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Heinz Klug Comunidade, propriedade e garantias na África do Sul rural: oportunidades emancipatórias ou estratégias de sobrevivência marginalizadas? (texto não editado)
Introdução Para uma grande parte da humanidade, a oportunidade de produzir depende da sua capacidade de conseguir acesso à terra. Apesar da urbanização e dos imperativos da economia de mercado é a capacidade de cultivar pelo menos uma pequena quantidade de géneros - milho, feijão, arroz - como suplemento de outras formas de rendimento, como salários, subsídios ou pensões, o que, para inúmeras famílias, marca a diferença entre a capacidade de manterem uma parca subsistência ou a sua lenta desintegração. Qualquer projecto que procure reinventar a emancipação social, especialmente através da busca de formas alternativas de produção, tem que abordar esta realidade. Confrontados com o sub-emprego crónico e com as vastas desigualdades na posse da terra, os activistas e os políticos de muitas regiões do mundo viraram-se, ao longo do século XX, para a reforma agrária. Apesar das enormes dificuldades políticas e institucionais, a reforma agrária e a sua promessa de tornar seguro o acesso a um dos recursos de produção primários constitui ainda uma parte importante de qualquer agenda progressista fora dos países mais desenvolvidos. Mas, mesmo nestes, os padrões de discriminação e de insegurança na posse da terra são ainda elementos centrais nas vidas de comunidades profundamente empobrecidas. Após sete anos de governo democrático, o debate em torno do programa de reforma agrária na África do Sul é frequentemente reduzido a uma discussão sobre se o copo está meio cheio ou meio vazio (DLA, 1998 e Cliffe, 2000: 273-286). Embora a promessa contida no manifesto eleitoral do Congresso Nacional Africano (ANC) de 1994 - a transferência de 30% da terra - não tenha sido cumprida nos primeiros cinco anos do governo, milhares de famílias e indivíduos pertencentes aos sectores mais marginalizados da sociedade beneficiaram da nova estratégia tripla de reforma agrária elaborada pelo governo: restituição da terra, redistribuição da terra e reforma do direito de posse da terra. Mais de 12.000 agregados familiares receberam acima de 266.000 hectares de terra ao abrigo do programa de restituição (Brand, 2000), enquanto que quase um quarto de milhão de pessoas envolvidas em 279 projectos receberam terra através do programa de redistribuição (Hanekom, 1998). No entanto, no ano 2000, com o abandono, por parte do governo, da sua proposta de Lei dos Direitos sobre a Terra, bem como com outras alterações na política, tornou-se claro que o programa estava a vacilar, particularmente na área da reforma do regime de posse da terra (Mayende, 2001), a qual prometia segurança no direito de posse da terra aos milhões que viviam nas zonas mais empobrecidas e subdesenvolvidas do país - os antigos «bantustões» negros. Mesmo que continue a ser tristemente verdade que o mais nítido indicador de pobreza na África do Sul da viragem do milénio fosse o ser-se negro, mulher e habitante de uma área rural, o programa de reforma agrária deu origem a algumas oportunidades interessantes para a criação de vias alternativas para a produção e construção de comunidades viáveis. Apesar de uma anunciada mudança política, na qual o governo decidiu contemplar os produtores agricultores negros, em vez das comunidades rurais empobrecidas, como beneficiários de uma reforma agrária contínua (Karouik, 2000), a luta pelo acesso à terra tem persistido, forçando o governo a prometer uma reforma ainda mais ampla e rápida (Mbeki, 2001). Este estudo irá centrar-se no conflito em torno da dimensão política e institucional destas reformas, em particular sobre a criação de uma forma legal para o reconhecimento da propriedade comunal que simultaneamente garanta os direitos de propriedade dos participantes e exija que os membros desta nova instituição detentora da propriedade adopte formas de governação internas que sejam, por um lado, democráticas em termos de procedimentos e, por outro, baseadas nas noções formais de igualdade social e de sexo.
1. A opressão da pobreza estrutural Um dos maiores desafios na avaliação destas alternativas e do seu potencial emancipatório é clarificar a natureza do objectivo emancipatório em consideração. Dados os fracassos de um século de desenvolvimento capitalista em África, e em particular na África do Sul rural, quero, neste contexto, restringir o objectivo de emancipação à simples libertação relativamente à opressão da pobreza estrutural. Partindo deste ponto de vista, a dependência, ou a falta de autonomia e de auto-determinação no seu sentido mais amplo, é a característica central da opressão sob condições de democracia formal. Assim, em vez de se centrar somente na natureza do processo de produção, este estudo tem como objectivo considerar o potencial de uma concepção ampla de emancipação relativamente à dependência social, económica e política enquanto alternativa aos sistemas actuais de produção na África do Sul rural. Isto, no mínimo, pode implicar uma série de liberdades simples: poder trabalhar sem coerção; estar liberto da fome e doença regulares; e poder participar na tomada de decisões que têm um impacto directo sobre a vida das pessoas e da comunidade. No máximo, isto poderia fornecer, potencialmente, um espaço onde as comunidades se poderiam lançar no mercado com uma posição de relativa auto-suficiência, simultaneamente confrontando algumas das questões internas de sexo e de autoridade que limitam as possibilidades de uma emancipação interna, intra-comunitária ou individual. Apesar dos acordos de posse de terras e dos estatutos das comunidades revelarem uma grande variação, desde os anteriores bantustões ou áreas comunais até às quintas comerciais e empresariais, em zonas climáticas e agrícolas muito diferenciadas, as possibilidades de escolha para a grande maioria dos beneficiários da reforma agrária mantêm-se extremamente reduzidas. Para a larga maioria de sul-africanos rurais, a oportunidade imediata é obterem alguma forma de segurança no direito de posse e, assim, esperarem aceder a uma quantidade de terra suficiente para poderem adoptar uma estratégia exequível com diferentes patamares, de produção agrícola, de criação de animais e de emprego não-agrícola, de modo a assegurarem o seu sustento e a reerguerem-se gradualmente, após a destruição e rejeição que caracterizaram o apartheid que se seguiu a um século de expropriação colonial.
