601 - Gilberto Oliveira
A Articulação da Pirataria Somali através do “Nexo” Segurança-Desenvolvimento:
“Paz Liberal” ou “Guerra Liberal”
Nota do autor: Favor não citar sem a autorização expressa do autor*
* Gilberto Carvalho de Oliveira
ilbertooliv@gmail.com
Doutorando em Política Internacional e Resolução de Conflitos
Faculdade de Economia/ Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra*
Introdução
Esta comunicação tem por base empírica um estudo de caso sobre a pirataria marítima nas costas da Somália – em desenvolvimento no âmbito da tese de doutoramento deste autor – e por base teórica o debate conhecido como ‘economia política das novas guerras’. Com esse enquadramento, a comunicação propõe uma abordagem crítica da recente rearticulação do problema da pirataria somali através do ‘nexo segurança-desenvolvimento’ no âmbito do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU). Neste sentido, argumenta-se que essa rearticulação revela uma tensão existente entre duas formas de desenvolvimento: de um lado, as formas de desenvolvimento aceitas pelo projeto da ‘paz liberal’; de outro lado, as ‘formas de desenvolvimento realmente existentes’ − parafraseando aqui o que Duffield chama de ‘actually existing development’ (2001: 139-40; 2010: 68) − caracterizadas por economias radicais que geralmente florescem às margens do mundo liberal, criando novas bases para a reivindicação do direito à riqueza e modos de acumulação e redistribuição fora das estruturas formais da economia global. A pirataria somali constitui claramente a emergência desse tipo de economia radical, produzindo desenvolvimento real em seu contexto local, mas representando, ao mesmo tempo, uma ‘ameaça’ à ordem liberal como um todo ao criar um sistema radical de ‘taxação’ (via sequestros e cobranças de resgates) do comércio que circula numa das rotas marítimas mais estratégicas do mundo (a que liga o Índico ao Mediterrâneo). Esse confronto entre formas aceitáveis e inaceitáveis de comportamento económico assume as dimensões globais de uma guerra, mais precisamente de uma ‘guerra liberal contra a pirataria’, fortemente apoiada na securitização do nexo segurança-desenvolvimento e na exploração da janela de oportunidades aberta para que diversos atores integrem os esforços contra a pirataria para atingir os seus próprios objetivos de segurança. Por outras palavras, o ‘nexo’ inclina-se francamente para o lado da segurança, preocupando-se mais com a militarização do espaço oceânico no Corno de África, construção de uma aparato jurídico/penitenciário ocidentalizado na
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Somália, extração de recursos por empresas privadas de segurança, etc., do que com uma abordagem transformativa autossustentável, legítima ao nível das comunidades locais e capaz de mudar estruturalmente a economia política da pirataria somali.
Esse argumento é desenvolvido em quatro seções. A primeira examina a forma como o CSNU, a partir de 2010, rearticula a pirataria somali através do nexo segurança-desenvolvimento, alterando o foco inicial de suas resoluções, onde a pirataria era articulada basicamente como um problema de segurança. A segunda seção faz uma síntese do debate teórico conhecido como ‘economia política das novas guerras’ para, em seguida, examinar a pirataria somali dentro desse quadro conceptual. Usando os três descritores funcionais das economias de guerra definidos por Pugh e Cooper (2004), o objetivo é mostrar como a pirataria na Somália funciona como ‘economia subterrânea’ (gerando lucros para enriquecimento pessoal), ‘economia de enfrentamento’ (gerando recursos básicos de sobrevivência para as populações pobres e marginalizadas) e ‘economia de combate’ (gerando recursos para a condução da guerra). A terceira seção procura mostrar que os benefícios funcionais gerados por essas três economias representam a reintegração de populações periféricas na economia global, criando uma economia radical ou uma forma de desenvolvimento real e autónomo que desafia as formas de desenvolvimento ‘aceitáveis’ dentro da ordem liberal. Essa seção examina, ainda, de que forma o CSNU emprega o nexo segurança-desenvolvimento como mecanismo mobilizador da ação internacional com o propósito de neutralizar essa forma de desenvolvimento ‘inaceitável’ e ‘desviante’ na periferia da economia global. A quarta seção confronta a mobilização internacional e o contexto local que envolve a economia política da pirataria somali, a fim de destacar o abismo existente entre a resposta liberal (articulada via nexo segurança-desenvolvimento) e as reais possibilidade de alcançar o seu alegado propósito transformador. A comunicação é concluída com uma síntese da discussão realizada.
