702 - Edilson Pereira
Imagens religiosas de Ouro Preto, entre o passado e o presente
Edilson Pereira
(Programa de Pós-graduação em Antropologia Social/Museu Nacional/ Universidade Federal do Rio de Janeiro)
Apresento neste trabalho uma reflexão sobre algumas imagens religiosas de Ouro Preto, cidade do interior de Minas Gerais, Brasil. Tendo sido elevada à categoria de “Patrimônio Nacional” pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, em 1938, e de “Patrimônio Cultural da Humanidade” pela Unesco, em 1980, Ouro Preto faz parte das chamadas “Cidades do Ouro” – em referência à intensa atividade aurífera que se desenvolveu sobretudo no século XVIII naquela região[1]. É principalmente desse período histórico que datam as suas mais importantes igrejas.
Dentre as várias igrejas e capelas distribuídas pelos bairros de Ouro Preto, destacam-se duas principais, que correspondem às matrizes da cidade: uma situada na parte leste, no bairro de Antônio Dias, e outra à oeste, no bairro do Pilar. Essas matrizes correspondem a duas paróquias, fronteiriças, onde ficam guardadas as imagens que abordo nesta análise. Na paróquia do Antônio Dias, encontra-se a Nossa Senhora das Dores, que é guardada em uma capela que leva nome da imagem, e sai de lá apenas uma vez por ano, quando é levada para a matriz. Na paróquia do Pilar, por sua vez, estão as imagens do Senhor dos Passos e a de Nossa Senhora das Dores, que permanecem em altares laterais da matriz, situados um de frente para o outro.
Nessa última igreja em particular, que é também um museu[2], tais imagens compõem o ambiente sacro que, ao longo do ano, é procurado por milhares de turistas que se direcionam a Ouro Preto para conhecer as obras artísticas e arquitetônicas do barroco e do rococó brasileiro. Dependendo do dia da semana, o público presente na igreja varia bastante, oscilando entre turistas interessados na história artística e moradores mobilizados por sua religiosidade.
Na maior parte do ano as imagens citadas permanecem como um elemento entre os vários outros que compõem o cenário interior da igreja matriz do Pilar, seja ela observada em dimensão devocional, artística e/ou turística. Na época que corresponde ao período de aproximação da Semana Santa, no entanto, essas imagens ganham uma visibilidade acentuada. Primeiro, os seus altares passam a ser enfeitados de um modo diferente dos demais; depois, elas têm suas roupas trocadas, seus cabelos penteados, e são postas sobre andores, para participar das procissões mais importantes da Semana Santa.
Juntos, o Senhor dos Passos e a Nossa Senhora das Dores participam das procissões nas quais se rememoram os momentos finais da vida de Cristo. Feitas em madeira, em tamanho análogo ao humano, tais imagens têm braços e mãos articulados – e no caso do Cristo, as suas pernas também são móveis. As Nossas Senhoras são vestidas com um manto azul escuro com adornos em dourado, cobrindo a túnica violeta. O Senhor dos Passos usa uma túnica vermelha com bordados dourados, possui uma coroa de espinhos e tem o rosto ferido. Seu corpo é posicionado sempre com um dos joelhos ao solo, para suportar o peso da cruz que lhe atravessa as costas. Já Nossa Senhora, que encontrara o seu filho à caminho da morte, tem o coração transpassado por uma adaga de prata e o rosto coberto por lágrimas.
Diferentemente do resto do ano, durante a festa da Semana Santa essas imagens estão ao alcance das pessoas, que as tocam, beijam, fotografam e acompanham nas procissões – cujo percurso é sempre mantido de modo a intercalar a passagem entre os “dois lados” de Ouro Preto, Pilar e Antônio Dias. Esse formato atual das procissões deriva, segundo os moradores, de uma rixa “antiga”, vinculada à origem da cidade[3]. Trata-se de uma divisão que remeteria ao século XVIII, mas que graças à mediação das imagens é ritualmente atualizada nas procissões da Semana Santa.
É, portanto, em meio a um contexto ritual, no qual o Senhor dos Passos e a Nossa Senhora das Dores encenam o triste encontro a caminho do Calvário, que a história da cidade – em seu mito de origem – é também encenada. O drama cristão é representado junto ao da própria cidade, partida em duas metades. Nas procissões, as imagens são “entregues” de uma paróquia a outra (saindo, por exemplo, de uma igreja do Pilar e chegando em uma igreja do Antônio Dias, ou vice-versa), e depois “retornam” para as suas igrejas originais. Nesse movimento, as paróquias desenvolvem um jogo agonístico (Mauss, 2003[4]), no qual elas dividem a responsabilidade pela organização e realização da festa, alternando-se em anos ímpares e pares.[5]
Nesse contexto de disputa, a análise de Victor Turner sobre os símbolos rituais se apresenta como uma importante referência para compreendermos as múltiplas inferências que se podem fazer ao acompanharmos os caminhos das imagens citadas. Simultaneamente, elas remetem: à paixão, morte e ressurreição de Cristo; ao estatuto de obras de arte que fazem parte de um acervo barroco patrimonializado; e às histórias sobre a origem da cidade e das suas paróquias mais importantes. E o fazem ao mesmo tempo em que protagonizam as encenações mantidas no momento presente, em uma festa religiosa, que mobiliza moradores, comerciantes locais e milhares de turistas. As imagens do Senhor dos Passos e de Nossa Senhora das Dores remetem, assim, a diferentes temporalidades, condensando-as através de sua participação nos rituais da Semana Santa. Enquanto símbolos rituais, elas conectam o passado (seja o dos eventos fundamentais do cristianismo, ou os vinculados à origem da cidade e das paróquias) com a vida atual, mobilizando mobilizarem uma série de representações que influem no campo da experiência social no presente.
[1] Época correspondente ao período colonial brasileiro, que durou até 1822. A partir do ano seguinte, a cidade, até então chamada de Vila Rica, passa ao status Cidade Imperial e tem seu nome trocado para Ouro Preto – em referencia ao tipo de mineral que se extraía na região, que tinha em seu exterior uma coloração escura.
[2] O Museu de Arte Sacra do Pilar é composto por quase toda a área interna (nave central, altar, sacristia etc.) da igreja do Pilar.
[3] A Vila Rica (1712) se formou após um intenso conflito entre dois arraiais distintos, um ocupado sobretudo por paulistas (mestiços de brancos e índios) e o outro por portugueses e pessoas de outros estados. Esses últimos eram chamados pelos primeiros como “emboabas” que, em tupi-guarani, significa ‘estrangeiros’”. Com a vitória dos portugueses sobre os paulistas, o império passou a desenvolver mecanismos de controle sobre a extração e circulação de ouro e pedras preciosas na região e criou as primeiras instituições da nascente vila.
[4] MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a Dádiva. In: Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003.
[5] Nos anos pares, como em 2012, os eventos públicos da Semana Santa são realizados pela paróquia do Pilar. Já nos anos ímpares, a responsabilidade fica por conta do Antônio Dias.