411 - Sângela Hilarino
Na nós kombersu, ka bu poi boka, poi oredja - o olhar de uma mulher negra imigrante sobre a sociedade portuguesa
Sângela Márcia Hilarino
Doutoranda FLUC - Estudos Feministas
Nota bibliográfica:
Aluna do Doutoramento Estudos Feministas da FLUC – UC, pós-graduada em Gestão Social pela Fundação João Pinheiro; funcionária da Prefeitura de Belo Horizonte onde atuou, nos últimos quinze anos, como assessora em políticas públicas, principalmente no acompanhamento e implementação de políticas de gênero e representante da sociedade civil nos Conselhos Municipal dos Direitos da Mulher e de Saúde.
I - Introdução
Com o fenômeno da feminização da imigração (Miranda, 2009) cada vez mais é relevante estudar as migrações a partir das desigualdades de gênero e das teorias feministas.
Os estudos sobre migrações têm privilegiado o olhar das sociedades de destino sobre as mulheres imigrantes em detrimento das representações que estas imigrantes têm sobre aquelas. O presente estudo busca um movimento contrário, contribuindo para ampliar, relativizando, essa visão prevalecente, comumente tomada como única, dominante e hegemônica. O que viso neste trabalho é a desconstrução ou relativização dos estereótipos dominantes e uma contraposição à discriminação e violência simbólica implícita no saber estereotipado sobre as imigrantes em Portugal. Neste caso específico, a visão de uma mulher imigrante e negra, de origem africana em Portugal. Promover oportunidades para que essas mulheres possam falar e de fato serem escutadas, de narrarem suas histórias para que estas se tornem conhecidas e reconhecidas, constitui um importante passo para uma convivência social mais pacífica onde prevaleça o respeito às diferenças.
Para o título deste trabalho tomei emprestado um provérbio africano, “na nós konbersu, ka bu poi boka, poi oredja”, aqui em criolo cabo-verdiano, variante de Santiago, que significa “em nossa conversa, não ponha a boca mas o ouvido”. Considerei bastante adequada a sua utilização, pois traduziu a minha atitude e preocupação de compreender, através da escuta, que representações a minha entrevistada constrói sobre a sociedade de destino, Portugal.
Importante se faz registrar, que por mais que nos esforcemos para não interferirmos no processo de escuta, o fazemos a partir de nossos valores: ao escutarmos filtramos o que estamos a escutar. A escuta é sempre situada. Escutar é saber levar em conta não só a interlocutora e seu ambiente como também a nossa própria posição enquanto narratária. A escuta, como a linguagem não é passiva e nem neutra. Por outro lado a escuta é um primeiro passo na compreensão. Em função do tipo de escuta podemos nos aproximar ou distanciar da realidade e representação das nossas interlocutoras.
II - Contribuições teóricas
Algumas intelectuais feministas vêm contribuindo muito para a compreensão dos processos de exclusão por que passam as mulheres, seja através do seu silenciamento imposto pela cultura patriarcal ou ainda pelo trabalho de algumas feministas que em suas produções consideram apenas a mulher branca, heterossexual e de classe média, invisibilizando as outras mulheres e as opressões múltiplas que sofrem devido à raça/etnia, classe social, orientação sexual, dentre outras. Tal feminismo resulta de uma posição privilegiada: brancas, do Primeiro Mundo e com elevada escolaridade. Trata-se de feminismo de classe e etnocêntrico, que acaba por reproduzir o esquema patriarcal. As críticas de Chandra Talpade Mohanty (2003) ao feminismo hegemônico ocidental, apontam para o fato de que nas suas relações com “mulheres outras”, continua cativo do etnocentrismo.
Rosi Braidotti (1998) por outro lado aponta para a necessidade de consolidar uma perspectiva que pense a diferença de forma positiva e o rompimento com os binarismos estreitos e respectivas hierarquias. Assim, as diferenças devem ser vistas como a possibilidade de se ampliar e complexificar a realidade, onde haja de fato diálogo entre os diferentes, sem hierarquização de suas características, mas antes o respeito e a valorização entre atores e atrizes, num processo de enriquecimento da vida social.
Em nossa sociedade as diferenças têm sido hierarquizadas, tratadas como desigualdades e utilizadas para oprimir e dominar o outro. O cruzamento destas desigualdades leva a uma exclusão cada vez maior de alguns grupos sociais que se tornam vulneráveis. Uma mulher, negra, e pobre enfrentará muitas dificuldades. Caso seja ainda idosa e deficiente, a situação irá cada vez mais se agravando. O trabalho de Audré Lorde (1979) nos chama a atenção que, além da raça, sexo e classe, outros marcadores devem ser levados em consideração, como a idade e o estado de saúde, pois os mesmos podem colocar algumas mulheres em situação de maior fragilidade social.
Já bell hooks (1995) tem contribuído para este debate ao trazer as especifidades e as dificuldades por que passam as mulheres americanas, negras e pobres, denunciando as condições sociais em que vivem e reivindicando que se criem oportunidades para que elas se insiram, principalmente no campo acadêmico, ao valorizar, por exemplo, a importância de elas se construírem enquanto intelectuais. Seu trabalho evidencia os processos vividos por essas mulheres, que são conduzidas socialmente para a vida coletiva, através da pressão das comunidades na reprodução dos comportamentos e valores, que desvaloriza o trabalho intelectual, reconhecendo como valor o ativismo mais concreto. hooks ainda chama a atenção para as desigualdades presentes entre as mulheres negras e os homens negros e também para as questões que afligem as mulheres pobres e das poucas oportunidades que têm de fugir dos modelos sociais impostos. Assim, analisar os processos vivenciados pelas mulheres negras se torna relevante para compreendermos como se estabelecem as relações de poder presentes nestas comunidades e, também, nas outras comunidades nas quais estão inseridas.