2. Desenvolvimento, propriedade e formas alternativas para a posse da terra Mesmo o acesso à terra pode não ser suficiente. Baseando-se no seu estudo acerca da produção de meios de subsistência e classe social em KwaZulu-Natal, Michael Carter e Julian May concluem que, entre outras limitações como sejam o regresso limitado ao trabalho não qualificado e o esforço de procurar água e combustíveis, encontram-se «restrições financeiras que limitam a capacidade de os pobres utilizarem eficazmente os recursos produtivos e as doações (por exemplo, a terra) que realmente possuem» (Carter e May, 1999: 16). Estes autores sugerem que uma estratégia política eficaz seria a busca de formas de levantar «os constrangimentos que limitam a eficácia com a qual os pobres das zonas rurais conseguem utilizar os bens e doações limitados que possuem», através da promoção de instituições financeiras locais de micro-crédito e do fornecimento de serviços essenciais, em especial a água e a energia (1999: 16). As implicações para a reforma agrária são claras: para além de facultar o acesso ao recurso básico, a terra, existe uma necessidade de promover pelo menos um grau mínimo de desenvolvimento rural que permita às famílias e comunidades pobres empregarem quaisquer novos recursos a que ganhem acesso. O desenvolvimento rural é ainda um dos maiores desafios que se coloca à África do Sul e o perigo de grandes sectores da sociedade «poderem ficar presos numa armadilha estrutural de pobreza crónica» (Carter e May, 2000) é mais do que mero pessimismo. É neste contexto que o debate em torno da reforma agrária e do direito de posse, incluindo o debate entre a propriedade comunal e a propriedade privada, permanece no centro das discussões acerca dos meios, mecanismos e instituições necessários à promoção do desenvolvimento rural. Apesar da relação entre as áreas rurais «negras» empobrecidas e as metrópoles urbanas «brancas» altamente desenvolvidas ter sido analisada, de há muito tempo a esta parte, em termos do papel que as áreas rurais desempenham como reservas de trabalho e no apoio à reprodução da força de trabalho, o papel da posse comunitária da terra e da estrutura de governação (seja ela a autoridade tradicional ou o governo local democrático) nestas áreas aparece agora como questão central na reflexão sobre o futuro. Embora a origem do subdesenvolvimento de África permaneça polémica, as recentes tentativas de promoção do desenvolvimento têm-se centrado na questão dos direitos de propriedade privada. As instituições económicas internacionais, tais como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, não só têm enfatizado a privatização dos bens estatais, como têm crescentemente transferido o seu enfoque para o futuro do regime de posse da terra, quer através da garantia dos direitos de propriedade existentes, quer através da divisão e privatização dos bens comuns africanos — «de modo a promover o investimento do capital e a encorajar uma produtividade mais elevada» (Krueckberg, 1999: 105). Paralelamente, contudo, estudos acerca dos esquemas de registos e títulos indicaram que enquanto que «a concessão de títulos pelo Estado é importante para os futuros investidores» que, sob os sistemas indígenas, não têm exigências de terra legítimas, «as inspecções e concessões de títulos são geralmente um meio através do qual as elites e os grupos étnicos dominantes despojam os criadores de gado e outros utilizadores não-intensivos ou sazonais dos recursos de que, no entanto, necessitam» (Bruce et al, 1994: 260). Em resposta, os críticos da privatização viraram-se frequentemente para a ideia de um regime de posse comunal como sendo o legado histórico da África pré-colonial e uma alternativa possível à propriedade privada. No entanto, já não é possível confiar apenas nas regras de posse da terra consuetudinárias ou tradicionais, presumindo que «as sociedades pré-industriais devem a sua coesão a valores livremente aceites e igualmente partilhados» (Hopkins, 1973: 27). Um tal romantismo «falha na compreensão de que a solidariedade pode ser resultado da obrigatoriedade» (idem). Para além disso, a noção de que o simples reconhecimento das formas de posse da terra indígenas irá reflectir as exigências e as necessidades das comunidades rurais não consegue reconhecer o impacto do colonialismo sobre a própria elaboração da lei consuetudinária. Esta situação, por sua vez, levanta a questão do papel das «autoridades tradicionais» nas sociedades pós-coloniais, particularmente à luz do reconhecimento simultâneo, em muitas constituições pós-coloniais, de autoridades tradicionais, do direito indígena e de vários princípios universais de igualdade e de participação democrática. Na África do Sul, o reconhecimento do direito indígena nas Constituições do pós-apartheid leva a um confronto entre estas diferentes concepções, particularmente no contexto do regime de posse da terra «indígena». Por forma a responder à exigência dos habitantes das zonas rurais relativamente a formas colectivas de propriedade da terra, o governo vê-se confrontado com a dificuldade de desentrelaçar os direitos indígenas sobre a terra do legado colonial de administração indirecta, de acordo com o qual a soberania política e a propriedade da terra se encontravam interligadas (Klug, 1995 e Mamdami, 1996). O resultado deste entrelaçamento colonial de soberania com direitos da terra foi o aprisionamento dos direitos de propriedade dos indivíduos, grupos familiares e comunidades vivendo sob sistemas comunitários de posse da terra num modelo administrativo de direito consuetudinário (Chanock, 1991: 76). A administração indirecta estabelece a atribuição de pequenos lotes de terra no seio de uma comunidade como um «acto administrativo oficial» dos líderes tradicionais (Bennett, 1995: 133). Tal veio impor um sistema de apadrinhamento e dependência política simultaneamente minando a governação comunitária e reformulando o papel das autoridades tradicionais no processo político. Depois de as autoridades coloniais terem construído uma visão dos direitos de posse da terra africanos em termos do «direito consuetudinário», segundo a qual os direitos mais importantes - a distribuição, a alienação e a reaquisição - eram atribuídos exclusivamente à autoridade política, na pessoa do chefe, foi pequeno o passo até à declaração de que a perda dos poderes de soberania deste para a autoridade colonial fazia com que os direitos à terra africana ficassem sujeitos à autoridade administrativa. O colapso dos direitos de propriedade para o domínio da autoridade superior teve consequências igualmente debilitantes para os direitos políticos dos Africanos. Baseada nas práticas da «administração indirecta», defendida pela primeira vez por Theophilus Shepstone e modificada por Lord Lugard, a «preservação» de «terras nativas e de autoridades tradicionais» converteu-se na justificação para a exclusão dos Africanos de uma participação política mais ampla (Ashforth, 1990: 35-37). Estas consequências políticas levam Martin Chanock a concluir que precisamos pensar acerca dos direitos sobre a terra «como sendo centrais à natureza da política africana moderna», bem como ao papel e o domínio do direito nos Estados africanos. Em resultado, estes importantes direitos económicos e, em última instância, políticos, permanecem inseguros dado estarem subordinados a um regime administrativo que não garante aos proprietários de terras quaisquer direitos face ao Estado (Chanock, 1991: 82). Este resultado histórico levanta questões sérias acerca do reconhecimento do direito indígena da terra no contexto pós-apartheid. Para sustentar o espírito da nova constituição e, simultaneamente, revitalizar o direito indígena, o novo Estado tem que assegurar que as comunidades e indivíduos que desejem continuar a possuir terra no quadro de uma ética indígena da terra possam determinar os contornos dessa forma de posse sem interferência administrativa baseada nas noções colonialmente construídas acerca do conteúdo da posse indígena da terra. As comunidades podem então re-injectar na posse indígena práticas e normas comunitárias, em vez de ficarem dependentes de autorizações administrativas. Este processo contém o potencial de libertar os conceitos e as regras legais «consuetudinários» das suas amarras coloniais e de colocar noções legais formais de posse indígena, a par com as mais recentes interpretações em ciências sociais. São de particular importância os trabalhos recentes em história e antropologia jurídica (Maddock, 1996) a enfatizam até que ponto o quadro legal da «posse consuetudinária» é moldado pela sua construção num contexto dominado por noções legais particulares, e culturalmente específicas, de propriedade e de posse, e o modo como os imperativos coloniais moldaram o conteúdo particular atribuído à posse consuetudinária (Berry, 1993; Mann e Roberts, 1991).
