000: 94) que dá para entender que o Sindicato dos Metalúrgicos também tenha se engajado, relativamente cedo, no movimento da economia solidária. Já em seu 2º Congresso, em 1996, o sindicato resolveu discutir com os trabalhadores a formação de cooperativas, autogestão, etc. como meios de garantir a manutenção de postos de trabalho. O Congresso resolveu que poderiam ser sócios do sindicato todos os trabalhadores da categoria (inclusive cooperadores) e não apenas assalariados formais, como era a regra praticamente geral no Brasil até então. «Com o intuito de ampliar os conhecimentos acerca de sistemas cooperativos, o sindicato estabeleceu, em 1998, um protocolo de intenções para a troca de informações a partir das experiências ocorridas na região da Emilia Romagna, Itália» (Oda, 2000: 97). O protocolo teve a participação de várias entidades sindicais italianas e da Lega delle Cooperative, que é a maior federação de cooperativas da península. Dele resultou a visita de delegações brasileiras à Itália e de dirigentes da Lega e outras entidades italianas ao Brasil, dando lugar a diálogos fecundos que continuam se desenvolvendo. Enquanto se davam estes avanços no plano macro, a crise na Conforja, a maior forjaria do país, localizada em Diadema, ensejaria, a partir de 1996, o envolvimento direto do sindicato numa grande operação de resgate de postos de trabalho. Em seguida, o sindicato se engajaria em outras operações semelhantes: a transformação da Nichiden em Coopertronic, da Cervin em Uniwídia, da formação da Cootrame pelos trabalhadores demitidos da Nordon, a transformação da Olan - uma empresa textil, portanto não pertencente à categoria metalúrgica - em Cooperautex e da KWCA em Metalcooper e Fibercoop. Na medida que o sindicato foi dando apoio a todas estas cooperativas, a complexidade da tarefa se tornou patente. Em Fevereiro de 1998, um seminário interno realizado pelo sindicato concluiu que era necessário proporcionar aos novos cooperadores informação, formação e capacitação para a condução do negócio. Esta necessidade advém também do fato de que, nas referidas cooperativas, a maioria dos trabalhadores cooperativados é constituída de ex-operários, de baixa ou média qualificação e portanto com menores possibilidades de recolocação no mercado de trabalho. Ao contrário, os profissionais que atuaram em cargos de chefia ou administração, nas antigas empresas fechadas/falidas, buscam a sua recolocação no mercado de trabalho ou a criação de outros negócios independentes, em vez de participar nestas cooperativas (Oda, 2000: 98). O que não deveria surpreender, pois técnicos e gerentes constituíam a elite dirigente das empresas que fecharam ou faliram e é apenas natural que a maioria deles descreia da autogestão, convicta que apenas formas autoritárias e hierárquicas de gestão podem ser eficientes. Para eles, entrar numa cooperativa eqüivale a renunciar a poder, status e privilégios para se igualar aos demais cooperadores, apesar destes terem muito menos «méritos» do que eles. Não obstante, há casos (como por ex. no da Conforja, como veremos) em que engenheiros e ex-diretores não apenas aderem a cooperativas como incorporam os valores da autogestão e se empenham em torná-los realidade. Assumem posições de liderança e se frustram pela persistência da mentalidade de «empregados» entre muitos sócios menos qualificados da cooperativa. Uma peça-chave no projeto do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em relação às cooperativas, tendo como referência as experiências internacionais, é a constituição de uma associação a União e Solidariedade das Cooperativas do Estado de São Paulo (Unisol Cooperativas). Esta entidade, que foi politicamente lançada durante o encerramento do 3º Congresso dos Metalúrgicos do ABC, tem fortes vínculos com o movimento sindical, com partidos políticos e com outras entidades da sociedade civil (Oda, 2000: 102). A Unisol surge em 1999, como possível rival da Anteag: propõe-se os mesmos objetivos e inevitavelmente acabará desenvolvendo atividades semelhantes. Formalmente, constitui também uma associação de cooperativas, que embora por enquanto se localizam todas no ABC paulista, pretende abranger entidades de todo o Estado de S. Paulo. A Unisol conta com uma Incubadora de Cooperativas Populares, suportada pela Prefeitura de Santo André e ligada à Fundação Santo André (instituição municipal de ensino superior). As cooperativas criadas e amparadas pela Incubadora possivelmente se integrarão à Unisol, que tenderá a se expandir, impulsionada pelos mesmos fatores que explicam o grande crescimento da Anteag: o desemprego em massa, a intensificação da concorrência que leva empresas antigas e de envergadura à crise e eventualmente à falência; o êxito das cooperativas de produção que sucederam a empresas que fecharam possivelmente reforça a confiança dos trabalhadores de que em suas mãos elas têm grandes chances de ressuscitar. A Conforja era uma empresa metalúrgica que se estabeleceu em Diadema, em 1968, para produzir conexões de aço forjado e tubulações. Convém registrar que 1968 marca o início do «Milagre Econômico» brasileiro, quando o crescimento econômico e particularmente industrial atinge ritmo extraordinário, sustentado por cerca de 9 anos. A Conforja torna-se fornecedora única da Petrobrás, o monopólio estatal de petróleo, que se empenha nos anos 1970 a explorar grandes jazidas submarinas, descobertas na costa brasileiras. Entre 1974 e 1976, o número de empregados da Conforja passa de 550 a 1.170 e o seu faturamento, em dólares, sobe de 8,4 a 28,2 milhões. Nos anos 80, a Conforja diversifica sua atividade, transformando-se numa multi-empresa que fabrica máquinas, rolamentos, plásticos, transacionando frutos e cereais, minérios e madeiras, etc. A situação da empresa muda quando, em 1990, o governo de Fernando Collor decide abrir o mercado interno às importações. A Conforja liderava um oligopólio, dominando 70% do mercado de forjados, que subitamente é invadido por fornecedores estrangeiros competindo com preços menores. Deste ano em diante, a Conforja passa a ter prejuízos, reduz o número de empregados e atrasa freqüentemente o pagamento dos salários, o que provoca naturalmente protestos, greves abertas ou dissimuladas, com grande prejuízo da produção. Em 1994, o principal acionista da Conforja, para salvar a firma, propõe ao Sindicato dos Metalúrgicos do ABC transformá-la numa co-gestão, o que provoca intenso debate entre os trabalhadores. Em 1995, restam na Conforja apenas 630 empregados, menos da metade do contingente de 1989, mas ainda assim um número significativo de postos de trabalho, que valeria a pena salvar. O sindicato e a maioria dos trabalhadores concordam com a proposta do empresário e em Agosto de 1995 é assinado um protocolo de intenções de co-gestão entre a empresa e seus empregados, representados pelo sindicato. Em seguida os trabalhadores formam uma associação denominada Assecon, para assumir a metade da gestão da empresa mediante a aquisição de 45% das ações da mesma. A Anteag é convocada para assessorar o sindicato e a Comissão de Fábrica, nesta experiência, de certo modo inédita para todos os participantes. Para ajudar a reabilitar a empresa, os trabalhadores haviam aceito uma redução da jornada semanal de trabalho de 44 para 40 horas com redução proporcional dos salários (o que até então sempre fora recusado pelos sindicatos). Apesar do sacrifício e das propostas dos representantes dos empregados na direção da Conforja, a crise prosseguia. O faturamento continuava a diminuir, provocando atrasos no pagamento de salários, férias, 13º Salário, etc. Além disso, «as definições adotadas no âmbito da co-gestão não eram efetivamente implantadas, resultando no descrédito dos membros da Assecon, da comissão de fábrica e do sindicato junto aos trabalhadores» (Oda, 2001: 73). Ao que parece, o poder real de direção da Conforja continuava com os antigos diretores, alguns dos quais não se submetiam às decisões da co-gestão. Em Julho de 1997, o sindicato realizou um plebiscito entre os trabalhadores da Conforja. A maioria manifestou-se pela dissolução da Assecon, pelo rompimento do acordo de co-gestão e pela destituição da comissão de fábrica. A empresa voltava a ficar sob a responsabilidade apenas dos proprietários e perdia o apoio do sindicato nas negociações com os governos municipal e estadual, que permitiam a continuidade das operações apesar da falta de pagamento de impostos e taxas e das contas de água e eletricidade. A partir do momento em que o sindicato assumiu a tarefa de preservar os 630 postos de trabalho, ele (em conjunto com a Assecon) passou a pressionar as administrações públicas para obter uma moratória dos débitos já incorridos, na expectativa de que a Conforja em pouco tempo se reabilitaria financeiramente. Com a ruptura do acordo de co-gestão, a empresa perdeu este apoio que, naquelas circunstâncias, era essencial à sua sobrevivência. Em pouco tempo, a bancarrota da empresa seria decretada. Diante desta perspectiva, o filho do fundador da empresa, que estava na sua direção, percebeu que a melhor alternativa para ele era entregar a gestão a uma cooperativa formada pelos empregados. «a possibilidade de arrendar aos trabalhadores as máquinas, equipamentos e instalações se mostrava mais vantajosa para a Conforja e seu herdeiro, do que simplesmente ter a empresa lacrada e o patrimônio da família transformado em ‘massa falida’» (Oda, 2001: 77). A dificuldade maior para transformar a Conforja numa autogestão era convencer os trabalhadores, pois teriam de ser demitidos de seus empregos para se tornarem os novos donos do empreendimento. Uma parte deles, liderada por um diretor dissidente do sindicato, optou por continuar sendo assalariada, o que significava não se envolver em qualquer tentativa de salvar a empresa e esperar que, com a venda da massa falida, pudesse receber uma parte de seus direitos rescisórios, além dos salários atrasados. Os demais, liderados pelos dirigentes da ex-Assecon, iniciaram discussões sobre a formação duma cooperativa que pudesse assumir a empresa e superar a crise em que estava imersa. É interessante observar que o curto período (cerca de 2 anos) em que funcionou a co-gestão foi decisivo para convencer a liderança dos trabalhadores de que uma cooperativa de produção que sucedesse a Conforja teria reais possibilidades de reabilitá-la. A co-gestão cumpriu um papel importante, pois o acesso às informações possibilitou que os trabalhadores que integravam a ex-Assecon passassem a compreender os processos administrativos, financeiros, comerciais e produtivos, além de angariarem dos demais trabalhadores o respeito como potenciais líderes.