1 A Articulação da Pirataria Somali através do Nexo Segurança-Desenvolvimento
Em 2008, o CSNU emitiu um conjunto de resoluções, declarando que a crescente onda de ataques de piratas ao largo da costa da Somália agravava a situação naquele país, o que constituía uma ameaça à paz e à segurança internacionais na região. Desse modo, agindo sob o Capítulo VII da Carta das Nações Unidas, o CSNU convocou os estados e organizações regionais dotados de capacidades navais (navios de guerra e aeronaves militares) para intervirem na região, inclusive no
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mar territorial e em terra na Somália, a fim de combater a pirataria na região. Embora algumas indicações de uma ‘abordagem compreensiva’ (comprehemsive approach) pudessem ser encontradas nessas primeiras resoluções, o uso da força e a convocação de forças militares internacionais para ‘lutar’ contra a pirataria Somali constituía o seu foco central. A partir de 2010, porém, tem havido uma reorientação da agenda do CSNU para uma abordagem mais transformativa da pirataria Somali. A resolução 1918/2010 reflete claramente essa reorientação. Em seu preâmbulo, essa resolução declara que as condições para a erradicação durável da pirataria dependem de “peace and stability within Somalia, strengthening of State institutions, economic and social development” e, pela primeira vez desde 2008, expressa as decisões sobre a pirataria sem recorrer ao Capítulo VII da Carta das Nações Unidas (S/RES/1918/2010). A resolução 1950/2010 mantém essa direção transformativa, embora retome os poderes do capítulo VII para renovar a autorização para as operações militares de combate à pirataria por um período adicional de doze meses (S/RES/1950/2010). A viragem para uma abordagem transformativa é mais acentuada na resolução 1976/2011, em cujo preâmbulo o CSNU enfatiza “the importance of finding a comprehensive solution” e destaca
the need to build Somalia’s potential for sustainable economic growth as a means to tackle the underlying causes of piracy, including poverty, thus contributing to a durable eradication of piracy and armed robbery at sea off the coast of Somalia and illegal activities connected therewith. (S/RES/1976/2011: 1)
O ponto crucial a destacar nessa resolução é o facto dela articular a pirataria somali dentro de uma aparente ambiguidade. O último parágrafo do preâmbulo reproduz as diversas resoluções emitidas desde 2008,1 declarando que a pirataria é um fator que agrava a situação na Somália – conforme os termos usados pelo CSNU, a pirataria e os roubos armados no mar “exacerbate the situation in Somalia, which continues to constitute a threat to international peace and security in the region” (S/RES/1976/2011: 3). Dessa perspetiva, portanto, a pirataria é vista como uma das causas da instabilidade na Somália. Logo em seguida, porém, no item dois da resolução, o argumento é invertido e a pirataria passa a ser definida como efeito da instabilidade na Somália: conforme declara o Conselho de Segurança, “the ongoing instability in Somalia is one of the underlying causes of the problem of piracy” (S/RES/1976/2011: 3). Dessa segunda perspetiva, é a instabilidade na Somália que produz a pirataria. Em síntese, portanto, o argumento construído nessa resolução é o seguinte: a pirataria agrava a instabilidade na Somália que, por sua vez, agrava a situação da pirataria, formando uma espécie de círculo vicioso onde a pirataria é, ao mesmo tempo, causa e
1 S/RES/1816, 1838, 1844, 1846, 1851 (2008), UN Security Council, New York.
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efeito da instabilidade na Somália. Essa aparente ambiguidade, longe de indicar uma confusão do texto, reflete, de facto, a fusão entre segurança e desenvolvimento de que nos fala Duffield (2001, 2007) e que se encontra profundamente enraizada nos jogos de linguagem do discurso desenvolvimentista que rege o modelo da paz liberal. Melhor explicando: vista como uma das causas da instabilidade na Somália, a pirataria constitui uma ameaça à paz e à segurança internacionais; em consequência, seguindo a tónica predominante nas resoluções adotadas desde 2008 sob o capítulo VII da Carta, o CSNU justifica o uso da força como medida necessária no combate à pirataria. De outro lado, vista como uma consequência da instabilidade na Somália, a pirataria passa a ser articulada como efeito da falha do estado e do subdesenvolvimento no país. O resultado dessa operação complexa, portanto, é que a pirataria passa a ser uma questão de segurança e, ao mesmo tempo e de forma inseparável, uma questão de desenvolvimento. Por outras palavras, isto significa que a política do CSNU para a pirataria somali é rearticulada dentro do chamado ‘nexo segurança-desenvolvimento’.
2 A Economia política das novas Guerras: O Caso da Pirataria Somali
A complexa dimensão económica dos conflitos contemporâneos tem atraído a atenção de académicos e formuladores de políticas desde meados dos anos 1990. Começando com os amplamente conhecidos debates sobre ‘novas guerras’ (ver Kaldor, 1999; Keen, 1998; Reno, 1999) e ‘cobiça e ressentimento’ (greed and gievance) (ver Collier e Hoeffler, 1998; Berdal e Malone, 2000; Ballentine e Sherman, 2003), a bibliografia sobre a economia política dos conflitos têm-se expandido significativamente, indo além de seu foco original predominantemente centrado no impacto da exploração de recursos na duração dos conflitos. Um dos mais vibrantes segmentos deste debate tem-se preocupado com os desafios colocados pelas economias de guerra à transformação dos conflitos. Autores envolvidos nesta agenda de investigação tendem a criticar as receitas de intervenção internacionais pelo facto delas negligenciarem aspetos relevantes relacionados à economia política dos conflitos, particularmente a função desempenhada por suas economias subterrâneas (shadow econimies). De acordo com esses autores, a fraca presença regulatória dos estados no contexto da grande parte desses conflitos tem levado as economias subterrâneas a operem como fontes alternativas de financiamento dos múltiplos atores envolvidos no conflito. Embora esse processo quase sempre assuma expressões violentas e tenda a ser socialmente excludente (i.e., favorece apenas determinados grupos sociais de acordo com critérios
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de consanguinidade, etnia, religião, política, etc.), ao mesmo tempo ele funciona como uma forma de ‘desenvolvimento real’, gerando formas criativas e independentes de integração de mercados e populações periféricas na economia global (Duffield, 2001: 153; 2010: 68). Por outras palavras, é como se as pessoas, vivendo à margem da diplomacia e do comércio mundial, descobrissem que as instituições estatais e as políticas económicas autárquicas já não as pudessem proteger e, por essa razão, fossem levadas (ou forçadas) a buscar formas alternativas e independentes de desenvolvimento (Reno, 2003: 42). Desse ponto de vista, em vez de refletirem a rutura e o caos ou representarem uma aberração periférica, as economias subterrâneas podem ser vistas como uma disputa pela integração de camadas de mercados e populações ‘periféricas’ dentro da economia global, ou seja, citando Duffield, como “the emergence of new forms of protection, legitimacy and rights to wealth” (2001: 14). Assim, se de um lado as economias subterrâneas abrem espaço para elites auto-interessadas extraírem benefícios financeiros pessoais, de outro lado elas exercem uma importante função social, criando um mecanismo sócio-económico alternativo de geração de empregos e movimentação de mercadorias, bem como alternativas para que populações pobres e marginalizadas satisfaçam as suas necessidades básicas de sobrevivência (Pugh Cooper, 2004: 225).
