701 - Cristina Valentim
À procura da autenticidade “indígena”. Uma reflexão sobre o processo de tradução cultural na Lunda colonial
Cristina Sá Valentim,
doutoranda no 2º ano do programa de Pós-Colonialismos e Cidadania Global
Palavras-chave: Autenticidade, Cultura, Folclore, Tradução, Diamang.
Resumo
A experiência colonial tem subjacente um exercício de tradução cultural. Quer dizer, a chegada e a ocupação efectiva de territórios outros, e de Outros, resultaram no actualizar de velhas e no engendrar de novas narrativas e estórias sobre pessoas, tempos, espaços e coisas. Neste sentido, o encontro colonial não pressupôs apenas uma conquista territorial mas também um encontro entre diferentes conhecimentos, representações e pessoas mediado por relações de conquista, dominação, negociação, relocalização e ressignificação (Mudimbe, 1988).
Para a construção e validação do discurso colonial, o colonizador construiu um tipo de pensamento que exoticizou o Outro, reificando-o à imagem do seu superior – o Eu, o europeu – , ou melhor, enquanto a sua realidade externa, aquilo que Edward Said (2004) chamou Orientalismo. Quer dizer, a eficácia política da autoridade colonial passou em grande medida pela tradução cultural veiculada pela narrativa do exótico, ou seja, pela instrumentalização de universos epistemológicos e ontológicos actuantes no palco colonial. O exercício da tradução cultural assenta em estratégias de poder que passam pela identificação de um Eu e de um Outro, isto é, processos identitários que se desenrolam através de regimes de representação. E a autenticidade é um deles.
A presente análise parte da investigação que elaborei no arquivo documental da Diamang, a Companhia de Diamantes de Angola, uma empresa de extracção mineira que, sob gestão portuguesa, se instalou em Angola, na Lunda, entre 1917 e 1975. Centro-me nas dificuldades do processo de recolha do ‘folclore musical nativo’ levado a cabo pela empresa de 1950 a 1955. Apresentando resultados de uma investigação em curso, nesta comunicação interessará reflectir em duas questões.
Em primeiro lugar, traduzir implica interpretar, o que subentende mecanismos de manipulação da linguagem com a qual representamos o mundo e o vamos construindo (Venuti,1992). O olhar é algo à partida equivocado – eu vejo o Outro apenas por meio das minhas lentes, de um filtro, da minha interpretação, da minha posição de enunciação (cf. Hall, 1990: 222). Isto significa que toda a tradução cultural implica “intraduzibilidade” no sentido em que os significados da cultura ‘estrangeira’ são modificados porque reinterpretados e reapropriados pelo contexto representacional da nossa cultura (Carbonell, 2008: 61).
O idioma do folclore, do qual a autenticidade faz parte, consiste num produto de apropriações e construções estratégicas de tempos, espaços e práticas através de processos de objectificação cultural (Handler, 1988). Nas sociedades de colonização (settler societies) – nomeadamente na Lunda, em Angola – pode ser entendido como uma das várias “tecnologias culturais” que, a par das “tecnologias materiais”, serviu um projecto cultural de controlo político (Dirks, 1992: 3). Enquanto forma essencialista e pretérita, a retórica da autenticidade foi eficaz enquanto um mecanismo identitário que significou a inferiorização do Outro por ser, justamente, um exercício subtil de enaltecimento do Mesmo.
Em segundo lugar, e partindo de uma abordagem etnográfica às dificuldades que este processo de objectificação cultural trouxe aos colectores de ‘tradições autênticas’, importa problematizar o conceito de tradução cultural na situação colonial, o que leva a constatar três aspectos:
a) A própria natureza polissémica e dinâmica das culturas nativas veio a oferecer resistência às representações apriorísticas e estereotipadas sobre si, originando dificuldades na recolha do ‘autêntico’ e num necessário ajuste de comportamento por parte dos colectores de forma a ‘encaixarem’ a diferença cultural nos seus regimes de verdade. Apesar de ser uma tradução de índole assimilacionista, não foi um processo linear e unidirecional, assumindo um caráter pluriautoral (Wolf, 2008 [2002]).
b) O encontro colonial assume uma vertente performativa e criativa, onde a não correspondência entre expectativas e experiências leva a constantes reformulações de forma a manter as ‘linhas abissais’ que separam o Outro e o Mesmo (Santos, 2007) – linhas que afinal se mostram frágeis –, úteis na preservação e legitimação da dominação colonial. Neste sentido, ambos os agentes da situação colonial – colonizador e colonizado – são co-produtores da experiência colonial e vão constituindo-se mutuamente (e não de forma dicotómica) ao longo das interacções que estabelecem.
c) O espaço da tradução cultural (vista aqui ao nível do discurso e do contexto) é um lugar onde se negoceiam imaginários, experiências e desejos - um espaço de produção de significados que Homi Bhabha (1990) designa de ‘terceiro espaço' por não se localizar nem na cultura de partida nem na de chegada, e que é o próprio espaço da cultura: um lugar de conflito. Por isso, a tradução cultural não é um processo mimético e antes situado, praticado, performativo, criativo, multi-autoral e alicerçado em relações assimétricas de poder que estão na base da construção das identidades (Carbonell, 2008 [1996]).
Referências bibliográficas
Bhabha, Homi (1990), “The third space. Interview with Homi Bhabha” in Jonathan Rutherford (ed), Identity: Comunity, Culture and Difference. Londres: Lawrence & Wishart, 207-221.
Carbonell, Ovidio (2008) [1996], “O espaço exótico da tradução cultural”, in João Ferreira Duarte (org.), A cultura entre tradução e etnografia. Lisboa: Nova Vega, 59-77.
Dirks, Nicholas B. (1995) [1992], “Introduction: Colonialism and Culture”, in Nicholas B. Dirks (ed.), Colonialism and Culture. EUA: The University of Michigan Press.
Hall, Stuart (1990), “Cultural Identity and Diaspora”, in Jonathan Rutherford (ed), Identity: Comunity, Culture and Difference. Londres: Lawrence & Wishart, 222-237.
Handler, Richard (1988), Nationalism and the Politics of Culture in Quebec. Madison, Wisconsin: The University of Wisconsin Press.
Mudimbe, Valentin Yves (1988), The Invention of Africa. Gnosis, philosophy and the order of knowledge. USA: Indiana University Press.
Said, Edward W. (2004) [1997], Orientalismo. Representações ocidentais do Oriente. Lisboa: Edições Cotovia Lda.
Santos, Boaventura de Sousa (2007), “Para além do Pensamento Abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes”, Revista Crítica de Ciências Sociais, 78, Outubro, 3-46.
Venuti, Lawrence (ed.) (1992), Rethinking Translation. Discourse, Subjectivity, Ideology. Londres e Nova Iorque: Routledge.
Wolf, Michaela (2008 [2002]), “Para além da cultura como tradução. Modelos de representação etnográficos nos estudos de tradução”, in João Ferreira Duarte (org.), A cultura entre tradução e etnografia. Lisboa: Nova Vega, 105-117.