217 - Vladimir Santos Vitovsky
“Justiça Federal Comunitária em Unidades de Polícia Pacificadora no Rio de Janeiro: sonho impossível ou realidade obscura?”
Vladimir Santos Vitovsky
Doutorando em Direito e Sociologia pela Universidade de Coimbra, no Programa “Direito, Justiça e Cidadania no Século XXI”, Mestre em Direito pela UERJ, Bacharel em Direito pela UERJ e Bacharel em Economia pela UFRJ.
Professor da Escola da Magistratura Regional Federal da 2a Região.
vladimirvitovsky@ig.com.br
https://wwws.cnpq.br/curriculoweb/pkg_menu.menu?f_cod=68ED3640B54D2E303944B19C7C41FA0
A análise das políticas públicas de acesso à justiça centra-se em uma discussão sobre a inclusão do indivíduo no sistema judicial, negligenciando aspectos coletivos como os Direitos humanos e a cidadania. É preciso correlacionar a discussão do acesso à justiça com a promoção da inclusão social da comunidade, mormente em um contexto de rearticulação do Estado e de suas políticas públicas judiciárias.
Todavia, as políticas judiciárias tradicionais de inclusão social estão centradas em instituições e são formatadas de cima para baixo, sendo inadequadas para lidar com a complexidade e as tensões das comunidades urbanas marginalizadas.
Com base em tais questões, inicio uma análise da efetividade e dos dilemas de duas políticas públicas judiciárias, implementadas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a saber, o projeto “Justiça Aqui” e “Casa de Direitos”, discutindo suas possibilidades e limites como forma de promover o acesso à justiça e a efetiva inclusão social da comunidade em áreas de exclusão abrangidas pelas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), nas comunidades da Cidade de Deus e do Complexo do Alemão, com base na metodologia qualitativa de observação participante. Debato tais iniciativas a partir do marco teórico de Boaventura de Sousa Santos e sua dialética da regulação e a emancipação, bem como sua análise sobre o Direito e comunidade, apresentando os resultados preliminares da pesquisa de campo ainda em curso.
A pesquisa de campo tem se concentrado, neste primeiro momento, na observação participante desses dois projetos do CNJ. A metodologia utilizada é qualitativa, e, nesta primeira fase da pesquisa de campo, do tipo exploratória, com a técnica da observação participante, que, inequivocamente, mais atende aos objetivos da pesquisa.
No projeto “Casa de Direitos”, o objetivo do Acordo é a conjugação de esforços dos partícipes para a implementação de serviços públicos, especialmente aqueles relacionados ao sistema de justiça, nas localidades do Município do Rio de Janeiro, Estado do Rio de Janeiro, abrangidas pelas Unidades de Polícia Pacificadora – UPP, com vistas a proporcionar o acesso à informação sobre diretos, à assistência jurídica gratuita e a mecanismos judiciais e extrajudiciais para a solução de conflitos.
O outro projeto do CNJ é o “Justiça Aqui”, com apoio do Ministério da Defesa. O projeto “Justiça Aqui” é o que consta explicitamente no site do CNJ. O “Justiça Aqui” é definido como prestador de serviços jurídicos e orientação para solução de conflitos. Os serviços prestados são fornecer certidão de nascimento, cursos gratuitos, Denúncias sobre violação de direitos de crianças e adolescentes, atendimento para crianças e adolescentes em situação de risco, acionar a Defensoria Pública e o Conselho Tutelar, resolver conflitos através de mediação e conciliação, evitando processos judiciais, receber orientações sobre direitos trabalhistas e o funcionamento da justiça do trabalho, emitir título de eleitor e resolver outras pendências da justiça eleitoral, ser atendido pelo ônibus do projeto Justiça Itinerante, que, em um ônibus, terá um Juiz, um promotor e um defensor para fazer audiências no mesmo instante. O endereço do “Justiça Aqui” é na Força de Pacificação do Complexo do Alemão (Av. Itaoca), reforçando sua vinculação com o Ministério da Defesa.
Tais projetos objetivam implantar definitivamente um núcleo físico para prestação dos serviços e iniciam-se com a justiça itinerante.
A implementação de tais projetos permite discutir como uma política pública judiciária pode ser emancipatória. Deste modo, a discussão de tais projetos, nas suas possibilidades e em seus limites, permite pensar uma justiça com uma articulação mais profunda entre comunidade e o sistema judicial.
