402 - Ana Pires Quintais
A ausência como lugar de pós-memória
Ana Pires Quintais*
* Ana Pires Quintais, aluna de doutoramento em Linguagens e Heterodoxias: História, Poética e Práticas Sociais (FLUC/CES). Licenciada em Psicologia Clínica pela Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Coimbra, pós-graduada em Análise e Intervenção Familiar e mestre em Psicologia Pedagógica pela mesma Universidade. Actualmente encontra-se a escrever a sua tese de doutoramento intitulada "Literatura, Imagem e Pós-memória", orientada pelos Prof. Doutores António Sousa Ribeiro (CES/FLUC) e Manuel Portela (FLUC). Áreas actuais de investigação e/ou interesses: Pós-memória; Literatura; Artes Visuais; Representações da Violência; Holocaust Studies.
A noção de pós-memória diz respeito, segundo Marianne Hirsch (2001), aos descendentes dos sobreviventes de eventos traumáticos que, embora não tenham testemunhado esses eventos em primeira mão, recebem esta experiência traumática através de uma narrativa familiar particular. Pós-memória descreve, assim, o relacionamento que a geração posterior àquela que vivenciou o trauma tem com tal experiência, levando inclusive Hirsch a falar de uma era de pós-memória. Adotando esta ideia de era de pós-memória e do conceito de “traumatized landscape” (Kaplan, 2011), tenta-se pensar nos lugares de memória depois de Auschwitz como lugares de pós-memória, nos quais uma ideia de ausência e de perda parece predominar. Esta comunicação pretende refletir sobre a ausência como possível lugar de pós-memória e mote para uma paisagem traumatizada recorrendo da peça artística de Susan Silas, Helmbrechts Walk 1998-2003, cujo suporte fotográfico e textual regista o caminho tomado por 580 mulheres judias na primavera de 1945.
Nascida em 1953 de pais húngaros e judeus, sobreviventes do Holocausto, Susan Silas faz parte de uma denominada segunda geração pós-memorial. O seu trabalho artístico centra-se principalmente sobre o Holocausto, nomeadamente na produção de imagens fotográficas de “lugares de memória”, ou seja, espaços físicos onde eventos terríveis tiveram lugar. Em Helmbrechts Walk, a artista norte-americana caminha durante 22 dias ao longo do mesmo percurso que, 53 anos antes, uma marcha de morte teve lugar. Ao reconstruir a marcha forçada de aproximadamente 360 quilómetros desde Helmbrechts, na Alemanha, até Volary, na República Checa, Silas parece insistir não só numa forma de resistência à amnésia da história da marcha de Helmbrechts, como na presença de um passado que exige memorialização (Kaplan, 2008).
A noção de “lugares de memória” de Pierre Nora (apud Hoelscher & Alderman, 2004), parece relevante neste caso, uma vez que dá especial atenção aos modos como a memória é espacialmente constituída. Para o historiador francês, a memória encontra-se ligada a sítios que podem ser físicos ou não-materiais, lugares que despertam rumores do passado. Sobre estes sítios que indiciam um passado particular, Brett A. Kaplan (2011), em Lanscapes of Holocaust Postmemory, trata da relação que existe entre memória e paisagem oferecendo linhas de leitura sobre como o Holocausto se tem manifestado na paisagem, entendida aqui de forma alargada, e que inclui uma paisagem literária. Desta forma, e como se interroga a autora: “How much do we know about the history of certain places? (...) How can we read spaces decades after a traumatic event?” (95).
Para Hirsch e Spitzer (2010), o local autentica a narrativa, ou seja, o lugar valida o que aconteceu, arriscando contudo, engolir o observador para um passado traumático. Em Helmbrechts Walk (1998/2003), Susan Silas parece evitar o risco de se ver esmagada por um passado demasiado insustentável ao reconhecer o estatuto de testemunha dessa paisagem que, durante todos os 22 dias, fotografa e comenta, unindo relatos do passado a acontecimentos do presente: “Day 4, Thursday 16 April 1998, Treben to Bukowa. Walked from Treben to Bukowa. Hard to determine whether the village is still in the same location as it was in 1945. (...) 16 April 1998 – The Thai Army formally announced the death of Pol Pot.” (4).
Para Susan Suleiman (2006), o Holocausto percecionado como um fenómeno global pode ser rememorado através de uma determinada paisagem que serve como traço ou pista dos eventos traumáticos, embebidos no espaço e em lugares da memória. Esta paisagem traumatizada parece oferecer ao observador uma espécie de paisagem de perda, de ruína, na qual a ausência não é sinónimo de esquecimento ou de silenciamento, mas de uma falta que constitui testemunho. Tal falha é invocada na noção de Henri Raczymow de “mémoire trouée”, uma memória porventura ausente mas sentida, talvez, em todos os lugares depois de Auschwitz.
Palavras-chave: Pós-memória; ausência; paisagem traumatizada; Susan Silas; fotografia.
Referências bibliográficas:
Hirsch, Marianne (2001). “Surviving Images: Holocaust Photographs and the Work of Postmemory.” The Yale Journal of Criticism 14 (1): 5–37.
Hirsch, Marianne, and Spitzer, Leo (2010). Ghosts of Home. The After Life of Czernowitz in Jewish Memory. Berkeley, Los Angeles, London: University of California Press.
Hoelscher, Steven, and Alderman, Derek H. (2004). “Memory and place: geographies of a critical relationship.” Social & Cultural Geography 5(3):347–355.
Kaplan, Brett Ashley (2011). Landscapes of Holocaust Postmemory. London, New York: Routledge.
Kaplan, Brett Ashley (2008). “Exposing Violence, Amnesia, and the Fascist Forest through Susan Silas and Collier Schorr’s Holocaust Art”. Images, 2(1): 1- 31
Silas, Susan (1998/2003). Helmbrechts Walk 1998-2003. Acedido a 14/06/2012 em http://www.helmbrechtswalk.com/
Suleiman, Susan Rubin (2006). Crises of Memory and the Second World War. Cambridge, Massachusetts London, England: Harvard University Press.