3. Reforma da posse e a criação de um espaço institucional contestado Quando a Communal Property Association Act foi introduzida, foi proclamada como «a legislação mais progressista formulada pelo governo até à data», uma vez que «envia uma mensagem clara às organizações não-governamentais, às autoridades locais, para-estatais e à sociedade em geral sobre aquilo que o governo entende pelo conceito de controle democrático» (Streek, 1996). Embora a Lei CPA fosse adoptada para lidar com uma série de dificuldades associadas à restituição e redistribuição de terras, a sua adopção na elaboração da constituição, enquanto meio de resolução destes problemas, reflecte o poder do paradigma constitucionalista na nova África do Sul. Esta lei requer que os beneficiários quer de reclamações de terra colectiva, quer de programas governamentais de reforma agrária escolham uma «estrutura constitucional» através da qual se possam constituir enquanto comunidade e possuir e controlar colectivamente o seu recurso primário — a terra. Entre as dificuldades imediatas levantadas pelos diferentes programas para a devolução e redistribuição de terras, estava a questão de saber como os beneficiários destes programas seriam identificados e como possuiriam legalmente a terra que recebessem. Embora tenha sido feito um apelo à nacionalização da terra, cedo desacreditado durante a transição democrática, houve uma pressão inicial por parte do antigo regime durante a transição — que se reflectiu na aprovação da Lei de Actualização dos Direitos de Posse — para salientar a livre titularidade individual como a opção preferível (Cross e Haines, 1988). Todavia, o reconhecimento de que os requerentes rurais continuaram a buscar alguma forma de controle ou posse comunitária voltou a chamar a atenção para as formas «tradicionais» ou «consuetudinárias» de posse da terra que permanecem, de algum modo, tanto a prática quanto a aspiração de muitas comunidades africanas (Small e Winkler, 1992; Cross, 1992). Porém, as dificuldades são enormes. A adopção de formas «consuetudinárias» de posse da terra coloca questões sobre a natureza e as fontes da «lei consuetudinária», incluindo o papel dos chefes e o estatuto das mulheres e dos comuns em tais comunidades (Holomisa, 2000). Apesar de a natureza exacta da posse «tradicional» ou «indígena» ser posta em dúvida pela romantização de alguns e por questões acerca da sua manipulação durante o período colonial, a possibilidade de fornecer um mecanismo processual para a criação de formas comunitárias de posse parecia, à primeira vista, satisfazer quer os admiradores da tradição, quer aqueles que estão empenhados na participação democrática. Apesar de os que lutaram pelo reconhecimento dos direitos de propriedade na Constituição Sul Africana poderem ter concebido estes direitos em termos universais enquanto, primeiro que tudo, direitos individuais para proteger os indivíduos de um Estado predatório, a cláusula final acerca da proprieade refere-se explicitamente aos direitos das comunidades sobre a terra, reconhecendo assim os direitos de propriedade comunal como uma forma de propriedade constitucionalmente legítima. Quando lida à luz do reconhecimento do direito consuetudinário e dos líderes tradicionais, por parte da Constituição, a perspectiva da posse da terra comunal e a sua ligação a formas de governação «tradicional» cria um contexto particular no seio do qual são imediatamente trazidos à baila conflitos em torno da definição de comunidade e da governação local. Tal como indicam as discussões acerca dos poderes do chefe sobre a terra, existe um leque bastante amplo de opiniões sobre dos tipos, extensão e natureza do poder do chefe sobre a terra ao abrigo do direito consuetudinário; no entanto, a relação entre governação e terra é afirmada claramente (Kerr, 1990: 29-43). Simultaneamente, a promessa de restituição por parte da Constituição, incluindo a devolução de terra a comunidades despojadas, veio imediatamente levantar o problema da identificação - a quem é atribuído o controlo sobre estas terras e quem deve ter o poder de tomar decisões acerca do seu uso e desenvolvimento futuros. Dada a existência de um contexto em que muitos agregados familiares são, na prática, chefiados por mulheres, esta revela-se uma questão muito delicada. Embora a luta anti-apartheid se tenha fundado em reivindicações de democracia e igualdade - de igualdade racial, em particular - o relativo sucesso da exigência de igualdade de sexo não foi de todo previsto. Apesar de muitos movimentos anticoloniais terem adoptado um papel igual para as mulheres durante as suas lutas, em muitos casos, o Estado pós-colonial ou falhou em manter esta promessa, ou reafirmou activamente noções mais particularistas das relações entre os sexos no período pós-independência. Foi esta preocupação que levou mulheres Sul Africanas de todos os quadrantes do espectro político a unir-se na multipartidária «Women’s National Coalition». Enquanto que este corpo fornecia uma base para a afirmação e relativo sucesso das reivindicações quanto ao sexo na elaboração da Constituição provisória de 1993, a «Liga das Mulheres do ANC», ao levar a cabo um «sit-in» no local das negociações, fez valer a exigência de que em cada delegação presente nas negociações um dos dois representantes do concelho de negociação fosse uma mulher. Em consequência, a África do Sul representa o primeiro caso em que o corpo de elaboração da Constituição foi formalmente constituído por um igual número de homens e mulheres. Ao mesmo tempo, a «Liga das Mulheres» continuou a exercer pressão no sentido de ganhar uma maior participação no seio do ANC, obtendo uma recomendação do comité nacional de trabalho do ANC no sentido de um terço de todos os candidatos do ANC às eleições de Abril de 1994 serem mulheres (Saturday Star, 16 de Outubro de 1993: 6). Estas vitórias não foram uni-lineares. Apesar destes avanços numa sociedade, em todos os outros aspectos, profundamente sexista, e apesar do efeito encantatório no nível popular da visão do movimento democrático de uma África do Sul «não-racial e não-sexista», as mulheres com participação activa no processo de negociação tiveram que se defender de um desafio directo resultante das reivindicações dos líderes tradicionais e das suas exigências pelo reconhecimento do direito indígena. Inicialmente, os líderes tradicionais representados no processo de elaboração da Constituição procuraram proteger o direito consuetudinário dos preceitos de igualdade previstos na Constituição. Seguindo o modelo do Zimbabué, estes líderes propuseram uma constitucionalização do sistema legal duplo existente, de tal forma que o direito consuetudinário e o direito geral sul-africano constituissem sistemas legais paralelos, não possuindo nenhum deles o poder de interferir com o outro (Currie, 1998: 36-3). Estas reivindicações pelo reconhecimento da cultura indígena levaram a uma tentativa de incluir na carta de direitos provisória preceitos que reconhecessem o «direito consuetudinário» e regulassem as contradições entre o direito indígena e outros «direitos