514 - Maurício Hashizume
Demodiversidade e experiências sociopolíticas de democratização da democracia na América Latina
Maurício Hashizume
Pesquisador - Projeto ALICE
Que tipo de questões podem sobressair a partir de uma análise preliminar de dois processos de democratização na América Latina que se apresentam, ao menos em suas premissas, como “novas gramáticas sociais e culturais” (Santos e Avritzer, 2002)? Desde que devidamente contextualizados e sob a perspectiva da “sociologia das emergências” (Santos, 2002), alguns desses aspectos podem servir como pontos de diálogo com fenômenos correlatos em outras partes do mundo?
Comumente deslegitimadas pelo pensamento acadêmico-científico mainstream e relegadas ao outro lado da “linha abissal” (Santos, 2007) - que divide, através de relações de poder “de cima para baixo”, o que está e o que não está de acordo com o modelo ocidental hegemônico de vida em sociedade e de representação sociopolítica -, duas experiências sociopolíticas de demodiversidade1 adotadas em escala nacional, na Bolívia e no Brasil, serão aqui particularmente analisadas.
No caso da Bolívia, o foco se concentra na adoção da democracia comunitária como meio institucionalmente complementar às democracias representativa e participativa, seguindo determinação da Nova Constituição Política do Estado (2009).
A democracia comunitária foi estabelecida para assegurar a democracia intercultural: as 36 nações e povos indígenas, originários e camponeses e as comunidades afro-bolivianas têm garantido em lei os direitos de exercitar seus modos próprios de pensar e fazer política, numa relação de complementaridade com as outras formas de democracia. As instituições e práticas democráticas das nações e povos indígenas, originários e camponeses formam parte do Estado Plurinacional da Bolívia, por meio do qual suas autoridades e seus conhecimentos e cosmovisões são reconhecidos, incluindo os meios pelos quais exercem seu direito ao auto-governo. A adoção oficial da democracia comunitária prevê também a pré-seleção de candidatos (provenientes de nações e povos de outras culturas) a parlamentares, mas que precisam receber votos para de fato ingressar na Assembleia Legislativa Plurinacional e a eleição direta para as Assembleias Departamentais. Além disso, reconhece e assegura as “regras” políticas próprias nos Territórios Indígenas Originários Camponeses (TIOCs)2, que constituem 11 jurisdições da Bolívia que decidiram, por meio de plebiscito, pela conversão em territórios autônomos.
Para dar suporte a essa inovação, foi criada uma estrutura que tem no Serviço Intercultural de Fortalecimento Democrático (SIFDE)3, que desenvolve ações práticas no âmbito da promoção da democracia comunitária, um dos seus pontos-chave.
A escolha no Brasil, por seu turno, incidirá sobre as Conferências Nacionais, que abrem a possibilidade para a participação de representantes da sociedade civil na formulação e acompanhamento de políticas públicas e são coordenadas, no seu topo, pela Secretaria Nacional de Articulação Social (SNAS), da Secretaria-Geral da Presidência da República (SG/PR).
Entre 2003 e 2010, foram realizadas 74 Conferências Nacionais temáticas no Brasil. Estima-se que cerca de 5 milhões de pessoas participaram em etapas municipais, estaduais e nacionais de discussões, que se iniciam em nível local e deságuam num grande encontro final. Somente em 2011, por exemplo, oito processos desse porte foram realizados. A estratégia das Conferências Nacionais guarda conexão com a ativação e instauração de Conselhos Nacionais de direitos e políticas públicas, que não serão abordados por não fazerem parte do escopo do presente trabalho.
Resumo das análises
As abordagens sobre a nova experiência na Bolívia são ainda escassas e, em geral, superficiais. Já esforços mais focados como o de Mayorga (2011) permanecem dentro dos marcos de uma visão hegemônica e ocidental. Para ser “efetiva”, a democracia intercultural deve, no entendimento do cientista político, promover formas de distribuição de poder entre a maior variedade possível de partidos por meio de condutas abertas que facilitem o exercício do pluralismo político.