A passagem da co-gestão à formação duma cooperativa só foi possível de ser concretizada devido: ao acesso aos dados relativos à empresa - a relação de clientes, os custos de produção e administração, entre outros; ao aprendizado em relação ao funcionamento da fábrica - a junção dos conhecimentos da operação com a administração e a gestão dos negócios da fábrica; às discussões em torno das alternativas que haviam sido elaboradas pelos trabalhadores durante o período da co-gestão; e à liderança concretizada junto aos demais trabalhadores (Oda, 2001: 74-75). Apesar da maioria dos trabalhadores ser favorável à fundação duma cooperativa, tendo lançado manifesto neste sentido em Outubro de 1997, ela não ocorreu então porque era demasiado o receio de romper o vínculo empregatício e renunciar ao direito a salário, aposentadoria, férias, 13º salário, etc. ainda que estes benefícios não estivessem sendo pagos integralmente. O manifesto proclamava a confiança dos trabalhadores de serem «capazes de conduzir uma empresa de tal forma que o parque fabril da Conforja não encerre suas atividades: os prédios não fechem, as máquinas não parem» (Oda, 2001: 77). Mas, a confiança não era naquele momento suficiente para que os empregados da empresa se dispusessem a atravessar o Rubicon e se tornassem cooperadores. A crise da empresa prosseguiu durante mais alguns meses, até que um setor da fábrica, o de tratamento térmico conseguiu romper a inércia. Este setor contava com uma clientela externa para os seus serviços, tornando-o financeiramente independente da crise na produção de forjados, laminados, tubos e conexões. Um grupo de ex-integrantes da Assecon preparou a formação da cooperativa, inclusive consultando os clientes se continuariam comprando serviços depois da passagem da gestão aos trabalhadores. Como o resultado da consulta foi positivo, as últimas dúvidas puderam ser superadas, embora com muita dificuldade. Os trabalhadores só conheciam dois papeis possíveis na economia: ou se era patrão ou empregado. O auto-emprego coletivo era um enigma e a auto-gestão era ignorada. Mesmo para as lideranças que conduziam o processo de formação da cooperativa, esta era uma experiência nova. Assim, temas como a gestão da cooperativa, a organização do processo produtivo e de trabalho e, principalmente, da participação dos sócios-trabalhadores na condução dos negócios da cooperativa não ocuparam um lugar de destaque nos debates realizados com os trabalhadores (Oda, 2001: 80). Em 14 de Dezembro de 1997, a assembléia de fundação da Coopertratt - Cooperativa Industrial de Trabalhadores em Tratamento Térmico e Transformação de Metais teve lugar na sede regional de Diadema do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC. Em Março do ano seguinte Conforja e Coopertratt assinavam um contrato de arrendamento, prestação de serviços «e outras avenças», pelo qual a segunda poderia usar prédios, máquinas e equipamentos da primeira em troca da prestação de serviços de tratamento térmico pela segunda à primeira, além de percentuais sobre o faturamento da cooperativa com clientes externos. O contrato era bastante complexo, com percentuais progressivos para a Conforja conforme aumentasse a receita externa da Coopertratt. Um detalhe revelador do contrato é que a Conforja não só deixava de ser responsável pela remuneração dos trabalhadores sócios da cooperativa, mas esta passou a responder inclusive pelo pagamento das obrigações rescisórias dos mesmos. Em outras palavras, os trabalhadores do setor de tratamento térmico foram todos demitidos pela Conforja, sendo que os que resolveram se associar à cooperativa ficaram responsáveis por gerar suas próprias verbas rescisórias. Aos trabalhadores que não quiseram aderir à cooperativa, a responsabilidade pelo pagamento destes direitos continuava sendo da Conforja. A Coopertratt assumiu a gestão dos negócios a seu cargo e obteve muito rapidamente bons resultados econômicos, refletidos na retirada dos sócios, que já no segundo mês foi «cheia», ou seja, o fluxo de caixa permitiu que os trabalhadores recebessem integralmente a remuneração média, que tinham antes da crise da empresa. Quando estes fatos se tornaram conhecidos pelos outros trabalhadores, eles também criaram ânimo para fundar suas cooperativas. Os integrantes da ex-Assecon planejaram formar mais três cooperativas de produção, a partir das unidades de negócios da empresa, e duas que prestariam serviços às de produção: uma de engenharia, manutenção e ferramentaria e outra de logística e comercial. Mas somente as primeiras três foram formadas (entre Março e Abril de 1998): Cooperlafe (Laminação de Aneis e Forjados Especiais); Coopercon (Conexões Tubulares) e Cooperfor (Forjaria). As cooperativas de serviço não vingaram porque não houve quem convencesse os empregados dos setores técnico e administrativo a dar o salto mortal e se tornarem patrões de si mesmos. Os principais líderes que haviam integrado a Assecon já estavam nas cooperativas de produção. Além disso, tecnocratas e burocratas são mais apegados a hierarquia, já que ocupam nela posições privilegiadas. É entendível que em sua maioria tivessem optado por enfrentar as agruras dum mercado de trabalho com excesso de oferta em vez de se igualar aos trabalhadores manuais num arranjo autogestionário que ainda não havia comprovado sua «eficiência». Mas nem todos os empregados administrativos e técnicos fizeram esta opção. Vários entraram em cooperativas por afinidade com suas lideranças, porque sua atividade estava ligada a uma delas ou para suprir alguma lacuna, etc.. Em Maio de 1998, quando as 4 cooperativas tomaram o lugar da Conforja, esta última tinha 449 empregados, dos quais 269 se tornaram cooperadores. Os 180 restantes (40% do total) preferiram deixar o empreendimento. Os primeiros eram os «demitidos internos» e os últimos, os «demitidos externos». Com a formação das 4 cooperativas, todo capital físico da Conforja é arrendado, o que exige um novo contrato. Do faturamento líquido, por faixa de valores, haveria as seguintes deduções: de 3,5% a 4,5% para a conta da Conforja; 3,5% para as verbas rescisórias dos demitidos internos e de 5,5% a 7,5% para os demitidos externos. Mesmo os sócios das cooperativas mantêm seus direitos a créditos individualmente diferenciados, o que significa que uma parcela de 3,5% da receita gerada por todos os cooperados se destina a pagar direitos proporcionais à antigüidade e outras circunstâncias da atividade passada, realizada por cada um na Conforja. E uma parcela quase duas vezes maior da mesma receita se destina a pagar os direitos dos trabalhadores que optaram por deixar a empresa. Estes dispositivos contratuais mostram o enorme apego dos trabalhadores a seus direitos trabalhistas, que seriam em sua maior parte perdidos se não fosse a recuperação da empresa pelas cooperativas de produção. Os demitidos internos concordaram em trabalhar para assegurar os direitos dos demitidos externos porque «segundo o ex-presidente da Coopertratt, o risco dos ‘demitidos externos’ abrirem um processo trabalhista reivindicando que as cooperativas pagassem seus direitos, antes da decretação da falência da Conforja, era muito grande» (Oda, 2001: 85). As quatro cooperativas contrataram o proprietário da Conforja para prestar serviços de assessoria em gestão empresarial contra o pagamento de 1,5% do faturamento líquido. Desta forma, os interesses de todas as partes envolvidas na crise da empresa se viram contemplados. Mas, apesar do desempenho razoável das cooperativas, a falência da Conforja não pôde ser evitada, sendo decretada em Março de 1999. Este ato transformou o patrimônio arrendado pelas cooperativas em massa falida, de propriedade, em princípio, dos credores da empresa. Mas o interesse destes últimos continuava sendo pela manutenção em atividade do empreendimento, de modo que um novo contrato de arrendamento foi assinado junto ao juiz do processo falimentar. De uma forma geral, o desempenho econômico das cooperativas em 1998 e 1999 foi bom, dando esperança que a crise poderia ser superada. A receita operacional bruta foi de 5,4 milhões de reais em 1998 e 9,6 milhões em 1999, sendo o custo com cooperadores de 1,5 milhão em 1998 e 2,9 milhões em 1999. É preciso lembrar que o exercício de 1998 não cobre todo o ano. Finalmente, as sobras das 4 cooperativas foram de 300 mil reais em 1998 e 209 mil reais em 1999. A este respeito o desempenho das cooperativas foi bastante diferente: as sobras da Coopertratt dobraram, passando de 131,5 mil reais em 1998 para 260,4 mil reais em 1999, a Cooperlafe sofreu pequena diminuição das sobras (116,8 mil em 1998 e 97,9 mil em 1999) ao passo que as outras duas tiveram prejuizos em 1999, a Coopercon de 39,5 mil reais e a Cooperfor de 109,8 mil reais. Os dados disponíveis não permitem uma avaliação efetiva do desempenho de cada uma das cooperativas. Mas, as dificuldades econômicas motivaram duas mudanças na direção da Coopercon. A 1 de Dezembro de 1998, cinco dos seis integrantes do Conselho de Administração da cooperativa foram substituídos por causa do descontentamento dos trabalhadores com suas retiradas, que estavam muito menores que a retirada cheia, que eles consideram como uma espécie de direito adquirido. No início do seu mandato, o segundo presidente eleito optou por pagar as remunerações dos sócios-trabalhadores, em detrimento da situação econômico-financeira da cooperativa. (...) Em 26 de Agosto de 1999, também por meio de assembléia geral extraordinária, a Coopercon promoveu a substituição do seu presidente e do coordenador geral da cooperativa. O desequilíbrio nas contas da cooperativa ocasionado pelo baixo volume de faturamento, pela necessidade de recursos para a compra de matérias-primas e insumos e pela própria pressão dos trabalhadores no pagamento das retiradas - que uma vez mais voltou a ser inferior à ‘retirada cheia’ - levaram as demais cooperativas a se manifestarem quanto à necessidade de uma ‘intervenção branca’ na Coopercon (Oda, 2001: 93-94). Apesar das óbvias dificuldades que algumas das cooperativas enfrentam, os sócios têm atingido o seu objetivo imediato, qual seja preservar seus postos de trabalho e alcançar remunerações compatíveis com o trabalho que realizam. A informação disponível a este respeito refere-se à Cooperlaf, onde a retirada média em Julho de 2000 era de R$ 1.094,86, que se compara favoravelmente com