Dessa perspetiva, e considerando o vácuo legal que geralmente prevalece em situações de guerra, palavras como ‘criminoso’ e ‘ilegal’ usadas para designar comportamentos económicos ‘desviantes’ – em oposição a outros tipos de comportamentos ditos ‘corretos’ e ‘legais’ – são limitadas para caracterizar o comportamento dos atores envolvidos no conflito (Pugh e Cooper, 2004: 8; Cockayne & Lupel, 2011: 191-192). Por essa razão, Pugh e Cooper defendem o emprego da expressão ‘economias de guerra’ para designar todos os tipos de comportamentos económicos adotados no decorrer do conflito, independentemente de suas conotações normativas, e sugerem três descritores funcionais para designar essas economias: economia de combate (combat economy), economia subterrânea (shadow economy) e economia de enfrentamento (coping economy). A ‘economia de combate’ tem por objetivo financiar a guerra e envolve não só o controle da produção e da extração de recursos económicos para sustentar as operações de combate, mas também as estratégias económicas predatórias adotadas para a destruição dos recursos que possam fortalecer a capacidade de luta dos grupos oponentes. A ‘economia subterrânea’ refere-se à extração de lucro pessoal e engloba as atividades conduzidas fora dos mecanismos de regulação do estado. Os agentes económicos – que variam das elites empresariais em busca de lucro até as populações empobrecidas em luta pela sobrevivência – agem motivados por objetivos não militares, aproveitando os
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problemas económicos e as oportunidades trazidas pela erosão da autoridade do estado para obterem ganhos pessoais. Finalmente, a ‘economia de enfrentamento’ engloba as atividades destinadas a prover mecanismos de superação das duras condições impostas pelo conflito, possibilitando, assim, a satisfação das necessidades básicas de subsistência das populações pobres e marginalizadas. Ainda que a economia de enfrentamento confunda-se, muitas vezes, com a economia subterrânea, a sua especificidade é a extração de recursos para subsistência dentro de mínimos padrões de vida e não para a obtenção de lucros e acumulação de riqueza. Embora essas economias não obedeçam, na prática, a limites tão definidos, podendo sobrepor-se umas às outras nas situações concretas, eles são conceptualmente úteis enquanto ferramenta de análise e colocam em evidência comportamentos económicos que têm sido ignorados pelas receitas liberais de intervenção (Pugh e Cooper, 2004: 8-9).
A Economia Política da Pirataria Somali
É importante notar que o problema da pirataria somali é, em grande medida, resultado do processo histórico que marca o fim da patronagem das superpotências da Guerra Fria e início da fragmentação política na Somália e suas origens estão profundamente relacionadas ao estágio inicial da guerra civil, à deterioração da fiscalização do mar territorial e à desestruturação do sector marítimo na Somália no início dos anos 1990 (Marchal, 2011: 89; Samatar et al., 2011: 1384). Esse conjunto de condições, que favoreceu a pesca descontrolada nas águas da Somália por navios estrangeiros e provocou a reação violenta de parte das populações costeiras, está na origem do processo de privatização da violência nas costas da Somália e permanece enraizado nos ressentimentos que, ainda hoje, legitimam as atividades dos piratas junto às suas comunidades (Samatar et al., 2011: 1385-6). Esse processo foi alimentado, também, pelas experiências com a privatização da guarda costeira realizadas em Puntland durante a primeira metade dos anos 2000. Um dos principais efeitos colaterais dessa medida foi que muitos dos somalis treinados, após serem despedidos ou após o encerramento das atividades das empresas de segurança contratadas, passaram a atuar por conta própria, empregando as habilidades marinheiras e policiais adquiridas, a fim de atacar e capturar navios mercantes transitando ao largo da costa somali (Hansen, 2008: 587-9; Middleton, 2008: 5; Anderson, 2010: 44; Marchal, 2011: 91; Murphy, 2011: 115). Com deterioração gradual da situação económica em Puntland, que atingiu o auge em 2008, o seu governo, incapaz de controlar o défice nas contas públicas e evitar a inflação, decidiu suspender o
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pagamento das forças de segurança. Essa situação provocou uma migração em massa de polícias para a pirataria (2009: 32-3), contribuindo para a explosão na quantidade de sequestros a navios nas águas do Golfo de Áden que levou à intervenção do CSNU em 2008. Não se pode deixar de notar, ainda, que esse processo de privatização da violência ao largo da costa somali nutriu-se, igualmente, dos efeitos do liberalismo global nas últimas duas décadas. O aumento da circulação marítima comercial, a disponibilidade de armas a baixo custo no mercado internacional, as facilidades de comunicação em escala mundial, a privatização dos serviços públicos (em especial no sector de segurança) e a desregulamentação dos mercados e do sistema financeiro internacional criaram as condições estruturais que possibilitaram o desenvolvimento da pirataria somali como uma lucrativa indústria de sequestros a navios.
