303 - João Aldeia
João Aldeia
Homo Sacer «Sem-abrigo»
Falando sobre o saber-poder moderno ocidental, Foucault (1991, 1994, 2006) defende que o poder soberano de «matar ou deixar viver» é cada vez mais substituído pelo biopoder, pelo “direito de intervir para fazer viver, de intervir sobre a maneira de viver e sobre o «como» da vida” (Foucault, 2006: 264). Porém, no fenómeno dos sem-abrigo, o direito desequilibrado de soberania está bem presente. Segundo Agamben, recuperando a definição de Carl Schmitt, o “soberano é aquele que decide sobre o estado de excepção” (Schmitt apud Agamben, 1998: 20), portanto, possui o direito de suspender a normal aplicação das regras que regem as vidas dos outros seres humanos. Assim, o soberano é uma entidade que se encontra num estado de exclusão perpétua da ordem política e legal da sociedade. Uma outra figura é também colocada, de modo simétrico, num tal estado de exclusão da ordem política e legal, desta feita, ocupando uma posição desqualificada que se consubstancia, ao contrário do que ocorre com a figura do soberano, numa exclusão negativa. Trata-se do homo sacer, uma figura tanto «sagrada» como «impura», que, devido à sua sacralidade, não pode ser morta, mas, de modo paradoxal, caso seja morto, o seu homicida não pode ser punido (Agamben, 1998). Agamben identifica uma relação dialéctica entre estas duas figuras de excepção: por um lado, face ao soberano, todos são potenciais homini sacri, dado que o soberano sobre todos pode exercer o seu direito de matar ou deixar viver; por outro lado, face ao homo sacer, todos são potenciais soberanos na medida em que todos podem sobre ele exercer um direito de matar ou deixar viver. Assim sendo, o que caracteriza a figura do homo sacer é, sobretudo, a sua dupla posição negativa face à soberania: simultaneamente, o homo sacer está sujeito a actos de soberania que podem provir de qualquer indivíduo e não pode comportar-se como soberano face a ninguém (é, deste modo, o único indivíduo inteiramente incapaz do exercício do direito de soberania). Esta conceptualização permite-nos interpretar os indivíduos sem-abrigo como homini sacri (Feldman, 2006): sobre eles, todos os sujeitos domiciliados podem comportar-se como eventuais soberanos (aleatoriamente, podem expulsá-los dos locais, insultá-los sem retribuição, agredi-los sem que daí advenham consequências jurídicas), enquanto que os actores sem-abrigo não podem comportar-se como soberanos face a nenhum sujeito domiciliado (não têm poder para definir a normatividade orientadora da interacção com estes últimos).
Apesar desta posição desprivilegiada – ou precisamente por causa dela –, a categoria «sem-abrigo» cumpre funções sistémicas essenciais ao capitalismo liberal ocidental. Entre elas, podemos referir:
(1) Os «sem-abrigo» são fulcrais para o processo de criação macro-identitária, funcionando como «inimigos internos» de sociedades cujas consciências colectivas precisam de ser erigidas contra algo (Feldman, 2006). Os «sem-abrigo» são o «eles» desumanizável que ao «nós» (humano) se pode opor e que permite criá-lo. A categoria desumanizada é sacrificial no sentido de que precisa ser negativamente representada para que a categoria que é o outro lado da dicotomia se possa auto-representar como positiva. Assim, os «sem-abrigo» são reduzidos à vida nua do homo sacer (Agamben, 1998): quem vive na rua está numa situação de total sujeição biopolítica aos actos de soberania executados por outrem. Esta sua redução à vida nua permite, justifica e incentiva a intervenção repressiva e/ou «assistencialista» sobre os seus corpos como forma de os controlar. Não só o rótulo de «sem-abrigo» remete para uma relação negativa com a cidadania em que se é votado à alegalidade e biopoliticamente gerido, como a própria cidadania é definida como a exclusão desta relação particular (Feldman, 2006).
(2) Uma parte dos indivíduos sem-abrigo trabalha e a maioria deles trabalhou vários anos antes da sua chegada à rua. Contudo, a sua falta de poder leva a que tenham somente a opção entre não trabalhar ou aceitar trabalhos mal remunerados, precários, temporários, estatutariamente desqualificados e negativamente representados (Snow e Anderson, 1993; Gowan, 2010). Os preços relativamente baixos dos bens e serviços por eles garantidos são mantidos, para benefício das classes médias e superiores, que podem reproduzir os seus estilos de vida graças a esta redução sistémica de custos.