A concentração de poder em um único ator - a agremiação do atual presidente Evo Morales, o Movimento Al Socialismo – Instrumento Político pela Soberania dos Povos (MAS-IPSP) -, o estabelecimento de regras (notadamente as Leis Orgânicas infraconstitucionais) restritivas e o domínio tanto dos espaços públicos como dos discursos por parte da coalizão que rege o governo resultam, na visão de Mayorga (2011) em gargalos e constrangimentos à qualidade da democracia na Bolívia. A democracia intercultural ideal, para ele, é a que se assenta no multipartidarismo parlamentarista de concertação.
Na concepção do mesmo autor, a democracia comunitária tende apenas a reforçar o modelo liberal-representativo na medida em que se limita a reconhecer circunscrições especiais indígenas para eleição da Câmara Baixa e define cotas étnicas para o preenchimento das cadeiras nas assembleias departamentais. A quebra do paradigma individualista que consagrou o padrão de “um eleitor, um voto” por parte da lógica comunitária não é valorizada pelo analista, para quem a questão das autonomias indígenas, originárias e camponesas, permanece uma incógnita.
Em contraste com outras experiências como o orçamento participativo, também o processo das conferências nacionais temáticas promovidas pelo governo federal brasileiro têm sido relativamente pouco esmiuçado. Mais recentemente, entretanto, a produção e o interesse em assuntos como a aferição dos efeitos da participação social para a qualidade de políticas públicas têm aumentado em função da massiva abertura para a intervenção da sociedade civil em questões relativas ao Estado.
Dos 34 ministérios e secretarias com status de ministério, 22 (64%) envolveram-se na realização de ao menos uma conferência entre os anos de 2003 e 2010 (Souza, 2012). Apenas os Ministérios da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, da Fazenda, da Defesa, de Minas e Energia, dos Transportes e do Turismo não realizaram conferências. Por que as políticas públicas a cargo desses ministérios ainda não foram colocadas em discussão aberta com a sociedade? São setores estratégicos para o país e de grande
interesse econômico-financeiro. Esta constatação revela uma clara divisão entre temáticas que “podem e/ou devem” ser discutidas com a sociedade civil e outras mais restritas, distante do escrutínio e até possivelmente de “deliberações” populares.
1 Segundo Santos e Avritzer (2002), a demodiversidade pode ser concebida como “a coexistência pacífica ou conflitual de diferentes modelos e práticas democráticas”
2 A autonomia é definida pelo artigo 289 da Constituição Política do Estado da Bolívia.
3 Ligado ao Tribunal Supremo Eleitoral, o SIFDE foi criado na esteira da aprovação das leis do Órgão Eleitoral Plurinacional (Lei n° 018, de 16 de junho de 2010) e do Regime Eleitoral (Lei n° 026 de 30 de junho de 2010), que emergiram das determinações da Nova Constituição Política do Estado (2009).
Referências bibliográficas
Mayorga, Fernando (2011), Dilemas. Ensayos sobre democracia intercultural y Estado Plurinacional, La Paz:Plural/CESU-UMSS.
Santos, Boaventura de Sousa (2002), "Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências", Revista Crítica de Ciências Sociais 63, 237-280.
Santos, Boaventura de Sousa (org.) (2003), Democratizar a Democracia: os caminhos da democracia participativa, Porto: Afrontamento.
Santos, Boaventura de Sousa (2007) “Para além do Pensamento Abissal: Das linhas globais a uma ecologia de saberes”, Revista Crítica de Ciências Sociais 78: 3-46.
Santos, Boaventura de Sousa; Avritzer,. Leonardo (2002), “Para ampliar o cânone democrático”, in Boaventura de Sousa Santos (org.), Democratizar a Democracia. Os caminhos da democracia participativa, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
Santos, Boaventura de Sousa; Meneses, Maria Paula (2009) (orgs.) Epistemologias do Sul, Coimbra: Almedina.
Souza, Clóvis Henrique Leite de (2012), “A que vieram as conferências nacionais? Uma análise dos objetivos dos processos realizados entre 2003 e 2010”, Texto para Discussão 1718, Rio de Janeiro: IPEA.