O estágio profissionalizado da pirataria que atraiu a atenção internacional começou em 2004-2005, a partir de bases estabelecidas no litoral central da Somália, em áreas de difícil acesso e afastadas das principais zonas de conflito no país – em torno das cidades de Harardheere e Hobyo – e resultou da ação de apenas um grupo de piratas autointitulado Somali Marines (Hansen, 2009: 23-25). Dentre as mais notáveis ações desse grupo está uma série de ataques aos navios fretados pelo World Food Programme (WFP), iniciados na segunda metade de 2005 (ver Nincic, 2009: 12). Em 2006, com a queda do embrião de governo central criado pela comunidade internacional – o Governo Federal de Transição na Somália, TFG – e tomada do poder em Mogadíscio pela União das Cortes Islâmicas (UCI), a pirataria foi praticamente eliminada da costa somali. Com um programa de estabelecimento da lei e da ordem com base na lei islâmica (sharia law), a UCI baniu a pirataria e desarticulou as bases na área Harardheere-Hobyo (Hansen, 2009: 27; Murphy, 2011: 91-2). Porém, com a invasão das tropas etíopes em 2007, com a aprovação da UA e da ONU e apoiada pelos EUA, as milícias da UCI foram da região e a pirataria emergiu novamente. Esse ressurgimento da pirataria, porém, deu-se em novas bases: o chamado Somali Marines havia-se fragmentado em vários pequenos grupos independentes e os piratas oriundos de Puntland haviam retornado à sua região de origem, onde a pirataria começava a experimentar um sucesso nas águas do Golfo de Áden em 2007/2008 (Hansen, 2009: 27).
Retomando os descritores funcionais das economias de guerra definidos por Pugh e Cooper, observa-se que a pirataria somali desenvolve-se como uma ‘economia subterrânea’ altamente rentável, envolvendo conexões com negociantes locais, autoridades governamentais e policiais corruptos, comércio de khat (droga amplamente consumida pelos piratas), etc. A pirataria somali
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também funcionado como ‘economia de enfrentamento’, provendo oportunidades de emprego para jovens desocupados, assistência financeira a familiares e amigos, bem como algum investimento em saúde, educação e caridade nas comunidades. Para além disso, ao prover o apoio logístico que a pirataria necessita para conduzir suas operações (construção de barcos, suprimento de combustível, fornecimento de água e alimentos para as tripulações sequestradas, etc.) e atender o consumo pessoal de piratas enriquecidos (novas casas, carros, telefones móveis, etc.), o rudimentar comércio/indústria local também é estimulado, o que acaba por impactar positivamente nos mecanismos de sobrevivência das populações locais (mais empregos e mais recursos dentro da comunidade de uma maneira geral). Embora não se possa afirmar que todas as comunidades costeiras se beneficiem ou estejam envolvidas com a pirataria, pelo menos algumas delas oferecem as conexões e a proteção que os piratas necessitam para conduzir as suas operações e obter o apoio logístico que é fundamental durante o período em que os navios sequestrados permanecem ancorados na costa aguardando as negociações de resgate (que não raras vezes demoram mais de um ano). Em menor escala, a pirataria somali funciona, ainda, como ‘economia de combate’, particularmente na violação ao embargo de armas imposto pelo CSNU e no pagamento de taxas à Al-Shabaab (principal fação armada de oposição ao Governo de Transição na Somália), a fim de obter autorização para operar nas áreas controladas por suas milícias. Desse modo, embora não se possa afirmar que a pirataria esteja estreitamente ligada aos grupos em guerra, os dois aspetos referidos acabam por resultar em recursos adicionais para o combate. Esse conjunto de benefícios funcionais, que mantem algumas comunidades dependentes da pirataria, mais um ambiente cultural de tolerância motivado pela economia moral da pirataria – baseada na justificação de suas ações com base na defesa dos recursos marinhos da Somália contra a predação dos navios estrangeiros – constitui uma frágil e fluída, mas muito eficiente, estrutura de proteção e aceitação da pirataria dentro da Somália (esta narrativa empírica tem por base o estudo de caso em desenvolvimento no âmbito da tese de doutoramento deste autor e encontra-se extremamente sintetizada devido às óbvias limitações de espaço e de tempo desta comunicação).
3 Uma Economia Radical na Periferia do Mundo Globalizado e a Resposta da Paz Liberal
Se considerarmos, tal como sugere Castels (2010: 132-147, 508), que a globalização é altamente excludente e funciona como uma rede seletiva que ignora as funções sociais não essenciais, grupos sociais marginalizados e territórios desvalorizados – o que não significa que
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essas pessoas, espaços e atividades desapareçam, mas sim sua significação social – o que o caso da pirataria somali parece demonstrar é que esta forma dominante de reorganização da economia global não fica imune à penetração daqueles que são excluídos no processo. Tal como Reno já destacava há uma década atrás em seu estudo sobre a economia subterrânea em Puntland e Somaliland (2003: 43) – e a narrativa empírica sobre a economia política da pirataria somali aqui realizada claramente reforça – a irrelevância estrutural da Somália não resulta necessariamente na completa exclusão da sua população da economia global. A pirataria é a demonstração empírica de que parte dessa população se reintegra à economia global dentro de novas bases que lhe são favoráveis. Assim, longe de representar uma simples ‘aberração’ ou a regressão a um estágio pré-moderno de civilização, a pirataria somali tem uma racionalidade plenamente integrada à atual lógica da economia global, materializando, inequivocamente, uma reivindicação radical do ‘direito à riqueza’ e partilhando as características daquilo que Duffield chama de ‘desenvolvimento realmente existente’ (actually existing development) – i.e., aquelas formas de adaptação, legitimidade e sobrevivência que existem para além do estado e das formas aceitáveis de desenvolvimento (2001: 139-40; 2007: 230; 2010: 68).
