Poster 902 - Sónia Figueira e Maria do Céu Salvador
A vivência de vergonha nos adolescentes: estudo da vergonha externa e sua relação com a Comparação Social e o Auto- crititicismo
Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Coimbra
Com os estudos apresentados tentamos contribuir para a avaliação e compreensão da vergonha na adolescência através da adaptação de um instrumento de medida para a população adolescente, bem como estudar possíveis relações entre vergonha e outros constructos, mais concretamente, a comparação social e auto-criticismo.
A vergonha, pela sua presença em diversas perturbações psicológicas, tem sido alvo de um crescente interesse e investigação nos adultos. Porém, no que respeita aos adolescentes, a investigação é bastante reduzida. Neste sentido, procurámos estudar as características psicométricas da Escala de Vergonha Externa (OAS[1]), nesta população específica, numa amostra não clínica. Os resultados revelaram que a escala apresenta boas características psicométricas e a composição factorial revelou-se semelhante à encontrada na versão original, evidenciando a existência de três factores (Inferioridade, Reacção dos Outros aos meus erros e Vazio). Apesar das limitações inerentes ao estudo I, os resultados da OAS sugerem que esta se apresenta como uma ferramenta útil na avaliação da vergonha externa, na população adolescente.
No estudo II e mais concretamente ao sub-estudo I - a relação entre vergonha externa e comparação social - obtivemos resultados que sugerem que a comparação social está inversamente associada à vergonha externa. A correlação mais elevada ocorre entre o total da escala de comparação social e o factor inferioridade. A análise das correlações permite referir que os sentimentos de vergonha parecem estar mais correlacionados com um sentimento de inferioridade da OAS, isto é, com a percepção de “ranking” social inferior. Estes dados corroboram a literatura, onde segundo, Kaufman (1996) a vergonha é entendida como o afecto da inferioridade, bem como os dados obtidos através da utilização de escalas de auto-resposta revelaram que a propensão para a vergonha se encontra significativamente correlacionada com a inferioridade (Cook, 1996). Deste modo, existe a evidência de quando as pessoas têm performances mais pobres do que é esperado, mudam as suas estratégias de comparação social. Tornam-se mais auto-protectoras (para evitar a vergonha), tendem a dar pouca relevância às dimensões em que têm performances mais pobres, evitando comparações sociais ascendentes (Gibbons, Benbow & Gerrad, 1994). Várias observações terapêuticas sugerem a tendência para comparações desfavoráveis com os outros, sendo que a visão do self como inferior se encontra associada a diversas dificuldades psicológicas, incluindo a depressão (Beck, Rush Shaw & Emery, 1979; Swallow & Kuiper, 1988), ansiedade social (Beck, Emery & Greenberg, 1985; Gilbert & Trower, 1990), vergonha (Kaufman, 1996).
Desta forma, os resultados obtidos neste estudo confirmam a hipótese da relação entre comparação social e vergonha na população adolescente, sendo que, quanto mais alto os indivíduos pontuarem na escala de vergonha mais baixos serão os valores de comparação com os outros em termos sociais e vice-versa. Mais concretamente, os dados apoiam que o construto inferioridade está intimamente ligado a uma comparação social negativa. Neste sentido na eventualidade do indivíduo se percepcionar como “perdedor”, “inferior”, este poderá constituir um conjunto de respostas defensivas como a inveja, a vergonha, a vingança, a depressão, a ansiedade social, o ressentimento, a subordinação e o auto-criticismo (Gilbert, Price & Allan, 1995).
No que concerne aos resultados do sub-estudo II - Relação entre Vergonha Externa e Auto-Criticismo, concluímos que existe uma associação elevada entre os constructos. Nos estudos as dimensões de Inferioridade e de Reacção dos Outros, bem como a Sintomatologia Depressiva assumiram-se como variáveis preditoras do Eu Inadequado. Relativamente à dimensão Eu Detestado, do Auto-Criticismo, os dados apontaram que a Sintomatologia Depressiva mediava a relação entre a Inferioridade e o Eu Detestado (que deixa de ser significativa com a introdução da sintomatologia depressiva), assumindo-se como variáveis preditoras daquela dimensão do Auto-Criticismo tanto a Sintomatologia Depressiva como o factor Vazio. Ainda que a Sintomatologia Depressiva se assuma como variável preditora do Auto-Criticismo, diferentes dimensões da Vergonha Externa contribuem para a previsão de diferentes formas de Auto-Criticismo.
