516 - Paula Lopes
Literacia mediática e cidadania: uma relação de dependência?
Paula Cristina Lopes1
1 ©Paula Cristina Lopes (n. 06.12.1967, Lisboa). Licenciada e mestre em Ciências da Comunicação, frequenta o Programa de Doutoramento em Sociologia no ISCTE-IUL. Bolseira da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT). Investigadora do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES-IUL) do ISCTE
RESUMO:
A literacia mediática é uma competência de base nas sociedades contemporâneas. Por um lado, faz parte do sistema de disposições que orientam a acção dos indivíduos (Lahire, 2003); por outro, constitui um recurso em múltiplas esferas da vida (Costa, Machado e Ávila, 2007), quotidianamente mobilizado nas mais variadas situações.
Particularmente na última década, o conceito de literacia mediática tem sido identificado como um “factor especialmente importante para o estabelecimento de uma economia do conhecimento mais competitiva e inclusiva” (Comissão das Comunidades Europeias, 2007) ou como um “factor importante para uma cidadania activa na sociedade da informação de hoje” (Comissão das Comunidades Europeias, 2009). O conceito remete, portanto, enquanto condição estruturante e estruturadora, para a reflexividade, a participação, o envolvimento cívico.
Num país com uma “baixíssima propensão para a acção colectiva” (Cabral, 1997), com um claro desinteresse pela política, pela participação e pela acção colectivas (Cabral, 1997; Mozzicafredo, 1997; Vala, Cabral e Ramos, 2003; Casanova, 2004; Vala e Torres, 2006), fará sentido não questionar a premissa “mais práticas e competências de literacia mediática traduzem-se em mais práticas de cidadania”, constantemente reproduzida em discursos e documentos de orientação política, nacionais e internacionais?
Nesta comunicação apresentamos, em primeira mão, alguns resultados do trabalho empírico desenvolvido em “Literacia Mediática e Cidadania” (no âmbito do Programa de Doutoramento em Sociologia do ISCTE-IUL), junto de cerca de 500 adultos – alunos de acções de formação EFA e Novas Oportunidades, e alunos de licenciaturas e mestrados – na área geográfica da Grande Lisboa. A pesquisa foi operacionalizada pela
aplicação de um inquérito por questionário e de uma prova de literacia mediática, entre Março e Junho de 2012. Que práticas e que consumos mediáticos podemos identificar? Que impacto relevante têm essas práticas e consumos nas práticas de participação cívica e política destes adultos?
RESUMO ALARGADO:
A literacia mediática [ou capacidade de aceder, analisar, avaliar, criar e comunicar mensagens em diversos contextos (Aufderheide, 1993; Thoman, 2003; Livingstone, 2003, 2004; Thoman e Jolls, 2003)] parece ser, à partida, condição essencial para o exercício de uma cidadania plena, potenciando o envolvimento e a mobilização no espaço público, evitando ou diminuindo riscos de exclusão da vida comunitária. As competências de literacia tendem a ser mais elevadas entre os indivíduos com maior escolaridade e entre os mais jovens (Costa, Machado e Ávila, 2007) mas, em rigor, indicadores como a exposição aos Media – o consumo e produção de informação (multi)mediática –, a escolaridade ou a idade não são, per si, sinónimos de uso eficaz de informação ou de maior participação cívica e política.
O conceito de cidadania remete para dimensões como normatividade e participação. Traduz o reconhecimento de direitos e de obrigações (deveres) implícitos à relação entre o indivíduo e a sociedade (como um todo). O conjunto de elementos de cidadania “estabelece mecanismos institucionais que organizam as relações, por um lado, entre os indivíduos e os grupos sociais e, por outro, entre estes e as instituições sociais e políticas” (Mozzicafreddo, 1997). Ao aumento do poder dos indivíduos (enquanto cidadãos) corresponde a capacitação para o exercício da liberdade [Bourdieu faz corresponder aos direitos dos indivíduos uma expressão de liberdade: a liberdade-participação]. Tal como acontece com as competências de literacia, uma maior escolaridade destaca-se como o principal suporte de uma orientação pró-activa (Casanova, 2004). No entanto, os estudos sociológicos sobre orientações e atitudes sociais realizados em Portugal têm dado conta de uma crise de cidadania activa, particularmente entre os mais jovens.