A forma pela qual a pirataria Somali se insere na economia global revela duas faces de uma mesma moeda. De um lado, a pirataria produz desenvolvimento real em seu contexto local através de uma variada combinação de economias subterrânea, de enfrentamento e de combate. Dessa perspetiva, a pirataria representa uma forma de autossuficiência (self-reliance) ou um tipo de ‘autonomia radical’, i.e., uma via alternativa de sobrevivência económica completamente fora do estado e das estruturas oficiais de desenvolvimento (Duffield, 2010: 68). Da perspetiva liberal, de outro lado, espera-se que as comunidades se tornem autossuficientes sob formas ‘aceitáveis’ de desenvolvimento (Duffield, 2007: 219). A pirataria somali, deste ângulo, constitui uma ameaça à ordem liberal porque impõe uma forma radical de ‘taxação’ – através de sequestros e pedidos de resgates – ao longo de uma das rotas marítimas mais estratégicas do mundo. O ponto crucial a destacar, portanto, é a absoluta impossibilidade de aceitação, do ponto de vista liberal, de uma tal autonomia radical e ‘direito à riqueza’ reclamados pela pirataria somali.
Dada a incompatibilidade entre essas duas faces da moeda, o discurso liberal constrói a pirataria somali como uma ameaça existencial a uma série de objetos de referência – a paz e a segurança internacionais, a ajuda humanitária, o comércio marítimo internacional, a vida das tripulações e passageiros, etc. – movendo a questão para a emergência e a excecionalidade e,
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consequentemente, conclamando a comunidade internacional a ‘combater’ esse comportamento desviante que ameaça a ordem global (Oliveira, 2012: 57). Ao mesmo tempo, esse discurso liberal redescobre a pobreza, dessa vez como uma das causas profundas da pirataria, convocando a comunidade de desenvolvimento a “reconstitute a better mode of self-reliance” (Duffield, 2007: 219) que possa ‘transformar’ as condições sociais que estimulam a economia radical articulada pela pirataria. Se examinarmos esta reinterpretação da pirataria em termos de formulação de políticas de intervenção – cuja articulação nas resoluções do CSNU já foi introduzida na segunda seção do artigo – nota-se que ela não vai além de meramente reciclar a visão estratégica da ONU e da UA sobre a reconstrução pós-conflito em África, prescrevendo-a para o caso específico da pirataria somali. O African Post-Conflict Reconstruction Policy Framework, emitido em 2005 pela New Partnership for Africa’s Development (NEPAD),2 é um exemplo significativo dessa visão estratégica, onde a resolução de conflitos em África é claramente articulada dentro do modelo da paz liberal. Nesse documento, o NEPAD reconhece que “the nexus between development, peace and security have become a central focus of post-conflict reconstruction thinking and practice over the last decade” (2005: v) e, nesse sentido, identifica cinco eixos em torno dos quais as políticas de reconstrução devem ser organizadas: (i) segurança; (ii) transição política, governação e participação; (iii) desenvolvimento social e económico; (iv) direitos humanos, justiça e reconciliação; e (v) coordenação, gestão e mobilização de recursos (2005: 11-2). A apropriação dessa visão estratégica e a sua prescrição como remédio contra a pirataria somali é evidente na resolução 1918/2010, onde o CSNU, reproduzindo os cinco eixos identificados acima,
[encourages] States and other potential donors to contribute [to the international fund managed by the UNODC] and [emphasizes] that peace and stability within Somalia, the strengthening of State institutions, economic and social development and respect for human rights and the rule of law are necessary to create the conditions for a durable eradication of piracy and armed robbery at sea off the coast of Somalia. (S/RES/1918/2010: 2)
Essa rearticulação da pirataria somali através do nexo segurança-desenvolvimento abre espaço para que a rede envolvida nos mecanismos da paz liberal seja acionada – o que inclui governos, estruturas militares, organizações regionais, doadores, ONU e suas agências, organizações não-governamentais e companhias privadas − para, em conjunto com o Governo Federal de Transição na Somália (GFT), implementarem um conjunto de medidas voltadas para o fortalecimento do sistema de governação central no país, implantação do estado de direito e
2 Programa da UA para o desenvolvimento do continente africano criado em 2001. Ver: http://www.nepad.org/about).
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controlo policial dentro do território somali, e desenvolvimento económico e social como um esforço ‘compreensivo’ para combater a pirataria. Essa estratégia traduz-se nas resoluções do CSNU através de diversas iniciativas relacionadas a boas práticas de governação, criminalização da pirataria, construção de uma estrutura forense e carcerária na Somália, medidas anticorrupção e antibranqueamento de capitais, construção de uma guarda costeira nacional, desenvolvimento da pesca e da infraestrutura portuária, investigação sobre a pesca ilegal e o despejo de resíduos tóxicos nas águas somalis, e captação de fundos financeiros dos doadores para a implementação de todas essas iniciativas (S/RES/1976/2011). Esse pacote de medidas, que traduz precisamente o receituário oferecido pela paz liberal, tem o objetivo ambicioso de transformar a economia política da pirataria somali através da supervisão governativa, económica e jurídica internacional, e tem a ‘boa intenção’ de capacitar o governo central na Somália, o GFT, para a retomada do monopólio do uso da força e criar incentivos ao desenvolvimento do sector marítimo que sejam capazes de atrair as elites e as pessoas que se beneficiam da pirataria para atividades ‘benignas’ e ‘legais’.
Essa articulação da pirataria através do nexo segurança-desenvolvimento ativa, portanto, um dispositif – aqui entendido no sentido foucaultiano/bourdiano empregado por Duffield (2010: 56) e Salter (2008: 248), como um conjunto de convicções, práticas e instituições que criam as condições de possibilidade dentro de um campo particular. Desse ponto de vista, o dispositif é mais do que um aparato mecanicista; ele é “a capability for governance, or the disposition of a field towards a mode of governance” (Salter, 2008: 248). Assim, a articulação da pirataria através do nexo segurança-desenvolvimento tem um propósito muito mais ambicioso do que meramente acionar uma rede de atores a fim de transformar as condições sociais contextualmente relacionadas ao problema da pirataria. Dada a racionalidade própria do dispositif, o ‘nexo’ constitui uma ferramenta biopolítica de governação; ele corporifica uma espécie de “liberal will to govern” (Duffield, 2007: 227) aquelas “maladapted populations” (Dillon & Reid, 2009: 151) que ameaçam não só a si mesmas, mas também a ordem liberal. E o ‘nexo’ tenta fazer isto, como as resoluções anteriormente mencionadas claramente mostram, através de um projeto liberal de construção do estado baseado no fortalecimento do governo central e de suas instituições democráticas, no desenvolvimento económico e social, bem como no respeito aos direitos humanos e ao estado de direito. A lógica atrás do ‘nexo’, portanto, é uma lógica abstrata na qual todos os problemas somalis, independente de suas particularidades e contextos, derivam da falha do estado central. Dentro desse quadro, os piratas são meramente ‘atores renegados’ (rogue actors) – assim como terroristas (leia-se Al-Shabaab) ou demais ‘spoilers’ que ameaçam não só a paz na Somália, mas também a ordem liberal
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mundial – e uma vez que a falha no governo central seja retificada, a pirataria assim como todos os outros ‘comportamentos renegados’ serão solucionados como uma consequência natural. Até que ponto essa receita da paz liberal é capaz de transformar a economia política da pirataria somali, eis aí uma questão altamente contestável.
4 O Abismo entre a Resposta da Paz Liberal e a Economia Política da Pirataria Somali
Um dos principais problemas da política padronizada prescrita pelo CSNU para a pirataria somali é o seu foco no GFT. Esse embrião de estado central criado pela comunidade internacional mal consegue controlar a capital Mogadíscio com a ajuda das forças de peacekeeping da UA (AMISOM), não exercendo na prática qualquer influência no restante do país, especialmente nas remotas áreas afetadas pela pirataria. No entanto, é sobre esse embrião que se concentram os esforços e as esperanças do CSNU para conduzir as transformações sociais necessárias para alcançar o ambicioso objetivo definido pelo CSNU: a “completa” (UN, 2008) e “duradoura” (UN 2009) erradicação da pirataria somali. É importante notar, porém, que ao contrário do poder virtual do GFT e dos altos índices de violência no sul do país, a Somália possui zonas relativamente estáveis graças a arranjos de governação locais, tais como em Somaliland (região noroeste do país) e Puntland (região nordeste). Mas o ponto crucial a observar, além desses arranjos espontâneos de governação regional, é a capacidade que os somalis têm de se governarem ao nível da municipalidade e das comunidades. Conforme Menkhaus enfatiza, as estruturas formais do estado têm-se demonstrado ineficazes na história da Somália no que se refere a prover serviços públicos essenciais e bem-estar social ao país como um todo. Essas estruturas centrais têm servido, na realidade, mais como um polo de atração de ajuda externa, distribuição seletiva de funções públicas e extração de recursos através da corrupção, do que como uma fonte de bem-estar e serviços à toda a população. O mesmo aplica-se ao setor judiciário – os somalis têm preferido, em geral, resolver suas disputas e a maioria dos seus crimes via justiça costumeira (Menkhaus, 2004: 18, 31-33). Portanto, em termos de construção de instituições, diz Menkhaus, a “Somalia is not so much a site of state ‘revival’ as it is a country where creation of effective state institutions would constitute an entirely new phenomenon” (2011: 11). Mesmo em Somaliland, onte existe um governo funcional há praticamente duas décadas, “public expectations of the central government are not high” e os níveis de segurança pública e manutenção da lei e da ordem são principalmente “a reflection of a strong social compact to keep the peace, in which an active civil society, customary law, and clan
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elders are the main pillars” (2011: 5, 11, 14). Considerando esse quadro, é importante observar que em muitas partes da Somália, inclusive nas regiões onde a pirataria está presente, prevalece um grau de relativa estabilidade alcançada por uma política informal que provê grande parte da governação do dia-a-dia e serviços básicos às comunidades. De acordo com Menkhaus, o grande desafio é fazer a comunidade internacional enxergar e entender esse “ubiquitous informal political sector” que não se ajusta aos padrões ocidentais de governação e, desse modo, “is largely invisible to external eyes”:
To the extent that Somalia’s future success in managing conflict and providing local public order to communities is in the hands of these informal systems of governance, the international community is poorly positioned to understand and measure them, and has demonstrated only scattered interest in liaising with them. (Menkhaus, 2011: 12)
Dentro desse contexto, é crucial observar que as mais efetivas respostas no controle da pirataria têm sido produzidos dentro das instâncias costumeiras, conforme ilustrado anteriormente nos casos da União das Cortes Islâmicas que desarticularam as mais importantes bases da pirataria em 2006, reduzindo a ação da pirataria a praticamente zero. O mesmo pode ser observado em Somaliland, onde medidas preventivas adotadas por suas comunidades costeiras para evitar o surgimento de grupos piratas tornam a região livre desse tipo de problema. Bandar Beyla, localizada praticamente no epicentro da pirataria em Puntland, é outro exemplo onde a mobilização da sociedade civil através de um forte trabalho educacional tem conseguido prevenir a entrada de jovens na pirataria, direcionando-os para a constituição de uma polícia comunitária anti pirataria. Eyl, uma famosa base de piratas em Puntland, tem-se tornado livre da pirataria nos últimos dois anos devido à mudança de postura das autoridades e da sociedade civil local em relação à pirataria, bem como à ajuda da polícia marítima de Puntland. Alguns desses casos mostram que mesmo comunidades altamente dependentes da pirataria são capazes de se tornar livres do problema, o que significa, em primeiro lugar, que os laços ligando as comunidades à pirataria são frágeis e maleáveis e, em segundo lugar, que a sociedade civil, as lideranças religiosas e dos clãs, os mecanismos costumeiros de justiça e as formas locais de policiamento são elementos fundamentais para alcançar a paz e a estabilidade. Desse modo, as potencialidades para a transformação da economia política da pirataria somali parecem ser mais promissoras dentro dessas estruturas de governação realmente existentes ao nível local do que dentro das estruturas virtuais do estado central na Somália.