o salário médio do metalúrgico do ABC que era então de R$ 1.051,63. (Oda, 2001: 111) Considerando-se a situação desesperadora da Conforja, que levou afinal a sua falência, é provável que o desempenho econômico das cooperativas deva ser considerado uma melhora, que com o passar do tempo deverá se acentuar. De uma forma geral, a prática da autogestão tornou-se habitual nas quatro cooperativas. Em cada uma delas, além do Conselho Administrativo estatutário, há um coordenador geral que de fato exerce a chefia. São pessoas que já exerciam posição de liderança na Conforja, sendo todos ex-chefes ou engenheiros e ex-integrantes da Assecon. Cabe-lhes articular os processos produtivos e supervisionar os demais sócios, estando entre suas funções «indicação para aumento de retiradas/enquadramentos de funções/cargos, definição e cumprimento de sobrejornadas quando necessárias, definição de prioridades da produção para atendimento de clientes/interesses financeiros da cooperativa, entre outros» (Oda, 2001: 89). Embora os coordenadores disponham de grande poder, suas decisões em geral são submetidas às assembléias gerais, que costumam ser numerosas. Entre Março de 1998 e Fevereiro de 2000, as 4 cooperativas realizaram nada menos de 120 assembléias, com um comparecimento médio que varia entre 70,4% na Coopertratt e 77,8% na Coopercon. É interessante notar que as duas cooperativas com pior desempenho (Cooperfor e Coopercon) são as que registram maiores índices de comparecimento, o que parece indicar que a participação dos sócios é mais intensa exatamente porque os problemas a serem enfrentados são mais graves. As assembléias dão ampla oportunidade aos sócios de inserir itens na agenda e de se manifestar. Apesar dos sinais de que a autogestão é uma realidade, em alguma medida, são os coordenadores que se queixam da falta de participação e de iniciativa dos sócios. Segundo o coordenador de qualidade da Cooperlafe, «não conseguimos mudar a mentalidade dos trabalhadores, [pois] eles ainda são muito dependentes de um patrão». O presidente da Cooperfor acha que «muitos sócios se acostumaram e continuam trabalhando como ex-empregados». Para o coordenador geral da Coopertratt, «a ‘mudança de filosofia’ [...] só ocorrerá mediante a participação deles em cursos técnicos e em cursos sobre cooperativismo». Para este coordenador, estes cursos proporcionariam «uma maior autonomia para a tomada de decisões sobre a produção, além de possibilitar aos sócios pensarem no negócio estrategicamente e não no curto prazo» (Oda, 2001: 116). O caso da Conforja é muito revelador das potencialidades que a transformação de empresas capitalistas em crise em cooperativas de produção encerra. Uma grande parte das hesitações e resistências dos trabalhadores a se lançar em tal aventura se deve ao seu ineditismo. Com o tempo e a experiência acumulada em cooperativas e entidades de apoio, como a Anteag e a Unisol, é de se esperar que a percepção das vantagens para os trabalhadores de passar da condição de asalariados subalternos a sócios com plenos direitos de participação nas decisões se generalize. É curioso que outros atores, como os detentores do capital ou de direitos sobre a massa falida, sejam mais rápidos em perceber as vantagens para eles em transferir aos ex-empregados os direitos e responsabilidades sobre o capital físico, pelo simples fato de que só sua utilização contínua garante sua manutenção material e portanto a preservação de seu valor. 2.4. Autogestão a partir da Reforma Agrária - o MST A luta pela terra não é nova no Brasil. Fortemente reprimida durante grande parte do regime militar, ela é gradualmente retomada quando se dá a abertura do regime. Começam de novo ocupações de terras de latifúndios e destas experiências surge o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra). De acordo com o próprio movimento, em sua fase inicial (1979-84), a conquista da terra é o eixo central. O MST queria resolver o problema da terra do ponto de vista individual. (...) O sem-terra pegava a terra e virava um pequeno proprietário. (...) A produção estava voltada basicamente para o autosustento (para o mercado ia o excedente). O nível de cooperação que existe era o espontâneo: mutirão e troca de dias de serviço (CONCRAB, 1998: 28-29). A agricultura de subsistência praticada em pequenas propriedades familiares não consegue melhorar o padrão de vida dos camponeses e alguns são obrigados a entregar a terra. A partir de 1986, começa a discussão de como organizar os assentados, com o I Encontro Nacional de Assentados, em que estiveram representados 76 assentamentos de 11 estados. Apesar da resistência inicial ao cooperativismo «pelas experiências negativas do modelo tradicional do cooperativismo, caracterizado como grandes empresas agroindustriais que desenvolveram uma política de exploração econômica dos agricultores» (CONCRAB, 1999: 6), a discussão evoluiu a favor do cooperativismo, em termos que hoje diríamos serem os da economia solidária. Durante a Nova República (1985-89), multiplicaram-se associações nos assentamentos, estimulados pelos órgãos governamentais de extensão rural, especialmente a Emater. A aceitação do cooperativismo se dá gradualmente. Em 1988 foi organizado um «Manual de Cooperação Agrícola» do MST. Em 1989, o MST passa a tentar organizar a produção nos assentamentos através de Laboratórios Organizacionais, metodologia desenvolvida por Clodomir de Morais a partir da experiência das Ligas Camponesas e que visa a formação de cooperativas de produção autogestionárias. Criam-se ainda em 1989 as primeiras CPAs (Cooperativas de Produção Agropecuária) no Rio Grande do Sul: a COOPANOR e a COOPTIL. Nesta fase, a motivação para organizar a cooperação passa a ser econômica (acumular capital) e política (liberar quadros e procurar sustentar o MST) (CONCRAB, 1998: 31). Os documentos do próprio movimento registram que houve uma ruptura em 1989: Pela primeira vez formulam-se linhas políticas para a organização dos assentados e para a organização da produção. [...] Surge o desafio de fazer uma produção que envolvesse a subsistência e o mercado. O problema da produção passava a ser tão importante como ocupar. [...] Percebeu-se que os pequenos coletivos e as grandes associações não conseguiam fazer avançar a produção, ora porque eram muito pequenas, ora por não se guiarem por critérios econômicos (CONCRAB, 1998: 29). A política do MST em relação aos seus assentamentos se consolida em 1991/2 com a criação do Sistema Cooperativista dos Assentados, formado em cada assentamento por Cooperativas Agro Pecuárias, Cooperativas de Comercialização Regionais, Grupos Coletivos e Associações; em nível estadual, estabeleceram-se Cooperativas Centrais de Reforma Agrária e em nível nacional criou-se a CONCRAB (Confederação das Cooperativas de Reforma Agrária do Brasil Ltda.), em 15 de Maio de 1992, em Curitiba. As CPAs unificam os lotes de terra dos membros e trabalham o conjunto deles de acordo com um plano de produção. Sendo esta coletiva, a repartição do produto em natura e em dinheiro tinha de se orientar pela contribuição de cada um, avaliada de alguma maneira. Passou-se assim dum modelo bastante individualista, em que o pequeno agricultor tem toda a autonomia e se expõe a todos os riscos, para um modelo totalmente coletivista, em que cada cooperador participa num trabalho socializado, de acordo com uma divisão de trabalho previamente planejada. A CPA foi inspirada no modelo de Cuba, em que a cooperativa tinha pouca autonomia face ao Partido-Estado e se enquadrava no planejamento nacional. Em poucos anos ficou claro que, no Brasil, este tipo de cooperativa não era compatível com as aspirações da grande maioria dos assentados. Somente uma minoria politicamente convicta aderiu com entusiasmo às CPAs e persiste nelas. Já em 1993, o seu fracasso ficou evidente e começou a ser reconhecido. Em várias CPAs registraram-se conflitos seguidos de abandono por grande parte dos cooperadores. A CPA, não obstante a crise pela qual passa, se mostra, enquanto forma de organizar a economia nos assentamentos, superior à pequena propriedade: Nas CPAs, criaram-se creches, refeitórios coletivos, possibilitando a participação das mulheres na produção. [...] A integração com grandes agroindústrias, opção e condição de algumas cooperativas, possibilitou o acesso ao capital e ao conhecimento e qualificação da mão de obra dos agricultores. A capitalização das CPAs leva os assentados das CPAs estarem em média com renda maior que os individuais e a capitalização é em média 10% superior. O padrão de vida é superior na maioria dos lugares ao de muitas famílias que vivem empregadas na cidade, considerando a produção e renda monetária. É em média também superior aos posseiros, meeiros e até grande parcela de pequenos agricultores que ainda resistem no campo (CONCRAB, 1999: 24-25). As CPAs revelaram de início graves deficiências administrativas e técnicas, dada a pouca formação nestas matérias dos assentados. Para remediar esta carência, criou-se o Curso Técnico em Administração de Cooperativas, em Veranópolis (RS), tendo-se iniciado a primeira turma em Junho de 1993. Seis anos depois já tinham se formado 500 técnicos em cooperativismo, em nível de segundo grau. Tudo leva a crer que, com a paulatina incorporação destes técnicos nas cooperativas de produção e de comercialização, o desempenho administrativo e técnico deve estar melhorando. O fracasso das CPAs foi causado possivelmente porque a maioria dos assentados prefere a pequena produção de mercadorias, mesmo que ela resulte em menor padrão de vida e maior risco, dada a grande oscilação dos preços dos produtos agrícolas. Nas cooperativas que se formam a partir da crise de empresas industriais, os associados sempre trabalharam coletivamente sob o comando do capital, o que os deixou conscientes de que dividir o empreendimento em pequenas oficinas individuais seria pouco factível e uma receita segura de fracasso econômico. Além disso, não têm dificuldade de avaliar a contribuição de cada um ao produto e portanto de definir regras de repartição entre eles do rendimento obtido. A situação dos trabalhadores rurais é, neste sentido, completamente diferente. O trabalho agrícola é feito geralmente em pequenas unidades, mesmo quando se realiza sobre terra alheia, arrendada, cedida ou ocupada. São poucas, no agro brasileiro, as empresas agrícolas integradas