705 - Martina Matozzi
Exemplos de algumas representações da emigração portuguesa no dia 10 de Junho. Universalismo internacionalista e/ou reformulações da ideia do Império?
Martina Matozzi
Doutoranda CES - Patrimónios de Influência Portuguesa
1. Informações sobre a comunicação:
Na presente comunicação exponho a história do Dia 10 de Junho e proponho uma reflexão sobre dois exemplos de representação da emigração portuguesa ligados ao feriado nacional mencionado.
O estudo que apresento inaugurou uma série de pesquisas que têm como objectivo o de entender o que existe hoje, em Portugal, em termos de representação da emigração: museus, monumentos, celebrações e festas.
Foi desta forma que tentei melhorar e enriquecer o trabalho de pesquisa da tese de doutoramento que pretendo redigir, cujo título é “Portugueses de Torna-Viagem. A Representação da Emigração na Literatura Portuguesa”. A tese é orientada pela Professora Margarida Calafate Ribeiro (CES Universidade de Coimbra. Orientadora Principal) e pelo Professor Roberto Francavilla (Facoltà di Lettere e Filosofia. Università degli Studi di Siena. Co-orientador) e tem como objectivo perceber como e porque os escritores portugueses escreveram e escrevem sobre emigração a partir de meados de 1800, ou seja em correspondência com o início da emigração moderna e económica, até os dias de hoje.
2. Sobre a história do dia 10 de Junho
A 12 de Outubro de 1910, poucos dias depois da implantação da Primeira República, um decreto determinou os novos feriados nacionais, com o propósito de eliminar os feriados religiosos e de responder à exigência republicana de laicizar o país. O decreto de 12 de Outubro dava aos municípios a possibilidade de escolher um feriado municipal que representasse a sua história e tradições. Em Lisboa foi escolhido o dia 10 de Junho para homenagear Camões na data da sua morte dando, desta forma, continuação às Comemorações em honra do poeta (1880) que alguns elementos do movimento republicano inauguraram ainda na última década de monarquia.
O dia 10 de Junho tornou-se feriado nacional sob a denominação de “Festa de Portugal” em 1925, em plena afirmação nacional republicana e no seguimento do IV Centenário do Nascimento de Camões, em 1924. Mesmo assim, o feriado não foi celebrado publicamente com continuidade.
Durante o Estado Novo a imagem de Camões, entre outras relevantes figuras da História de Portugal (pense-se, por exemplo, no Infante D. Henrique), foi utilizada pelo Regime Salazarista para a construção de uma imagem (mítica) do país e da sua história, imagem que deveria sustentar a ideologia nacionalista.
Em 1933 o dia 10 de Junho passou a ser comemorado como “Dia de Camões e de Portugal”. Em 1944, no Estádio do Jamor, passou a ser designado “Dia de Camões e da Raça”, em memória das vítimas da chamada, na altura, Guerra do Ultramar. Em 1963 o dia 10 de Junho passou a homenagear também as Forças Armadas Portuguesas.
Depois da Revolução de 25 de Abril de 1974, o dia 10 de Junho continuou a ser feriado, mas nos três primeiros anos não houve comemorações públicas. A instrumentalização nacionalista da figura de Camões como herói da pátria, foi silenciada nos primeiros anos do pós-25 de Abril e a importância da imagem do poeta voltou ser valorizada, mas com um discurso diferente, em 1977, ano em que o 10 de Junho foi novamente celebrado publicamente como “Dia de Camões, de Portugal e das Comunidades Portuguesas”.
3. Considerações sobre o estudo que irei apresentar
O nosso futuro não depende agora das questões menores da conjuntura e da especulação políticas, mas sim do poder de realização do projecto universalista que foi o dos nossos antepassados e que há-de continuar a ser nosso no quadro de relações que em quinhentos sonhámos estabelecer com todo o mundo. A coesão das Comunidades Portuguesas à volta dos valores da nossa cultura e dos objectivos que constituem o nosso projecto de sociedade, há-de permitirmos encontrar a solução dos problemas que urge resolver. (Discurso de Ramalho Eanes in “Jornal de Notícias” 12/06/1977 p. 5)
A Pátria é, na verdade, um conjunto de sentimentos derivados do lado afectivo da nossa alma que se concentram na Saudade que todos conhecemos bem e sobretudo quando vivemos numas das Comunidades Portuguesas no Mundo (António Cravo, 1998: 27)
Aventura de pobre [...] é sempre a dos que buscam em longes terras o que em casa lhe falta. Contudo não se ganha nada, a não ser contribuir para novos mitos, pouco inocentes, tanto sob o plano cultural como político, em unir e assimilar o que a história separou e continua separado. (Eduardo Lourenço, “A emigração como mito e os mitos da emigração”, 1977)
Partindo das reflexões de um ensaio de Eduardo Lourenço escrito em 1977 sobre o fenómeno migratório português (“A emigração como mito e os mitos da emigração”) e a sua representação e codificação no contexto português mais recente e contemporâneo, ou seja num contexto pós-colonial e europeu (Portugal Pós-Império), irei apresentar uma reflexão sobre algumas representações da emigração no dia 10 de Junho.
Analisarei primeiro o discurso oficial proferido por Ramalho Eanes em 1977, ano das reassumidas comemorações do feriado na cidade de Guarda e a que se refere Eduardo Lourenço no ensaio supracitado. Sucessivamente, falarei de um livro escrito em Paris em 1998 por um emigrante português, António Cravo, livro que tem como objectivo principal explicar o significado do dia 10 de Junho (O 10 de Junho. Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas e o seu significado).
Considero que a ideia de Portugal como país peregrino, ligada à associação emblemática Camões-emigrante, ou mais genericamente a uma visão idealizada do período dos Descobrimentos e comemorada neste feriado nacional, pode obscurecer muitos aspectos relativos à emigração portuguesa. A associação Camões-emigrante que se faz a partir de 1977 substituindo “A raça” com as “Comunidades Portuguesas”, de facto, pode vir a demostrar a presença de atitudes de feição mítica que caracterizaram o pensamento português sobre si mesmo transmitido em momentos de celebração pública, ofuscando, desta forma, outras narrativas possíveis para o repensamento do fenómeno migratório que marcou e ainda marca o país.
Os textos estudados são simbólicos por causa das datas da sua publicação: o discurso de Ramalho Eanes é proferido poucos anos depois do fim do Estado Novo, em 1977, e o livro de António Cravo é publicado em Paris em 1998, ano da Expo de Lisboa. Ou seja, por um lado há um discurso oficial sobre Portugal e a história recente da emigração, num momento em que o país começa o seu percurso de integração no contexto europeu e, por outro, há um discurso oficioso, o de António Cravo, escrito num momento em que, na Europa, Portugal começa um processo de reconhecimento de um novo espaço no mundo.
A minha hipótese é que as duas representações da emigração de que irei falar são expressões de um universalismo internacionalista que marca o pensamento sobre a emigração na História de Portugal, ou são ainda possíveis reformulações da ideia de Império que, talvez, continuem a ser reproduzidas através de um processo de reapropriação de discursos já existentes e obsoletos, na contemporaneidade em momentos de celebração e representação do feriado em análise.
TEXTOS EM ANÁLISE:
CRAVO, António (1998) O 10 de Junho. Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, Paris, Edition Lusophone.
Discurso de Ramalho Eanes in “Jornal de Notícias” 12/06/1977.
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