301 - Joana Pimentel Alves
Quando para além da família não há resposta – uma análise do cuidado quotidiano, permanente e de longa duração em Portugal.
Joana Pimentel Alves (FEUC/CES)
(Bolseira da Fundação para a Ciência e Tecnologia)
Introdução
O aumento evidente das necessidades de cuidados trouxe um impulso adicional à investigação da produção de bem-estar. Nas últimas décadas, esta atenção tem vindo a voltar-se para o papel da família na provisão de cuidados aos familiares com necessidades de apoio elevadas.
De um modo geral, a reflexão sobre a produção de bem-estar tem concluído que a produção de cuidado continua a encontrar nas relações de parentesco e de proximidade a sua base de sustentação (Goodhead et al., 2007). Esta centralidade dos laços informais na provisão de cuidado acontece em todos os contextos, no entanto revela-se fundamental naqueles onde não existe uma extensa rede formal cuidados e onde os níveis das prestações sociais são baixos, como em Portugal. A investigação realizada no nosso país tem revelado isso mesmo, ao enfatizar a importância que os apoios informais têm no âmbito da proteção social. Num contexto onde a providência estatal nunca foi muito expressiva, são os apoios informais que respondem em primeiro lugar às necessidades dos cidadãos (Santos, 1993; 1994; Hespanha, 2001; Hespanha et al, 2001; Portugal, 2006).
A investigação que tenho vindo a realizar no âmbito da problemática da deficiência e do cuidado (Alves, 2011), tem mostrado isso mesmo, ao evidenciar que quanto mais grave for a situação de dependência e mais exigentes forem as necessidades, maior é o envolvimento da família na prestação de cuidados. Em casos onde as pessoas nascem, se tornam adultas e envelhecem com um tipo de deficiência e/ou incapacidade que as torna dependentes e que exige uma atenção diária e para toda a vida, ou que durante o seu ciclo de vida têm períodos de elevada dependência que exigem um cuidado quotidiano e continuado por um período longo de tempo (por vezes anos), a ausência o apoio pela via informal é central na vida destas pessoas.
Num contexto onde o nível da prestação formal de cuidados apresenta um quadro de intervenção que se revela incapaz de responder ativamente às necessidades das pessoas, quer no apoio em serviços, quer em apoios pecuniários, tenho vindo a desenvolver um trabalho que procura perceber como cuidam as famílias. Esta comunicação traz-nos parte dessa investigação, centrando-se na análise dos impactos do cuidado na vida de quem cuida.
Os Impactos do Cuidado: uma síntese dos resultados
As mulheres e o cuidado
Embora os cuidados se alimentem dos laços familiares, eles concretizam-se principalmente pela via do trabalho feminino. Assim, ao nível dos cuidados, a situação mais comum é que seja a mãe a assumir as principais tarefas do cuidado. A participação masculina é sobretudo em tarefas pontuais e que têm lugar fora da esfera doméstica, como o transporte e mobilidade e o acompanhamento a eventos de lazer.
O antes e o depois: as trajetórias de vida
Todas as pessoas entrevistadas reconhecem que a chegada a uma família de um elemento com necessidades muito específicas e permanentes, resulta sempre em mudanças nos seus quotidianos, e numa redefinição das suas vidas.
O apoio familiar pode significar uma reestruturação dos quotidianos, não só ao nível das atividades desenvolvidas, mas, também, no modo como as pessoas passam a entender o seu novo papel. Existe uma adaptação das vidas e dos quotidianos de quem cuida para puder assegurar as necessidades de quem é cuidado.
As diferenças são apontadas por todos, mas mais percecionadas quanto mais tarde surge o cuidado nas suas vidas, e mais exigentes são os cuidados a prestar. Nestes casos, os cuidadores sublinham, principalmente, o que deixaram de puder fazer, os papéis que se incompatibilizaram com o seu novo papel. Fica claro que há uma rotura com os seus percursos anteriores.
As tarefas e os tempos
Os cuidadores prestam apoio a pessoas com necessidades muito exigentes para quem está a cuidar. As suas rotinas são por isso rígidas, não só pelas tarefas a realizar, mas também pelo ritmo a que as realizam – o apoio é quotidiano, continuado e de longa duração. E, por esta exigência, os tempos dos cuidados acabam por se sobrepor aos tempos pessoais dos cuidadores, produzindo isolamento social. Assim, as sociabilidades e os tempos de lazer quando existem, são centradas na família. No entanto não é apenas a exigência dos cuidados que isola os indivíduos. O preconceito que continua a vigorar nas nossas sociedades para com a deficiência e a incapacidade excluem não só a pessoa com deficiência, mas também quem lhe presta cuidados.
Os apoios informais
Nestas famílias os apoios recebidos provêm do parentesco restrito, sendo os ascendentes os principais responsáveis pelas ajudas aos cuidadores. Os apoios recebidos quer em serviços, quer em ajuda financeira, pela família, evidenciam-se como muito importantes para colmatar a ausência dos apoios formais. O apoio monetário recebido torna possível para as famílias garantirem o bem-estar da pessoa a cuidar (em material de apoio, tratamentos, operações, etc.), e mesmo do agregado doméstico. Existem casos em que os apoios financeiros recebidos dos pais e dos sogros são o único rendimento disponível para as despesas do agregado.
O trabalho e o emprego
Uma das áreas da vida de quem cuida mais afetada pelo cuidado é o trabalho e o emprego. Os impactos são diversos, e embora em Portugal existam direitos de proteção da maternidade e da paternidade específicos para os pais e mães com filhos com deficiência, o facto é que as políticas não têm conseguido regulá-los. As políticas têm-se revelado ineficazes na proteção dos trabalhadores com filhos com necessidades de cuidado quotidiano, permanente e de longa duração, e, como mostraram as entrevistas, a inserção no mercado de trabalho destas pessoas continua a ser por isso problemática. Existe alguma resistência por parte das entidades patronais em cumprirem as leis previstas no Código do Trabalho.
