216 - Rita Simões
Representações do superior interesse da criança
Rita Simões
1- Introdução: o superior interesse da criança
No contexto da evolução da família, alterou-se significativamente a natureza das relações entre pais e filhos, de um ponto em que o “poder” do pai sobre os filhos era absoluto, para uma responsabilização de ambos os pais no desenvolvimento dos filhos, aspirando ao “exercício da protecção dos menores assente num exercício da sua própria justificação permanente” (Oliveira 2004).
Actualmente, o interesse da criança é um conceito indeterminado com uma pluralidade de sentidos, que visa fundamentar, racionalizar e limitar a intervenção do Estado, e por isso precisa de preenchimento valorativo e critérios que limitem a discricionariedade das decisões e coloquem a criança no centro do processo decisório, para o qual têm sido avançados critérios, como os da pessoa de referência, estabilidade, ou, a prevalência dos laços afectivos (Sottomayor, 2003, 2007 e 2008).
A indeterminação deste conceito traz em si as suas maiores virtualidades e as suas maiores dificuldades, já que a falta de critérios para o seu preenchimento e o desconhecimento em relação às normas sociais para que remete, podem fazer com que se tomem decisões que, a coberto da sua invocação, são manipuladas no sentido de introduzir representações que reflectem os interesses dos adultos (Sottomayor, 2008).
Pretendemos com este trabalho abordar as decisões proferidas em sede de recurso que, no contexto das responsabilidades parentais e da promoção e protecção, analisando de que forma o preenchimento do conceito de superior interesse da criança incorpora as representações do que são as relações familiares, o papel da criança na família, a vinculação afectiva à família biológica a outras famílias, e ainda de que maneira aquele conceito é encarado como legitimador da intervenção do Estado na esfera privada. Há que dizer no entanto que a análise em causa é qualitativa, diz respeito aos arestos analisados, pelo que as suas conclusões não devem ser extrapoladas.
2- A jurisprudência
O universo de pesquisa[1] e selecção é vasto, já que o superior interesse da criança é transversal a todo o direito de família, com especial incidência nas responsabilidades parentais (foram analisados 6 acórdãos, proferidos entre 17/02/2005 e 04/12/2010), e nos processos de promoção e protecção (foram analisados 6 acórdãos proferidos entre 12/06/2007 e 26/10/2010)[2].
Da análise dos referidos arestos mostrou-se possível formular as seguintes conclusões:
Há temas que são tratados de forma mais ou menos recorrente, como a legitimidade de intervenção do Estado, a relevância dos técnicos, a audição da criança, a concordância prática de valores, a figura de referência, a tensão entre a família biológica e a família afectiva, e a adopção com relação à integração familiar.
Nos casos analisados, a legitimidade da intervenção do Estado surge em tensão com a auto – regulação privada da família, através da crítica do imiscuir excessivo na vida das famílias, sem lhes deixar espaço para criarem as suas próprias normas. Pese embora a grande pertinência da questão, esta argumentação acaba por servir um discurso de rejeição da participação social na protecção das crianças, a que subjazem concepções que ainda valorizam a família biológica como solução para a vinculação da criança.
Relacionada com a questão da legitimidade, está a forma como os técnicos intervém no contexto dos processos de regulação das responsabilidades parentais (r.r.p.) e de promoção e protecção (p.p.p.). Enquanto actores sociais, estes trazem para o processo as suas representações, que há também que trabalhar, e depois perceber como o decisor as integra nos seus discursos.
Aqui notámos duas tendências diversas: a de apreciar de forma livre e crítica as suas conclusões, para depois apurar o que é o interesse da criança; e uma outra de não valorar criticamente esses contributos, ficando por saber se tal se deve à aceitação das representações e juízos subjacentes às conclusões dos técnicos, ou à valoração acrítica dos mesmos.
A concordância prática, entre o interesse da criança e os de terceiros, como os pais, é decidida de forma pacífica através do entendimento de que o interesse da criança se sobrepõe aos restantes. No entanto, nas r.r.p. esta asserção é incorporada de forma explícita e recorrente no discurso decisório, e corresponde à ponderação que o decisor efectivamente faz, enquanto que, nos p.p.p., esse discurso continua a ser utilizado quando na verdade se priorizam outros interesses, de onde resulta menor transparência no seu discurso e fundamentos.
A audição da criança releva de forma explicita nos r.r.p., em que a questão fundamenta o discurso do interesse da criança, ao passo que nos p.p.p. haverá uma menor tendência para dar relevo à sua vontade, em que o perigo e as opiniões dos peritos deixam menos espaço para valorar essa vontade, o que faz da criança objecto e não sujeito do processo.
Quanto à figura de referência, nos acórdãos de r.r.p. resulta clara a opção pela pessoa a quem a criança se encontra vinculada. Em todos os casos analisados, as figuras de referência eram mulheres, o que poderá revelar a tendência para associar a figura de referência à figura maternal (e feminina). Este facto também é relevante na tendência, mais acentuada ainda nos p.p.p., de se discutir a capacidade da mãe ou de outra figura materna para desempenhar estas funções, não se ponderando o mesmo relativamente aos progenitores, o que poderá decorrer das representações de papeis tradicionais de género.
As tensões entre família biológica e família afectiva, e adopção e família biológica, estão muitos presentes, sobretudos nos p.p.p.
Por um lado, temos a concepção de que a afectividade é mais importante do que o vínculo biológico, quer se trate da entrega da criança a uma terceira pessoa, ou para adopção; e uma segunda posição que crítica o discurso dominante das famílias afectivas e dá clara preferência à família biológica, independentemente dos laços de afecto que unam a criança a terceiros. Curiosamente, os defensores desta posição rejeitam a adopção com os fundamentos do discurso da ilegitimidade da intervenção do Estado.