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Como se esse foco no GFT não fosse suficiente para mostrar a fragilidade da receita transformativa do CSNU, a articulação da pirataria somali através do nexo segurança-desenvolvimento abre espaço para que um leque de atores integrem os esforços internacionais de gestão da pirataria, muitos deles agindo oportunisticamente, o que aumenta ainda mais o abismo existente entre a mobilização internacional e o seu impacto efetivo na transformação das condições sociais subjacentes à economia política da pirataria somali. Devido às características de dispositif do ‘nexo’ – e sua racionalidade expansiva em direção a uma habilidade quase infinita de criar objetivos de segurança autojustificáveis (salter, 2008: 262) – forças militares, governos, organizações internacionais, agências especializadas e companhias privadas de segurança têm-se envolvido nos esforços contra a pirataria somali a fim de alcançar os seus próprios objetivos de segurança. Desde as primeiras resoluções contra a pirataria emitidas em 2008, a pirataria somali tem servido como oportunidade para definir novos papéis para as Marinhas e redefinir conceitos estratégicos. Vista como uma ‘nova ameaça’ estratégica, a pirataria somali tem-se tornado uma justificativa para engajar forças navais em operações de presença e projeção de poder nas águas do Corno de África (OTAN, UE, EUA, China, India e Irão são apenas alguns exemplos de organizações regionais e países dirigidas por interesses estratégicos naquelas águas); para buscar prestígio internacional no caso de países com Marinhas de menor porte; para treinar tripulações em situação real; para desenvolver a interoperabilidade entre forças navais estrangeiras, particularmente em casos como a China e a Rússia que têm tido a oportunidade de se aproximar das forças navais da OTAN, UE e EUA a fim de trocarem informações e procedimentos operacionais no combate a um ‘inimigo’ comum. Para a OTAN, os esforços antipirataria têm sido uma oportunidade para expandir o seu raio de ação para além das suas fronteiras transatlânticas; para a UE, a pirataria tem justificado a colocação em prática e a experimentação da sua estrutura naval multinacional sob a Common Security and Defence Policy; para os EUA, a pirataria somali tem sido uma oportunidade para reforçar a militarização das águas do Corno de África em acréscimo aos esforços navais já em andamento naquela área desde 2001 no contexto da ‘guerra contra o terrorismo’. Para além dessas oportunidades no campo militar, a pirataria tem servido para justificar o fortalecimento do embrião de estado central na Somália sustentado pelas potências ocidentais, o GFT, e a implementação de um aparato judicial/penitenciário ocidentalizado na Somália sob a supervisão da ONU – as chamadas specialized Somali anti-piracy courts – a fim de liberar a comunidade internacional da responsabilidade pelo julgamento e aprisionamento dos piratas detidos nas operações navais. As oportunidades exploradas pelas companhias privadas são também significativas, produzindo uma
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verdadeira explosão nos negócios das empresas privadas de segurança marítima nos últimos anos. Essas companhias têm sido contratadas não só para desempenhar funções de segurança a bordo dos navios mercantes, mas também para atuar na formação e composição das guardas costeiras e polícias marítimas do GFT, Somaliland e Puntland (para uma visão abrangente dessas respostas internacionais, ver Haywood and Spivak, 2012: 39-55; Homan and Kamerling, 2011; Murphy, 2011: 123-137; Geiß and Petrig, 2011: 17-35; UN, 2011c).