Audré Lorde (1984) contribui para o debate ao apontar que, como mulheres, nós também fomos ensinadas a ignorar as nossas diferenças ou a enxergá-las como as causas da separação mais do que as forças de mudança. Sem comunidade não há libertação apenas uma mais vulnerável e temporária trégua entre um indivíduo e a opressão que ele sofre. Mas a comunidade não deve ignorar as diferenças, também não deve fingir que essas diferenças não existem. Suas reflexões contribuem no sentido de fortalecer a importância de se considerar as diferenças um fator preponderante para as transformações, é a partir delas que se pode criar um ambiente mais favorável e igualitário.
Oyèronké Oyewùmí critica o ocularcentrismo da cultura ocidental, que, na sua opinião, não caberia em África, e a ênfase ocidental na diferença enquanto inferioridade ou mesmo degeneração. A autora também contribui para pensar a diferença e tratá-la de forma outra, conforme dito anteriormente por outras feminstas.
As mudanças almejadas, onde os direitos sejam resguardados e iguais entre homens e mulheres, passam pelos diversos atores e atrizes que compõem as sociedades, pelas suas diferenças e pelo reconhecimento e aceitação delas. O movimento feminista tem espelhado essa diversidade com a entrada de mulheres que até então estavam excluídas ou afastadas das discussões. Destaco aqui, o reconhecimento da contribuição de outras feministas como das marxistas que reivindicam que sejam consideradas, dentro das classes sociais, as desigualdades de gênero1. Já as autoras negras se posionaram como anti-racistas, anti-classistas e anti-sexistas, evidenciando a importância de se lutar contra os estereótipos pejorativos e menorizantes atribuídos às mulheres negras. As mulheres do Combahee River Collective Statement2 exigem que se considere o racismo que permeia o próprio movimento feminista hegemônico, que é o branco.
Pensando em promover uma escuta em seu ambiente quotidiano no contexto da imigração, tomo como ponto de partida a questão das representações dos sujeitos do Terceiro Mundo no discurso ocidental, pois elas estão presentes nas mentalidades, interferem nas relações entre as pessoas, contribuem para hierarquizá-las e, em muitos casos colocam as imigrantes em uma situação subalterna. Gayatri Spivak (1998) ao trazer a questão “Pode o subalterno falar?” conclui que não, pois quando ele fala sai da posição de subalterno. Spivack, ao argumentar a responsabilidade de combater a subalternidade afirma que essa ação se efetiva não falando pela subalterna, mas criando mecanismos para esta subalterna – neste caso a imigrante cabo-verdiana -, se articule e seja ouvida.
Para Sipvak, o sujeito subalterno é aquele pertencente “às camadas mais baixas da sociedade constituídas pelos modos específicos de exclusão dos mercados, da representação política e legal, e da possibilidade de se tornarem membros plenos no estrato social dominante”.
Outra questão levantada por Spivack é a da violência epistêmica, cuja tática de neutralização do Outro, seja ele subalterno ou colonizado, consiste em invisibilizá-lo, expropriando-o de qualquer possibilidade de representação, silenciando-o.
Spivak aborda a situação da mulher, especialmente a “pobre e negra”, sendo aquela que atesta todas as exigências que lhe confirmam a condição de subalternidade: a da pobreza, a do gênero, a da cor, mantêm a mulher negra no espaço demarcado ideologicamente e que lhe foi reservado, não sendo central e sim periférico, não é dentro do, mas fora do círculo.
Este trabalho considera a contribuição destas teóricas que revelam, através de seus ensaios, a importância de se escutar a outra e buscar compreender o seu discurso, reconhecendo nele as diferenças como um valor importante para os processos de transformação social. Logo, valorizar o olhar destas mulheres invisibilizadas é, em certa medida, empoderá-las3, incluindo suas visões no universo de representações da cultura hegemônica.
Cabe ressaltar que estarei bastante atenta para não incorrer no mesmo erro, o de generalizar a visão aqui registrada de uma única mulher que passou a viver em uma cultura muito diferente da sua, de todos os conflitos e os processos que a mesma vivencia. Este olhar é desta mulher sobre a sociedade portuguesa, não devendo ser considerado como se fosse das mulheres cabo-verdianas sobre a sociedade portuguesa, pois as sociedades são compostas por indivíduos singulares e seus olhares também são singulares.
II - Metodologia
Primeiro foi feita uma pesquisa bibliográfica e também uma observação assistemática da realidade em Coimbra, me obrigando a ter um contato mais direto com a realidade que buscava pesquisar, ou seja, maior proximidade com as comunidades africanas de diversas nacionalidades. Busquei frequentar eventos culturais e sociais, ter conversas informais com mulheres negras africanas a respeito dos seus processos de imigração e de suas vidas cotidianas.
Realizei um estudo de caso, de uma mulher imigrante, africana, negra e em idade adulta, tendo como centralidade o entendimento dos processos vividos por ela e de como ela percebe a sociedade de destino, no caso, a sociedade portuguesa, em especial a de Coimbra.
Optei por trabalhar com pesquisa qualitativa para buscar compreender as representações que as mulheres imigrantes têm das sociedades de destino, sendo muito pertinente manter a preocupação centrada na realidade que não pode ser quantificada, com questões muito particulares, trabalhando num universo de significados, crenças, valores, e que correspondem a um espaço mais profundo das relações.