análogas às fábricas. Além disso, cada assentado é dono dum lote individual que recebe do Incra. Portanto, a alternativa de trabalhar autonomamente é factível, além de ser o modelo «natural» no campo brasileiro. Não deve surpreender portanto que a primeira tentativa de implantar a economia solidária mediante a reforma agrária tenha fracassado em parte. Não obstante, o MST continua empenhado em desenvolver uma agricultura moderna nos assentamentos que conquistou e sabe que esta meta exige um grau avançado de cooperação entre os agricultores. Reconhecendo que a CPA não é desejada pela maioria dos assentados, o movimento fez um recuo tático: em vez de priorizar a CPA unicamente, ele passou a desenvolver outras formas de cooperação, como as cooperativas de comercialização, que preservam a individualidade do camponês, mas permitem organizar compras e vendas em comum, com palpáveis vantagens para todos em termos de preços. Além disso, estas cooperativas (apelidadas de CPSs: Cooperativas de Prestação de Serviços) ajudam a mecanizar a agricultura mediante a compra em comum de equipamentos caros como tratores, colheitadeiras e permitem o desenvolvimento de agro-indústrias . Mas o MST procura evitar que o assentamento se divida entre os que são associados de CPAs ou CPSs e os que trabalham isoladamente em seus lotes. O Sistema Cooperativista dos Assentados [SCA] pretende abranger todos os assentados, inclusive os individuais. Através dele, o MST procura dar aos assentamentos uma estruturação democrática, em que a economia solidária possa avançar na medida em que mais e mais assentados percebam que a cooperação vale a pena e oferece menos riscos que a atividade individual isolada. Para o MST o que importa é que todos os assentados participem de uma experiência de cooperação, rompendo assim com o isolamento. Pois a cooperação tem como objetivo principal o desenvolvimento da produção. Ela visa contribuir com o avanço da organização da produção em vista da melhoria da qualidade de vida das famílias assentadas. Uns podem apenas trocar dias de serviço. Outros podem comercializar em conjunto. Outros podem ter uma associação de máquinas. Outros podem ter alguma linha de produção em comum. Outros podem estar em grupos coletivos. Outros podem estar ligados a uma cooperativa. Outros estão em uma cooperativa totalmente coletiva (CONCRAB, 1998: 50). O contínuo de solidariedade, construído desta forma, é um modelo que o movimento popular poderá desenvolver nas cidades. Cada modalidade de cooperação combina em graus diferentes autonomia individual com trabalho coletivo e depende tanto da vontade dos membros como das características da produção. Na agricultura mesmo há ramos de produção como o cultivo de morangos ou a criação de pequenos animais em que o trabalho individual ou familiar tende a ser mais eficaz que o trabalho coletivo em grande escala, que por sua vez é provavelmente superior nas plantações de cereais altamente mecanizadas e quimificadas.
3.1. Abapan Três assentamentos diferentes foram estudados por Maria Antônia de Souza (1999): Abapan, Novo Paraíso e Santa Maria. O primeiro é o mais antigo, surgiu em 1985 e nele a posse da terra é totalmente individual. As famílias são provenientes do norte e do oeste do Paraná. O MST sugeriu que elas se organizassem por grupos da mesma procedência. Há três associações. O presidente de uma das associações nos relata que a segunda associação surgiu a partir de divergências no interior da primeira, pois os trabalhadores tinham objetivos diferentes, tanto em termos do tempo a ser destinado ao trabalho, quanto ao tipo de produto e o número de membros da família a se envolver nas atividades. Um outro grupo de pessoas que não estava organizado, tendo observado o trabalho das outras duas associações, decidiu formar uma terceira, onde o objetivo é sempre a venda de produtos em conjunto, assim como a elaboração de projetos para obtenção de créditos agrícolas (Souza, 1999: 140). Em Abapan, o trabalho é realizado pela família em seu lote individual, o que permite conservar a divisão tradicional de trabalho e de autoridade entre os sexos. A autoridade paterna tende a predominar. Mas, como pequenos agricultores autônomos, os assentados ficam inferiorizados na venda de seus produtos e impossibilitados de conseguir créditos e de adquirir equipamentos de maior porte e valor. Para superar estes óbices, procuram se associar, mas isso implica um preço: perda de autonomia, necessidade de coordenar o tempo de trabalho em tarefas comuns e que tipo de produto as famílias vão produzir, além de conciliar o trabalho de membros das famílias para a associação com o realizado em suas unidades individuais. As divergências a respeito destes assuntos levaram à cisão da primeira associação e o desejo de preservar alguma autonomia induziu à formação duma terceira. Cada associação tem em média 13 famílias, um número pequeno que debilita as vantagens da associação mas provavelmente exprime o máximo de renúncia à autonomia a que os assentados se dispõem. Finalmente, em 1997, doze anos após o início do assentamento, conseguiu-se reunir as associações na Cooperativa de Comercialização COTRAMIC, que pretende vender em conjunto a produção de todos os assentamentos do município de Castro, para alcançar melhores preços e menores despesas de transação por unidade. Só que por ocasião da pesquisa, «a cooperativa estava inativa devido a própria ação dos sócios, ‘que acabam esperando pelas decisões da direção [...] Não vêem que eles também podem decidir’» (Souza, 1999: 140). A explicação da inatividade talvez esteja no fato de que o estatuto da cooperativa prevê que cada sócio deve estar organizado em grupos com dez famílias, o que motiva/obriga os trabalhadores a se organizarem e a (re)elaborarem saberes do tipo prático [...], técnico (por exemplo o trabalho manual passa a ser realizado com maquinários, dentre eles o trator), familiar (por exemplo, num grupo, as decisões não são tomadas pelo ‘chefe’ da família, mas pelo grupo cujos membros devem entrar em acordo) (Souza, 1999: 142). Era muita mudança de uma vez só, sobretudo se proposta de cima para baixo e de fora para dentro. Na fundação da cooperativa estavam presentes, além dos associados de dois assentamentos, representantes do Partido dos Trabalhadores, vereadores e deputado estadual, sindicato de trabalhadores rurais de Castro e membros da direção estadual do MST. Discursaram representantes da Central Cooperativista dos Assentamentos, do MST e o agrônomo da região, que conduziu a assembléia. O primeiro enfatizou que «serão os ‘pequenos’ que irão dar direção à cooperativa». O agrônomo, entre outras considerações, achou que devia advertir que a cooperativa «não vai enriquecer ninguém, não vai melhorar se o grupo não quiser» (Souza, 1999: 141-142). A impressão que o relato dá é que a cooperativa é uma idéia dos assessores e apoiadores externos, que, com as melhores intenções, propõem a reorganização total do assentamento visando a avanços técnicos e econômicos. Só que a proposta ignora a enorme dificuldade das famílias assentadas de se associarem e empreenderem atividades em comum. O fato da cooperativa não ter saído do papel pode muito bem ser devido à resistência passiva dos principais interessados, que sem ousar discordar abertamente, resolveram «ficar esperando pelas decisões da direção». 3.2. Novo Paraíso O segundo assentamento estudado por Souza (1999) é o de Novo Paraíso, cuja área era grilada. Sabendo disso, o MST encaminhou uma carta ao assentamento Ouro Verde no município de Cantagalo, onde um grande número de famílias ocupava uma área demasiado pequena, convocando pessoas para a referida área irregular, que formava o imóvel Tigre. 15 famílias se deslocaram para lá e encontraram outras 27 famílias vindas de Inácio Martins e que já haviam formado a Cooproserp (Cooperativa de Produção e Serviços de Pitanga). A junção dos dois grupos resultou num total de 42 famílias associadas à cooperativa. Os desdobramentos deste passo inicial podem ser melhor acompanhados através do estudo desta cooperativa realizada por Raquel Sizanoski (1998). A cooperativa foi fundada em 24 de Agosto de 1989, mas o assentamento só foi oficializado em 1992 e neste intervalo não contou com linhas de crédito. Além disso, a Cooproserp foi a primeira cooperativa inteiramente coletiva, em que os lotes das famílias foram combinadas numa unidade única de produção. Não havia experiência anterior, os únicos conhecimentos de que dispunham os cooperadores sobre a operação duma cooperativa coletiva foram os adquiridos em Laboratório Organizacional de Campo, o método de capacitação criado por Clodomir de Moraes. O período entre 1989 e 1992 representou três anos de acampamento na área, vivendo sob condições precárias e com constantes ameaças de despejo, doenças e escassez de alimentos. Ainda em 1989, cinco famílias desistem da proposta de coletivização e abandonam o acampamento. [...] Em 1990, 18 famílias abandonam a proposta da COOPROSERP e se mudam para outro local, ainda dentro do mesmo assentamento e, em seguida, realizam a divisão de sua parte do assentamento em lotes individuais, organizando o trabalho a partir da unidade familiar (Sizanoski, 1998: 48). Em 1992, quando da oficialização do assentamento, representantes do MST e Instituto Ambiental do Paraná decidem que só poderiam permanecer na área aqueles que continuassem a experiência coletiva. Após esta delimitação, das 18 famílias que haviam optado pelo trabalho individual, quatro voltam para a COOPROSERP e as outras constituem a ASTROAGRI, que possui uma forma de organização mais simples, com maior autonomia dos assentados em relação à produção para o autoconsumo e um volume de investimentos menor que a COOPROSERP. [...] Por divergirem da coletivização, 16 famílias desistem do projeto. No final de 1992, 15 famílias permanecem na COOPROSERP e 11 se fixam na ASTROAGRI (Sizanoski, 1998: 49). As mudanças contudo não cessam. Em 1993, nove famílias abandonam a cooperativa, mudando para o assentamento de Nova Cantu, de onde vêm 10 famílias para a cooperativa. Em 1996, duas famílias deixam a cooperativa e se mudam para o Assentamento Araguaí. No ano seguinte, duas famílias entram na COOPROSERP. A autora observa a respeito: Estas famílias que se retiraram da cooperativa abriram mão de suas propriedades, ou seja, a propriedade individual, de cada família, após sua saída, fica em poder da cooperativa. [...] Por que estas famílias, depois de muito sacrifício, das lutas no MST, dos períodos de acampamento [...]decidem abandonar a cooperativa e deixar a terra que conquistaram ? O abandono da cooperativa constitui-se no problema central desta pesquisa (Sizanoski, 1998: 50). Convém observar de início que todas as famílias que saem da cooperativa recebem terras, seja no próprio assentamento Novo Paraíso, seja em outros assentamentos. O que mostra que o MST aceita que as famílias abandonem o primeiro experimento de cooperativismo coletivo, o que permite supor que para o próprio movimento esta modalidade de organização social não poderia ser imposta a todos assentados. Maria Antônia de Souza (1999: 144-145) observa em relação à ASTROGRI (Associação dos Trabalhadores Organizados na Agricultura) que ela resulta da recusa à coletivização: «fazem a tentativa de trabalho individual, onde não obtiveram resultados, sendo obrigados a novamente retomar o coletivo, na forma de associação». De uma forma geral, os depoimentos colhidos pelas duas pesquisas junto a assentados que permaneceram na cooperativa e junto aos que a deixaram deixam entrever três motivações principais para o abandono: 1. O magro retorno econômico a um esforço de investimento relativamente grande. Muitos depoimentos falam da frustração com o ganho insuficiente mas reconhecem o imediatismo dos que desistem, pois é preciso mais tempo para colher os frutos. 