fundamentais». Embora tenha sido rejeitada, uma proposta provisória de carta de direitos apresentada garantiu a «qualquer tribunal que aplique um sistema de direito consuetudinário» o poder de determinar a extensão até à qual o direito consuetudinário pode sobrepor-se ao preceito de igualdade e de decidir quando e em que extensão estas regras - mesmo nos casos em que discriminam as mulheres - devem estar em conformidade com a exigência de igualdade prevista na Constituição. No entanto, em termos finais e, sobretudo, em consequência da firmeza das mulheres do ANC, a Constituição provisória veio colocar-se a favor da igualdade de sexos, tornando o direito indígena «sujeito a regulação pela Lei», implicando assim a sua subordinação aos direitos fundamentais contidos na Constituição, particularmente no que toca à igualdade dos sexos. Em consequência, a igualdade dos sexos foi formalmente reconhecida pela carta de direitos provisória e a Constituição provisória incluiu provisões específicas para o estabelecimento de uma Comissão para a Igualdade dos Sexos «para aconselhar e emitir recomendações ao Parlamento ou a qualquer outra entidade legislativa, respeitantes a quaisquer leis ou propostas de lei que afectem a igualdade de sexo e o estatuto da mulher». Para além disso, inserida na tentativa geral efectuada pelo governo de de Klerk para dominar as negociações, a África do Sul ratificou a Convenção Internacional para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação conta as Mulheres, em Janeiro de 1993, vinculando o Estado Sul-africano a obrigações particulares internacionais nesta área. Assim, a inclusão eficaz do princípio de igualdade dos sexos na Constituição provisória de 1993 e na sua redacção «final» de 1996 foi produto da interacção da mobilização local das mulheres contra a discriminação sexual e o aumento do reconhecimento da igualdade dos sexos como uma norma dos direitos humanos e do constitucionalismo aceite internacionalmente. Consequentemente, enquanto que a Constituição celebra, por um lado, o reconhecimento dos líderes tradicionais e do seu papel no contexto do direito consuetudinário, por outro lado, faz com que o papel da liderança tradicional e o direito consuetudinário fiquem sujeitos à Constituição. Assim, apesar do reconhecimento histórico do estatuto de igualdade entre o direito indígena e o direito anglo-saxónico colonial herdado, tal apenas foi alcançado através da sua subjugação mútua aos valores universais da Constituição. A vitória legal da igualdade sobre a «tradição» deve, contudo, ser entendida no contexto de um processo político contínuo, no qual o estatuto dos líderes tradicionais permanece fluido. Por exemplo, quando um helicóptero aterrou na cerimónia de tomada de posse do Chefe Patikile Holomisa, em Abril de 1999, e fez sair o Ministro dos Assuntos Constitucionais, Valli Moosa, o Ministro da Segurança Interna, Sidney Mafumadi e o Presidente Mandela, o que se afirmava ser meramente a cerimónia de tomada de posse de um chefe local foi transformado num momento de grande importancia constitucional e política, indicando um novo nível de reconhecimento da liderança tradicional. Este é então o contexto em a Lei sobre a Associação de Propriedade Comunitária (CPA) e, em particular a sua exigência de igualdade dos sexos, foi concebida e está a ser implementada. Por um lado, tem sido cada vez maior o reconhecimento da importância política das autoridades tradicionais e do direito indígena, por outro lado, tem-se verificado o triunfo formal do universalismo.
4. A Lei sobre a Associação de Propriedade Comunitária (CPA) O reconhecimento constitucional dos direitos de propriedade, o direito consuetudinário e a autoridade tradicional, tal como a propriedade comunal e a igualdade entre os sexos, definiram o terreno em que o governo de Mandela prosseguiu os seus objectivos de restituição e redistribuição de terra. A importância política e simbólica destes objectivos está reflectida no facto de a primeira lei aprovada pelo novo Parlamento democrático ter sido a Lei de Restituição dos Direitos da Terra. Tendo assegurado o reconhecimento das reclamações de terra e um processo para a restituição da mesma, o governo enfrenta agora um problema de definição das vias e instituições através dos quais serão constituídas as comunidades que herdarão a terra. Embora seja essencial reconhecer que a expropriação colonial e o apartheid tiveram consequências dramáticas para as comunidades rurais e para as formas «tradicionais» de ocupação da terra, é igualmente importante reconhecer o impacto da resistência e da mobilização destas comunidades em resposta à opressão colonial. Muitas destas comunidades responderam activamente à emergência dos mercados coloniais e, até à sua exclusão, competiram em condições vantajosas contra os agricultores brancos no mercado (Bundy, 1979). Muitas outras comunidades e grupos familiares individuais agarraram-se à terra durante os períodos colonial e do apartheid, resistindo frequentemente à expulsão ou adoptando estratégias de aparente concordância com a nova configuração da posse da terra, de modo a poderem nela permanecer (van Olselen, 1995). É esta tenacidade, reflectida mais claramente nas lutas das comunidades que resistiram às remoções forçadas (Platzky e Walker, 1985) ou dos trabalhadores que ocupavam as terras e que a elas se agarraram (Trac, 1988), que deve acabar com a ideia de que as pessoas não valorizam ou não querem ter acesso à terra. Mais do que isto, ficou agora claramente demonstrado que o acesso à terra e aos recursos naturais mantém o seu importante valor económico para os modos de vida rural (May, 2000) até mesmo naqueles antigos bantustões onde a degradação do solo e a sobrepopulação reduziram em muito a capacidade agrícola (Shackleton, Schakleton e Cousins, 2000). O dilema é, portanto, imaginar uma configuração institucional que tenha quer o potencial de permitir aos habitantes rurais uma forma de posse mais segura, quer a capacidade de fornecer um meio através do qual as comunidades rurais possam proteger os seus recursos de serem despojados pelas elites políticas ou por outros interesses externos permanecendo, simultaneamente, suficientemente dinâmico para permitir a resolução democrática de tensões intra-comunitárias importantes e frequentemente conflituosas. Para além disso, para muitas comunidades que foram fisicamente destruídas e se dispersaram com o processo da remoção forçada, este acto constitutivo seria baseado na a própria definição de quem deveria ser incluído como beneficiário da restituição. Outras comunidades que ainda mantinham uma pequena posição na terra seriam deixadas livres para decidir a forma como o seu recurso deveria ser utilizado e os seus benefícios distribuídos entre os membros reconhecidos. Como consequência, o governo, ao reconhecer que a terra deveria ser transferida para grupos de pessoas, mal-definidos, conflituosos ou simplesmente detentores de recursos muito escassos, foi forçado a pelo menos esboçar um processo através do qual estas comunidades se pudessem constituir. Assim, tal facto impulsionou a forma que a lei CPA veio a ter. A característica central da Lei CPA é a exigência de que os beneficiários da restituição ou da reforma agrária adoptem uma constituição, auto-definindo-se e definindo os meios através dos quais tencionam gerir o seu «novo» recurso. Simultaneamente, a Lei impõe um conjunto de requisitos universais através da inclusão de princípios constitucionais e de um plano geral dos assuntos que devem ser considerados numa constituição, até que esteja pronta a ser registada. O estatuto exige quer um processo específico de procedimentos, incluindo os processos de proposta, adopção e registo, quer cláusulas substantivas para futura monitorização, regulação, aplicação e até mesmo apoio na resolução de conflitos, por parte do governo. O conjunto de princípios constitucionais incluídos na Lei fornece uma orientação específica para a formulação e adopção de cinco princípios «universais»: (a) processos de tomada de decisão justos e abrangentes; (b) igualdade no acesso à qualidade de membro; (c) processos democráticos; (d) acesso justo à propriedade das associações; e (e) responsabilização e transparência. Para além disto, a lei prevê que, para poder ser registada, a constituição deve abordar uma lista de matérias incluídas num apêndice da Lei, onde estão, principalmente, cláusulas para definição: (1) da qualidade de membro da comunidade; (2) dos direitos de propriedade dos membros; (3) da forma como os membros serão representados nos processos de tomada de decisão da comunidade; (4) dos métodos para o abandono da comunidade, incluindo as disposições relativas aos direitos de propriedade em casos de expulsão, saída ou morte; e (5) a forma como a constituição pode ser alterada e/ou a associação dissolvida e os seus bens distribuídos. Por fim, a constituição deve incluir mecanismos tanto para a resolução de conflitos quanto para a definição e aplicação de medidas disciplinares contra os membros da comunidade. São, em particular, estes últimos requisitos que unem a linha divisória entre o que pode ser entendido, em algumas circunstâncias, como um mero acordo contratual para a gestão da propriedade conjunta — tal como um trust ou um acordo de titularidade sectorial — e um sistema constitucional de governação, dentro do qual são criados, definidos e limitados os poderes. É esta distinção entre, por um lado, um mecanismo legal para a co-gestão da propriedade conjunta e, por outro, a criação de um sistema de governação colectiva do recurso produtivo primário de uma comunidade, que sugere quer o potencial emancipatório existente na forma da Associação de Propriedade Comunitária, quer a fonte da resistência a esta mesma forma, oriunda particularmente das autoridades tradicionais.
5. Governando os comuns da comunidade: constituições das CPA e controlo da terra Apesar de a Lei CPA assumir que as comunidades vão elaborar as suas próprias constituições através de um processo de intensa participação democrática, marcada pelo empoderamento dos indivíduos e grupos anteriormente marginalizados por uma combinação de «tradição» e domínio do apartheid, a prática veio a revelar-se mais ambígua. Esta ambiguidade é notória nas constituições de 100 das aproximadamente 150 CPA’s registadas nos primeiros três anos. Destas 100 constituições, 60 são versões praticamente idênticas de dois modelos particulares. Enquanto que 40 destas 60 são réplicas aproximadas do que pode ser definido como «modelo Gugulethu», as restantes 20 são versões quase iguais de um modelo que parece ter sido desenvolvido e aplicado numa região particular, a província de Free State. As restantes 40 das primeiras 100 CPA’s registadas incluem exemplos que variam entre algumas que evidenciam claramente uma influência popular específica - particularmente na identificação das violações disciplinares - e outras que foram claramente o produto de educação e de programas de treino intensivos conduzidos por equipas de ONGs e organizações de apoio jurídico. Apesar destas variações, as preocupações acerca do controlo e da estabilidade futura destas novas comunidades de proprietários da terra está largamente patente nos preceitos adoptados pela comunidade para a governação comunal. Embora a Lei e a constituição «modelo» promovidos por várias ONGs envolvidas no apoio à elaboração de constituições pelas comunidades salientem os procedimentos democráticos, quer nas variações do modelo, quer nos exemplos mais particulares, a tónica é colocada no controlo da composição e dos poderes do corpo dirigente. Um dos métodos mais explícitos adoptados pelo modelo dominante é o de determinar o número de representantes que podem ser eleitos para o comité dirigente a partir de diferentes grupos de interesse ou blocos de poder possíveis dentro da comunidade. O «modelo» Gugulethu dominante especifica que: 75 por cento do comité deve ser composto por membros da associação; os representantes dos líderes tradicionais não devem exceder os 40 por cento do comité; pelo menos 50 por cento do comité deve residir permanentemente na comunidade; e pelo menos 40 por cento dos membros do comité devem ser mulheres. Esta explícita partição das influências dentro do comité reflecte uma forte percepção das tendências particulares. Em primeiro lugar, há uma preocupação clara de refrear a influência dos não-membros e dos não-residentes, que no caso das viúvas ao abrigo da lei consuetudinária podem incluir parentes masculinos afastados. Em segundo lugar, o critério de residência também limita a influência de membros migrantes da comunidade que podem «normalmente» viver numa área urbana mas manter um contacto e influência significativos na comunidade rural. Ainda mais significativa, contudo, é a tentativa de limitar a influência da liderança tradicional (num caso, afirmando que 60 por cento dos membros que estão ao serviço não podem ser membros da família do chefe (#4)), bem como a tentativa de melhorar a participação das mulheres na tomada de decisão, exigindo que 40 por cento do comité seja feminino(#92). De igual interesse, é o facto de que em muitos dos casos em que o modelo foi adoptado, a única modificação foi na constituição do comité dirigente. Aqui, a questão da representação dos sexos está manifestamente em questão. O aspecto mais marcante destas modificações particulares ao modelo padrão é o facto de ocorrerem nos casos em que a única modificação no formato-padrão reside na questão da composição do comité dirigente e, em todos os casos, a modificação mais significativa relaciona-se com a garantia de uma determinada percentagem de mulheres no comité. Enquanto que, em alguns casos a percentagem é meramente reduzida - apesar de, num exemplo, a redução para 20 por cento ter sido acompanhada por um aumento simultâneo na percentagem, exigindo que 90 por cento do comité fosse constituido por requerentes de terra (#21) - na maior parte dos casos, a especificação das percentagens é completamente abandonada. Ao invés, há uma afirmação genérica que a associação «terá um comité que será equilibrado em termos de sexo», (#71; #6; #22; #12; #18; #3; #92) ou, ainda menos específico, «todos os encontros futuros de membros do comité serão realizados com devida consideração pelos princípios de representação tal como afirmado na Lei» (#15; #16; #10; #95). O que se torna claro neste casos é que os participantes no processo de elaboração da constituição têm estado preparados para aceitar o quadro geral das constituições-modelo, mas perceberam claramente a importância das cláusulas que definiam percentagens específicas para representação no comité dirigente. Neste contexto, agiram para modificar o modelo-padrão de forma a controlar as influências exteriores - com percentagens crescentes do comité a serem constituídas por membros da associação - e, ao mesmo tempo, reduzir ou extinguir por completo a representação garantida de mulheres no comité em percentagens específicas. Assim, apesar de haver pouca evidência de que estas comunidades tenham participado activamente no processo de auto-construção ou auto-definição durante a redacção da constituição, há uma clara indicação de que onde o modelo desafiou as relações existentes entre sexos, este desafio foi notado e explicitamente diluído. Porém, o que é relevante é o facto de, ao aceitar o modelo CPA e os seus critérios de igualdade formal entre os membros, estas mesmas comunidades podem ter introduzido nas suas estruturas de governação as sementes de desafios futuros em torno de questões de participação e de representação dos sexos. Apesar da estrutura da CPA definida legislativamente e da sua implementação terem implicado uma tentativa de mediação entre as estruturas de poder existentes — incluindo as autoridades tradicionais — e exigências de formas mais «universais» de representação democrática, incluindo igual participação de mulheres, essa continua a ser, claramente, uma área de difícil negociação. Apesar da confiança, por parte de alguns funcionários do Department of Land Affairs, por exemplo, de que os líderes tradicionais, estão a ser acomodados através da inclusão de cláusulas que «reconhecem» o seu papel na comunidade — acompanhadas pela declaração que, como é claro, os chefes não «possuem» a terra historicamente, tal como alguns alegaram -, há provas que demonstram que será muito mais difícil reduzir a influência das autoridades tradicionais em muitas comunidades. Algumas constituições incluem agora, nos seus preâmbulos, um reconhecimento da existência e do papel dos líderes tradicionais na comunidade. Embora reconheçam o papel da autoridade tradicional, continuam a auto-definir-se e a definir o funcionamento dos seus comités governativos na forma democrática determinada pela Lei. Exprimindo as preocupações da comunidade acerca da introdução destas novas entidades legais, James Ngcobo, um representante da comunidade do KwaZulu-Natal, defendeu que as «administrações de terras que somos obrigados a estabelecer de modo a aceder à terra, têm o efeito de caos institucional nas comunidades. A maior parte das comunidades fracassam na identificação da posição e dos objectivos destas estruturas em relação às estruturas existentes. Os Amakhosi [líderes tradicionais] estão a desafiar o estabelecimento destas entidades legais criadas para administrar os assuntos da terra em áreas tribais, e argumentam que a função de propriedade e administração da terra é sua. (...) Os conselhos tribais em áreas tribais receiam o seu futuro caso estas estruturas sejam bem-sucedidas na ususpação das suas funções e papéis, que lhes conferiram um grau de respeito por parte dos seus subordinados» (Ngcobo, 1997: 8). Mesmo nos pontos onde a constituição limita especificamente a presença de representantes dos líderes tradicionais nos comités dirigentes existe uma certa preocupação de que a sua influência ofusque os restantes. Mais uma vez, James Ngcobo refere que «o estatuto ex-oficio dos Amakhosi nos trusts da terra é vago, porque, uma vez estão nesses trusts, tomarão parte no processo de decisão e a sua palavra será definitiva. O Inkosi [chefe] terá o direito de influenciar as decisões dos trusts? Se assim for, então este estatuto não é ex-oficio, e a posse da terra não é independente. Caso contrário, quais são então os seus poderes? Mesmo que o Inkosi compreenda e aceite o seu estatuto ex-oficio, ele tem o direito de aprovar as decisões dos trusts da terra antes de serem implementadas? E se ele disser, ‘Não, não podem fazer isso?’ Terão os trusts de o levar a tribunal? Concordem comigo — o papel dos Amakhosi ainda é pouco claro» (Ngcobo, 1997: 9). Outro representante governamental, comentando o papel desempenhado pelos Amakhosi no que respeita a uma reforma agrária em geral, defende que «aprendemos durante o processo de implementação que seria completamente imprudente evitar os Amakhosi. Confrontá-los, tranquilizá-los, abandoná-los, acompanhando-os nas dificuldades — sim —, só não podemos ignorá-los. Quer nos estejamos a referir eufemisticamente aos membros das tribos, ou associações comunitárias, ou algo semelhante, a nossa realidade é que a implementação da reforma agrária tem um enorme impacto na instituição dos Ubukhosi, e estes têm um impacto muito profundo na implementação do nosso programa. Em KwaZulu-Natal, a maioria das iniciativas respeitantes à reforma agrária são suportadas pelos Amakhosi ou pelos Izinduna [chefes] (Clacey, 1997: 6). Num número cada vez maior de casos, incluindo o caso da comunidade Gugulethu, cuja proposta de constituição veio a servir de modelo de constituição de CPA, os conflitos entre as autoridades tradicionais e os elementos empenhados em formar a CPA levaram frequentemente a um impasse, no qual a tentativa de estabelecer uma CPA falhou. No caso da área comunal de Tshezi, documentado por Lungisile Ntsebeza, a tentativa de estabelecer uma CPA acabou por ser abandonada, face à resistência oferecida pelos chefes locais «sob a influência de autoridades tradicionais chave em Contralesa [The Congress of Traditional Leaders of South Africa] e da Eastern Cape House of Traditional Leaders. Isto a despeito do facto de tal vir a atrasar e, possivelmente, frustrar um projecto de desenvolvimento desesperadamente necessário iniciado pelo Departamento de Comércio e Indústria para impulsionar o turismo local (2000: 299). De facto, a resistência colocada pelas autoridades tradicionais nas várias partes do país obstruiu de uma forma eficaz a disseminação das CPA’s. Em KwaZulu-Natal, onde numerosos trusts da terra criados como um meio de proteger a propriedade comunitária no período anterior a 1994 foram reconhecidos como entidades similares ao abrigo da Lei CPA, o conflito em torno da natureza da tomada de decisão e da autoridade no seio destas comunidades é ainda elevado. Como resultado, foram muito poucas as novas CPA’s formadas em KwaZulu-Natal. A pesquisa levada a cabo pelo Legal Entity Assessment Programme (LEAP), no distrito Muden de KwaZulu no Natal, demonstra algumas das dificuldades de governação encaradas pelas comunidades em situações idênticas às comunidades CPA. As três comunidades referidas -- a Comunidade Emsi Lonsdale, a Comunidade Vukile/Impala e a Ntabenzima Trust (quinta Whitecliff) - enfrentam, todas elas, um conjunto