Esse comportamento oportunístico é consequência, em grande medida, das características de dispositif do nexo segurança-desenvolvimento. Tal como enfatiza Salter, o dispositif cria os seus próprios objetivos de segurança, o que significa que ele “defines what might be governed in the name of security” (2008: 249). Mas ele faz isso focando principalmente na norma e não nos casos individuais, de modo que “the object of the dispositif is obscured” (2008: 251) e a normalização da segurança em si é expandida, permitindo cada vez mais “for a wide assemblage of actors to engage in this type of politics and continually to increase the spaces in which security operates” (2008: 262). Dessa perspetiva, o contexto da pirataria somali e seus aspetos particulares – tais como os seus benefícios funcionais, sua economia moral, os sistemas de autoridade e governação locais, as necessidades e preocupações das comunidades, as capacidades para gerir a pirataria localmente, etc. – não são centrais ao ‘nexo’. Em vez disso, essas particularidades são obscurecidos aos olhos dos governos, forças militares (que se interessam pelo local apenas para instrumentalizá-lo nas estratégias de contrainsurgência), organizações internacionais, companhias privadas, etc. Essa constelação de atores engaja-se no problema da pirataria, não para enfrentá-lo cara-a-cara e gerir as suas raízes mais profundas, mas para atuar em nome do estabelecimento da segurança num sentido geral e abrangente. Portanto, a ‘abordagem compreensiva’ defendida nas resoluções do CSNU torna-se mais compreensiva quanto mais ela permite que os vários atores envolvidos alcancem os seus próprios objetivos de segurança, e não porque ele possibilite a efetiva transformação das condições sociais particulares existentes na base da economia política da pirataria. Na verdade, a transformação desse contexto torna-se irrelevante para avaliar o seu sucesso. Afinal, o que conta como sucesso é o cumprimento dos objetivos de segurança que esses atores definem em suas próprias missões. Conforme Duffield apropriadamente destaca, “from seeing disaster as an opportunity, the distance of travel necessary to experience failure as success is minimal.” Esta é a razão pela qual o intervencionismo liberal continua a celebrar o cumprimento de sua missão, mesmo que na prática ele tenha sucessivamente falhado em resolver os problemas usados para se justificar (2011: xviii). A intervenção contra a pirataria parece padecer do mesmo mal: apesar da
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mobilização internacional gigantesca para gerir o problema, fazendo um uso crescente de discursos transformativos sob o rótulo genérico de comprehensive approach, as condições sociais subjacentes à economia política da pirataria somali permanecem praticamente as mesmas e os piratas continuam a adaptar seu modus operandi para contornar os esforços internacionais de contenção.
Ainda assim, os atores envolvidos nesses esforços têm diversos sucessos a celebrar. Relatórios e declarações oficiais do Secretário-Geral da ONU e da Organização Marítima Internacional têm reconhecido que o patrulhamento naval internacional e as medidas de autoproteção adotadas pela indústria marítima têm realizado progressos consideráveis na contenção da pirataria somali, contribuindo para reduzir o número de sequestros bem-sucedidos (UN, 2010c: 4; UN, 2011c: 38-40; UN, 2011d: 4; IMO, 2011). Relatórios do International Maritime Bureau acrescentam a essas iniciativas de sucesso o papel da segurança armada privada a bordo dos navios mercantes (IMB, 2012: 24), que tem sido comemorado sob o mantra “to date, not a single ship with Privately Contracted Armed Security Personnel aboard has been pirated” (Shapiro, 2012). As coalizões navais multinacionais também têm destacado os seus resultados positivos na interrupção de ataques, escolta de navios com cargas do WFP e AMISOM, prisão de piratas e sua transferência para julgamento e, principalmente, proteção do Internationally Recognised Transit Corridor (IRTC) estabelecido no Golfo de Áden para a passagem segura dos navios mercantes navegando na área (NATO, 2012; EU, 2012: 5, 10). Esses resultados positivos, porém, não conseguem mascarar dois aspetos cruciais: o facto de o número de tentativas de ataques dos piratas ter praticamente dobrado de 2010 para 2011, e o facto de o principal efeito colateral das operações navais ter sido meramente deslocar as ações dos piratas da região do Golfo de Áden (onde originalmente predominavam os ataques) para regiões mais distantes no Oceano Índico (UN, 2010b: 36). Esses dados indicam que, apesar da imensa presença militar internacional nas águas da região e do aparato jurídico/penitenciário implantado na Somália e nos estados vizinhos sob a supervisão da ONU, os benefícios funcionais da pirataria continuam a sobrepor-se aos riscos colocados pela estratégia de contenção conduzida sob as políticas de intervenção do CSNU. Em vez de serem enfraquecidos, os piratas somalis têm-se tornado mais persistentes e arrojados.
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Conclusão
Este estudo mostra que a articulação da pirataria através do nexo segurança-desenvolvimento inclina-se significativamente para o lado da segurança e, na prática, resulta basicamente na criação de espaços e corredores de proteção guardados pelas forças militares internacionais e guardas armadas privadas, bem como no estabelecimento de uma infraestrutura de punição na Somália que atenda aos padrões de julgamento e aprisionamento ocidentais, de modo que a transformação das condições sociais existentes na base da economia política da pirataria é colocada em segundo plano, ofuscada por objetivos de segurança de curto prazo. O ponto crucial a enfatizar é que as características de dispositif do nexo segurança-desenvolvimento fazem dele uma ferramenta securitizada de governação global que dá grande importância à urgência e coerção, privilegiando o atingimento de objetivos de segurança em vez de transformações sociais. Ao mesmo tempo, a articulação do ‘nexo’ através de um projeto liberal de construção do estado como receita transformativa para a pirataria somali parece ser uma solução virtual, um tipo de projeto utópico e ideológico de engenharia social sem qualquer raiz política e ligação concreta com o contexto particular que envolve a economia política da pirataria somali. Essas são as razões principais pelas quais as políticas de intervenção do CSNU e a ‘abordagem compreensiva’ cada vez mais usada como um rótulo genérico dentro do discurso sobre a pirataria somali não podem ser tomados muito a sério no que concerne aos seus propósitos transformativos. Com tais características, a mobilização internacional contra a pirataria somali, orientada pelas resoluções do CSNU, aproxima-se mais de uma ‘guerra liberal contra a pirataria’ do que de um esforço transformativo que contribua, de facto, para um ambiente de paz positiva na região do Corno de África.
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“Paz Liberal” ou “Guerra Liberal”
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