2. O descontentamento com a falta de incentivos aos que trabalham mais e produzem melhor. As retiradas são calculadas pelo número de horas trabalhadas, sem distinguir diferenças de esforço nem de resultado. Isso leva alguns a «amolecer o corpo» primeiro e depois optar pelo lote individual, onde esforço e produtividade não são compartilhados e nem os ganhos uniformizados pela média. 3. Insatisfação com o papel do trabalho familiar no coletivo: só adultos são sócios e ganham de modo que as famílias com filhos pequenos têm de sustentá-los à sua própria custa; além disso, o pai perde o seu poder de «chefe» da família e esta perde o poder de decidir sobre sua produção e seu trabalho. As condições de vida (presumivelmente em 1997, quando Raquel Sizanoski conduziu sua pesquisa) das famílias associadas à COPROSERP eram razoáveis. Pertenciam à cooperativa 16 famílias, 11 casais e 5 solteiros, com 26 crianças, 8 adolescentes e 29 adultos, num total de 63 pessoas. As moradias são organizadas em agrovila, onde cada família possui um lote individual de 12 x 30 m. Em alguns há hortas e pequenos animais, como galinhas e perus. A construção das casas assim como alguma melhoria ou reforma, é de responsabilidade do associado [...] As casas são todas de madeira, a maioria sem forro e algumas sem assoalho. Contam com energia elétrica e rede de esgoto, mas em apenas uma delas existe banheiro. A maioria das famílias tem televisão, rádio, geladeira e fogão a gás, embora o fogão a lenha seja mais utilizado; em apenas uma casa há antena parabólica e em duas chuveiro elétrico. Apesar de serem ainda rústicas, em geral as casas são limpas e bem arrumadas (Sizanoski, 1998: 51-52). Para as 16 crianças de até 6 anos há uma creche, dirigida por duas mães, que recebem um salário da prefeitura. As 10 crianças de 7 a 14 anos freqüentam uma escola municipal, perto da cooperativa, que atende também as crianças da ASTROAGRI. O posto de saúde mais próximo fica em Pitanga, a cerca de 30 km. Doenças corriqueiras são tratadas com plantas medicinais. «Todas as crianças são saudáveis e bem alimentadas» (Sizanoski, 1998: 51) Em 1997, a cooperativa distribuiu R$ 38.000,00 a seus sócios, o que dá em média cerca de um salário mínimo por mês. A pesquisadora apresenta como conclusão sua que fazendo algumas comparações externas, como por exemplo, entre favelados urbanos e esses assentados, podemos afirmar que sua condição de sobrevivência é superior as dos primeiros, pois se alimentam bem, têm casa, boa saúde, trabalho. Não possuem um padrão de vida ideal, mas estão muito distantes da miserabilidade das favelas (Sizanoski, 1998: 55). Maria Antônia de Souza apresenta avaliação idêntica: «Com relação ao funcionamento da cooperativa e aos avanços obtidos no assentamento, é notória a melhoria na qualidade de vida das famílias, da construção das casas, da infra-estrutura e dos setores de produção» (Souza, 1999: 145).
Formado por grupos excedentes de assentamentos no oeste e centro-oeste do Paraná, o assentamento de Santa Maria teve início em 1992, mas sua regularização final só ocorreu em 1994. É o mais recente dos três assentamentos estudados. As famílias já vieram ao assentamento com o propósito «de fundar uma cooperativa e trabalhar coletivo». A Copavi (Cooperativa de Produção Agropecuária Vitória) foi fundada por 25 famílias, que haviam sido arrendatárias. Por ocasião da pesquisa de Maria Antônia de Souza, havia 19 famílias, «sendo que 4 em processo de experiência - constitui uma espécie de estágio no coletivo, onde a família insere-se num setor de produção e na organização do assentamento como um todo, passando a conhecer as normas da cooperativa» (Souza, 1999: 148). Esta é uma prática nos assentamentos do MST: «Os lugares deixados pelas famílias desistentes são ocupados por outras famílias, que se interessam pelo coletivo e que passam por um ano de experiência no assentamento» (Souza, 1999: 146). O propósito dos cooperadores era tanto econômico quanto político. O regimento interno Copavi determina como seus objetivos ser uma cooperativa de produção, comercialização e industrialização em vistas de organizar o trabalho dos seus sócios, liberar mão de obra para contribuir ao MST e SCA, ser uma organização social de reivindicação e de luta em favor da reforma agrária e de interesse de seu quadro social, dar exemplo através dos resultados econômicos e social de que a reforma agrária dá certo; especialização da mão de obra, garantir a participação nas decisões, execução, controle e divisão das sobras através da gestão democrática (Souza, 1999: 149). A cooperativa pretendia se dedicar a pecuária, lavoura, horta e indústria. A atividade mais lucrativa é a horta, cuja produção é comercializada em Parancity e no município vizinho de Cruzeiro. Em volume, a maior produção é a do leite, que pretendiam industrializar. entretanto, chegaram à conclusão que ‘não sabiam fazer, por exemplo, pinga, trabalhar com os derivados do leite, etc.’ Por outro lado, agora que conseguiram uma qualidade na produção, esbarram no mercado, por exemplo, na questão da legalização do leite. [Um dos sócios] afirma que o leite deve ser o ‘carro chefe’ e que há muitos investimentos, por exemplo na área de suínos e de frangos, e pouco lucro, ou seja, os investimentos altos e o baixo retorno econômico ‘repercutem politicamente, pois começam a mostrar o que não deu certo’ (Souza, 1999: 149-150). A deficiência técnica, que parece ter sido geral nas CPAs, tornou-se um impedimento para a industrialização dos produtos agropecuários. É provável que a qualificação profissional da nova geração permita superar este problema. Mas, por enquanto, ressurge o «imediatismo», a impaciência com o retorno dos investimentos, que neste depoimento adquire conotação política: o ganho modesto pode dar a impressão que o experimento fracassou, o que seria grave para uma cooperativa que colocou entre seus objetivos «dar exemplo através dos resultados econômicos e social de que a reforma agrária dá certo». Desde a fundação até 1999, 10 das 25 famílias fundadoras deixaram a Copavi. Todos vieram com o objetivo e a certeza de que o coletivo seria a melhor maneira de organizar o assentamento. Entretanto, após 6 anos, cerca de 40% das famílias desistiram do coletivo, optando por formas individuais de trabalho e associativas no momento da comercialização e compra de equipamentos e insumos agrícolas (Souza, 1999: 150). Os motivos da desistência das famílias da proposta de constituir uma comunidade coletivista são basicamente os mesmos já vistos no caso de Novo Paraíso: «mentalidade das pessoas, convivência em grupos; retorno econômico; decisões, mas principalmente a questão do econômico» (Souza, 1999: 149). Uma maneira encontrada pelo MST para facilitar a integração das famílias no coletivo é sua organização em «núcleos de família», formados por vizinhos. A agrovila é formada por fileiras de casas, cada uma dando origem a um núcleo. Este desenvolve leituras, discute os problemas vivenciados, a prestação de contas, o planejamento das atividades. «Outro espaço para discussão é o restaurante coletivo. Durante o horário do café da manhã fazem se consultas às pessoas, encaminhamentos e informes». Estas modalidades de integração suprem as deficiências das assembléias, feitas mensalmente, pois, conforme afirma o presidente da cooperativa, «a participação das pessoas não é o que deveria ser, elas têm dificuldades para discutir, opinar» (Souza, 1999: 149). Esta parece ser uma dificuldade em muitos empreendimentos solidários, não só em cooperativas rurais do MST. Camponeses e operários são pessoas humildes, que se intimidam diante dum auditório maior e por isso raramente ou nunca falam em assembléias. Mas tentam manifestar seus pontos de vista através de companheiros mais desinibidos, com os quais confabulam em grupos menores. Daí a importância dos núcleos de família e da confabulação informal durante o café da manhã, no refeitório. Os três estudos de caso evidenciam as dificuldades de implantar formas avançadas de cooperação, nos assentamentos orientados pelo MST, tanto por questões culturais - a preferência da maioria dos assentados pela agricultura familiar, em moldes tradicionais - como por questões econômicas. As famílias se deixaram convencer da superioridade das cooperativas de produção pela sua maior facilidade em adquirir equipamentos e máquinas portadoras de tecnologia avançada. Esperavam que o «sacrifício» de seus recursos do Procera, cedidos ao fundo comum, resultasse em receitas abundantes, o que em nenhum dos dois casos - Cooproserpe e Copavi - aconteceu, ao menos nos primeiros anos de vida das cooperativas. A frustração destas expectativas talvez tenha sido o mais importante dos motivos para a desistência das famílias que optaram pela produção individual e comercialização associada. O I Censo da Reforma Agrária - 1997 mostra o predomínio nos assentamentos da produção individual: 93,96% contra apenas 1,21% de produção coletiva e 4,82% de forma mista (Souza, 1999: 150). Os estudos de caso dão uma idéia da dinâmica que levou a esta situação. O mesmo censo dá outra informação relevante: a origem social dos assentados. 