504 - Carla Águas
Festa, fronteira e resistência: o território flutuante do Congo
Carla Águas
Na fronteira da festa
A presente proposta explora os vínculos entre festa, identidade e resistência, a partir da trajetória do quilombo de Mata Cavalo. Trata-se de uma comunidade negra de descendentes de escravos situada em Nossa Senhora do Livramento, Estado de Mato Grosso, Brasil, cuja população fora expulsa do território nos anos 1940. Empurradas para as periferias urbanas pelas elites – que, por sua vez, eram motivadas pela valorização fundiária gerada por políticas de desenvolvimento do interior do país – as famílias diasporizadas não perderam os laços identitários e iniciaram um movimento de retorno depois de duas décadas. Hoje, é uma forte comunidade que pleiteia o direito sobre o território.
Inserida na tese Quilombo em festa: pós-colonialismos e os caminhos da emancipação social, esta comunicação discorre sobre o papel do grupo do Congo de Livramento no processo de retomada das terras do quilombo – o que oferece pistas sobre as ligações entre festa e resistência.
A dança do Congo, existente em várias partes do Brasil, louva os santos negros e possui inúmeras variantes. No caso aqui tratado, a tradição foi retomada durante a diáspora, formando um espaço fundamental para a manutenção do sentido de comunidade. Esta reorganização em torno da dança ganhou mais relevância quando, nos anos 1980, os quilombolas passaram a apresentar-se na sede do município de Livramento, do qual haviam sido expulsos. A análise paralela entre a ação política de retomada das terras e a ação performativa de retomada do Congo revela, segundo proponho, caminhos que unem o simbólico às possibilidades emancipatórias.
Esta discussão estrutura-se em torno da ideia de festa como espaço de fronteira. Esse conceito é útil para se pensar sobre as relações culturais: todo ato cultural vive, essencialmente, nas fronteiras (Ribeiro, 2005). Em termos intraculturais, as relações aí constituídas vinculam-se a processos de identificação capazes de aglomerar os sujeitos em torno de uma noção de coletividade. Hall (1996) observa que tais processos não apagam a diferença: o nós é uma ideia construída a partir da criação de momentos de ancoragem dentro da fluidez das relações sociais.
Sob determinado ângulo, a festa pode ser vista como espaço de fronteira. A celebração festiva pode ser entendida como uma (con)fusão (Perez, 2002), a partir da qual um grupo pode afirmar-se perante o outro e imprimir coerência às ações coletivas. Assim, uma coletividade plural – como são todos os grupos sociais – movimenta-se dentro do espaço-tempo articulador e instável dos territórios fronteiriços.
A retomada do Congo de Livramento
O Congo de Livramento nasceu dentro de Mata Cavalo, teatralizando o confronto entre os dois exércitos inimigos – do rei do Congo e do rei monarca. O quilombo foi formado em 1883, quando a senhora Anna Tavares doou as terras para os seus escravos. Como vimos, a partir dos anos 40, seus habitantes foram expulsos para as periferias urbanas, mas, depois de duas décadas, iniciaram um lento movimento de retorno, que se acentuou por volta de 1980. Apesar das pressões, hoje é uma comunidade fortalecida, que pleiteia o direito constitucional sobre as terras.
Quando os habitantes de Mata Cavalo foram expulsos, as celebrações quase se extinguiram. Mas, aos poucos, a população passou a buscar novos palcos para os seus rituais. «Reorganizavam-se a solidariedade grupal, as relações de parentesco, as práticas culturais, sustentadas pela lembrança coletiva. Era Mata Cavalos ressurgindo, fênix negra, etnicamente reinventada» (Bandeira, Dantas e Mendes,1990: 39).
O papel da festa na manutenção das identidades destaca-se a partir de duas vias: por um lado, levou a comunidade (imaginada) até a população, já que as festas realimentaram os laços estabelecidos entre as famílias diasporizadas. Por outro, levou a população até a comunidade (simbólica e concreta), na medida em que a retomada do grupo de Congo e da festa de São Benedito foram importantes para o retorno físico dos quilombolas à área original.