Nos discursos que dão prevalência à família biológica e rejeitam a adopção e as famílias afectivas, está presente uma concepção de desresponsabilização dos pais, focando a decisão mais no interesse em lhes ser dada uma nova oportunidade, do que no interesse da criança, ao passo que nos discursos que favorecem a adopção está presente a valorização da capacidade de mudança dos pais, que é claramente priorizada relativamente às verbalizações de afecto.
Aliás, observamos que a forma como se constrói o discurso do interesse da criança pode espelhar as representações do decisor e de outros actores judiciais sobre o que deve ser o interesse da criança, fazendo-se coincidir este com o interesse dos pais, ou utilizando-o para tomar posições ideológicas quanto à intervenção do Estado ou da adopção, afastando por isso a criança do centro do processo decisório.
Assim, a indeterminação do superior interesse continua a fazer sentido, mas há que trabalhar critérios que estruturem o processo decisório, bem como as práticas dos técnicos, para que resultem claras para todos as representações sobre as quais se está a trabalhar, para deste modo de colocar verdadeiramente a criança no centro do processo decisório, forma mais completa de concretizar (também o seu direito de audição).
Referências bibliográficas
Ø Leandro, Armando, (2004) “Direitos das Crianças”, Corpus Iuris Gentium Coninbrigae, 3, Coimbra Editora;
Ø Lowe, Nigel e Murch, Mervyn, (2008), “Children’s participation in the family justice system – translating principles into practice”, in “Resolving Family Conflicts”, The Family, Law & Society, pag 427-445;
Ø Oliveira, Guilherme de, (2004),“As transformações do direito da família”, in Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos de da Reforma de 1977”, Vol. I, Coimbra Editora, pag. 763-779;
Ø Ottosen, Mai Heide (2006), “In the name of the father, the child, and the holy genes”, Acta Sociologica, 49 (1);
Ø Pedroso, João e Branco, Patrícia, (2008),“Mudam-se os tempos, muda-se a família. As mutações do acesso ao direito e à justiça de família e das crianças em Portugal”, Revista Crítica de ciências Sociais, 82, pag. 53-83;
Ø Rodrigues, Almiro, (1985),“Interesse do Menor – contributo para uma definição – Revista da Infância e Juventude, n.º 1;
Ø Santos, Boaventura Sousa (Coord.) et. al. (1998) Relatório do Observatório Permanente da Justiça, “Justiça de menores: as crianças entre o risco e o crime”, vol, IV, disponível em http://opj.ces.uc.pt/pdf/04.pdf;
Ø Santos, Boaventura Sousa (Coord.) et. al. (2002) Relatório do Observatório Permanente da Justiça, “Uma reforma da justiça civil em avaliação : os bloqueios de um processo administrativo e jurídico complexo” Santos, disponível em http://opj.ces.uc.pt/pdf/12.pdf;
Ø Santos, Cecília Macdowell Santos, et al. (2009), “Homoparentalidade e desafios ao direito: O caso Silva Mouta na Justiça Portuguesa e no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos”, Revista Crítica de ciências Sociais, 87, pag. 43-68;
Ø Sayn, Isabelle (1996), “Une relation dans “l’intérêt de l’enfant”? Le juge de la famille et les lieux d’accueil pour l’exercice du droit de visite”, in “Droit et Societe”, 333, pag. 329 - 340;
Ø Sottomayor, Maria Clara, (2003) “Exercício do Poder Paternal – relativamente a pessoa do filho, após o divórcio ou a separação de pessoas e bens”, publicações Universidade Católica;
Ø Sottomayor, Maria Clara, (2005), “Adopção ou direito ao afecto – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30/11/2004”, in “Scientia iuridica”, Tomo LIV n.º 301;
Ø Sottomayor, Maria Clara, (2007),“Existe um poder de correcção dos pais? – A propósito do acórdão do STJ de 05/04/2006”, in Lex familiae, Revista portuguesa de direito de família, Coimbra, a.4n.7 p.111-129;
Ø Sottomayor, Maria Clara, (2007) “A família de facto e o interesse da criança”, in Boletim da Ordem dos Advogados, número 45, pag.4- 8;
Ø Sottomayor, Maria Clara, (2008) “Liberdade de opção da criança ou poder do progenitor? – comentário ao acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 31 de Outubro de 2007”, Lex familiae, Revista portuguesa de direito de família, Coimbra, a.5n.9, p.53-64;
[1] Todos os acórdãos analisados foram pesquisados em www.gde.mj.pt.
[2] Os acórdãos analisados são os seguintes: Relação de Lisboa, de 19/05/2009, 2190/03.1TBCSC – BL.1 7, Relação de Lisboa, 10/04/2008, 1090/2008-2, Relação de Lisboa, 17/02/2005, 343/2005-6, S.T.J., 04/02/2010, 1110/05.3TBCSCD.L2.S1, Relação do Porto, 05/06/2007, 0721915, Relação de Coimbra de 05/05/2009, 530/07.3TBCVL-AC1, Relação de Guimarães de 11/11/2009, 286/09.5TBPTL, Relação de Guimarães, 07/09/2009, 565/05.0TBEPS.G1, Relação de Lisboa, 26/10/2010, 6116/08.8TBCS.L1-7, Relação de Guimarães, 09/02/2009, 5190/07.9TBGMR-G1, Relação de Guimarães, 24/04/2008, 864/08-2, Relação de Guimarães, 12/06/2007 926/07-2.