804 - Stefania Vaccaro
RIQUEZA IMATERIAL: transformações na exploração do trabalho e na gestão
Stefania Becattini Vaccaro1
1 Advogada e Professora de Direito Econômico. Mestre em Política Social pela Universidade Federal do
Resumo: Este texto busca evidenciar alguns elementos da racionalidade empresarial
que atualmente coordenam a extração de riqueza no sistema capitalista, especialmente, os atinentes à exploração do trabalho e à gestão de ativos do conhecimento. A investigação adota por base a teoria social crítica em uma visão interdisciplinar e incorpora a análise de alguns casos divulgados na mídia como fonte de elaboração dos conceitos. O estudo aponta para a consolidação do imaterial como o centro de valorização do capital e a utilização do trabalho material como o seu vetor; isso com imediatas consequências aos processos de formação, manutenção e reprodução da força produtiva.
Palavras-Chave: Trabalho, Imaterial, Tecnologia.
Abstract: This text tries to evidence some elements of enterprise rationality that today coordinate the richness extraction in capitalist system specially the related to labor exploration and knowledge asset management. The investigation uses, as base the critical social theory I interdisciplinary vision and incorporate the analysis of some divulged cases as source of concepts elaboration. The study indicates the consolidation of no material as the capital valorization center and the use material labor as its vector with immediate consequences to the formation processes, maintenance and reproduction of productive force.
Keywords: Labor, No Material, Technology.
“Nós compreendemos melhor os viventes
à medida que inventamos e construímos máquinas”
Paul Valéry – Cahiers XIII
INTRODUÇÃO
Estamos em crise! Há pelo menos cinquenta anos nossas certezas se esgarçam, as instituições se erodem, as conjunturas socioeconômicas se desenham por saltos e o modelo de organização do Estado Social2 parece anacrônico; um mar revolto que avança sobre a sociedade do trabalho.
Nem mesmo o mais desatento dos sujeitos seria capaz de ignorar alguns dos sinais das transformações sociais em curso: insuficiência do crescimento econômico para garantir
Isso porque alterações na tecnoestrutura social vêm permitindo a apropriação no processo produtivo de atributos não advindos do trabalho,3 inclusive com sua preponderância sobre outros fatores levando, pois, a transformações quantitativas [pela necessidade decrescente do trabalho tradicional] e qualitativas [pelo desaparecimento progressivo do valor-trabalho]4 na criação da riqueza.
Essas mutações, por sua vez, têm conduzido uma reorganização empresarial produtiva com alteração da dinâmica de compensação de lucratividade5 intra e intersetorialmente
2. A EXTRAÇÃO DA RIQUEZA ECONÔMICA
A economia clássica buscando compreender o modo de funcionamento da sociedade capitalista nascente identificou como fatores geradores da riqueza a terra, o capital e o trabalho, servindo este último como medida universal e real de intercâmbio entre as mercadorias.
Seguindo esses passos Marx avançou na desmistificação da origem da riqueza capitalista. Demonstrou que o trabalho é capaz de produzir mais valor do que aquele necessário à sua reprodução e que este adicional é apropriado pelo detentor dos meios de produção. Sua teoria ganhou mundo, fez escolas e guiou um debate profícuo durante todo o Séc. XX, por outro lado, sofreu vários desvirtuamentos e incompreensões.
Justamente aí parece hoje residir um dos grandes problemas teóricos para identificação dos novos contornos adquiridos pela riqueza capitalista.
Há uma resistência dos teóricos do marxismo ortodoxo a se afastar da teoria valortrabalho, em que pese, “a postulação do trabalho abstrato como base do valor se tornar algo problemático quando nos confrontamos com aquelas passagens dos Grundrisse que nos informam sobre o tendencial esgotamento do modo de produção industrial”
O obstáculo parece ser a compreensão de que riqueza e valor são coisas distintas e que o desaparecimento progressivo deste último não impossibilita o processo de valorização e acumulação do capital. Isto porque esta sutil diferença só se faz perceptível ao atentarmos para a reconfiguração dos fatores de produção [que vem ganhando outra abrangência e permitindo a reorganização do processo produtivo social] dentro das transformações significativas em curso na sociedade contemporânea.
Ora, se a cada revolução7 alteramos as formas de trabalho e de produção é, pois, preciso examinar quais os novos contornos vão sendo fornecidos a partir da revolução digital que estamos a assistir, a qual tem permitido a ampliação das capacidades intelectuais dos indivíduos e também a sua substituição por autômatos (cf. SCHAFF, 1990).