Tomo como abordagem metodológica a da História de Vida porque o meu interesse é o ponto de vista do sujeito, pois o objetivo desse tipo de estudo é justamente apreender e compreender a vida conforme ela é relatada e interpretada pelo próprio ator, no caso atriz.
Por meio do relato de Histórias de Vida individuais, podemos caracterizar a prática social de um grupo. Nesse sentido, histórias de vida, por mais particulares que sejam, são sempre relatos de práticas sociais: das formas como o indivíduo se insere e atua no mundo e no grupo do qual ele faz parte.
A História de Vida ressalta o momento histórico vivido pelo sujeito. Assim, esse método é necessariamente histórico, dinâmico e dialético.
Necessário se faz chamar a atenção para o fato de que a história de vida é apenas uma parte da história do sujeito, em um dado momento histórico de sua vida, e que o pesquisador interfere em seu registro, desde o momento em que elabora as perguntas até o momento do registro e da seleção das partes do depoimento. É ainda importante dizer que parte dos acontecimentos acabam por não serem registrados, como é o caso das expressões corporais, sentimentais, silêncios, dentre outros.
A técnica utilizada por mim foi a entrevista aberta semi-estruturada, divida em três partes: dados pessoais, percurso migratório e questões de gênero e raça. As perguntas foram fundamentadas nos processos de como a entrevistada se percebia, como percebia que era vista e como via a sociedade de destino.
A escolha por uma pesquisa qualitativa reside no fato de que o sujeito, ao tomar a decisão de narrar sua história de vida, pode iniciar seu processo emancipatório, sendo este um primeiro passo para que sua história seja conhecida e reconhecida socialmente (Lechner, 2009).
III - Estudo de Caso
Sofia4 se mostrou a vontade para contar sua história e me pediu que não ficasse em silêncio, que fizesse perguntas sobre o que eu queria saber. Eu esclareci os motivos que me levaram a querer entrevistá-la, que ficasse à vontade para deixar de responder a alguma pergunta e que escolheríamos um nome fictício para ela e assim preservaríamos sua identidade.
Sofia, uma jovem mulher de 28 anos, heterossexual, é africana, de Cabo Verde, casada com um rapaz de 32 anos e de sua terra, com quem tem um filho de quatro anos. Seu marido tem mestrado e é professor. Ela deixou a profissão de professora quando imigrou, há oito meses, passando a ter como ocupação: a de ser estudante de Mestrado na cidade de Coimbra. Pertence a uma família de classe média baixa, o seu pai possui bacharelado e a mãe estudou até o sexto ano, antigo curso complementar. A família é da Ilha de Santo Antão, local em que foi criada e onde trabalhava.
A entrevista iniciou-se com Sofia dizendo que é africana, mulher, negra, imigrante e mãe. Trabalhava dando aulas para crianças e nisto era muito dedicada porque adorava o que fazia. Havia solicitado uma transferência para outra ilha e estava aguardando, mas o seu colega, que tinha apenas um ano de trabalho, conseguiu a transferência antes dela. Isto a desmotivou, pois era seu desejo viver com seu marido e seu filho onde tinham a sua residência. Decepcionada no trabalho idealizou um novo projeto para sua vida: voltar a estudar e fazer o mestrado em outro país. Percebia que era necessário buscar uma maior qualificação, somando-se a isso o seu gosto pelos estudos. Apoiada pelo marido e pelos pais começou a ver as possibilidades para conseguir concretizar esse sonho. Soube de uma bolsa de estudos, se inscreveu e foi selecionada. Desejava ir para um país onde o inglês fosse língua oficial, mas diante do valor da bolsa e do custo de vida nestes países optou por vir para Portugal. Essa decisão também levou em conta o grande apoio que recebeu de seu irmão que a ajudou a providenciar a documentação, que de acordo com ela era muita, e a procurar um local para ela se instalar. Esse apoio foi e ainda é muito importante para ela.
Sofia disse-me que foi muito mal tratada no consulado português em Cabo Verde quando foi solicitar visto. Além de ter de comprovar que tinha a bolsa, o consulado ainda exigia que ela entregasse uma carta de alguém com renda elevada que se comprometesse a recebê-la durante todo o tempo de sua permanência em Coimbra para fazer o Mestrado. Reafirmou por várias vezes as dificuldades encontradas por ela para se conseguir visto, da enorme burocracia e de como os cabo-verdianos são mal tratados no consulado de Portugal. Durante essa etapa, chegou a pensar que deveria desistir, mas seu desejo de realizar o sonho de estudar era maior e ela já havia deixado o seu trabalho.
Os amigos diziam que ela não deveria vir, pois quando voltasse não mais iria conseguir emprego. Sua expectativa era se formar e retornar para lecionar para jovens do Ensino Médio, na capital do país. Alguns ainda a alertavam de que ela corria risco de também perder o marido e o filho. Mas ela estava firme, confiante e decidiu imigrar.
Sofia aprendeu inglês por esforço próprio, teve aulas durante alguns anos da sua formação na escola formal, que eram insuficientes para o domínio deste idioma. Seu pai comprava para ela livros com CD e ela sentia-se motivada para estudar essa língua porque desejava entender as letras das músicas que ouvia. Comenta que o ensino em Cabo Verde parece ser mais fraco que em Portugal. Acha que os portugueses são muito dedicados e esforçados e que o sistema de ensino daqui é melhor do que o deles.
Seus pais se ofereceram para cuidar de seu filho em sua ausência, sente que ele está seguro e bem, apesar de exprimir a dificuldade de ficar longe dele e de às vezes se perguntar se vale a pena essa escolha. Mantêm contato com ele e a família através da internet. Outro dia o seu filho disse a ela: “mãe não fica triste, eu vou te buscar.” Emocionou-se ao lembrar-se deste fato. Seu marido a apoia muito, e também ajuda seus pais a cuidarem do seu filho.
Ao chegar aqui em Coimbra, na Universidade, foi muito apoiada pelas suas professoras, no entanto achava que não daria conta, era muita pressão. Precisava ler muitos livros e o tempo não era suficiente. Durante várias noites ficava sem dormir e teve muitas dificuldades em acompanhar o ritmo das aulas. Acabou inclusive adoecendo.
Sofia teve muitas dificuldades de adaptação, achava que as pessoas eram muito sérias, sentia falta de sua casa, da família, dos amigos, da vida que levava em sua terra. “Lá as pessoas eram alegres, a família grande, sempre reunida. Aqui o frio, a comida, a maneira como era tratada, o preconceito e o racismo me incomodavam muito.” Lembra que o clima em sua terra é ameno, não há grandes variações como em Coimbra, tendo ela chegado muito próximo do inverno e, de acordo com os noticiários, este ano teria sido muito intenso.
Adora Coimbra, acha uma cidade linda. Constata que a presença dos cabo-verdianos é pequena nesta cidade. A comunidade maior é em Lisboa, lá tem algumas associações e ela já esteve em duas reuniões. Tem poucos amigos e sai muito pouco, porque não encontra tempo, por causa dos estudos. Tem conhecidos portugueses, porém os amigos são africanos e também se dá bem com os brasileiros.
Acha que fez uma boa escolha ao vir, mesmo com todas as dificuldades. Valoriza muito a possibilidade de conviver com pessoas de vários países. Acha essa experiência muito rica, gosta das diferenças e tem aprendido muito com elas. Depois de sofrer tanta discriminação consegue estar mais sensível para os problemas dos outros que também passam por isso. Não consegue entender porque os portugueses de Coimbra são tão preconceituosos, já que recebem estudantes estrangeiros desde o século XIII. Sente-se bem entre estudantes de todas as partes do mundo, menos entre os portugueses, que a todo instante revelam seu lado racista e preconceituoso.
Desde sua chegada passou por diversas situações explícitas e implícitas de racismo. Afirma ela: “O povo aqui é racista, não são todos, não quero generalizar, mas é um número grande de pessoas. Não falam abertamente porque não é politicamente correto.” A entrevistada citou vários exemplos e eu relatarei alguns a seguir.
Quando adoeceu e procurou o centro de saúde foi assediada pelo médico, ele se aproveitou da situação e de sua fragilidade. “O povo aqui acha que as mulheres cabo- verdianas são sensuais. Isso me fez muito mal. Parei de ir às consultas, queria denunciar, mas em quem eles iriam acreditar? Em mim, que poder eu tinha? Uma mulher africana, cujo estereótipo é bem conhecido e divulgado, ou nele, um médico português, uma pessoa de poder? Vi que não adiantaria nada, pois desde que cheguei estava claro em que é que as pessoas aqui acreditam: no preconceito e no racismo”. Revelou que “essa situação me fez muito mal, me senti péssima com isso, fiquei abalada porque ele se aproveitou da minha fragilidade. Não gosto de falar sobre isso.”
“Recentemente eu estava em um elevador com um português e um negro que segurava uma banana. O português perguntou: ‘A banana é para o macaco?’ Fiquei muito triste com isso por vários dias, pensava e tentava compreender por que ele teria feito aquilo e por que eu não disse nada, permaneci calada. Aqui me sinto próxima dos grupos que são discriminados, acabamos sentindo simpatia uns pelos outros, sabemos que passamos por situações semelhantes”.
E continua: “também aconteceu outro fato, logo que cheguei procurei o centro de saúde para me cadastrar com toda a documentação exigida e a atendente não fez o meu cadastro. Eu questionei a resistência dela em me atender e após ter entregado a ela o documento do consulado que explicava o meu direito em usar o sistema de saúde, ela respondeu-me: ‘E daí eu não entendo de leis.’ Me tratou mal todo o tempo e às vezes me ignorava. Fiquei nervosa e as pessoas que estavam lá ficaram constrangidas. Sempre acontece comigo e também presenciei muitas outras cenas de racismo”.
Comenta que “meus colegas de curso são sempre atenciosos e solícitos com os alunos que são americanos, ingleses, australianos e noruegueses, por exemplo. Eles estão frequentemente se oferecendo para mostrarem a eles os melhores lugares para comer, fazer compras, passear e nunca falam destas coisas comigo. Desde que cheguei, foi sempre assim. Percebo que alguns imigrantes são bem vindos, outros não. Outro dia um grupo de rapazes portugueses ao passar pelo nosso grupo, que era formado por várias mulheres africanas, nos xingaram de ‘pretos do caralho’. Estávamos em uma rua bem movimentada, próxima ao rio Mondego”.
Prossegue: “tenho uma amiga portuguesa e outra cabo-verdiana e sempre saímos juntas para fazer compras. A cabo-verdiana é bem branca e se passa por portuguesa. É comum quando estamos juntas eu pedir uma informação, mas as pessoas a quem me dirijo não falam comigo, só com elas. Não gosto da forma como me desprezam. Os portugueses não gostam dos africanos e também não gostam dos brasileiros. Acho que é pelo fato de termos sido colônias deles, acham que somos inferiores, subalternos. Não gostam de nós, dizem e nos consideram muito sensuais, e eu acho que em relação aos portugueses somos sim. Os portugueses andam abraçados, diferente dos cabo-verdianos, que não gostam de ficar assim em público. No entanto, em nossa terra falamos abertamente sobre sexo, as mulheres desde jovem falam em orgasmo, isso é comum. Falar de sexo, desde cedo, é considerado natural. Aqui não, sei disto porque escuto de várias pessoas e convivo com outras. Parece que as mulheres aqui acham que é comum não ter orgasmo, colegas me contam que as portuguesas quando falam disto, dizem não ser importante e outras nem conseguiram ainda ter orgasmo, apesar de já terem relações sexuais há muito tempo”. Sofia comenta: “não quero generalizar, sou contra estereótipos, mas os portugueses de modo geral são pessoas frias, inteligentes, preparados, mas são racistas, fechados, não vivem e valorizam suas famílias como nós. Ah, por falar nisto, perto de minha casa moram alguns velhos, que ficam sozinhos, ninguém vai visitá-los. Outro dia parei para conversar com uma senhora porque ela estava chorando. Em Cabo Verde não, os idosos recebem atenção. Juntamos sempre a família e vão os primos, os tios, pessoas de várias gerações, formam aquela família grande. Isso é muito importante para nós, família é a nossa base. Aqui sinto falta disto. E por falar em velhos, eles são bem falantes, chegam a ser abusados, muitas pessoas reclamam disto.”
Ela continua relatando que “mora com uma portuguesa, quando chega o final de semana eu pergunto a ela se não vai visitar sua família e ela diz que não, prefere ficar em Coimbra, não gosta de estar com a família. Isso não aconteceria em Cabo Verde, adoramos estar com nossa família. Eu adoro ficar com meus pais e meus parentes. Nunca agiríamos desta maneira”.
Retoma o assunto sobre o pouco interesse dos portugueses por sexo, dizendo que “moro com uma cabo-verdiana e uma portuguesa. Quando elas recebem os namorados em casa é assim, os portugueses ficam horas conversando e no quarto é aquele silêncio. Já o casal cabo-verdiano é de pouca conversa e muita ação, é aquele barulho, já sei que não vou conseguir estudar. Eles estão sempre se pegando, é muito diferente. Em nossa cultura o sexo é importante, como conversar. É tudo tão diferente! Basta observar nas ruas, às vezes as coisas podem estar ruins, estamos sempre alegres, sorrindo, convivendo uns com os outros, vivemos de outra maneira”.
Ela prossegue “mas também acontece o contrário em relação aos rapazes cabo-verdianos e as portuguesas. Os rapazes cabo-verdianos são assim, sempre dizem para todas as mulheres que elas são as mais lindas do mundo. Nós já sabemos disto e também sabemos como lidar com eles. As portuguesas não. Conheço várias histórias de mulheres portuguesas apaixonadas pelos cabo-verdianos, elas acreditam neles e ficam se lamentando que eles as abandonaram. É mais comum vermos as mulheres cabo-verdianas ficarem com portugueses do que os homens, eles gostam mesmo é de namorar com as mulheres de nossa terra. É raro um cabo-verdiano casar-se com uma portuguesa, eu vejo muito isso.”
Sofia recordou “o processo de colonização em Cabo Verde e de como, a partir de 1975, após a independência, as coisas ficaram melhores. Falou de como lá é um país que está crescendo, ele é considerado médio em relação ao produto interno bruto, a vida está bem melhor, apesar de também enfrentarem a falta de emprego. É formado por dez ilhas e uma não é habitada por não haver água potável. Há dificuldades de transporte entre algumas delas”.
Ela afirma que esta impressionada com a passividade do povo português diante da crise, “eles estão perdendo todos os direitos que tinham e não fazem nada. Isso em Cabo-Verde não aconteceria, o povo já havia reagido”.
Apesar de todas as dificuldades, Sofia avalia seu processo migratório como positivo, e afirma que “volta diferente do que veio, aprendeu muitas coisas em Coimbra, o ensino aqui é muito bom e está satisfeita.” Destaca como foi importante vir estudar e que gostou, principalmente, de conviver com pessoas tão diferentes, vindas de vários países. Considera muito importante essa diversidade, e reflete que “deveria servir para melhorar a sociedade aqui.” Adora a cidade e, apesar de passear pouco por ela, considera-a linda. Percebe como está difícil viver por causa da crise, constata que o custo de vida tem aumentado muito.
Está feliz porque irá visitar sua família pela primeira vez, mas queixa-se do alto custo da passagem.
Tem um novo projeto, quer agora dar aulas no ensino secundário, para jovens em sua terra natal. Descobriu o que gosta mesmo de fazer, dar aulas e ser professora. Tem receio de retornar e não conseguir emprego.
Perguntada se recomendaria a uma amiga imigrar para Coimbra para estudar disse, que sim, mas a alertaria de todas as dificuldades que iria enfrentar. Faz um balanço e conclui que se sente realizada por ter tido essa oportunidade e agradecida a todos que de alguma maneira a ajudaram.
IV – A história de vida de Sofia – uma breve análise
Eu quero aqui agradecer a Sofia, por permitir que eu entrasse um pouco na sua vida e por também penetrar a minha. Escutar sua história modificou-me, como sei que o fato de ela contá-la a mim também provocou transformações, já que precisou revisitar o seu passado, falar do seu presente e também do seu futuro.
Sofia iniciou seu relato afirmando ser uma mulher, africana, negra, imigrante e mãe. Primeiro assumiu sua identidade de mulher africana, só depois fez referência a sua nacionalidade. Esse fato demonstra como essa representação é importante para ela e para muitos africanos de várias nacionalidades quando estes se encontram fora do seu Continente. Ser mulher, negra e mãe para ela é também uma parte importante de sua identidade. Já ao assumir-se como imigrante deixa explícita essa condição como algo transitório em sua vida, delimita um tempo para sair desta condição, pretende retornar ao seu país logo que consiga concluir o seu curso de Mestrado.
Seu processo de imigração teve início quando ela passou por uma situação de sexismo em seu próprio país, sentindo-se injustiçada por ter pedido sua transferência antes de um colega que tinha menos tempo de serviço do que ela, e mesmo assim foi ele o escolhido para ocupar a vaga. Esse ato de violência simbólica5 fez com que ela se desmotivasse e deixasse o trabalho em busca da realização de um desejo antigo, o de continuar estudando. Esse acontecimento impulsionou seu processo migratório e ganhou força com a manifestação do apoio de seu marido e de seus familiares.
Sofia trouxe também em sua bagagem as suas representações e vivências sobre os portugueses decorrentes do contato que o seu povo teve com eles durante o processo de colonização a que ele foi submetido. Apesar de Sofia ter nascido em 1984 e a independência de Cabo Verde ter se dado em 1975, sua fala ainda carrega marcas da colonização. Traz em sua memória a memória de outras gerações. Falou com alegria de como seu país mudou para melhor após a independência. Ao ouvi-la a sensação é de que ela presenciou todo este período histórico, mas estas histórias foram construídas através dos olhares das outras gerações cabo-verdianas e da presença de portugueses que permaneceram em Cabo Verde até os dias atuais.
Em seu relato observa-se um profundo sofrimento por ela ter deixado seu filho para trás, mesmo reconhecendo que ele se encontra bem cuidado e protegido vivendo com os seus pais. As cobranças feitas às mulheres que optam por construírem outros projetos como prioritários e que deixam a maternidade, mesmo que provisoriamente em segundo plano, são muitas. Algumas vezes se manifestam de formas explícitas, outras implícitas. Sofia acaba por assumir como natural a desigualdade na divisão sexual do trabalho, reforçando que o cuidado com os filhos deve ser responsabilidade da mãe. Este comportamento fica claro quando revela que seu marido ajuda a cuidar do filho e não lhe atribui esta responsabilidade. Em sua fala está evidente o peso que lhe recai sobre os ombros por ser uma mãe e ter escolhido realizar um projeto, visto por grande parte da sociedade como pessoal em detrimento de outro, o da maternidade, que aqui é vista como sendo responsabilidade exclusiva da mulher: cuidar dos filhos, da casa e do marido.
Em grande parte os projetos de vida de uma classe social com baixos recursos financeiros serão dimensionados pelas questões econômicas, pois a partir delas é que se definirão as oportunidades de cada um, ou seja, as condições nunca são iguais para pobres e ricos, como foi possível observar na escolha de Sofia ao decidir vir para Portugal e não para um país onde a língua oficial fosse o inglês (como era, aliás, seu desejo).
Em relação aos processos migratórios, as redes sociais se reafirmam como importantes e decisivas. No caso de Sofia, um dos fatores que pesou em sua decisão foi contar com o apoio de seu irmão. Ela revela que ainda continua sendo muito importante contar com ele para o êxito de seu projeto de vida, pois, conforme mencionou na entrevista os cabo-verdianos são muito ligados à família.
Sofia passou por mais uma situação de sexismo, agora fora de seu país. Ao procurar um centro de saúde, por encontrar-se doente, o médico que se encarregou do seu tratamento passou a assediá-la. Quando percebeu o que de fato estava ocorrendo, ela se retraiu e abandonou o tratamento, pois não acreditava que encontraria respaldo para denunciar o fato a uma autoridade, sentia que ela era o lado mais fraco naquela situação. Isso lhe causou muito mal, pois ela é uma pessoa consciente e sabe que é através do enfrentamento e da denuncia de fatos desta natureza que a realidade poderá ser transformada.
Sofia teme retornar ao seu país e não conseguir trabalho mesmo estando mais qualificada e tendo um certificado de mestre pela Universidade de Coimbra. O desemprego é grande em seu país. Mas não se deixa desanimar, quer continuar a ser professora.
Tem sido vítima de violência simbólica cotidianamente e é tratada com discriminação e com preconceito em Coimbra. O que mais a faz sofrer é quando as pessoas a ignoram. Em seu discurso percebe-se que ela reivindica ser reconhecida. Tem muitas dificuldades de se adaptar ao clima, à alimentação, aos hábitos e aos costumes locais.
Sofia aponta uma questão relevante: como as pessoas que sofrem discriminações e preconceitos são solidárias umas com as outras e mesmo diante de tantas diferenças elas se aproximam e costumam ter uma boa convivência.
Por fim vale registrar que Sofia acaba por reproduzir em alguns momentos de sua narrativa alguns estereótipos sobre o povo português, o que não invalida a sua visão de que de forma mais generalizada a sociedade portuguesa é racista e preconceituosa, estando essas práticas muito disseminadas nos diversos espaços que frequenta e nos serviços que lhe são prestados.
Ao se tratar problemas como racismo e sexismo, que são estruturais, é necessário considerar as diversas áreas do conhecimento e que seu enfrentamento deve partir da articulação do Estado e da sociedade civil. Vale destacar a importância da Educação neste processo, pois esta é uma área que deve promover o conhecimento, incorporando em seus conteúdos análises críticas dos problemas sociais. Muitos comportamentos são repetidos, introjetados como naturais sendo primordial torná-los conscientes, porque aí está a raiz da manutenção dos estereótipos e dos preconceitos.
Em relação às diferenças estas devem ser vistas e tratadas como positivas (Braidotti, 1998). É através deste diálogo que é possível apreender novos saberes e comportamentos, partindo do respeito pelos atores e atrizes que têm visões de mundo e culturas diferentes. É no cruzamento das diferenças que é possível a construção de um novo conhecimento.
Assim, as teorias feministas têm contribuído para mostrar como se constroem o sujeito inferior e subalterno, destacando-se a importância do trabalho da autora Spivack (1998). Já a autora Mohanty (2006) contribui para o debate ao tratar da questão do hábito etnocêntrico de criação da mulher do Terceiro Mundo. Elas denunciam as consequências de se manterem grupos sociais silenciados e invisibilizados. Apontam a necessidade de incorporar tais sujeitos e de se criar condições para o seu conhecimento e reconhecimento.
As diferenças têm sido usadas para dominar e oprimir, como no caso das diferenças sexuais onde as mulheres são vistas de forma estereotipada e, com isso, mantidas presas em papéis sociais como o de reprodutora e de responsável pelos cuidados da família, aqui entendida de forma ampla – sogros, avós, etc.
As teóricas do movimento negro como bell hooks (1995) e Oyèrónké Oyewùmí (1997) contribuem para as reflexões ao apontar como a visão hegemônica eurocêntrica tem invisibilizado mulheres outras, negras, lésbicas, pobres, etc. A cada cruzamento destas diferenças maiores são as dificuldades que as mulheres enfrentam, pois elas não são apenas mulheres, carregam essas outras categorias que interferem diretamente em sua inserção no mundo, fazendo com que sejam cada vez mais discriminadas na medida que essas diferenças vão se somando.
Deste modo, estudar a imigração de mulheres negras, pressupõe levar todo esse universo teórico que abarca as questões ligadas ao colonialismo e suas implicações, as identidades e representações que as imigrantes têm das sociedades de destino e das sociedades de origem, das questões de pertencimento, das subjetividades multifacetadas e da nacionalidade que inclui as diferenças étnico-raciais.
Assim, o caminho a ser seguido é aquele que indica que é preciso conhecer a diversidade dos sujeitos com as suas subjetividades e buscar formas de incluí-la como riqueza, como potencial de transformação social. Esse desafio está colocado para todas as áreas do conhecimento, ressaltando aqui as Ciências Sociais e o caso específico das migrações.
V - Considerações finais:
Inicialmente é preciso destacar que pensar o processo de imigração em escala local é muito importante e primordial, pois é neste nível que se podem, de fato, operar as transformações. Porém não se deve desprezar a escala macro, pois é nela que os interesses econômicos ditam o comportamento das migrações, de acordo com os seus interesses.
Identificar que as histórias de vários sujeitos têm diversos pontos que se entrecruzam com outras, que em outros pontos são idênticos, poderá promover uma consciência de que muitos acontecimentos não devem ficar restritos ao espaço privado, pois são de caráter público, dizem respeito aos interesses de uma comunidade.
Durante todo o tempo da entrevista eu estava atenta ao olhar comparativo de Sofia que partia de suas vivências, de sua sociedade, de como a percebia para compará-la com a outra na qual se inseria. Este foi o movimento que prevaleceu para que ela pudesse perceber o outro e o fazia sempre a partir de si, ou melhor, da sua cultura. Eu, como pesquisadora também a percebi com o meu olhar, de mulher e imigrante, sem mencionar todas as outras categorias em que me enquadro. Esse é o meu olhar sobre ela, que por sua vez tem um olhar que é seu sobre a sociedade em que vive atualmente e de como percebe o olhar desta sociedade sobre ela.
Meu interesse foi verificar como essa mulher percebia a sociedade portuguesa e quais as representações ela teria. Encontravam-se presente em seu discurso as representações que elabora e que vai resignificando ao longo do tempo e as articula com outras representações que vão se construindo. É um processo de ir e vir, constante, de descoberta e redescoberta, de modificação e de construção/reconstrução.
No caso de Sofia ela comparava o modo de vida, os hábitos e os costumes de seu povo com o povo português. Não queria generalizar, mas o fez diversas vezes. Ela vê o povo português “como frio, distante, pouco alegre, queixoso da vida, preconceituoso, racista, passivo, pouco ligado à família, dão pouco valor ao sexo, são muito preparados do ponto de vista da formação e nos estudos são dedicados e esforçados”.
Quanto ao método qualitativo de história de vida, ele mostrou-se muito eficiente e importante para desvendar o imaginário de uma mulher, negra, africana, imigrante, mãe e de classe média baixa. Através de sua narrativa foi possível perceber como ela percebe que é percebida e tratada na sociedade de acolhimento e também os membros da comunidade cabo-verdiana e das comunidades africanas. Pude verificar ainda as dificuldades que Sofia enfrenta tanto por deixar uma vida para trás, quanto por iniciar uma nova estando ligada a antiga. Há ainda, a violência que sofre em decorrência de preconceitos e de discriminações a que está exposta, não tendo encontrado uma forma de combatê-los por sentir que é o “lado mais fraco” e que contra o racismo é difícil lutar, pois o sujeito não é reconhecido e, consequentemente, as suas falas são deslegitimadas, sofre duplamente.
Submeti a Sofia minha narrativa construída a partir da transcrição da gravação dos nossos encontros. Avaliei que esta seria uma atitude ética, pois não gostaria de colocar em sua boca palavras que não foram ditas e, em caso de haverem sido ditas, se eu as havia compreendido dentro do contexto em que foram mencionadas. O retorno que tive foi positivo, pois Sofia o aprovou, dizendo que o meu texto era bastante fiel ao que ela havia falado e ao que ela pensava.