66,13% eram agricultores ou camponeses, 5,67% trabalhadores rurais, «sendo o restante distribuído entre outras atividades rurais, boia-fria, motorista, mecânico, pedreiro e carpinteiro» (Souza, 1999: 152-153). Talvez as seguintes considerações da pesquisadora sirvam de conclusão: No interior do MST, a proposta de tais coletivos surge tendo como objetivo central a mudança da sociedade e do sistema capitalista. [...] No entanto, as formas idealizadas de coletivos (totalmente coletivos) não estão sendo reproduzidas nos assentamentos, enquanto que as associações de produção e de comercialização estão se proliferando. O interessante é questionar o porquê desta ocorrência e qual a influência do processo de socialização política vivenciada no momento do acampamento, pela maioria dos assentados. De um lado, conforme depoimentos dos assentados, estes sentem maior liberdade nos seus lotes individuais, embora saibam que, para sobreviver, no lote, é necessário estar agrupado. Por outro lado, destacam-se os fatores sociais e culturais, como influenciadores desta resistência ao coletivo. Por exemplo, enquanto no coletivo todos trabalham ‘igualmente’, sendo organizados em setores e coordenações de grupos, nos lotes individuais, quem orienta o trabalho e as ordens geralmente é o marido ou um filho mais velho ou ainda a esposa, em alguns casos. No coletivo, a divisão do trabalho e a repartição das sobras é semelhante ao que ocorre numa empresa e as normas de funcionamento são aplicadas de acordo com o previsto no regimento interno. Ou seja, os coletivos exigem uma ruptura sócio-cultural de um paradigma anterior de trabalho e de família. O ‘novo’ é tido como algo muito diferente do vivido anteriormente, principalmente para os ex-pequenos agricultores. Geralmente é bastante aceito entre os jovens, cujo interesse é trabalhar com maquinários e industrialização de produtos. [ênfase minha] (Souza, 1999: 163-164). A frase final sublinhada abre a perspectiva de que a aceitação do coletivo por parcela crescente dos assentados seja só uma questão de tempo.
4.1. A Cáritas A Cáritas Brasileira é uma instituição da Igreja Católica, sendo parte da rede de Cáritas Internacional. Ela tem por fim dar sustentação à ação social da Igreja e está orgânicamente ligada à CNBB [Conferência Nacional dos Bispos do Brasil]. Tem um secretariado nacional em Brasília, que coordena uma rede de Cáritas Diocesanas e Regionais. A Cáritas desenvolve suas atividades com fundos gerados no Brasil pela Campanha de Solidariedade, que é permanente, e com fundos doados pelas Cáritas e outras instituições confessionais do 1º Mundo voltadas para a cooperação internacional. Há que se distinguir nas ações da Cáritas três grandes ênfases [...]: a ênfase assistencial, a promocional e a da solidariedade libertadora. A ênfase assistencial data de 1956 [...] a Cáritas encarregou-se de articular as obras sociais de inspiração católica para promover a distribuição dos donativos e alimentos, especialmente o leite em pó americano. [...] A ênfase promocional tem início em 1966. As inquietações advindas das contradições do programa de distribuição de alimentos no contexto do regime militar instaurado resultam em processo de mudança [...] O lema ‘ensinar a pescar’ contrapunha-se ao ‘dar o peixe’, próprio da fase anterior. Experiências diversificadas de ações comunitárias do tipo das comunidades eclesiais de base, das associações de desenvolvimento comunitário, do cooperativismo, dão sustentação prática à reflexão sobre o desenvolvimento. [...] A ênfase à solidariedade libertadora, atual fase da Cáritas, privilegia um enfoque, um ponto de partida sobre o qual atua seja nas situações de emergência, seja no apoio às iniciativas comunitárias ou associativistas, seja no apoio às mobilizações populares [...] A premência para implementar ações através de projetos que respondessem às reais necessidades da comunidade levou à opção pela linha de apoio aos Projetos Alternativos Comunitários (PACs) como expressão de compromisso social com o povo e como uma demonstração visível de que os trabalhadores organizados e apoiados têm uma saída para suas condições de miséria (Bertucci, 1996: 60-62). Este relato sintetiza a imensa evolução da Igreja Católica duma ação meramente assistencial a uma postura de crítica ao capitalismo, com a proposição de que a solidariedade liberta. Ela implica numa tese ousada: a de que os trabalhadores, desde que se organizem e granjeiem apoio, podem por si só superar a miséria. Uma das implicações desta tese é que este apoio não tem de ser do Estado, pressuposto geral de todas as correntes de esquerda até então. A Cáritas passou a apoiar milhares de Projetos Alternativos Comunitários (PACs) por todo Brasil, desde 1984, contando com a ajuda da Cáritas Suiça, Miserior, Cebemo, Entraide e Fraternité e Cáritas Alemã. A estratégia de vida dos milhões de excluídos passou a ser considerada como ‘alternativa de sobrevivência’. Alternativos foram também os novos movimentos sociais que emergiram como forças sociais capazes de se confrontar com o autoritarismo presente. [...] Alternativos foram ainda os novos partidos políticos oriundos dos movimentos sociais. Como foram também alternativas as Comunidades Eclesiais de Base [...]. Aos excluídos cabia a busca de soluções para seus problemas de forma alternativa àqueles tradicionais tentadas até então. Nem o assistencialismo, nem o clientelismo, nem as soluções vindas de cima para baixo. Nesse contexto, nasce a proposta dos PACs, na busca de soluções criativas e autônomas para os problemas dos excluídos (Bertucci, 1996: 63). O sentido revolucionário emprestado à palavra «alternativo» testemunha a notável guinada da Igreja provocada pela opção preferencial pelos pobres, isto é, pelos não possuidores de meios de produção. A nova postura de início não tinha um programa claro de como os trabalhadores podem sair da miséria pelas suas próprias forças. Por isso ela convoca as próprias comunidades a encontrar as saídas, pela aplicação do antigo mas ainda hoje indispensável método de ensaio e erro, através duma vasta multiplicação de diferentes «experiências». Os PACs foram classificados em 4 categorias: «comunitários», subdivididos em produtivos e de prestação de serviços, de apoio a «movimentos populares», à «ação sindical» e projetos de «assistência e promoção social». Foram estudados 252 PACs implantados entre 1989 e 1992, que correspondem a 25% do total apoiado pela Cáritas, que estima-se ter sido até 1992 de aproximadamente mil. A metade dos PACs estudados eram comunitários, 82% deles de atividades de ocupação e renda. Isso significa que cerca de 100 dos 252 PACs eram associações ou cooperativas solidárias. Uma das conclusões do estudo é que os PACs tendem a ser cada vez mais projetos produtivos, desejados como meios de melhorar a renda de forma associativa. Grande parte deles é rural e coincide com a experiência do MST, vista acima. Dadas as dificuldades existentes, os projetos urbanos representam maior desafio. Estão voltados inteiramente para a realidade do mercado, devem superar as limitações tecnológicas, desenvolver metodologias de capacitação gerencial para o desenvolvimento de habilidades empreendedoras, criar economia de escala através de rede de pequenos produtores e de apoio à cadeia produtiva (Bertucci, 1996: 80). Esta conclusão deixa patente que um certo número de PACs produtivos urbanos vingou, inseriu-se na economia urbana e se volta ao mercado em busca de meios para se tornar competitivo, disputando compradores às empresas capitalistas comparáveis. É para isso que se sentem desafiados a se capacitar gerencialmente, criar economia de escala e assim por diante. A tese de que a solidariedade liberta começou a se comprovar na prática. Da grande variedade de experiências representadas pelas PACs, a que já em meados dos anos 90 revelou maior potencial libertador era dos projetos comunitários produtivos, tanto no campo como na cidade. No campo, boa quantidade dos PACs foram desenvolvidos em assentamentos do MST. Nas cidades, surgiram a partir da ação da Cáritas, cooperativas e grupos de produção associada que serviram para reinserir à produção pessoas socialmente excluídas e empobrecidas. Não espanta que, como escreveu Bertucci (em 1996), «mais recentemente os PACs passaram a ser sinônimos de projetos produtivos». Por ai se entende que, feita esta avaliação, os PACs produtivos tenham se multiplicado. Referindo-se apenas ao Rio Grande do Sul, Gaiger (1996: 271) diz: «Estima-se hoje [1999] que a Cáritas tenha promovido perto de 750 projetos comunitários, atingindo diretamente cerca de 17 mil pessoas» (1996: 269). E mais adiante: Os projetos alternativos, em sua maioria, são recentes na história da Cáritas - e do Estado, vale acrescentar - e denotam uma aproximação maior entre as pastorais sociais, organizações não governamentais e movimentos populares, fato que se deu no curso da última década e que foi penetrando lentamente nos diversos ambientes da Igreja Católica. De certo modo, como concepção e foco principal da ação, os últimos 15 anos desse trabalho assistiram a uma sucessão temporal entre os projetos assistenciais, de promoção humana e alternativos (1996: 271). 