706 - Vera Domingues
Malaca 500 anos depois: uma reflexão crítica sobre o património de origem portuguesa
500 anos separam o encontro entre Malaca e Portugal, guardando parte da traça material que restou dos 130 anos da soberania portuguesa sob o sultanato malaio. Mas 500 anos contam também a história da cidade e da comunidade, construídas no processo de várias vitórias e derrotas coloniais.
A discussão deste processo não cabe aqui, nem é este o propósito da comunicação. E no fundo o que importa apontar é que a coexistência de pessoas de diferentes culturas e religiões herdadas de séculos de uma vida multirracial tornaram a cidade um palco caleidoscópico - multiétnico, multicultural, polifónico -, com um sentido de identidade cultural distinto e singular quanto aos demais Estados da Malásia. Esta perceção da diversidade cultural, também presente nas formas construídas, foi essencial para o uso do património material enquanto metáfora da perspetiva cosmopolita que suporta a formação da identidade malaia pós-independente.
Com presença na cidade desde o séc. XVI, e na falta de maiores vestígios físicos do período do sultanato, o património de origem portuguesa foi então assumido uma espécie de grau zero na história linear de Malaca, um ícone central para a retratação da identidade contemporânea e para a imagem promocional que nutre a indústria turística local e nacional.
Mas que património de origem portuguesa é este? É a questão que aqui se põe. A qual não tem a ambição de contribuir com uma resposta para a sua definição. Antes, como o título esclarece, promover uma reflexão, questionando os projetos em torno do património material, que medeiam o que vemos e o que nos é contado do passado da cidade. E, no limite, apurar se se trata de um legado com traços incontestáveis de origem portuguesa ou um estado sem sítio, no sentido em que é somente um emblema que prova uma qualquer “genuinidade de antanho” e nada mais.
St. Paul’s Hill, incontestável coração de Malaca desde o sultanato malaio, é o lugar onde todos os poderes coloniais e as estruturas governamentais pós-independência se estratificaram, compactando uma intrigante mas completa história da nação mediante o património material que ao longo do tempo o definiu. Em conjunto com a zona qu alberga os bairros e lojas de comércio tradicional dos Babas e Nyonyas1 e dos Chitty,2 e as antigas mesquitas do Bairro dos Kling e de Hulu, incorpora, desde 1988, o estatuto de centro histórico malaquês, e o mais antigo da Malásia.
Todavia, o planeamento, gestão e apresentação do património material inadvertidamente resultou de uma seleção atendendo aspetos específicos da narrativa histórico-cultural, deforma a fixar as características exclusivas da identidade/cultura malaia que se pretendeu promover.
Fora desta seleção, ficaram as ruínas da Igreja de S. Lourenço (ca.1613) e a Igreja de São Pedro (ca.1710). Ou o Bairro Português, fundado há oito décadas pela administração britânica, e para o qual a comunidade de descendentes portugueses transportou o legado - folclore, língua, religião, gastronomia, etc. - resultante do tempo em que perdurou a soberania portuguesa na região, tendo-se tornado um lugar movido por uma atmosfera própria que evoca o sentimento de nostalgia, pertencimento e respeito à pátria lusa.
Porque foram excluídos? É a questão que devemos colocar. E a resposta, que quiçá serve para tantas outras significantes construções ou espaços que por opção ficaram combo seu lugar na história omisso, talvez esteja na construção da narrativa estórica orientação turística que o Plano Estrutural 1991-2010, objetivado a providenciar um enquadramento oficial de proteção e administração ao património material, seguiu, quando se elegeu o perímetro do núcleo histórico para “museu vivo”.
Porque da ânsia em jamais se associar a alcunha “buraco adormecido” a Malaca, o Estado embarcou numa reinvenção do próprio tema urbano, dirigindo-o cada vez mais para a indústria turística.
Desta forma, as estruturas patrimoniais do núcleo histórico, entre as quais se destacam a
Porta de Santiago e a Igreja de S. Paulo, não só pela peculiaridade arquitetónica secular que conservou Portugal como um dos lugares de origem da história da cidade, mas que foram a base material para o início da narrativa pois cunhos do tempo áureo de Malaca enquanto o porto comercial do Sudeste Asiático quinhentista, tornaram-se peças fundamentais da exposição urbana (interpretada) da cultura e da história.
Porém, no início do séc. XXI ouviam-se lamentos do quanto, “tanto da nossa história já foi perdido. E tanto se vai perdendo […] Não vejo ninguém a fazer nada para proteger o que ainda resta. A cidade de Malaca deveria ser um museu vivo, não um mercado turístico.3” E em Outubro de 2000, “Salvem o Património de Malaca” foi a epígrafe da petição de assinaturas lançada por arqueólogos e arquitetos na tentativa de chamar a atenção à urgente necessidade de salvaguarda do património e procura de novos processos de gestão. Ressalvas, igualmente expressas nos relatórios dos consultores da UNESCO face a uma possível entrada de Malaca na Lista do Património Mundial, e que adquiriram maior preocupação aquando as descobertas de fragmentos que se admitiu serem partes estruturais da fortaleza portuguesa.
Desenterrar a prova material da cintura muralhada, outrora tida como A Famosa, significou a possibilidade de recuperar o ícone da Idade de Ouro de Malaca, refinando a amostra histórica mediante a capitalização da fortaleza e não somente da porta dela reminiscente. Sequencialmente, o foco dos processos de patrimonialização e gestão urbana giraram em torno do património de origem portuguesa. Não sem que antes, se tivesse registado alguma controvérsia.
O mesmo sucedeu com o projeto já concluído para a reconstrução, pedra-a-pedra, do perímetro fortificado. Dado tratar-se de um autêntico simulacro que atribui a forma original a uma nova construção, com o objetivo de replicar um ambiente já vivido.
E contudo, de uma arquitetura com genes portugueses que resultou de usos específicos do passado, a réplica foi contemporaneamente selecionada na perspetiva de criar um carácter e atmosfera urbana única, que atrai turistas e visitantes pela sua suposta originalidade centenária portuguesa. Mas, que em suma, não é mais que uma versão idealizada e reinterpretada, onde ocorre a experiência imaginada do passado. Ficando claro como na ausência da estrutura real a representação se apropria do pouco que resta, tornando-se a estrutura em si.
A materialidade que reveste a arquitetura no seu todo coerente acaba assim por diluir-se na representação encenada. Reinventando-se, porque reinventada, a cada passo do processo de simulação da história. E o património de origem portuguesa perde, desta forma, a integridade e valorização física, tornando-se tão-só um emblema numa imagem que se quer reconciliável com o passado. Um património cujo estado, é um estado sem sítio, porque subvertido o legado feito de traços incontestáveis de origem portuguesa em favor de uma “reconstrução” que simbolicamente é a essência da sua autenticidade.
1 Designação da comunidade sino-malaia, usada especificamente para distinguir os chineses descendentes da população do séc. XV
e XVI nascidos nos territórios dos Estreitos da Península Malaia dos chineses nascidos na China.
2 Designação dos descendentes de mercadores indianos dos séculos XV, XVI e XVII (indo-malaios).
3 Chin, Lim Huck; Jorge, Fernando (2006), Malacca: voices from the street. Malaysia: Lim Huck Chin, p.80