2.1 Conexões Produtivas
A produção, a distribuição e o consumo8 constituem momentos distintos e interligados do processo de nascimento da riqueza capitalista. Durante boa parte dos Séculos XIX e XX a dinâmica dos movimentos entre essas etapas foi regida pela dimensão espaçotempo [seguindo a nossa própria compreensão física do mundo], o que fez da grande fábrica o local privilegiado para comandar o sistema produtivo.
O cenário, no entanto, começou a se alterar. O avanço da ciência permitiu que o tempo deixasse de ser exclusivamente mensurado pelo espaço para também seguir o ritmo da frequência [alterando assim as possibilidades de controle]; trouxe significativos ganhos à microeletrônica e permitiu a interligação dos indivíduos por meio de um sistema de rede mesh. Chegava a revolução digital e com ela toda uma potencialidade de ampliar a produção da riqueza econômica. Mas, onde estaria estava nova potência? E como a sua concretização passou a intervir nos momentos do sistema produtivo?
Na tentativa de responder a estas perguntas [e muitas outras] foram surgindo posições teóricas bastante distintas9 que, muitas vezes, foram sendo confundidas pela adoção de termos imprecisos durante o processo de criação e circulação de significados. Em nosso sentir, porém, o núcleo de valorização e de acumulação do capital migrou para o processo de transformação de dados em conhecimento e para a apropriação empresarial dos mecanismos de cooperação, de comunicação e de uso do intelecto estabelecidos em sua rede formal e informal. Esse entendimento nos faz aderir ao de Gorz (2005) que propaga que o capital fixo material vem, cada vez mais rapidamente, sendo substituído pela valorização de um capital dito imaterial.
Ante essa afirmação várias observações se fazem necessárias. A primeira delas é quanto a confusões conceituais acerca do próprio termo imaterial. No Brasil problemas de traduções das obras de Marx e Engels para o português a partir de edições francesas de caráter interpretativo adotaram a tradução de trabalho espiritual e trabalho intelectual como trabalho imaterial (cf. LESSA, 2009). Por outro lado, algumas leituras equivocadas das teses de Daniel Bell sobre a sociedade pós-industrial levaram o termo imaterial a ser associado a serviços (cf. CAMARGO, 2011). Contudo, nem todo trabalho intelectual constituirá o imaterial, nem tampouco qualquer tipo de serviço. A produção imaterial tanto pode gerar bens intangíveis como tangíveis10 desde que estejam baseados no tripé ciência, arte e cultura11.
Em sentido similar aponta Camargo (2011) ao indicar a produção cultural como epicentro da nova formação da riqueza. Sua afirmativa está baseada principalmente na importância da estetização do consumo e na formação das subjetividades dos indivíduos. Há, porém, outra dimensão que aqui no parece importante. A interligação dos indivíduos por meio de redes de comunicação e a expansão das tecnologias de informação incentivaram o gosto pelo compartilhamento dentro de uma dinâmica veloz, mas controlável.
Afinal, para que estes sistemas possam funcionar eles estão baseados em inúmeros parâmetros, domínios e endereços de protocolo que permitem o fluxo informacional e a coleta contínua de dados a serem processados por softwares inteligentes12 [data mining e machine learning são exemplos de técnicas utilizadas no desenho de algoritmos]. É, pois, dentro de um círculo aberto de regeneração constante pela interação dos ambientes externos e internos que a vida vai sendo transportada para o ciberespaço numa dinâmica que altera os processos de tomada de decisão empresarial e seus riscos.
Pelo mapeamento do genoma do consumidor13 passa a ser possível conhecer e monitorar os comportamentos, estabelecer maior controle sobre as margens de lucro pela redução de um preço considerado caro [para ganhar na escala] ou da própria produção [para gerar escassez], reprogramar a gestão dos estoques – no espaço físico e virtual - alocando os produtos para maior visibilidade numa convergência com o desejo do consumidor, controlar as sazonalidades, incentivar o consumo por meio de programas de recomendação baseado nas preferências e, ainda, criar uma mídia sinestésica ao fazer dos produtos conteúdos de vetores simbólicos14, afetivos e estéticos.
Também é possível externalizar parte dos custos de venda pelo comércio social15 que à espécie de uma franquia virtual permite aos usuários de redes sociais realizarem transações comerciais sem sair de seus perfis, mas não só isso!
