508 - Fabrício Rocha
Dos Aldeamentos aos bairros de caniço: uma análise crítica sobre a negação de uma cidadania participativa nos discursos desenvolvimentistas e de cooperação regional e internacional em Moçambique no século XX.
Fabrício Dias da Rocha
A partir de um estudo histórico-sociológico, esta comunicação tem por intenção geral fazer uma breve reflexão sobre em que bases político-ideológicas estavam ancorados os discursos desenvolvimentistas que fundamentaram os projetos de cooperação no século XX em Moçambique, e quais os reflexos (positivos ou não) na construção de uma cidadania participativa no país atualmente.
Tendo como objeto de análise os modos de intervenção estatal vigentes nas diferentes estratégias de reestruturação, mobilização, agrupamento e deslocamento forçado de comunidades rurais em Moçambique no século XX, mais especificamente os aldeamentos no período colonial, as aldeias comunais no regime socialista e os modelos de ajuda a catástrofes naturais na altura da abertura económica e nos programas de cooperação internacional nos moldes neoliberais – busco perceber como nesses três momentos históricos se produz uma lógica de negação da cidadania, abnegação ao saber-fazer e às epistemologias inerentes às populações locais. Ainda, partindo da hipótese de que tais recursos estratégico-operacionais eram parte integrante do modelo de desenvolvimento do país e ordenado, em cada época, por suas respectivas doutrinas político-económicas, procuro discutir se a ideia de desenvolvimento, aliada a cooperação, não reproduz atualmente as lógicas do colonialismo, do planejamento centralizado pós-independência e do neoliberalismo, ao mesmo tempo que, através da produção dessas linhas abissais (Santos, 2010), provoca silenciamentos e impede as populações rurais de uma participação social emancipatória.
Palavras-chave: Cidadania participativa; Comunidades rurais; Moçambique; deslocamentos forçados; Discurso desenvolvimentista.
Tema: Participação social, transformação e emancipação.
Introdução
Durante o século XX as mobilizações populacionais, os deslocamentos, reordenamentos e agrupamentos forçados de comunidades rurais foram percebidos como uma praxis constante na África subsariana. Dentre os variados motivos dessa praxis destacamos o êxodo causado pelas guerras contra os regimes coloniais e contendas interétnicas, a fuga a situações calamitosas provocadas por catástrofes naturais, utilização de força de trabalho rural em culturas específicas (monocultura do algodão), os fluxos migratórios forçados e “voluntários” intra e internacionais estimulados também por diferentes causas, mas principalmente pelo apelo económico relativo ao gerenciamento das companhias majestáticas e pela implementação de grandes projetos de desenvolvimento económico-estatal tais como barragens, caminhos-de-ferro, zonas de exploração aurífera e portos.
O Estado colonial, as companhias majestáticas e as comunidades locais.
Não se trata de retórica a asserção que o Estado colonial português exerceu uma deletéria influência no processo que procedeu a desarticulação simbólica e política respeitante às unidades agrupacionais existentes até então em Moçambique. Ao impor sua dominação, usurpou destes agrupamentos sua qualidade de totalidade, de forma a desorganizar as relações de poder de grupo macro e intra familiar que regulavam a gestão dos recursos disponíveis para produção sustentável. Em conluio com as companhias majestáticas, estruturou-se um modelo de exploração regional que visava o controle dessa mão-de-obra circunscrita, usurpando dessa maneira o direito de decisão das comunidades locais e centralizando essa decisão de forma a favorecer a monocultura da produção capitalista da época (Meneses, 2010).
Podemos supor que a ingerência do colonialismo visava a negação da existência do “outro”, de seus saberes e práticas. Esta produção de ausência refletia a arquitectura binária do pensamento abissal que divide a realidade social em dois universos ou linhas abissais. Como explica Boaventura de Sousa Santos, “a divisão é tal que o outro da linha desaparece enquanto realidade, torna-se inexistente, e é mesmo produzido como inexistente” (Santos, 2010: 23).
Neste sentido, a violência ontológica decorrente da linha abissal se fundamentava pelo exercício da intransigência no desenraizamento de populações rurais dos seus territórios de origem, na consequente apropriação de sua força de trabalho e culminando com a eliminação de formas próprias de produção e reprodução do bem-viver nessas zonas.
O conceito de monocultura das temporalidades de Boaventura de Sousa Santos (2002) aqui é elucidativo, pois nos diferentes processos de controle e dominação social (colonialismo, centralismo socialista, neoliberalismo) se tem sempre uma ideia de progresso avassalador, parece haver sempre um vortex do tempo que deve conduzir à organização social.
Em concordância com João Paulo Borges Coelho (2004), outro fator deletério e irónico da perpetuação de uma lógica de dominação em Moçambique, é o fato de que a rotura trazida pela independência em 1974 não modificou a situação de privação progressiva e intensificada das comunidades rurais em responder com métodos próprios (incluso temporalidades próprias) as situações de crise provocadas pelas calamidades locais. Pelo contrário, o novo regime agravou tais crises ao introduzir dois novos elementos: o desenvolvimento de uma política agrária do novo Estado, aumentando de maneira sem precedentes o reordenamento populacional, assim como o desenraizamento e a concentração, e ampliando-o em todo país de forma sistemática e planeada; e, em segundo lugar, o extravasamento da guerra civil.
O estado centralizado, as aldeias comunais e a negação do outro.
