215 - Pedro Araújo
A Tragédia de Entre-os-Rios: Algumas notas de terreno
Pedro Araújo
No dia 04 de Março de 2001, por volta das 21 horas e 10 minutos, o desabamento do quarto pilar da Ponte Hintze Ribeiro provoca a queda da estrutura do tabuleiro. Um autocarro, com 53 pessoas a bordo, e três viaturas ligeiras, com seis ocupantes, são atirados para as águas do rio Douro. Cinquenta e nove pessoas perdem a vida.
Subjacente ao meu trabalho encontra-se a ideia de que os acontecimentos extremos, variáveis nas suas causas, são-no igualmente, por um lado, nos seus efeitos, a curto, médio e longo prazo, nas comunidades e, por outro, nos seus impactos nas instituições públicas e nos representantes políticos. Partindo de um acontecimento singular, a queda da ponte Hintze Ribeiro, o meu objetivo é, assim, num primeiro tempo, o de compreender, à escala do Estado, das suas instituições e dos seus representantes, o trabalho de interpretação e gestão política do acontecimento e, num segundo tempo, à escala da comunidade e da comunidade de vítimas, em particular, o trabalho de interpretação e gestão moral do acontecimento. São estes dois aspetos que abordo sumariamente nesta comunicação.
Olhando para o que aconteceu em Castelo de Paiva a seguir ao colapso da ponte, é possível, na esteira de Arjen Boin (2008), tomar o acontecimento como abrindo uma crise e atender à politização da crise. A politização da crise, entendida como a luta pela interpretação dominante das causas e consequências da crise, desenvolve-se através de dois processos cuja interação será decisiva para os destinos políticos e administrativos individuais e para o grau de mudança a verificar-se nas instituições e políticas: o processo de responsabilização e o processo de aprendizagem.
Abordo o processo de responsabilização a partir das demissões políticas e administrativas; dos inquéritos abertos pelo Ministério do Equipamento Social e pelo Parlamento; dos dois relatórios periciais; do processo-crime instaurado pelo Ministério Público; e do pagamento de indemnizações aos familiares. Relativamente ao processo de aprendizagem abordo duas alterações significativas: a implementação do Sistema de Gestão de Obras de Arte e a regularização da extração de inertes assume outra importância.
Em linhas muito gerais, os processos de responsabilização e de aprendizagem permitem atender, à escala do Estado, das suas instituições e dos seus representantes, ao trabalho de interpretação e gestão política do acontecimento e é minha intenção aprofundá-los no decurso do trabalho. Na segunda parte da comunicação, situo a análise à escala da comunidade e da comunidade de vítimas, em particular, para procurar compreender o trabalho de interpretação e gestão moral do acontecimento, salientando, desde já, alguns dados do trabalho empírico em curso.
Na esteira de Steve Kroll-Smith (2012), argumento que o risco acontece sempre num tempo, num espaço e a alguém. Daí a necessidade de examinar os desastres in situ, no tempo e no lugar concretos em que ocorrem, prestando uma atenção minuciosa aos tipos de pessoas afetados.
É inegável que, enquanto concelho, Castelo de Paiva ficou marcado pelo acontecimento. Mas as pessoas que perderam alguém nesse tragicamente redentor 04 de março ficaram marcadas diferentemente. Muitas estão marcadas pelo acontecimento em si e outras pela ausência de corpos que torna impossível, não direi encerrar o luto, porque duvido que isso seja possível, mas simplesmente realizar os rituais associados ao luto. Outras, finalmente, estão marcadas pela impunidade que veio confirmar a sua ausência de poder.
Se os desastres têm por efeito anular a distância ao poder, a longo prazo, o colapso da ponte não alterou a geografia do país e muito menos a sua geografia política. O concelho de Castelo de Paiva sofreu, por assim dizer, uma operação de cosmética, consentânea com as políticas de expiação levadas a cabo pelo governo na sequência da queda da ponte, que não alteraram a sua dinâmica. As geografias mantêm-se. Geografias que nem os desastres conseguem vencer e, mais do que isso, geografias que podem ser reveladas pelos desastres.
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