A análise empírica desenvolvida junto de 520 adultos, alunos dos ensinos básico, secundário e superior na área geográfica da Grande Lisboa, revelou uma exposição aos Media claramente bidimensional: 91,9% dos inquiridos revelam navegar na internet diariamente/quase diariamente e 68,8% dizem ver televisão diariamente/quase diariamente. Quanto a níveis de exposição, 32,3% lêem (em qualquer suporte) uma a
duas horas/dia, 30% ouvem rádio durante cerca de meia-hora/dia, 28,5% vêem televisão entre uma a duas horas/dia e 31,2% navegam na internet entre duas e quatro horas/dia. Independentemente do nível de escolaridade, a maioria dos inquiridos lê informação até meia-hora/dia (44%), ouve informação na rádio até meia-hora/dia (49,4%) e consome web-informação até meia-hora/dia (35,2%). Os alunos do secundário são os que mais vêem informação na televisão: entre uma e duas horas/dia. Os estudantes universitários são os que menos a vêem: até meia-hora/dia de informação na TV. A leitura de jornais gratuitos é prática (pelo menos uma vez/semana) de 65,4% dos respondentes; os jornais diários são lidos, pelo menos uma vez/semana por 55,2%. As revistas de actualidade são lidas, pelo menos uma vez/semana, por 49,2% dos respondentes. Diariamente/quase diariamente, 39,8% escutam informação rádiofónica e 63,8% música. Assistem a telejornais diariamente/quase diariamente 69,4% dos inquiridos. Quase 100% dos alunos usa computador/portátil para se ligar à web e 88,6% tem perfil numa rede social. As práticas de utilização diária das TIC mais comuns entre os respondentes são enviar e receber emails (73,7%); aceder/participar em redes sociais (62,1%); e procurar informação para trabalhos escolares (57,8%). No extremo oposto, as práticas de utilização das TIC nunca realizadas são fazer compras online (56,7%); contribuir para um fórum de discussão online (55,6%); e participar em votações online (50,3%). Quanto a gestão de conteúdos multimédia, os indicadores (diários) mais evidentes são o download de ficheiros de vídeo (16,7%) e o download de ficheiros de música (16,3%). Estes números são altamente contrastantes com o que os respondentes revelam nunca fazer: construir e manter uma página web (80,4%) ou um blogue (75,1%); editar som (70,7%) ou editar vídeo (70,3%); upload de ficheiros de vídeo (66%) ou de música (64,2%).
O que é ser um “bom cidadão”? O padrão das representações sociais de cidadania revela que um bom cidadão é aquele que toma decisões é é livre (59,8%), tem opinião própria/independente (59,5%), protege a natureza e o ambiente (54,8%), nunca tenta fugir aos impostos (49%) e vota sempre (47,7%). Ao nível da participação cívica, fizeram parte e participaram activamente numa colectividade de bairro, clube ou grupo desportivo 17,5% dos inquiridos; e numa associação recreativa ou grupo cultural apenas 10%. Estes valores contrastem fortemente com o que os inquiridos declaram nunca ter feito parte ou participado: sindicato (91%), associação socioprofissional (90,8%), partido político (87,3%), associação cívica (85,2%), movimento ambiental, ecológico, de direitos dos animais (85,2%). Os tipos de actividade política e cívica dos
respondentes mais comuns no último ano foram: votar em eleições (68,1%), assinar uma petição ou abaixo-assinado (56,3%) e contactar instituições ou serviços (23,2%). Os respondentes declaram que nunca participariam em acções de protestos ilegais (50,1%), comprariam ou boicotariam produtos por razões políticas e éticas (29,9%), participariam num comício ou reunião política (28,1%), recorreriam à greve (22%) ou criariam iniciativas cívicas/políticas num blogue ou rede social (21,7%). Afirmam ter algum interesse pela política 43,1% dos inquiridos – destes, 62,1% são mulheres - e falam algumas vezes sobre o assunto 38,7%. – e destes, 53,7% são mulheres. Quanto ao autoposicionamento político, registam-se poucas variações ao centro da escala: os inquiridos fogem dos extremos (1: mais à esquerda e 10: mais à direita) e posicionam-se no centro (26,9% assinalam o 5, 29,2% dos quais mulheres).
A amostra foi constituída por 520 adultos a frequentar algum nível de ensino na área geográfica da Grande Lisboa: 9,8% no ensino básico, 15,6% no ensino secundário e 74,6% no ensino superior universitário. O sexo feminino esteve representado em 57,9% e o masculino em 42,1%. Entre 1991 e 1994, nasceram 41,2% dos inquiridos neste projecto de investigação. Mais de 80% dos inquiridos nasceram em Portugal.
BIBLIOGRAFIA:
Aufderheide, P. (1993), Media Literacy: A Report of the National Leadership Conference on Media Literacy, Queenstown, Aspen Institute
Cabral, M. V. (1997), Cidadania Política e Equidade Social em Portugal, Oeiras, Celta
Casanova, J. L. (2004), Naturezas Sociais. Diversidade e Orientações Sociais na Sociedade Portuguesa, Oeiras, Celta
Comissão das Comunidades Europeias (2007), Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social Europeu e ao
Comité das Regiões: uma Abordagem Europeia da Literacia Mediática no Ambiente Digital
Comissão das Comunidades Europeias (2009), Recomendação da Comissão de 20 de
Agosto de 2009 sobre Literacia Mediática no Ambiente Digital para uma Indústria Audiovisual e de Conteúdos Mais Competitiva e uma Sociedade do Conhecimento Inclusiva
Costa, A. F., F. L. Machado e P. Ávila (orgs.) (2007), Portugal no Contexto Europeu.
Vol II: Sociedade e Conhecimento, Oeiras, Celta
Lahire, B. (2003), O Homem Plural. As Molas da Acção, Lisboa, Instituto Piaget
Livingstone, S. (2003), “The changing nature and uses of Media literacy”, Media@lse
Electronic Working Paper, 4
Livingstone, S. (2004), “What is media literacy?”, Intermedia, 32 (3), pp. 18-20.
Mozzicafreddo, J. (1997), Estado-Providência e Cidadania em Portugal, Oeiras, Celta
Thoman, E. (2003), Skills and Strategies for Media Education, The Center for Media
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Thoman, E. e T. Jolls (2003), Literacy for the 21st Century, The Center for Media
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Vala, J., M. V. Cabral e A. Ramos (2003), Valores Sociais: Mudanças e Contrastes em Portugal e na Europa, Lisboa, Instituto de Ciências Sociais
Vala, J. e A. Torres (orgs.) (2006), Contextos e Atitudes Sociais na Europa, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais