407 - Luís Gaivão
“A Viagem das palavras pelos mares sem lados”
Uma literatura transcultural no último romance de Manuel Rui, Travessia por Imagem.
Palavras-chave: tradução cultural – transculturalidade – ecologia dos saberes – sistemas intermédios de identidade – lusofonia
Manuel Rui será, talvez, o escritor angolano mais audacioso no percurso dos caminhos da transculturalidade quando, marcando sem equívocos a angolanidade do discurso e a colonialidade societária que a literatura angolana atual vem retratando, faz descolar a sua última produção literária para um outro e novo patamar de abertura de fronteiras e de tradução cultural.
Trata-se, na verdade, e no meu ponto de vista, de uma literatura verdadeiramente para além do pós-colonial e se abalança por caminhos de margens outras, ou, como ele melhor escreve, sem margens e lados, na viagem das palavras que, saltando fronteiras, abraçam os diferentes outros pela tradução cultural e pela transculturalidade, como essência permanente da sua postura cultural, social e política.
Neste sentido, a intervenção do personagem/escritor angolano Zito, num congresso ibero-americano de escritores em Gijón (Espanha) resume a mensagem e o pensamento deste seu último romance em duas páginas de uma súmula de teoria transcultural, invulgarmente condensada e de qualidade literária notável.
É sobre esse discurso que incidirei este estudo e nele, igualmente, tentarei interpretar a influência intrínseca exercida plenamente pela sociologia das ausências no pensamento atual de Manuel Rui.
Travessia por Imagem é um romance transcultural e, portanto, de tradução cultural.
A narrativa produz-se nos parâmetros dum quadro estético-literário africano, no caso, com os particularismos que constituem o mosaico cultural angolano. A base narrativa está sediada nos personagens angolanos centrais, consubstanciados na família e relações de Zito, o escritor que frequenta na sua atividade criativa os meios literários de toda a América Latina e da Península Ibérica.
É nestes intercâmbios das culturas do Sul, um Sul que é africano e sul-americano e resultado histórico das várias colonizações ibéricas, e Sul também europeu, o da Ibéria, Portugal e Espanha, que se entrecruzam os colonizadores e os colonizados, todos contribuintes ativos pelo acontecido em África e nas Américas do Sul e Central.
Por isso é dum romance para lá do pós-colonial, transcultural como salientado, de tradução de culturas que se trata, e não tanto duma simplesmente etiquetada obra da tradição “pós-colonial”.
Manuel Rui utiliza um trunfo muito forte no seu registo literário, que é o de continuamente recorrer à interferência das línguas bantu com a língua portuguesa, como processo de oratura e escrita que se tornam fontes inesgotáveis de criatividade linguística e inovação romanesca.
Este recurso presta-se, pela inventiva da criação narrativa de uma variação de personagens diversas e adequadas, à elaboração das recolhas de pensamentos diferentes, economias ecológicas naturais, construções religiosas distintas, noções e práticas agrícolas ou comerciais diversas, pludiversidades jurídicas, enfim, práticas saberes e conhecimentos espalhados pelos espaços da narrativa, que a ecologia dos saberes retornou e continua retornando à superfície, após a subtração, a contração e o apagamento seculares a que o colonizador, hegemonicamente, subjugou as culturas subalternas dos povos colonizados e das línguas através das quais elas se poderiam ter afirmado.
É através dos sistemas intermédios de identidades referidos por Boaventura de Sousa Santos que a colonização e descolonização permitiram as transculturalidades transportadas nas migrações, escravaturas e viagens, expondo-as nos diversos contextos culturais de afinidades no encontro com os diversos outros.
Encontramo-nos, então, em consonância com a teoria da “sociologia das ausências”, da reaprendizagem dos originais saberes do colonizado, expropriados durante a permanência do colonizador e que, mesmo assim, também acabam por provocar alterações culturais neste último.
O que Zito (Manuel Rui) denota no discurso não é o apagamento da história da colonização do Sul, África e América, mas sim a reabsorção psicológica e integração, agora perdoada, não esquecida, dos mil dramas por ela originados, a coberto dos aspetos mais criminosos da violência colonial, de como são exemplos o tráfico negreiro ou o silenciamento do colonizado.