Diante dos problemas enfrentados pela Frelimo[1] no período pós-independência, João Mosca (1999) defende que as dissonâncias do regime encontravam-se na não adaptação entre teorização e os critérios de aplicação que possibilitariam a economia experimentar as alterações pretendidas. Portanto, numa tentativa de dar ao projeto político revolucionário certas características que esta experiência teria em outras regiões do mundo, nomeadamente na Rússia e China, com seus respectivos aparelhos burocráticos e organizações de base, mas não levando em conta as diferentes especificidades locais e sociais, permitiu-se desse modo a manutenção e persistência de uma linha abissal. Tal fato propiciou que o programa revolucionário fosse posto em segundo plano por pressões externas, e pela conservação do essencial da estrutura económica e social neocolonial baseada na economia de mercado e no silenciamento do movimento social (Cahen, 1987).
A execução das aldeias comunais[2] foi perspectivada única e exclusivamente como uma alteração física do lugar de residência, sem se considerar mudanças e transformações que tal alteração acarretaria nos ordenamentos lógicos inerentes às convenções produtivas e relacionais, nas práticas económicas e sociais cotidianas, no saber local, na organização sócio espacial das famílias, no processo intercomunitário das trocas materiais e simbólicas, nos rituais e cultos locais aos antepassados, enfim, em toda uma gama de costumes e práticas socioculturais que foram indiscriminadamente inviabilizadas e, ao mesmo tempo, invisibilizadas. Esta negação do outro contida na monocultura do saber (Santos, 2010), contém em si os elementos epistemológicos para trilhar o caminho para o seu isolamento. Neste sentido, é necessário termos em conta que uma ecologia dos saberes concebe e permite a identificação de outros conhecimentos invisibilizados e desacreditados, partindo do pressuposto de que todos os saberes são uma superação de uma ignorância (Santos, 2006).
O Estado Pós-socialista, a abertura de mercado, êxodo rural e resistência popular
Desde a abertura dos mercados no início dos 80, passando pelo fim da guerra civil e o ajustamento estrutural (FMI & Banco Mundial) severo na década de 90, Moçambique, até os dias atuais, sob a égide do controle da inflação, dos gastos do governo e restrições fiscais contidas no pacto de Bretton Woods, mantém uma lógica monetarista, de inviabilização da real necessidade das populações mais afetadas pela guerra civil, pelas catástrofes ambientais e epidemias, facilitando a atuação e exploração voraz dos grandes empreendimentos (Hanlon, 1997). Este novo modelo de Estado reduziu radicalmente os domínios de sua intervenção ao mesmo tempo que privatizava largos setores de atividade da sociedade, e “largando de mão” da vocação social (contraditória) que detinha anteriormente para buscar facilitar o funcionamento do mercado. Contudo, no campo, esta mudança criou uma situação ainda hoje não normalizada, cujas linhas de tensão são a competição desigual pela ocupação de terras entre empreendimentos empresariais/comerciais e as comunidades rurais que buscam se reconstituir após a dantesca dinâmica de asilo e deslocamento acarretada pela guerra (Borges Coelho, 2004).
Considerações finais
Em Moçambique, durante o século XX, coexistia dois atores fortes na cena do poder: a) o Estado onde as decisões arbitrárias eram e são determinantes para a manutenção de um status quo social e político; e b) uma massa organizada que pautou suas ações na resistência à exploração dos modelos vigentes. Este último ator é atualmente determinante para se perspectivar uma possibilidade de transformação do Estado e da matriz social a partir de baixo. No século XXI, a resistência popular contra ações de empresas de mineração atuando em território moçambicano, com o aval e proteção do Estado, continua a ser ilustrativo de como a sociedade civil organizada deve proceder na reação transformadora perante às inclinações de subserviência “neocoloniais” do Estado ante as “novas” forças económicas internacionais; estancando o compelido e intenso êxodo campo-cidade, de forma a exigir do governo atenção as suas carências e demandas, e uma real participação nas decisões sobre o rumo de suas vidas.
Referências bibliográficas
BORGES COELHO, João P. 2004, Estado, comunidades e calamidades naturais no Moçambique rural. In Santos, Boaventura S. (org.) Semear outras soluções. Os caminhos da biodiversidade e dos conhecimentos rivais. Porto: Edições Afrontamento.
CAHEN, Michel, 1987, Mozambique: la révolution implosée, études sur 12 ans d'indépendance 1975-1987. Paris: Édition L´Harmattan.
HANLON, Joseph, 1997, Paz sem benefício: como o FMI bloqueia a reconstrução de Moçambique. Moçambique: Imprensa Universitária UEM.
MENESES, Paula G., 2010, O “indígena” africano e o colono “europeu”: a construção da diferença por processos legais. Coimbra: Centro de Estudos Sociais – (Cadernos dos CES).
MOSCA, João, 1999, A experiência socialista em Moçambique (1975-1986). Lisboa: Instituto Piaget. (Coleção: Estudos e Documentos).
SANTOS, Boaventura de Sousa. 2010, “Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes”, in Boaventura de S. Santos e Maria Paula Meneses (org.), Epistemologias do sul. Coimbra: Almedina, 23-71.
[1] Frente de Libertação de Moçambique: Grupo opositor ao regime português no período colonial e que realizou a independência moçambicana em 1974. Tornou-se um projecto político socialista de partido único para o país em 1977 adotando uma economia centralizada.
[2] As aldeias comunais compunham o cerne da política da Frelimo para o meio rural, devendo as mesmas estarem assentes na produção coletiva, isto é, nas cooperativas e nas empresas estatais.