Sofia avalia que diante de todas as dificuldades o seu processo migratório pode ser considerado positivo, apesar de estar evidente em sua fala o seu sofrimento por passar por discriminação cotidianamente, ter sentimento de não pertencimento, sente não ser aceita e é ignorada por uma boa parte da sociedade portuguesa. Lamenta-se e angustia-se com os acontecimentos racistas que a envolvem e que presencia frequentemente. Sente o peso da violência simbólica que permeia tais situações e não encontra saída para mudá-las.
Uma frase, a meu ver, destacou-se por ter sido recorrente e significativa: “eu não gosto de ser ignorada”. Sofia sempre a dizia com tristeza, reivindica sua visibilidade e sua aceitação nesta sociedade de destino, que não a inferiorizem por ser diferente, mulher negra e africana.
É necessário que se busquem explicações de como as diferenças são produzidas e quais são os jogos de poder estabelecidos por elas.
Em síntese, conforme mencionado anteriormente muitas feministas têm dado sua contribuição ao levantar questões relacionadas à opressão das mulheres, das suas diferenças serem tratadas como desigualdades, da importância de se reconhecer as mulheres em sua diversidade e de se criar espaços para que suas vozes sejam escutadas. Somente quando esses desafios forem transpostos é que conseguiremos avançar nas questões da inclusão e da justiça social.
As transformações sociais passam pela participação da sociedade e estas podem ocorrer de forma organizada, como é o caso dos movimentos feministas, que têm pressionado o Estado para a incorporação das temáticas de suas agendas.
Virgínia Vargas Valente (2000) nos chama a atenção de que o diálogo dos movimentos feministas com o Estado tem propiciado a criação de ambientes institucionais e de políticas públicas que estão formalmente incumbidas de garantir os direitos das mulheres. A autora destaca que os movimentos feministas têm pressionado os Estados a dialogar e gerar novas formas de institucionalização e de mediação com os interesses das cidadãs.
A criação de organismos institucionais que garantam os direitos das mulheres é uma das respostas para o enfrentamento de problemas como os de Sofia. O combate ao racismo, preconceito e sexismo passa pelas políticas públicas, principalmente as de educação e a de garantia de direitos de cidadania. A primeira, responsável por promover um conhecimento de como eles se constroem e se perpetuam, contribuindo para a conscientização sobre este problema e para a necessidade de mudanças, onde se tenha como objetivo principal a garantia de direitos dos indivíduos de serem tratados como iguais, mas respeitando-se as suas diferenças. A segunda, na criação de mecanismos de acolhimento de denúncia, apuração e punição para aqueles que abusam do seu poder ou tratam com discriminação e preconceito as pessoas que se dirigem ao Estado em busca de políticas públicas que deveriam contribuir para uma melhor qualidade de vida e passam a ter novos problemas quando são mal tratadas e discriminadas. Ao Estado cabe implementar políticas públicas que promovam a garantia de direitos e, aos movimentos sociais pressioná-lo, monitorá-lo e denunciá-lo quando ele se afasta de sua função. Daí a importância da participação social para o fortalecimento dos movimentos sociais.
1Butler defende que o natural não existe, por isso não é possível distinguir sexo natural, aquele que é biológico, de sexo socialmente construído. De acordo com Guacira L. Louro (1997) e Eliane Maio Braga (2007) a expressão começou a ser utilizada para marcar que as diferenças entre homens e mulheres não são apenas de ordem física e biológica. Como não existe natureza humana da cultura, para estas autoras, a diferença sexual anatômica não pode mais ser pensada isolada das construções socioculturais em que estão imersas. A diferença biológica é apenas o ponto de partida para a construção social do que é ser homem ou mulher. A noção de gênero aponta para a dimensão das relações sociais do feminino e do masculino (Braga, 2007). Neste trabalho gênero será utilizado no sentido político do termo, ou seja, considerando a ênfase nas desigualdades sociais existentes entre homens e mulheres.
2Coletivo de feministas negras lésbicas que se reuniram a partir de 1974, em Boston. Empenharam-se em lutar contra a opressão racial, sexual, heterossexual e de classe através do combate as opressões múltiplas e simultâneas que as mulheres negras sofrem.
3Empoderamento significa em geral a ação coletiva desenvolvida pelos indivíduos quando participam de espaços privilegiados de decisões, de consciência social dos direitos sociais. Essa consciência ultrapassa a tomada de iniciativa individual de conhecimento e superação de uma situação particular (realidade) em que se encontra, até atingir a compreensão de teias complexas de relações sociais que informam contextos econômicos e políticos mais abrangentes. O empoderamento possibilita tanto a aquisição da emancipação individual, quanto à consciência coletiva necessária para a superação da “dependência social e dominação política” (Pereira, 2006).
4Nome fictício para se preservar a identidade da entrevistada.
5Violência simbólica foi um conceito primeiro elaborado por Pierre Bourdieu (La Distiction, 1979). É a forma de coação que se apoia no reconhecimento de uma imposição determinada, seja esta econômica, social ou simbólica. A violência simbólica se funda na fabricação contínua de crenças no processo de socialização, que induzem o indivíduo a se posicionar no espaço social seguindo critérios e padrões do discurso dominante. Devido a este conhecimento do discurso dominante, a violência simbólica é manifestação deste conhecimento através do reconhecimento da legitimidade deste discurso dominante, sendo a violência simbólica o meio de exercício do poder simbólico. Pierre Bourdieu descreve a violência simbólica como um ato sutil, que oculta as relações de poder existentes não apenas entre os gêneros, mas abrangendo toda a estrutura social.