Ao permitir parametrizar os comportamentos observáveis, agrupá-los e ordená-los as tecnologias também têm a capacidade de identificar o seu reverso, isto é, evidenciar as ações que são destoantes. Essas poderão constituir um valioso insight para inovação16 ao revelar um modo diferente de articular a realidade dado que, em razão dos próprios movimentos do capital, há uma tendência à homogeneização das práticas, dos produtos, dos cenários e da própria infraestrutura produtiva que vem se tornando na atualidade uma commodity.
Essa cultura de compartilhamento ainda é o substrato para a open innovation, prática gerencial que permite encurtar e baratear os ciclos de pesquisa e inovação. Por meio de plataformas de internet e intranet17 os indivíduos - não necessariamente ligados à empresa -, as instituições de pesquisa, as universidades e outras empresas menores podem fornecer ideias, as quais serão garimpadas e avaliadas pelos departamentos internos de Pesquisa & Desenvolvimento (P&D) que podem convertê-las em um novo produto18.
Afora isso, o surgimento de máquinas inteligentes e sistemas de produção digitais vêm permitindo às empresas a individualização da produção19 [a partir da criação de itens exclusivos pelos consumidores] e levando ao extremo o sistema do just in time (JIT) iniciado com o toyotismo20. Além de possibilitar a externalização de parte de suas atividades a seus próprios usuários, que as realizam por meio de operações de voicemail interativas e transações virtuais na rede.
Toda essa revolução tecnológica também afetou o interior das empresas e transformou a sua estrutura burocrática gerencial. Dentro de um processo de desregulação do tempo e
A automatização permitiu não só reduzir o uso de mão-de-obra como também eliminar camadas administrativas intermediárias; foi possível estabelecer outras formas de trabalho [a exemplo dos teletrabalhos] e de controle, além de ter possibilitado o desenvolvimento da prática da formação de trabalho em equipes e o exercício de atividades múltiplas e descentralizadas [muitas exercidas remotamente] na tela do computador. Trabalhar, então, nestes espaços fluídos de reconfiguração constante passou a requerer não só uma formação objetiva específica como também uma subjetiva pela exigência de um alto nível das capacidades de coordenação, de auto-organização e de comunicação.
Assim, é que um olhar mais acurado sobre todos esses aspectos nos revela uma peculiaridade do atual estágio da revolução técnica: as redes de comunicação e as tecnologias de informação vêm atuando tanto sobre a produção quanto sobre o consumo
De modo que, no atual estágio da acumulação, o núcleo de valorização do capital migrou para os aspectos criativos e intelectuais da atividade humana e, por tal, “a forma mais importante doravante do capital fixo é o saber21 estocado e instantaneamente disponível pelas tecnologias de informação e a forma mais importante da força de trabalho é o intelecto” (GORZ, 2004:14).
É preciso, no entanto, dizer que as informações disponibilizadas no ciberespaço não materializam por si a riqueza capitalista. Os dados precisam ser acessíveis, avaliados e reutilizados para se transformarem em conhecimento e, posteriormente, em títulos de propriedade22. Isso exigirá por parte das empresas um corpo técnico de pessoas altamente qualificadas, o que nos leva a crer que apenas poucas empresas têm a capacidade dominante para a sua exploração, as quais parecem hoje funcionar como satélites a ordenar todo o sistema produtivo.
Também é preciso frisar que a crescente importância do imaterial na formação da riqueza capitalista não deve levar ao entendimento equivocado de que ele prescinda do trabalho material, o qual funciona como o vetor de sua valorização. Ocorre, no entanto, que em razão do deslocamento de valorização do capital as condições de sua execução se alteraram substancialmente produzindo um estranho quadro ao redor do mundo.
3. O AVESSO DO IMATERIAL
As mudanças na tecnoestrutura social cumuladas ao acirramento da concorrência intercapitalista têm dado curso a um num processo de internacionalização23 das empresas e de redivisão internacional do trabalho e, neste sentido, vários movimentos vêm sendo combinados.