de problemas que serão muito provavelmente bastante usuais. Apesar de ter existido uma organização comunitária bastante coerente na luta pelo acesso à terra, sob a forma de Comité Muden Land, os diferentes trusts comunitários, estabelecidos desde que a terra foi assegurada, revelaram muitas experiências desiguais, e em grande medida, não tiveram capacidade para criar, nem uma administração eficaz, nem as iniciativas de desenvolvimento esperadas pelos beneficiários. Embora no caso de Vukile o espírito do acordo comunitário pareça bem vivo, também persistiu uma grande confusão acerca dos termos exactos dos trusts ou das constituições adoptadas pelas comunidades. Algumas destas dificuldades estavam relacionadas com o problema da linguagem - as constituições não foram traduzidas para Zulu -, mas também há indicações de que apesar das disposições constitucionais ou de trusts, que reconhecem a autoridade do comité eleito, muitos destes assuntos eram primeiro levados às autoridades tradicionais, as quais permanecem o efectivo poder na zona. Embora as ONG de desenvolvimento local - a «Zibambeleni Community Development Organization» - seja uma fonte de capacidade organizacional, a comunicação entre a Zibambeleni e os comités dirigentes constituídos pelos trusts é bastante frágil. Pelo contrário, a Zibambeleni trabalha de perto com as Autoridades Tribais e relaciona-se directamente com as comunidades e não através das suas estruturas dirigentes formais. Esta fragilidade na governação comunitária reflecte-se nas avaliações que concluem que deve ser realizada uma reestruturação dos trusts e definido de forma clara o papel dos «Comités Muden Land». De facto, é a Zibambelani que está representada no conselho regional, e não os representantes das comunidades, enquanto o poder local permanece nas mãos das autoridades tradicionais, que nesta zona parecem deter um elevado grau de legitimidade. Em algumas áreas, as dificuldades relativas à governação foram exacerbadas pelo conflito acerca do governo local, particularmente no que toca ao direito das autoridades tradicionais de participarem ex-oficio em órgãos de governo local e à definição dos limites do governo local. As autoridades tradicionais opuseram-se especialmente a qualquer tentativa de definir limites que não coincidiam com as suas próprias jurisdições. Significativamente, apesar de alguns defenderem que as CPAs não têm que se imiscuir nem assumir as funções ou o papel do governo local, e que os comités dirigentes estão lá meramente para administrar a terra possuída colectivamente, os activos comités dirigentes CPA irão naturalmente ver-se envolvidos na planificação do desenvolvimento e no fornecimento de serviços. Contudo, esta função está limitada pela Lei CPA (s12) que requer uma maioria de votos dos membros, antes do comité poder exercer algum poder significativo sobre o principal recurso da associação - a terra. Antes do comité poder vender, hipotecar ou de qualquer modo afectar os direitos da comunidade sobre a terra, tem que obter autorização da comunidade através de uma assembleia geral ou extraordinária - algumas comunidades vão para além do requisito legal, especificando que uma assembleia extraordinária necessita de um quorum de 65% dos membros, ou tem que obter uma maioria qualificada para ser aprovada qualquer decisão desta natureza. Agora, após vários anos de experiência durante os quais foram identificados variadíssimos problemas, muitos sugerem que as leis relativas às CPA’s necessitam de algumas adendas, de forma a conceder poder ao Estado para administrar mais directamente as instituições permeáveis (Piennar, 2000: 323). Estas sugestões, no entanto, não chegam a reconhecer que o potencial das CPAs reside menos na sua capacidade imediata para conduzir o desenvolvimento rural local e mais no espaço que rodeiam para a participação contínua nos conflitos sociais e políticos que cercam a tentativa de criar regimes de propriedade comunal viáveis (um processo que se tem que reconhecer como sendo moroso, confuso e constestado no seu carácter) (Cousins, 1995). A este respeito, é importante reconhecer que diversas soluções legais estão disponíveis «nas constituições das entidades, na Lei CPA, nas provisões do direito consuetudinário e do direito estatal que regula a conduta dos trusts e associações voluntárias, para além das soluções contratuais vulgares das condenações civis e e das sanções ao abrigo do direito penal» (Pienaar 2000: 323). Apesar dos problemas no acesso aos recursos legais poderem constituir parte da explicação, o fracasso no recurso a estas múltiplas soluções legais sugere que as dificuldades enfrentadas por estas novas entidades legais vai para além das questões de tecnologia legal. Em vez disso, é a confrontação provocada pelo próprio potencial emancipatório desta forma que gerou o grau de tensão que acompanhou a sua implementação. Apesar das numerosas tentativas para aplacar as autoridades tradicionais, através do seu reconhecimento em preâmbulos ou da sua inclusão nos comités dirigentes, os chefes permaneceram extremamente cautelosos relativamente à Lei CPA. Esta oposição tornou-se evidente em vários encontros entre os chefes e o Departamento de Assuntos da Terra. Por exemplo, numa reunião realizada no dia 24 de Março de 1998 entre os líderes e o Dr. Sipho Sibanda do Directorate for Tenure Reform do Departamento dos Assuntos da Terra, os chefes afirmaram que «viam a CPA como uma forma de enfraquecer os seus poderes e como um instrumento concebido para dividir a tribo. Queriam saber porque é que a terra tinha que ser transferida através da CPA...» (Nzuza, 1998; 16). Em resposta, Sibanda declarou aos chefes que existiam três critérios considerados pelo governo como «fundamentais e não negociáveis para o reconhecimento de uma autoridade tradicional: (1) igualdade em termos sexuais e direitos constitucionais da mulher; (2) democracia e (3) o decurso dos processos em termos normais» (Nzuza, 1998: 16). A tensão criada por estes critérios tornou-se ainda mais intensa quando o governo distribuiu uma proposta de Lei dos Direitos sobre a Terra, no início de 1999. A proposta de lei, concebido para contemplar a segurança do direito de posse da terra nas áreas comunais - os antigos bantustões, onde a terra «tribal» oficialmente possuída pelo Estado permanecia sob o controlo das autoridades tradicionais -, incluía o mesmo conjunto de critérios. Justificando-se como uma tentativa de resolver a degeneração da administração da terra nestas áreas, bem como o cumprimento do imperativo constitucional de promoção da segurança no direito de posse, a proposta de lei apresenta um sistema de gestão descentralizada dos direitos sobre a terra, os quais estariam nas mãos das pessoas que pudessem estabelecer ocupação, uso ou direitos de acesso à terra; pessoas que, consequentemente, não poderiam ser despojadas de tais direitos sem o seu consentimento ou a perda deles através da aceitação de uma compensação. Além disso, a proposta de lei propunha a criação de um sistema de gestão dos direitos da terra que iria incluir: (1) «estruturas de titulares