A literatura aponta que o auto-criticismo, em termos evolucionários e nas abordagens mais recentes, tem sido claramente associado à propensão para a vergonha (Gilbert & Miles, 2002; Gilbert & Procter, 2006) e ambos, auto-criticismo e vergonha, têm sido referidos como factores que contribuem para o início e manutenção de várias perturbações psicológicas, nomeadamente da perturbação da personalidade borderline. Nos nossos resultados, enquanto que, no Eu Inadequado, os factores explicativos da relação entre a vergonha externa e o auto-criticismo vão para além da sintomatologia depressiva, a Inferioridade e Reacção dos Outros aos meus erros, no Eu Detestado o único factor explicativo, para além da sintomatologia depressiva, é o factor Vazio. Neste seguimento parece importante referir que o auto-criticismo é um processo complexo que assume diferentes formas e funções, isto é, pode assumir a função de incitar o eu a melhorar; para tentar evitar cometer erros e se auto-corrigir e auto-aperfeiçoar (auto-correcção); e/ou de auto-punição/auto-ataque em que está presente o desejo de perseguir, vingar-se, magoar e atacar o eu. Neste sentido podemos hipotetizar que o factores Eu inadequado pode estar mais associado à função de auto-correcção, enquanto que, o Factor Eu Detestado à função de auto-punição.
Os dados obtidos no estudo do factor Eu Inadequado ressaltam a associação entre a vergonha externa, mais concretamente, o facto de se sentir inferior e a Reacção dos Outros aos meus erros, e o Eu Inadequado, que como esperado, reforça os dados da literatura, que sugerem que o auto-criticismo e a vergonha estão associados a uma visão de si como inferior. Desta forma, quanto mais o individuo se percepciona como inferior e tem a ideia que os outros o percepcionam dessa forma, isto é, a percepção da Reacção dos Outros aos meus erros, mais auto-crítico é consigo, no sentido de se sentir inadequado. Seguindo o raciocínio acerca das funções do auto-criticismo, neste factor hipotetizamos que possa prevalecer uma função de auto-aperfeiçoamento, como parece acontecer em certos casos de psicopatologia.
No sentido, de compreender os dados obtidos ao nível do factor Eu Detestado, podemos hipotetizar que o facto de o factor Vazio se apresentar como um factor explicativo do Eu Detestado, esteja relacionado, com o que na literatura é referido, de que em algumas formas de psicopatologia (e.g. Perturbação borderline da personalidade) o grau de ódio e nojo para com o self é a única razão para atacar o self, isto é, para o auto-dano (Strong, 1998). Esta associação é também referida, como um exemplo, em estudos que sugerem uma associação elevada entre a vergonha e a perturbação de personalidade Borderline (Rush et al., 2007). Também, segundo Linehan (1993) a vergonha é considerada uma emoção central na perturbação Borderline da personalidade, bem como no comportamento de auto-dano. Como é usual na perturbação Bordeline, a existência marcada de um Eu Detestado, os dados deste estudo referem que a “vontade” de querer magoar o eu, evidenciando sentimentos de agressividade e ódio para com o mesmo, se encontra associada ao sentimento de vazio que constitui a vergonha externa.
Um importante contributo deste estudo prende-se com a obtenção de uma medida fidedigna e válida de vergonha externa para esta faixa etária, visto que os questionários desempenham um papel importante, por possibilitarem, de um modo válido e fidedigno, ter acesso às formas de pensar, sentir e agir dos adolescentes. Esperamos que os resultados desta investigação venham fomentar a investigação nesta área.