As empresas passaram a se encaminhar para processos de deslocalização ou desterritorialização produtiva24 não só [mas também] em busca de trabalho desqualificado e de baixo custo, afinal dentro de um mercado global os braços se multiplicam, inclusive, os de trabalhadores qualificados e sobrequalificados. Isso, por sua vez, colocou em curso um movimento de forte pressão para baixo nos níveis de remuneração dos trabalhadores dos países centrais e criou uma concorrência entre os
Por outro lado, a necessidade de responder à contínua pressão para melhorar a qualidade de seus produtos levou as empresas a buscarem terceirizar os serviços que não eram inerentes às suas atividades de core business. Mas, se esta era a ideia originária ela ganhou contornos bem diferentes ao encontrar com a imperiosa obrigação de redução de custos.
As empresas passaram a terceirizar seus serviços de diferentes formas [empreitadas, outsourcing, offshoring25] e a ter em seus corpos uma multiplicidade de regimes jurídicos de contratação com duas consequências mais explícitas: a heterogeneidade das condições laborais passou a ser a regra e a ocorrência do esvaziamento fático [e não jurídico] da condição de empresário das empresas periféricas [que não apresentam a capacidade definir sobre a organização de seus fatores produtivos constituindo, quando muito, um administrador de mão-de-obra].
Vale dizer, que neste tipo de produção o poder hierárquico permanece firmemente no lugar “[...] a grande empresa tem em seu poder o mutante corps de ballet de empresas dependentes e passa as quedas no ciclo dos negócios ou fracassos de produtos para os parceiros mais fracos, que são espremidos com mais força” (SENNETT, 2010:64).
Afora isso, a fabricação dos produtos passou a ser fracionada e distribuída pelo globo, de modo que a mercadoria final consumida quase nunca é capaz de revelar a complexa teia que lhe dá substância26. Conectadas em rede27, portanto, “[...] as corporações não podem mais ser encaradas como estáveis e homogêneas. Elas devem ser vistas como entidades mutuamente interpenetrantes num constante fluxo levado adiante por uma elaborada teia de contratos em contínuo processo de renegociação” (HUWS, 2009:47).
Já o avanço da maquinaria traz à sociedade [ou deveria trazê-lo] o fantasma da inutilidade, afinal
[...] a ideia de que a tecnologia moderna elimina apenas os empregos para trabalhadores não qualificados, e de que os profissionais de alta qualificação são os nítidos vencedores, pode prevalecer nas discussões populares, mas a verdade é que tal ideia está superada há décadas. O fato é que desde mais ou menos 1990 o mercado de trabalho dos EUA caracteriza-se não por um aumento generalizado da demanda por qualificações, mas sim por um esvaziamento de uma ‘zona intermediária’ [...] – ou seja, aquele tipo de trabalho que sustenta uma classe média robusta tem ficado para trás. E esse buraco no campo intermediário do mercado de trabalho tem aumentado continuamente [...] (KRUGMAN, 2011).
A cada avanço tecnológico as tarefas cognitivas e manuais realizadas mediante o seguimento de regras [e isso inclui vários empregos hoje ditos qualificados] vão podendo ser facilmente substituídas28 e, diga-se, com muito mais eficiência. É apenas de uma questão de tempo e de política [em sentido lato].
Para além desse efeito há ainda outra consequência na inserção crescente de maquinaria no processo produtivo: as tarefas são continuamente simplificadas e cada trabalhador29 passa a poder executar uma multiplicidade de atividades, já que ele não mais necessita ter o domínio da técnica. Isso permite “[...] a contratação de trabalhadores com salários mais baixos que antes, quando eram os trabalhadores, e não as máquinas, que possuíam as qualificações” (SENNETT, 2010:84).
Esse esvaziamento do conteúdo das atividades, por sua vez, gera as condições para um exercício acrítico e indiferente por parte dos trabalhadores, eis que ao não oferecer resistência as atividades também não fornecem elementos que vinculem30 o indivíduo ao trabalho. É, pois, por isso que para um expressivo número da população mundial o trabalho não é mais algo que se faz; apenas algo que se tem dentro de uma rede de empregos contingentes e acidentais.
Enfim, pelo avanço das forças produtivas a divisão do trabalho torna-se cada vez mais complexa e isso traz crescentes dificuldades ao uso de algumas categorias socioeconômicas. Já não mais é possível dizer que todo serviço é improdutivo dado que muitos geram um acréscimo ao produto na forma de conhecimento (cf. HUWS, 2009), tampouco é possível cindir claramente o trabalho formal daquele dito informal, pois continuamente eles se entrelaçam nos movimentos de criação da riqueza social (cf.
