503 - Camila Rodrigues
Participação e qualidade da Democracia - O envolvimento dos moradores nas políticas públicas de realojamento no Portugal contemporâneo
A tese de doutoramento irá analisar a relevância da participação para a qualidade da Democracia contemporânea. Mais concretamente, procuraremos responder às seguintes questões: se o «princípio democrático» pode e deve ser aplicado não apenas a determinadas esferas da acção social de carácter assumidamente político, mas igualmente a qualquer forma de acção social desenrolada no contexto da sociedade civil, ou seja, se é possível, e desejável, democratizar estruturas de autoridade para além do Estado; se há um mínimo necessário de participação para a manutenção do «método democrático»; quais as condições que propiciam/obstam à participação dos cidadãos; como os mecanismos de participação funcionam na prática; até que ponto os cidadãos aproveitam as oportunidades de participação que lhes são oferecidas; e quais são as consequências da participação para a qualidade democrática das políticas públicas.
Como estudo de caso será considerado o envolvimento dos moradores nas políticas de habitação social no Portugal contemporâneo, na tentativa de determinar em que condições este fenómeno ocorre e quais as suas consequências para o exercício democrático. O envolvimento é entendido enquanto acção consciente e consentida dos cidadãos no sentido de influenciar um determinado mecanismo político que os afecta. A intensidade do envolvimento corresponde ao nível de actividade dos cidadãos nas diversas fases do mecanismo político e a influência ao nível de tradução da actividade dos cidadãos em resultados práticos observáveis. Será igualmente considerado se a iniciativa de envolvimento nas diversas fases do mecanismo político parte dos próprios cidadãos (participação), de incentivo externo (mobilização) ou de uma combinação de ambos. Assim, procuraremos determinar que tipos de envolvimento, e que níveis de intensidade e influência, são mais adequados para a gestão de questões centrais para a qualidade da governação democrática contemporânea.
A qualidade democrática será entendida em termos de justiça (equidade no acesso dos diversos grupos sociais aos processos de tomada de decisão política); legitimidade (apoio dos cidadãos às políticas e governantes) e efectividade (capacidade de implementação de medidas políticas). Para testar os efeitos da participação sobre estas dimensões serão considerados 3 modelos de relação Estado/Sociedade Civil: estatizado (o envolvimento dos cidadãos no mecanismo político é inexistente ou insignificante); corporativo (organizações que afirmam defender os interesses dos cidadãos, mas que não são necessariamente constituídas pelos próprios, são incorporadas no mecanismo político, possuindo funções consultivas e executivas) e participativo (os cidadãos auto-organizados são incorporados no mecanismo político, possuindo funções decisórias, consultivas e executivas).
1 Por Camila Rodrigues, doutoranda em Ciência Política pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (FCSH-UNL). Investigadora do CesNova e do Observatório Político.
Estes 3 modelos, considerados enquanto tipos ideais, constituirão as ferramentas analíticas nas quais se irão situar os diversos casos em estudo, casos estes que remetem para os programas de realojamento implementados em Portugal desde a revolução de Abril até à actualidade – SAAL (Serviço de Apoio Ambulatório Local); Programas de Auto-acabamento e Auto-construção; PIMP (Plano de Intervenção a Médio Prazo); PER (Programa Especial de Realojamento) e PROHABITA (Programa de Financiamento para Acesso à Habitação), bem como para aplicações diversas dos mesmos programas, consoante o contexto geográfico e social específico em que ocorre a sua implementação. Daqui irá emergir a variação necessária ao teste das questões de partida, já enunciadas, e das hipóteses de trabalho que pretendemos analisar. A hipótese central que nos guia assume que quanto mais os três requisitos de boa governação se encontrarem satisfeitos (justiça; legitimidade e efectividade), tanto mais intenso será o sucesso integrador dos mecanismos governativos e vice-versa, num processo de reforço mútuo. É por nós assumido que a justiça, a legitimidade e a efectividade dos mecanismos governativos democráticos são condicionadas pelos níveis de influência e intensidade do envolvimento dos cidadãos, e que a participação e a mobilização terão impactos diversos na sua promoção.
O sucesso integrador será medido em termos dos efeitos produzidos nas condições materiais de existência dos cidadãos abrangidos (melhoria ou não das suas condições de habitabilidade e de acessibilidade a bens e serviços), no seu nível de satisfação relativamente à execução dos programas (se consideram que os programas tiveram um impacto positivo/negativo na sua vida e qual a sua intensidade), e na percepção, por parte dos responsáveis políticos, técnicos e comunidades afectadas, quanto aos seus resultados (se consideram que facilitaram ou não a inclusão social e a capacitação das populações realojadas). Mais concretamente, o sucesso integrador irá variar de forma directamente proporcional relativamente às dimensões referidas, sendo portanto passível de medição e constatação empírica.
A hipótese colocada remete para o debate teórico em torno do papel da participação no contexto da democracia contemporânea, no qual é possível identificar duas visões distintas e em certa medida antagónicas, que serão por nós sujeitas a teste empírico. A teoria contemporânea da Democracia, que compreende autores como Schumpeter e Sartori, coloca o cerne do sistema democrático na competição eleitoral entre as elites políticas. A igualdade política traduz-se na igualdade de acesso ao exercício eleitoral e a participação consiste no exercício do voto: é através das eleições que as maiorias exercem controlo sobre os seus líderes. Nesta perspectiva, o nível de participação não deverá ultrapassar o mínimo necessário para a manutenção do «método democrático», dado que uma participação mais intensa poderá gerar pressões potencialmente irresolúveis sobre o sistema político, desembocando na sua ingovernabilidade.
Numa perspectiva diversa, a teoria da democracia participativa considera que é a experiência de participação que nutre a personalidade democrática e favorece o desenvolvimento das qualidades necessárias ao correcto funcionamento do sistema. A existência de instituições representativas ao nível nacional não constitui garante suficiente de qualidade democrática e a socialização para a democracia deve ocorrer em esferas sociais variadas, para que as qualidades psicológicas desejáveis se possam desenvolver através do processo participativo, que possui funções educativas e integrativas. O desenvolvimento das virtudes cívicas é particularmente relevante para os grupos sociais com menos recursos, os quais encontram aqui um propulsor da sua igualdade política, mediante a promoção do acesso aos mecanismos políticos que os afectam.
Com base em pesquisa empírica, iremos aferir se a justiça e a governabilidade são potencialmente incompatíveis, obrigando a sacrificar uma em prole da outra, ou se é possível encontrar um ponto de equilíbrio que permita produzir políticas públicas efectivas com base no acesso equitativo dos cidadãos aos mecanismos governativos que os afectam. É neste equilíbrio que se encontra o “modelo governativo desejável”, que permite maximizar e compatibilizar os diversos componentes da qualidade democrática, de uma forma realista. Apesar da tensão inevitável entre as duas perspectivas teóricas enunciadas, as estratégias participativas devem ser enquadradas pelas instituições representativas da democracia contemporânea, dado que estratégias realistas de mudança que tenham a democracia como objecto não podem ser revolucionárias ao ponto de propor a desintegração do sistema político que a operacionaliza.