de direitos sobre a terra»; (2) comissões para os direitos sobre da terra - compostos pelos líderes tradicionais, conselheiros municipais e líderes respeitados da comunidade - a nível do concelho distrital e (3) um funcionário público dos direitos sobre a terra, empregado do Departamento dos Assuntos da Terra, ao nível distrital, o qual representaria o Ministro dos Assuntos da Terra, que continua a ser o proprietário nominal (Sibanda, 2000: 308). As comissões para os direitos da terra iriam, de acordo com a proposta de lei, «actuar como um vigilante, rever as questões que afectam o estatuto protegido dos titulares locais de direitos e, nos casos em que seja necessário, encaminhar as decisões para consideração do representante ministerial» (Sibanda, 2000: 308). Os funcionários dos direitos sobre a terra teriam poder para «investigar as infracções à lei, notificar, preparar os casos e instituir os procedimentos junto do tribunal judicial para obter qualquer reparação para os titulares de direitos» (Sibanda, 2000: 308). Apesar do argumento de Sipho Sibanda de que a proposta de lei não colocava qualquer ameaça aos líderes tradicionais, uma vez que os titulares dos direitos da terra tinham o poder de, se assim o desejassem, escolher as autoridades tradicionais para gerir quotidianamente os seus direitos, de facto, a proposta de lei visava alterar fundamentalmente a relação de facto entre os líderes tradicionais e os seus súbditos no que toca ao controlo sobre a terra. Enquanto que os líderes tradicionais estão preocupados em manter os seus poderes de distribuição de terra, decisão sobre conflitos sobre a terra e influência na gestão dos recursos de terra comunitária, a proposta de lei concede poder aos titulares de direitos para escolher qual a forma de autoridade que desejam aceitar para a supervisão da gestão da terra e implica que, em caso de conflito, os titulares de direitos sobre a terra veriam os seus direitos sentenciados pelo magistrado local após intervenção do funcionário dos direitos sobre a terra, que seria o representante governamental ao nível local. Assim, embora o governo afirmasse que os líderes tradicionais nada tinham a recear na proposta de lei, a reacção daqueles foi violenta. No espaço de meses, o governo retirou publicamente a proposta de lei e o recém nomeado Ministro dos Assuntos da Terra começou a falar do papel da tribos e, consequentemente, das autoridades tradicionais na gestão da terra, indo longe ao ponto de sugerir que a terra poderia ser transferida do Estado para as «tribos, comunidades ou outras pessoas que são ocupantes de longo prazo da terra do Estado» (Merten, 2000). Apesar de o abandono da proposta de Lei para os Direitos sobre a Terra parecer uma vitória das mesmas autoridades tradicionais que receavam perder a jurisdição sobre os assuntos da terra, o debate não está de maneira nenhuma encerrado. Embora o novo ministro parecesse preocupado em apaziguar as autoridades tradicionais, a continuação da crise em torno da gestão da terra rural e o seu impacto no desenvolvimento rural, particularmente em consequência da falta de segurança nos direitos à terra, trouxe estes assuntos de volta à agenda governamental (Mayende, 2001). Embora alguns críticos receassem que o governo estivesse a ponto de abandonar as políticas que evidenciavam uma preocupação com o empoderamento dos pobres rurais voltando-se, em vez disso, para uma confiança nas forças de mercado, não parece que se tenha verificado tal mudança dramática. Em vez disso, o Departamento dos Assuntos da Terra está, mais uma vez, a explorar a forma de abordar a questão da segurança da posse da terra nas áreas comunais, reflectindo sobre a melhor forma de envolver os líderes tradicionais num debate que venha a permitir alcançar estes objectivos.
6. Promessas e perigos Apesar dos promissores resultados do compromisso inicial entre os sem-terra e os proprietários, por um lado, e entre as reivindicações de igualdade e a defesa da autoridade tradicional, por outro, o futuro das comunidades rurais - especialmente as suas relações sociais internas e o acesso aos recursos necessários para ultrapassar uma história de pobreza estrutural - continua em debate. Apesar de algumas comunidades terem ganho o acesso à terra e as oportunidades institucionais existam para estabelecer novas formas de governação comunal, a necessidade de criar capacidade local e o peso das fontes de poder existentes são ainda grandes obstáculos. Apesar das autoridades tradicionais, que conservam a sua legitimidade entre as comunidades rurais, poderem de facto ter um papel positivo a desempenhar na governação local, o seu maior empoderamento através da sugestão de que a terra podesse ser colocada nas mãos das tribos em vez de nas mãos de entidades legais autónomas, bem como a retirada da proposta de Lei dos Direitos sobre a Terra, levanta importantes questões acerca da segurança da posse da terra, dos direitos das mulheres e do futuro da participação democrática nas comunidades rurais. Neste contexto, a existência de CPAs, ainda que em número restrito e sob ameaça de serem revistas a partir de cima ou de desaparecerem devido à oposição das autoridades tradicionais, fornece um espaço institucional no seio do qual se podem desenvolver lutas e, com o tempo, seguir estratégias para alargar os objectivos emancipatórios pelos quais tantos sul-africanos combateram. De contrário, se estas jovens instituições forem abandonadas, pode-se verificar que o direito não é mais do que uma elaborada fachada para cobrir uma versão pós-colonial da reserva, criando pontos geográficos a partir dos quais a maioria dos cidadãos sul-africanos mais marginalizados irá continuar a empreender campanhas multi-estratégicas de sobrevivência - alguns animais, uma pequena leira de milho, um espaço para a colheita de recursos naturais limitados, um abrigo e um lugar a partir do qual se aventuram para confrontar as injustiças da vida nas periferias urbanas.
Apêndice: CPAs registadas com data de registo (citadas no texto pelo número).
3) The Monyamane Communal Property Association, 29 Abril, 1997. 4) The Skeifontein Communal Property Association, 3 Junho, 1997. 6) The Lwalanemeetse Communal Property Association, 21 Julho, 1997. 10) The Katjebane Communal Property Association, 27 Agosto, 1997. 12) The Sizanani Farmers Communal Property Association, 26 Setembro, 1997. 15) The Bethania Communal Property Association, 23 Dezembro, 1997. 16) The Mtintloni Communal Property Association, 23 Dezembro, 1997. 18) The Mahlambandlovu Communal Property Association, 10 Fevereiro, 1998. 21) The Diratsagae Communal Property Association, 4 Março, 1998. 22) The Baroka Communal Property Association, 12 Março, 1998. 71) The Selowe Communal Property Association, 7 Julho, 1998. 92) The Bedrog Communal Property Association, 15 Outubro, 1998. 94) The Thusanang Communal Property Association, 4 Novembro,1998. 95) The Masikule Community Property Association, 4 Novembro, 1998. 98) The Rietkuil Agri-Village Communal Property Association, 6 Janeiro, 1999.
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