Mas, em que pese todas essas significativas alterações há uma importante permanência nesta dinâmica: a essência do controle. A nova ordem não extinguiu os controles passados, porém introduziu outros muito mais opacos que permitem a coexistência de diferentes modos de produção [alguns próximos das condições verificadas no início
A despeito desse pavoroso quadro sobre a sociedade do trabalho “seria um malhumorado sentimentalismo lamentar o declínio do trabalho árduo, da autodisciplina [...]” (SENNETT, 2010: 118) e da velha ética do trabalho, pois elas eram um pesado fardo sobre o indivíduo. Contudo, a atual ausência de um pensamento sistêmico social de longo prazo - capaz de estabelecer uma nova dinâmica de redistribuição das riquezas produzidas - tem ampliado o fosso social e corroído aceleradamente os fundamentos de legitimidade da organização estatal moderna.
Entendemos que para enfrentar essa situação a economia precisa voltar a convergir com a política baseando-se em princípios científicos e nos saberes de diferentes áreas. Só assim teremos uma visão de conjunto capaz de oferecer não só uma leitura crítica da realidade, mas especialmente desenhar caminhos futuros ao estabelecer as normas da casa [oikos nomos].
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A cada avanço técnico os arautos dos novos tempos rapidamente exaltam as possibilidades de construir uma sociedade mais justa, livre e igualitária; louvam a possibilidade de diminuir o fardo do trabalho e aumentar o tempo livre. A realidade, no entanto, teima em evidenciar um quadro bem diferente para grande parte da população mundial.
Como outrora ocorreu pelo surgimento das sociedades por ações o sistema parece ter novamente encontrado um modo para transcender seus limites. Na atual etapa de acumulação capitalista o substrato está no imaterial que se alimenta do potencial humano, afinal só os indivíduos fazem o diferente, produzem atrações únicas, criam suas formas de vida e de ser.
Esta dinâmica, no entanto, tem sido alvo de constantes incompreensões o que tem permitido que a riqueza social silenciosamente seja apropriada privadamente graças a controles muito mais fortes e informes; isso com graves repercussões sobre as cadeias menos produtivas e, claro, sobre as formas de reprodução e manutenção da força produtiva.
É, portanto, preciso ter a coragem de questionar antigas categorias econômicas e jurídicas para verificar em que medida elas ainda são capazes de apreender a realidade de uma produção que, cada vez mais, se socializa. Só assim poderemos discutir outros mecanismos de redistribuição da riqueza social. Trata-se de uma história de múltiplos horizontes possíveis compete à sociedade escrever os seus caminhos.
2 Conforme muito bem marcado por Hassenteufel (1996) o chamado Estado Social se materializou ao redor do mundo de diversas formas e atendendo a diferentes objetivos sócio-políticos, de modo que a utilização deste termo é sempre problemática; no entanto, pela sua repercussão no campo sociológico opta-se por utilizá-la neste trabalho.
3 Apesar do conceito semântico e sociológico do termo trabalho poder significar o exercício de uma atividade autônoma como fator de mediação do ser social dentro de uma relação dialética em que o homem cria a sociedade e a si próprio, o termo foi aqui empregado no sentido de exercício de uma atividade heterônoma, isto é, como trabalho obrigatório imposto externamente ao indivíduo (cf. MARX,
4 Rubin (1980) com base na teoria marxiana explicita que a forma-valor é uma relação vinculada à distribuição de trabalho, a qual permite a intercambialidade de mercadorias diferentes por meio da igualação do trabalho abstrato dentro do tempo socialmente necessário à produção.
5 No processo de produção há o entrelaçamento de produtores independentes que apresentam diferentes taxas de composição de capital [capital constante/capital variável], a qual irá definir a priori a taxa de lucratividade. Nessa equação, entretanto, é preciso considerar a existência de uma transferência de lucratividade entre setores [graças a uma situação de monopólio – natural ou técnico - e de títulos jurídicos de propriedade] o que permitirá uma apropriação de um lucro extraordinário. Esta dinâmica sempre esteve presente no sistema capitalista a novidade do momento atual parece estar na redefinição da composição orgânica do capital.
6 Uma das práticas contemporâneas de gestão é o fracionamento de uma empresa em várias unidades de negócios. A partir daí são estabelecidas práticas de comparação de produtividade, de lucro e de inovação, inclusive, com a criação de equipas de trabalho concorrentes entre si.