(3) A pobreza é criadora de empregos. Vários assistentes sociais, juízes, advogados, polícias, seguranças privados, psicólogos, psiquiatras, etc., apenas podem trabalhar devido à existência continuada de «clientes pobres» (Gans, 1971). Em particular, os serviços «assistencialistas» destinados aos «sem-abrigo» legitimam-se na continuidade do fenómeno (Gaboriau e Terrolle, 2007). Dado que eles se tornariam desnecessários se o fenómeno dos sem-abrigo fosse eliminado, têm de ser organizados estruturalmente de um modo que garanta a sua reprodução.
(4) Os «pobres» compram bens que o resto da sociedade não quer (Gans, 1971; Gaboriau e Terrolle, 2007). A actividade dos sectores económicos que vendem «maus produtos e serviços» (e.g., comida de má qualidade) só se mantém porque estes têm clientes que não podem adquirir bens e serviços de qualidade superior. Uma parte dos seus «clientes» vive na rua.
(5) A existência de indivíduos sem-abrigo permite a prática da caridade e filantropia (McIntosh e Erskine, 2000), descansando as consciências individuais e social pois, graças a ela, o «sujeito caridoso ou filantropo» pode auto-representar-se como «generoso e socialmente preocupado».
(6) A existência de «sem-abrigo» permite uma individualização estigmatizante de uma parte da população, «legitimando» o nosso modelo socioeconómico. Este passa a ser visto como intrinsecamente justo e meritocrático, sendo somente «manchado» por um conjunto de indivíduos que não querem respeitar as suas regras. A situação de «sem-abrigo» é, assim, apresentada como uma «punição natural» para a «preguiça» e/ou a «amoralidade» na qual não há responsabilidades sistémicas. Providenciando «assistência» a estes sujeitos «imerecedores», o sistema capitalista consegue ainda representar-se mesmo como «compassivo» (Gans, 1971).
Para a manutenção sistémica do modelo capitalista liberal, têm de ser construídos benefícios para alguns dos seus membros, sendo isto feito à custa da negação destes mesmos benefícios a outros elementos. Para que o modelo se mantenha, esta negação de possibilidades de vida não pode ser interpretada como injusta, tornando-se crucial retirar da esfera da justiça os indivíduos a quem os benefícios são negados. «Eles» têm de deixar de ter a possibilidade de ter direitos, de deixar de ser «seres humanos» para se tornarem em objectos que meramente cumprem funções sistémicas. Sem vítimas sacrificiais não há capitalismo liberal. Neste momento histórico, o homo sacer «sem-abrigo» surge como um dos principais representantes desta sacrificialidade sistemicamente necessária. Deste modo, quaisquer políticas ou iniciativas localizadas que visem eliminar o fenómeno estão destinadas a falhar. O fenómeno dos sem-abrigo só poderá ser eliminado através de formas de mudança social profunda que sejam capazes de alterar a essência sistémica de uma sociedade que, para existir, precisa de sacrifícios humanos.
Referências bibliográficas
Agamben, Giorgio (1998 [1995]), O poder soberano e a vida nua. Homo sacer. Lisboa: Presença.
Feldman, Leonard (2006 [2004]), Citizens Without Shelter. Homelessness, Democracy, and Political Exclusion. Ithaca e London: Cornell University Press.
Foucault, Michel (1991 [1977]), “Truth and Power”, in Rabinow, Paul (org.), The Foucault Reader. An Introduction to Foucault’s Thought. London: Penguin, 51-75.
Foucault, Michel (1994 [1976]), História da sexualidade – I. A vontade de saber. Lisboa: Relógio D’Água.
Foucault, Michel (2006 [1976]), É preciso defender a sociedade. Curso no Collège de France (1975-1976). Carnaxide: Livros do Brasil.
Gaboriau, Patrick; Terrolle, Daniel (2007), SDF. Critique du prét-à-penser. Toulouse: Privat.
Gans, Herbert (1971), “The Uses of Poverty. The Poor Pay All”, Social Policy, 20-24.
Gowan, Teresa (2010), Hobos, Hustlers, and Backsliders. Homeless in San Francisco. Minneapolis e London: University of Minnesota Press.
McIntosh, Ian; Erskine, Angus (2000), ““Money for Nothing”? Understanding Giving to Beggars”, Sociologial Research Online, 5(1).
Snow, David; Anderson, Leon (1993), Down on Their Luck. A Study of Homeless Street People. Berkeley: University of California Press.