Vejamos como se deu este episódio: no final dos anos 1950, Cesário Sarat, uma liderança do quilombo, propôs-se a reorganizar o grupo de Congo no município de Várzea Grande, onde então vivia. Muitos homens aderiram à iniciativa e, apesar das distâncias – pois moravam em cidades diferentes – passaram a reunir-se periodicamente para os ensaios. Organizado o grupo, Sarat deu um passo adiante: reacendeu a festa de São Benedito de Livramento, que incluía a apresentação da dança, e, nos anos 80, mudou-se para a sede do município.
O retorno de Sarat vinculou-se aos conflitos da época: sua intenção inicial foi de ajudar um primo, que retornara a Mata Cavalo e vinha sendo pressionado por fazendeiros. Conflito, resistência e festa misturam-se nesse relato: em Livramento, a liderança ergueu a rústica Casa de São Benedito, que, além de lhe servir de moradia, era também um lugar sagrado. Lá foi montado um altar e guardados os ornamentos do Congo. Ali também dormiam os componentes do grupo nos dias de apresentação. Mas creio que, nas entrelinhas, a Casa de São Benedito deu sustentabilidade ao processo de reaproximação das terras perdidas – afinal, era um espaço dos quilombolas, instalado em pleno centro do pequeno núcleo urbano de Livramento.
A realização anual da festa de São Benedito, proposta por Sarat e aceita pelos poderes locais, exigia a constante mobilização dos dançantes. Nesse sentido, a reativação do Congo parece-me conciliar a louvação do santo a uma enredada estratégia de retomada do território. Além dos membros do grupo, a festa voltou a reunir as famílias dispersas bem no coração do município do qual tinham saído, recolocando os quilombolas numa perigosa proximidade com a área que fora sua.
Desta maneira, nos anos de 1980, deu-se um duplo movimento, nos campos político e simbólico: por um lado, houve a retomada do Congo em Livramento, gerando um retorno periódico dos quilombolas; por outro, no campo político, o mesmo período marcou o acirramento do movimento de retomada do território. Travavam-se, assim, duas guerras: uma entre o rei monarca dominador e o rei do Congo; outra entre as elites e a comunidade em busca da territorialidade perdida. Segundo creio, as duas batalhas não são apenas paralelas, mas intrinsecamente relacionadas. No limiar entre o intra e o intercultural, tais festas representaram simbolicamente uma comunidade desterritorializada, além de afirmar, perante os olhares externos, a permanência de uma identidade, apesar da diáspora.
Uma vez que dramatiza as identidades, a festa torna-se especialmente relevante para grupos sociais cuja rotina está em permanente ameaça, como é o caso de Mata Cavalo. Afinal, durante a festa, produz-se relações, discursos, lógicas de resistência. Desta maneira, a retomada do Congo de Livramento convida à reflexão sobre os conceitos de fronteira, identidade, territorialidade e performance. O tempo (a ancestralidade) e o espaço (o território original) foram ritualmente recriados, o que alimentou o sentido de pertencimento e tornou possível a concreção fronteiriça da comunidade. Por esta via, foi possível a um grupo disperso no espaço desafiar as forças dominantes.
Bandeira, M.; Dantas, T.; Mendes, E.(1990). Mapeamento e sistematização das áreas de comunidades remanescentes de Quilombo Mata Cavalo. Cuiabá: Unic.
Hall, S.(1996). «Who needs Identity?», in: S. Hall, P. Gay (orgs.). Questions of Cultural Identity. New Delhi: Sage, 1-17.
Perez, L.(2002). «Dionísio nos trópicos: festa religiosa e barroquização do mundo. Por uma antropologia das efervescências coletivas», in: M. Passos (org.), A festa na vida: significado e imagens. Petrópolis: Vozes, 15-58.
Ribeiro, A. S. (2005). «A tradução como metáfora da contemporaneidade. Pós-colonialismo, fronteiras e identidades», in: A. Macedo, M. Keating (orgs.). Colóquio de Outono: Estudos de tradução. Estudos Pós-Coloniais. Braga: Univ.Minho, 77-87.