Na primeira parte, discuto os conceitos de justiça comunitária, por estar relacionado com a implementação de políticas públicas de acesso à justiça na comunidade. O que são justiças comunitárias? São somente aquelas produzidas pela própria comunidade ou também as de iniciativa do Estado? Esta dificuldade de definir e especificar o que seriam as justiças comunitárias bem como de construir um marco teórico foram objeto de discussão entre Edgar Ardila Amaya e João Pedroso (Pedroso, 2002, Amaya, 1999). De fato, o próprio termo “comunidade” tem sido utilizado como uma palavra maleta, isto é, na expressão utilizada por Dubar (2002), um termo amplo que pode definir tudo e qualquer coisa, e, deste modo, justiças comunitárias têm um amplo espectro. Com efeito, as justiças comunitárias têm diversos nomes: justiça popular, justiça informal, justiça de proximidade, neighborhood justice, justiça doce, justiça restaurativa, justiça alternativa, meios alternativos de resolução de conflitos etc. (Foblets, 1996: 14-16). Deste modo, é importante problematizar a comunidade nesses projetos de justiça.
Em seguida, apresento a teoria de Boaventura de Sousa Santos utilizada como marco teórico da presente análise. Em dois artigos em que analisa a "justiça comunitária", um intitulado "O Direito e a Comunidade: Transformações recentes da Natureza do Poder do Estado nos países capitalistas avançados" (1982) e "O Estado e o Direito na Transição Pós-Moderna: Um novo senso comum sobre o poder e o Direito" (1990), Boaventura discute sua importância social e política ambígua, localizada no projeto da modernidade, sempre rica em dicotomias como formais x informais, permanentemente polarizadas, mas com uma oscilação freqüente. Esta situação, que Boaventura chama de transição pós-moderna (Santos, 1990: 18), mostra seus sinais com a dicotomia entre Estado x sociedade civil e justiça formal x justiça comunitária. Neste sentido, a justiça comunitária é diagramada no processo de interpenetração entre o Estado e a comunidade que não se limita apenas a transformar a sociedade civil, mas também o estado expandindo para além do seu aparato burocrático, através de redes sociais informais, assumindo características da sociedade civil. Estes pólos dicotômicos vão expressar a tensão entre regulação e emancipação, em que esta seria absorvida por aquela (Santos, 1990: 25).
Por fim, contraponho a experiência de Justiça Comunitária implementada pela Juíza Gláucia Falsarella Foley com dois projetos implementados pelo CNJ.
O que se observa não é uma competição com os movimentos sociais, mas uma concorrência interna, uma sobreposição de projetos dentro dos próprios setores do Estado. Os projetos analisados provêm de diferentes suportes do Estado. Ambos lidam com a ação da justiça em comunidades pacificadas (com UPPs), oferecendo vasto campo de pesquisa nessa correlação de forças dos movimentos de acesso e proximidade da justiça.
Mesmo diante de tais ambiguidades e críticas, as políticas públicas judiciárias comunitárias têm possibilidades. Se por um lado podem segregar em uma justiça de primeira classe x segunda classe; por outro existem grandes contribuições que com ampla participação da comunidade, em espaços marcados pela privação, podem estabelecer um lugar responsável por práticas emancipatórias (Antunes, 2008: 16).
Portanto, as políticas públicas judiciárias comunitárias têm um potencial emancipatório para melhorar a administração da justiça. Os atores e movimentos sociais envolvidos no processo dialético de construção devem assegurar que esta iniciativa irá realizar a sua natureza emancipatória e que não seja usada para legitimar o Poder Judiciário ou como propaganda institucional. Assim, mesmo constituindo um modo de terceira via da ação do Judiciário, a justiça comunitária tem as suas possibilidades e limitações, e deve passar por constante re-avaliação de seus impactos no tempo e no espaço, para constituir uma "justiça de proximidade democrática" (Santos, 2008: 25), porque tem várias contribuições a dar a uma nova forma de acesso à justiça, substituindo a lógica impessoal de um tratamento comunitário (Wyvekens, 2000).
Dois aspectos devem sempre estar presentes: (1) não pode ser transportado para como uma importação acrítica de modelos de países desenvolvidos, por isso, ele deve passar por uma abordagem crítica à sua adoção, e (2), finalmente, os modelos devem estar sempre sujeitas para reanálise constante.
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