7 Denomina-se como revolução uma mudança qualitativa no conjunto do sistema produtivo e não o mero avanço técnico que seja capaz de produzir ganhos quantitativos. Alguns autores entendem que a 1ª
Revolução teria ocorrido com a introdução da máquina a vapor e a 2ª com o advento da eletricidade; por outro lado, existem autores que condensam estes dois avanços tecnológicos dentro da 1ª Revolução por entenderem que ambos operaram na mesma direção, isto é, da substituição da força física do homem.
Deste modo, para os adeptos do primeiro entendimento estaríamos entrando na 3ª Revolução, já para os partidários do segundo entendimento estaríamos iniciando a 2ª Revolução.
8 Para Lazzarato e Negri (2001) haveria, no atual estágio do capitalismo, uma prevalência da fase do consumo sobre a produção.
9 Além do imaterial destacamos: sociedade pós-industrial, do conhecimento, da informação, do acesso e em rede.
10 Este foi o caso, por exemplo, do processo produtivo do Novo Fiat Uno no Brasil. A montadora utilizou dos sistemas de informação para aplicar milhares de questionários ao público, tendo uma equipe em seu interior dedicada à análise das respostas em um curtíssimo espaço de tempo. A partir daí identificou-se o desejo por parte de seu público alvo de designs diferenciados e cores extravagantes, diferentemente da tradição do mercado brasileiro de cores sóbrias. Após um estrondoso lançamento utilizando, em grande medida, as mídias digitais a empresa ainda inovou ao possibilitar que seus consumidores pudessem montar seus carros pelas inúmeras variações de acessórios sem que tivessem que se dirigir a uma concessionária física.
11 O termo está sendo usado no sentido de habitus e valores simbólicos (cf. BOURDIEU, 2011).
12 Avanços na ciência computacional levaram a sua linguagem a sair da lógica binária (1/0) para entrar na lógica nebulosa (1/+-), a qual é capaz de processar informações não quantificáveis e emular a forma de julgamento humano para “aprender” com as situações passadas reprogramando-se continuamente.
13 A rede americana de cafeterias Starbucks usa um aplicativo de celular para que seus consumidores registrem cada compra e ganhem uma bebida ao completar 15 compras. As informações fornecidas possibilitam a empresa saber quais os produtos favoritos de cada consumidor e os horários de sua frequência em determinada loja. Ante essas informações a empresa cria promoções, muitas usando oforsquare, para incentivar os clientes a visitar mais suas unidades (cf. AGOSTINI, 2012).
14 A partir daí os preços passam a não ter mais ligação direta com os custos. Esta pode ser uma das razões para a Apple ter, no quarto trimestre de 2011, absorvido 75% do lucro do setor de aparelhos móveis, inobstante, seu market share seja de apenas 9%. (A APPLE .... 2012).
15 A varejista Magazine Luiza em 2011 possibilitou a internautas vender produtos da companhia em seus perfis no facebook. A meta era conquistar 10.000 divulgadores durante o primeiro ano, entretanto, em duas semanas já contava com 20.000 (cf. DALMAZO, 2012).
16 Nem toda criação constitui uma inovação. Dentro da racionalidade empresarial esta só assim é definida quando a ideia for capaz de ser transformada em um produto tangível ou intangível que permita, de forma direta ou indireta, a sua monetização.
17 A gigante farmacêutica Eli Lilly desenvolveu um site interno chamado InnoCentive. Hoje mais de 34 empresas, incluindo a Boeing, DuPont, Novartis e Procter & Gamble, usam desta plataforma para orquestrar um time de 250 mil cientistas, de mais de 40 disciplinas, espalhados por 200 países (cf.
18 A empresa dinamarquesa Lego criou uma espécie de rede social – Lego Cuusoo – e lançou um desafio àqueles que quisessem ganhar dinheiro. O interessado deveria fazer uma sugestão de um novo produto, colocá-lo em votação e fazer campanha para ganhar 10.000 votos. Quem alcançasse a votação mínima teria seu projeto avaliado pelos engenheiros da Lego; caso fosse ele aprovado e o brinquedo acabasse nas lojas o ganhador levaria o equivalente a 1% das vendas: assim surgiu o Minecraft Lego. Já a gigante de alimentos Pepsico lançou uma campanha para selecionar um novo saber para a batata Ruffles. Os consumidores enviaram quase 2 milhões de sugestões por meio das mídias sociais, tendo a empresa selecionado 3 finalistas. Os três novos sabores foram colocados à venda e a partir de uma votação dos consumidores nas redes sociais foi escolhido um deles – Strogonuffles – premiando o seu idealizador com
1% sobre a renda gerada pelo produto (cf. LEAL; FERRARI, 2012).