Com isso, e com o necessário reler das histórias (na sua nascente e foz) e, sobretudo, da inscrição epocal dos factos (soletrar a idade dos ventos) se arquiteta um discurso de reapropriação e resgate das tradições políticas, culturais e sociais possíveis (sociologia das ausências), dos dois lados da história, em convivência de mútuo olhar e, no caso, apaziguadora e, por vezes, até com tonalidade aprazível, uma distinção peculiar do colonialismo atlântico do Sul, em minha opinião.
Apenas, como lhe chama Margarida Ribeiro “um império como imaginação do centro” e desterritorializado com tão desmesurada e descontinuada extensão ultramarina nos quatro cantos do mundo, permitiria criar as condições para as diversificadas formas de pensamento performativo, no sentido da construção pós-colonial de uma imagem-desejo dum mundo de tanta e tão desgarrada diferença e simultaneamente de satisfação pela riqueza do próprio hibridismo em si presente.
Mas existem falas e escritas, literaturas em línguas ibéricas, numa pludiversidade de culturas que dizem respeito aos povos que foram sujeitos durante séculos aos mitos do colonialismo, aqui temos os casos dos colonialismos português e espanhol e, por essa via, foram silenciados, invisibilizados, esquecidos, explorados.
Mesmo assim, as respetivas culturas têm conseguido, com a utilização dos recursos anti hegemónicos, nomeadamente pela sociologia das ausências, dar voz aos silêncios e colocar a falar as emergências, dando-lhes espaço de significação, através, sobretudo, das oraturas e literaturas dos países ex-colonizados.
E através das migrações que a história forjou e que continuam, surgiram múltiplas traduções culturais e, consequentemente, hibridações nas afinidades que as fronteiras culturais permearam e promoveram e hoje ocupam, também, um enorme espaço de visibilidade e de globalização anti hegemónica: as literaturas do Sul, as músicas do Sul, as ciências do Sul, as gastronomias do Sul, o pensamento do Sul, o Sul, etc…
“As subtis e aparentemente submersas partículas culturais de afinidades”, teceram-se pelos encontros da história, entre as relações de periferia dum imaginário império central que mais tinha era um puzzle de territórios ultramarinos, com as suas colónias localizadas no Sul, onde se projetava, e o outro império vizinho do primeiro, igualmente imaginário de centralidade, do outro lado do mar, localizado na América, mais pragmático nas relações coloniais e que antecipou o tempo de descolonização.
Afastemos, então, os fantasmas que assimilam a lusofonia à esfera lusíada, como único paradigma da sua exemplar perfeição original, tal como o faz Manuel Rui e tantos outros criativos, nos múltiplos locais por onde a língua se deslocalizou e consideremos que hoje, o importante, é pensar o discurso da sua variabilidade e reconstrução, em suma, um projeto da língua de múltiplas comunidades, se for esse o desejo de todos os que habitam a língua portuguesa.
Estas línguas e literaturas (e aqui incluo o mundo de língua castelhana), vieram provar “que foi, exatamente pela invenção de fronteiras que elas são o sem-limite da nossa trans-identidade”, isto é, elas são o antídoto mais visceral contra a globalização estupidificante criticamente apontada pelo discernimento do pensamento abissal de Boaventura Sousa Santos através da utilização das ferramentas das epistemologias do Sul, o diálogo horizontal das ecologias dos saberes e a tradução intercultural, já que é com a abertura e comunicação ao mundo e à diferença que se podem trazer à superfície conhecimentos e saberes, novas ordens jurídicas e ecológicas, que permitam que a natureza, a cultura e o homem sejam respeitados.
E através do regresso às origens dos impérios coloniais, tornou-se possível, enfim, o reencontro consigo mesmos quer dos povos e culturas colonizados, quer dos povos e culturas ex-colonizadores, agora desejável e progressivamente libertados, pela torna-viagem, dos difíceis complexos de subalternização/hegemonia que haviam alimentado lá no longo, longínquo e ilegítimo descentramento das pátrias, onde haviam perdido a possibilidade de se auto refletirem com justeza.