Perante esta resistência e como os tempos previstos por lei não correspondem aos tempos reais das necessidades da pessoa a cuidar, quem cuida acaba por recorrer a outros recursos para puder acompanhar os filhos, são exemplos: a) trabalhar fora do horário de trabalho com vista à compensação das faltas dadas para acompanhar os filhos; b) negociar, informalmente, o horário de trabalho com a entidade patronal; c) o recurso a baixas médicas; d) e o recurso à reforma antecipada.
Pela dificuldade em combinar-se o cuidado com o emprego, alguns cuidadores veem-se excluídos do mercado de trabalho, com especial incidência para as mães trabalhadoras. Quando a pessoa a cuidar exige uma atenção muito particular são na maioria as mulheres a reduzirem o seu horário de trabalho, ou a deixar o seu lugar no mercado de trabalho formal para se dedicarem, a tempo inteiro, ao cuidado familiar.
O dinheiro
Os custos acrescidos identificados pelas pessoas entrevistadas, resultam, sobretudo, do facto de as pessoas terem que despender mais recursos para proporcionar à pessoa com deficiência ou incapacidade as mesmas condições de igualdade de oportunidades ou para salvaguardarem garantias básicas de dignidade humana. Estas famílias pagam mais em áreas como a saúde, a educação, alimentação, etc., custos acrescidos que o nível de apoios pecuniários atribuídos pelo Estado não permitem colmatar.
Os serviços de apoio
A análise dos serviços de apoio para revela a ausência de estruturas específicas para situações de dependência que exigem uma assistência permanente de outra pessoa. As associações organizam-se de modo a responder às necessidades de todos, o que acaba por excluir todas as pessoas que têm necessidades de atenção muito especializada.
A desadequação entre a resposta necessária e o nível de apoio recebido, leva a que quem cuida acabe por desistir de recorrer aos serviços de apoio especializado, optando por ficar a cuidar, muitas vezes a tempo inteiro.
O quotidiano das crianças e jovens nas escolas fica marcado pela discriminação, pela estigmatização e pela marginalização. Os obstáculos à integração não são apenas físicos – apesar do parque escolar, mesmo da escola pública, não cumprir as normas de acessibilidades –, mas também humanos. A falta de preparação dos profissionais para acolherem e trabalharem com a deficiência é ainda grande, mesmo da parte dos professores do ensino especial – sendo comum que se confundam comportamentos próprios de algumas deficiências como sinais de indisciplina. Tal compromete seriamente a aprendizagem destas pessoas.
O nível de envolvimento dos cuidadores neste meio é um fator de grande relevância para as crianças e os jovens conseguirem suplantar as barreiras que lhes são colocadas, mas, por vezes, não é suficiente.
O futuro
O receio pelo futuro acompanha os cuidadores desde cedo. Desde a infância que os pais sabem que a garantia da qualidade de vida dos filhos, na ausência de estruturas de apoio em cuidados especializados, passa pela sua presença constante nas suas vidas. O medos do futuro é enorme e funda-se na avaliação da qualidade dos apoios no presente e na incerteza quanto aos apoios no futuro. Estas pessoas sabem que os filhos precisam de cuidados muito específicos para puderem sobreviver algo que as instituições, como estão organizadas atualmente, não conseguem garantir, nem os apoios pecuniários recebidos permitem procurar alternativas a essas instituições ou aos cuidados familiares quando a família deixar de os poder garantir.
Conclusões:
A análise do apoio formal mostra a incapacidade deste em responder ativamente às necessidades das pessoas com deficiência e dos seus cuidadores, quer em apoio em serviços, quer ao nível dos apoios pecuniários. Os serviços existentes não estão preparados para atenderem a necessidades de cuidados específicas.
No atual contexto de crise e recuo da proteção social, os cortes nas prestações sociais irão agravar a situação de muitas destas famílias, ampliar as desigualdades sociais e penalizar os cuidadores informais, produzindo uma sobrecarga adicional para a família, e poder mesmo comprometer a qualidade do apoio que é prestado.
Referências Bibliográficas:
Alves, Joana (2011), Vidas de Cuidado(s). Uma análise sociológica do papel dos cuidadores informais. Tese de Mestrado em Sociologia. Coimbra: Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.
Goodhead, Anne; McDonald, Janet (2007), Informal Caregivers Literature Review. A report prepared for the National Heath Committee. Wellington: Health Services Centre, Victoria University of Wellington.
Hespanha, Pedro; Portugal, Sílvia (2002), A Transformação da Família e a Regressão da Sociedade-Providência. Porto: CCRN.
Hespanha, Pedro; et al. (2001), “Globalização insidiosa e excludente. Da incapacidadede organizar respostas à escala local” in Pedro Hespanha e Graça Carapinheiro (orgs.), Risco social e incerteza. Pode o Estado Social recuar mais?. Porto: Afrontamento, pp. 25-54.
Hespanha, Pedro (2001), “Desigualdades e exclusão num mundo globalizado. Novos problemas e novos desafios para a teoria social” in Boaventura de Sousa Santos (org.), Globalização: fatalidade ou utopia? Porto: Afrontamento, pp. 163-196.
Santos, Boaventura de Sousa (1994), Pela mão de Alice. O social e o político na pós- modernidade. Porto: Edições Afrontamento.
Santos, Boaventura de Sousa (1993), “O Estado, as relações salariais e o bem-estar social na semiperiferia: o caso português.”, in Boaventura de Sousa Santos (org.), Portugal: um Retrato Singular. Porto: Edições Afrontamento, pp. 17-56.