4.2. A Acção pela Cidadania Contra a Miséria e pela Vida O desenvolvimento de experiências de economia solidária sofreu forte aceleração em 1994, quando a Ação da Cidadania contra a Miséria e pela Vida [ACCMV] resolveu mudar sua tática e, em vez de apenas distribuir alimentos, passou também a fomentar a geração de trabalho e renda. Ela completou em dois anos a mesma evolução que a Cáritas havia feito em quinze, ao passar duma ação assistencial à «solidariedade libertadora». A atividade da Cáritas, apesar de sua amplitude territorial, era desconhecida do grande público, ficando de certo modo restrita à Igreja e às comunidades mobilizadas por ela. A ACCMV era um amplo movimento de massas, o maior do Brasil desde a luta pelas eleições diretas, em 1985, no ocaso da ditadura militar. É curioso notar que de sua Secretaria Executiva Nacional tomou parte a Cáritas (representando a CNBB), ao lado da OAB, da CUT, do INESC, COFECON e da ANDIFES, o que leva a crer que a atividade da Cáritas no campo da economia solidária tenha influído na guinada da Ação a favor dela. A mobilização lograda pela Ação foi desde o seu início muito grande. Em Agosto de 1993, estimava-se que a ACCMV contava com 200 comitês espalhados por todo país. Este número pulou para mais de 3.000 no mês de Outubro do mesmo ano. (...) A Campanha toma conta do Brasil: realizam-se espetáculos ao ar livre ou em estádios e ginásios, com grandes nomes da música popular, objetivando a arrecadação de alimentos para o Natal (Gohn, 1996: 33). A questão da geração de empregos foi uma bandeira acionada ainda em Novembro de 1993, durante reunião de Betinho com vários secretários da pasta do Trabalho para discutir o problema do desemprego no país. Também a Prefeitura Petista de Santos, naquele mês deu início a uma campanha de geração de empregos em sintonia com a Campanha. A opção pela questão do emprego foi estratégica. Ela visava, dum lado, responder às críticas ao assistencialismo associado à distribuição de cestas e, de outro, dar um sentido novo à mobilização, de forma que os comitês continuassem mobilizados após o Natal (Gohn, 1996: 34). Os resultados da opção pelo emprego por parte de Betinho e da Ação da Cidadania, ao que sabemos, não foram objeto de qualquer levantamento. Cumpre notar que a Campanha era naturalmente descentralizada e não há registro de tudo o que se fez por sua iniciativa. Mas, pelo menos uma ocorrência importante e prenhe de conseqüências pode ser destacada: a formação da Cooperativa de Manguinhos, no Rio de Janeiro. Nesta região, em que se localiza a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), moram 35 mil pessoas, parte das quais em 10 favelas formando o Complexo de Manguinhos. Estando a população favelada em grande parte desempregada, pobre e carente, o maior empregador dos jovens acabava sendo o narcotráfico. Em 1994, estourou a luta pelos pontos de tráfico de drogas e de armas e as balas perdidas dos tiroteios acabaram atingindo a Fiocruz, sobretudo a Escola Nacional de Saúde Público (ENSP), cujas janelas blindadas até hoje dão um mudo testemunho da ameaça à integridade física a que alunos e professores estavam expostos. Esta situação mobilizou os corpos docente e discente da ENSP, que decidiram abrir-se à comunidade, procurando entender o que ocorria e contribuir para o seu equacionamento. [...] Uma ampla reunião, reunindo cerca de 80 representantes das comunidades do Complexo de Manguinhos, selou um acordo de enfrentamento compartilhado da situação. [...] A primeira iniciativa implementada foi, então, o fomento à constituição de uma Cooperativa de Trabalho (denominada COOTRAM), no final de 1994, visando colaborar no enfrentamento do desemprego e da pobreza. [...] Participando desde o seu início do Comitê de Entidades no Combate à Fome e Pela Vida (COEP), a Fiocruz solicitou o apoio das entidades integrantes do movimento e recebeu o imediato suporte da Gerência de Cooperativismo do Banco do Brasil para desenvolver a capacitação em cooperativismo, o que foi realizado pelo Instituto Superior de Cooperativismo da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). É relevante se destacar como as condições materiais e de projeto social compartilhado pelas entidades componentes do COEP foram importantes para impulsionar a iniciativa da Fiocruz (Buss, 2000). A Cootram foi contratada pela Fiocruz, que reune uma quantidade ponderável de instituições de ensino, pesquisa e manufatura de vacinas, para reciclar o lixo e prestar serviços de jardinagem e limpeza dos prédios do campus de Manguinhos. Além disso, a Cootram também montou uma oficina de costureiras. A redução de gastos da Fiocruz com as atividades de limpeza e jardinagem foi de cerca de 15% e cada cooperativado passou a receber o dobro do que recebiam os trabalhadores contratados das antigas empresas privadas lucrativas prestadoras daqueles serviços. Tal resultado decorreu da subtração do lucro antes privatizado e sua apropriação pela empresa privada, mas de posse coletiva (a cooperativa) e pelo tomador dos serviços da mesma (a Fiocruz). [...] Iniciado com 200 integrantes, a Cootram fechou o ano de 1999 com cerca de 1.200 trabalhadores cooperativados, atuando em áreas de trabalho de baixa densidade tecnológica (...) e, de forma independente das relações com a Fiocruz, a produção de material de construção e as oficinas de corte e costura. [...] O material de construção produzido tem qualidade equivalente e preço significativamente mais baixo, sendo utilizado para a melhoria das habitações populares e da infra-estrutura urbana. Os recursos financeiros nascem e circulam na própria comunidade. Trata-se, segundo muitos analistas, de uma das mais exitosas experiências de cooperativas populares de trabalho do país (Buss, 2000: 120-128). O caso da Cooperativa de Trabalho de Manguinhos é emblemático sob vários aspectos. Em primeiro lugar, porque nasce duma iniciativa da Fiocruz enquanto integrante da Campanha contra a fome, exatamente quando esta prioriza a opção pela economia solidária como meio de combate à miséria. Em seus desdobramentos, a COEP continuará participando ativamente, como será visto a seguir. Em segundo lugar, o grande êxito da Cootram se deveu à abertura do mercado de serviços da Fiocruz. Tudo leva a crer que estes mesmos serviços já eram feitos pelos moradores das favelas, na condição de assalariados das empresas privadas prestadores dos mesmos. Mas, ao substituir a empresa capitalista pela solidária, a Fiocruz pôde fazer uma bela economia, enquanto os cooperadores tiveram o seu ganho dobrado. Não resta dúvida que na prestação de serviços de baixa densidade tecnológica, a cooperativa de trabalho, ao menos em Manguinhos, é mais competitiva do que qualquer empresa capitalista análoga. 4.3. Incubadoras de Cooperativas Em terceiro lugar, o processo de formação da Cootram envolveu pela primeira vez universidades, no caso a ENSP e a UFSM. Uma parte da elite científica e educacional do Brasil resolveu engajar-se para ajudar a construir a economia solidária. O passo seguinte foi padronizar esta ajuda na forma das Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares. A primeira ICTP foi criada, em 1995, na COPPE/UFRJ, o centro de pós-graduação de engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, mediante convênio da COPPE com a FINEP e a Fundação Banco do Brasil, sendo as duas últimas financiadoras da nova entidade. No segundo semestre de 1995, a Incubadora apoiou a implantação da Cootram, juntamente com a Fio Cruz e a Universidade Federal de Santa Maria. A partir de 1996, ela iniciou a formação de cooperativas na Baixada Fluminense e nas favelas cariocas. A Incubadora de Cooperativas Populares veio preencher uma lacuna vital no processo de formação de cooperativas e grupos de produção associada, iniciada pela Cáritas e expandida pela ACCMV: a de prestar assessoria contínua aos empreendimentos solidários, divulgando os princípios do cooperativismo entre grupos interessados, ajudando-os a organizar atividades produtivas ou a prestação de serviços, a apurar as técnicas empregadas, a legalizar as cooperativas, a buscar mercados e financiamento, etc. Além disso, a própria Universidade pode contratar cooperativas para a prestação de serviços de limpeza e congêneres, com proveito próprio além de viabilizá-las e melhorar o rendimento dos trabalhadores. A COPPE e em seguida outras unidades da UFRJ e o Hospital Pedro Ernesto da UERJ fizeram o isso (ITCP, s/d: 20-26). Uma vez reconhecido o sucesso da ITCP do Rio de Janeiro, as entidades patrocinadoras - FINEP, COEP (Comitê de Entidades Públicas no Combate à Fome e pela Vida), a Fundação Banco do Brasil e a COPPE - resolvem ampliar o número de incubadoras em universidades, lançando em 1998 o Programa Nacional de Incubadoras de Cooperativas (PRONINC). A FINEP e a Fundação Banco do Brasil se propõem através deste Programa a financiar a formação de mais cinco incubadoras. Naquele momento já estava formada uma incubadora na Universidade Federal do Ceará, de modo que o apoio destas entidades se estenderia a mais quatro novas incubadoras, criadas nas Universidades Federal de Juiz de Fora, Federal Rural de Pernambuco, Estadual da Bahia e de S. Paulo. As novas incubadoras recebem sua formação tecnológica inicial da do Rio de Janeiro. As equipes, formadas por professores, técnicos e estudantes de graduação e pós-graduação, organizam seminários conduzidos por Gonçalo Guimarães e colegas daquela incubadora, onde a filosofia da incubação e os princípios do cooperativismo popular (idênticos aos da economia solidária) são transmitidos e discutidos. Mas o número de universidades interessadas em criar incubadoras ultrapassa o fixado pelo PRONINC. Assim, surgem novas incubadoras nos últimos dois anos nas Universidades Federal do Paraná, de Santa Catarina, do Pará, do Amazonas, Regional de Blumenau (SC), do Vale do Rio dos Sinos (RS), Católica de Pelotas (RS), Fundação São João del Rei (MG), Fundação Santo André (SP), Ponta Grossa (PR), Londrina (PR) e Maringá (PR). As Incubadoras Universitárias decidem integrar uma rede para a troca de experiências e a ajuda mútua tendo em vista estabelecer em cada universidade não só um centro de extensão (em que se enquadra a incubação) mas também de ensino e pesquisa. O ensino é necessário para formar quadros para as próprias cooperativas e para entidades de apoio à economia solidária que continuam se multiplicando, como veremos adiante. A pesquisa é indispensável para se conhecer a realidade da economia solidária no Brasil e também no exterior, de modo a sistematizar a análise e avaliação das experiências para gerar proposições teóricas que sirvam para tornar a economia solidária mais autêntica e mais efetiva. A rede de incubadoras, formada em 1999, decide aceitar o convite da Fundação Unitrabalho de se integrar a ela como um dos seus programas permanentes. À Unitrabalho estão filiadas mais de 80 universidades de todo o Brasil, sendo sua finalidade colocar os serviços das universidades à disposição dos trabalhadores e suas organizações de classe. Todas as universidades que têm incubadoras estão na Unitrabalho e muitas outras filiadas estão interessadas em criar suas incubadoras. A expansão da rede de incubadoras universitárias se dá na mesma medida em que empreendimentos solidários vão se multiplicando por todas as partes do Brasil.