19 A Skingen, braço da empresa O Boticário, faz cremes personalizados para tratar o envelhecimento dapele. Seus 16 pesquisadores recebem amostras de pele e fabricam cremes individuais. Já a fabricante de eletrodomésticos Whirlpool, dona da marca Brastemp, permite a seus consumidores a personalização de portas, prateleiras, puxadores pela recombinação das 25.000 configurações constantes em seu cardápio
20 A gigante Amazon gerencia todo o seu estoque conforme a demanda por meio do uso de robôs conhecidos como Riva, os quais são capazes de receber, processar informação e tomar decisões. Além disso, ela utiliza do postponement de localização e solicita aos fornecedores que despachem seus produtos diretamente ao cliente não mantendo, desta forma, o produto em estoque próprio (cf. GRAEML, 2004).
21 Para Gorz (2005) há uma diferença entre saber e conhecimento. Aquele é advindo da socialização humana, não sendo passível de formalização enquanto o conhecimento já o seria. Este elemento parece importante para análise da progressiva extinção da teoria valor-trabalho.
22 Gorz (2005) e Negri (2001) acreditam que a intelectualidade em massa resiste a ser apropriada pelo capital. Contrariamente, entendemos que esta apropriação vem sendo feita com êxito por meio dos títulos de propriedade [patentes, copyright, marcas e desenhos registrados], os quais tem dado ensejo ao mercado onde as grandes empresas travam suas batalhas.
23 Não se ignora que internacionalização sempre foi uma estratégia presente nos movimentos do capital; porém, a utilização do termo aqui quer demarcar os contornos diferentes dessa prática adquiridos com arevolução digital. A partir da globalização foi possível que as empresas, sob um comando centralizado, adotassem uma estratégia global de jogar, em grande parte, com as pluralidades formais das ordens normativas, especialmente, em matéria fiscal e social (cf. JEAMMAUD, 2000).
24 A outra ponta desta cadeia é a descentralização da distribuição por meio de redes de franquia, de empresas parceiras e/ou autorizadas; entretanto, em razão do objetivo deste trabalho este tema não será abordado.
25 Denomina-se empreitada a assunção de obra ou de serviço dentro do próprio espaço físico empresarial; outsourcing é o termo empregado para terceirização fora da unidade empresarial, mas ainda dentro do território nacional; offshoring é o termo utilizado quando o provedor do serviço está no exterior.
Entendemos que para investigação adequada do corpus híbrido empresarial é ainda necessário considerar os regimes de contratação a tempo parcial, os temporários, os autoempregados e os freelances.
26 A produção dos iPads está a cargo da Foxconn que, na China, oferta o salário inicial de $2/hora e um dormitório [com 6 a 8 camas por quarto] ao custo de $16/mês. Lá as fábricas podem trabalhar 24 horas por dia e rapidamente adaptar-se a mudanças produtivas. Já o Facebook para ter o seu ambiente higienizado paga $1/hora para trabalhadores ao redor do mundo rastrear conteúdos ofensivos dentro da sua política institucional (cf. LANCASTER, 2012).
27 O termo aqui não é uma referência à prática empresarial de organizar-se em rede com outras empresas complementares num jogo de ganha-ganha, o qual tem por objetivo estabelecer barreiras para entrada de novos concorrentes (lock-in) e também dificultar a mobilidade do cliente (capital relacional). O termo tem aqui o sentido de corpus híbrido.
28 Essa substituição às vezes inclui toda uma cadeia de atividades como, por exemplo, ocorreu no setor bancário nas operações de digitação/empacotamento/conferência das transações financeiras hoje realizadas, quase integralmente, por meio das tecnologias digitais.
29 Aqui é preciso diferenciar uma elite trabalhadora, pois “em níveis superiores técnicos, o advento docomputador enriqueceu o conteúdo de muitos serviços” (SENNETT, 2010, p. 85).
30 Para Dejours (1992) a ligação forte com o trabalho surge da capacidade do indivíduo persistir frente ao fracasso de uma tarefa que o desafia; do sofrimento que o move na busca de uma solução e do reconhecimento daí advindo.
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