5. Os sindicatos assumem a economia solidária Atingidos frontalmente pela crise do mundo do trabalho, que varre o país na década dos 90, os sindicatos começam a reagir pontualmente, já que sua prioridade inicial era proteger os direitos trabalhistas, ameaçados de revogação ou «flexibilização» pelo governo Collor e seus sucessores. Em todos casos de transformação de empresas falidas ou em vias de falir em autogestões, o sindicato teve de assumir a liderança do processo, freqüentemente ao lado da ANTEAG. O êxito de diversas cooperativas formadas assim, possibilitando a preservação de numerosos postos de trabalho, levou cada vez mais sindicatos a se empenharem na luta pela criação de novas empresas solidárias. Mas, o apoio a cooperativas autogestionárias formadas por ex-assalariados sofreu resistência de sindicalistas, que identificavam o processo com a terciarização da mão-de-obra, que se realizava cada vez mais mediante a formação de pseudo cooperativas, com a única finalidade de roubar dos trabalhadores os seus direitos trabalhistas. Como esta identificação (de cooperativas autênticas com as falsas) é absurda, a questão pôde ser esclarecida através do melhor conhecimento da natureza das cooperativas autênticas. Surgiu, no entanto, uma outra oposição à economia solidária, de natureza ideológica, que apontava a necessidade de reforçar o trabalho assalariado por ser a base social dos sindicatos e porque só a classe operária assalariada teria por missão histórica derrubar o capitalismo e instaurar o socialismo. As cooperativas eliminariam o caráter de classe dos trabalhadores, tornando-os patrões e operários ao mesmo tempo. Também esta argumentação se baseia na ignorância do que é a economia solidária. As cooperativas de produção e de trabalho são chamadas de «operária» - «worker cooperatives» - por causa de sua ligação orgânica ao movimento operário. A ANTEAG, a UNISOL e o MST não são menos operários e socialistas do que os sindicatos mais militantes. Além disso, os membros do sindicato que formam cooperativas operárias devem continuar a pertencer ao sindicato, que deveria abrir suas portas a todos os trabalhadores que não exploram trabalho alheio e queiram se filiar. O fato de no Brasil a lei definir o sindicato como representante de trabalhadores assalariados não deveria ser impedimento para que sindicatos ampliem sua abrangência, passando a representar o conjunto dos que dependem de seu próprio trabalho para subsistir. A discussão sobre a economia solidária avançou, como visto acima, nos sindicatos do ABC paulista e também na CUT, a maior e mais combativa central sindical do Brasil. No final de 1998, a executiva nacional da CUT aprovou a criação dum grupo de trabalho que iria iniciar as discussões sobre a política da CUT para a economia solidária. Deste GT foi elaborado um projeto que está sendo desenvolvido em parceria com a Organização Intereclesiástica para a Cooperação e o Desenvolvimento (ICCO) da Holanda, a Fundação Unitrabalho e o Departamento Intersindical de Estudos Sócioeconômicos (DIEESE). Assim foi construído o Projeto de Desenvolvimento Solidário da CUT. Em linhas gerais, este projeto desencadeou um processo de discussões em todo o país, culminando em 1999 com um seminário internacional, cujo objetivo principal foi debater e lançar a Agência de Desenvolvimento Solidário da CUT (Magalhães e Todeschini, 2000: 138). Isso não quer dizer que a resistência à economia solidária no seio da CUT tenha cessado, mas a maioria tem se manifestado consistentemente a favor duma atuação cada vez maior da central no apoio aos empreendimentos solidários que trabalhadores vêm criando pelo Brasil afora. A ADS (Agência de Desenvolvimento Solidário) vem se dedicando a preencher uma lacuna que é a falta dum sistema de financiamento às cooperativas autogestionárias. Em colaboração com o Rabobank, um grande banco holandês possuído e controlado por cooperativas de crédito, e o BNDES, a ADS desenvolveu um projeto de rede de crédito solidário, formado por numerosas cooperativas de crédito e por um banco cooperativo, com fôlego para financiar investimentos de vulto por parte de cooperativas de produção. A realização deste projeto representará um imenso salto de qualidade no desenvolvimento da economia solidária em nosso país. Vale a pena registrar o surgimento duma rede de cooperativas de crédito no sul, o sistema Cresol, que veio a atender a necessidade de fontes próprias de financiamento dos agricultores familiares do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. As cooperativas de crédito do sistema tradicional são todas ligadas a cooperativas agrícolas dominadas em geral pelo capital. As Cresol são independentes, autogestionárias. Os princípios e objetivos orientadores das Cresol são: interação solidária, democratização e ampliação do acesso ao crédito e aos serviços bancários pelos agricultores familiares, descentralização e horizontalização, profissionalização do crédito, transparência e contribuição para o desenvolvimento sustentável (social, econômico e ambiental). [...] Em Dezembro de 1999, ao completar quatro anos de funcionamento, o Sistema Cresol era formado por 28 cooperativas [...] além de mais duas da Cresol esperando liberação pelo Banco Central. Está presente diretamente em mais de cem municípios [...]. O número de associados chega a 10.500 famílias de agricultores. [...] As cooperativas são criadas e compostas por agricultores familiares, sendo fortalecida por sindicatos, associações e outras formas de organização dos agricultores familiares da região onde atuam (Bittencourt, 2000: 197-199).
6. Conclusões Este balanço já nasce desatualizado, pois se baseia em dados de há um ou dois anos atrás. A economia solidária se desenvolve tão rapidamente no Brasil, que qualquer balanço tem de ser considerado provisório. O que impulsiona este desenvolvimento não é mais apenas o agravamento do desemprego em massa e da exclusão social. Este foi muito provavelmente o principal fator nos anos 80 e início dos 90, quando a Cáritas e alguns sindicatos começaram a apoiar sistematicamente os esforços de trabalhadores e famílias marginalizadas de se libertar da pobreza através da solidariedade. Depois surgiram a ANTEAG, a Campanha contra a Fome, as Incubadoras de Cooperativas Populares, a Agência de Desenvolvimento Solidário. Faltaria referir ainda a formação dos Fóruns Estaduais de Cooperativas, no Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo, o crescente desenvolvimento de cursos de diferentes formatos de economia solidária e assim por diante. O que impele a economia solidária a se difundir com força cada vez maior já não é mais a demanda das vítimas da crise mas a expansão do conhecimento do que é e a tecnologia social, econômica e jurídica de implementação da economia solidária. Centenas de iniciativas, que tendiam antes a ficar isoladas e por isso debilitadas, a partir dos últimos anos passam a receber a atenção e o apoio de instituições especializadas como a ANTEAG, MST, Incubadoras, Unisol, ADS e Cáritas, entre outras. O que este breve relato deixou claro é que a economia solidária já firmou sua identidade e por causa disso está em condições de se estruturar, em nível local, regional e nacional. A construção dum modo de produção alternativo ao capitalismo no Brasil ainda está no começo, mas passos cruciais já foram dados, etapas vitais foram vencidas. Suas dimensões ainda são modestas diante do tamanho do país e de sua população. Mesmo assim, não há como olvidar que dezenas de milhares já se libertaram pela solidariedade. O resgate da dignidade humana, do auto-respeito e da cidadania destas mulheres e destes homens já justifica todo esforço investido na economia solidária. É por isso que ela desperta entusiasmo.
Bibliografia
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