205 - Fernando David Perazzoli
Direito, Exceção e Sociedade de Massa
Fernando David Perazzoli
Doutorando pela Universidade de Coimbra no Programa “Direito, Justiça e Cidadania no Séc. XXI”
O presente trabalho partiu de ideias expostas por Hannah Arendt nos anos cinqüenta, quando, ao estudar os movimentos totalitários do século XX, percebeu que os eventos que o tornaram esse período histórico tão sombrio (desde os massacres promovidos pela expansão imperialista até os Gulag´s soviéticos, passando, obviamente, pelo horror dos campos de concentração nazistas) ocorreram porque o ser humano, em nível mundial, havia deixado de exercer aquela que se mostra como uma das mais importantes dentre as faculdades que lhe foram conferidas quando veio ao mundo: pensar.
Seguindo as pistas deixadas por Hannah Arendt, a pesquisa desdobrou-se a investigar, inicialmente, qual seria o ambiente que o ser humano encontrou para que esse abandono da faculdade de pensar fosse possível. Alcançou-se, assim, a idéia de Sociedade de Massa, a qual, a partir do último quarto do século XIX, acompanha a humanidade.
Com isso, apresenta-se primeiramente a descrição daquilo que possibilitou à Sociedade se massificar, trabalho esse que foi realizado a partir (i) da exposição dos efeitos da idéia de nação no contexto de sedimentação dos Estados-nação europeus, (ii) pela descrição do impacto das artes européias (principalmente com o final do romantismo) e (iii) pela exposição dos efeitos que a prática imperialista
do período de transição entre os séculos XIX e XX, impulsionada pelo Estado-nação e pela cultura européia da belle époque, trouxe tanto para a formação da primeira forma de Sociedade de Massa quanto para a sua disseminação pelo mundo.
Feitas essas considerações iniciais, procurou-se debater os efeitos que o abandono da capacidade de pensar (comum ao ser humano que adere à Massa) pode trazer para a humanidade, principalmente pelo fato de que, uma vez convertido em Massa, o ser é capaz de perpetrar atos de inimaginável maldade.
Na sequência, com a análise dos eventos totalitários e das modificações ocasionadas no mundo após a segunda guerra mundial, procurou-se descrever o que fez com que a Sociedade de Massa entrasse em uma nova fase de seu acontecimento. Para tanto, o estudo foi realizada a partir das idéias de vários autores, os quais possibilitaram reconhecer que a Sociedade de Massa converteu-se em algo muito mais
complexo do que aquela formada no período do imperialismo de virada de século. As idéias de indústria cultural, formulada por Theodor W. Adorno; de Sociedade do Espetáculo, formulada por Guy Debord; as assertivas acerca das implicações sociais ocasionadas pela modificação da estrutura dos campos do saber e do conhecimento, formulada por Jean-François Lyotard; a tese sobre a perda do sentido e dos significantes que compõe a Massa, formulada por Jean Baudrillard; a crítica sobre crise cultural, moral e humana, formulada por David Harvey, balizam o raciocínio e proporcionam, por diversos ângulos, o entendimento desse fenômeno que é a Sociedade de Massa atual.
A partir dessas referências, passou-se a questionar qual foi o papel que o direito do mundo ocidental desempenhou em relação à problemática trazida pelo advento da Sociedade de Massa.
Para essa tarefa, coube primeiramente a análise das teorias que no século XX constituíram de forma substancial os fundamentos do mundo jurídico e procuraram dizer o que é o direito antes que as normas jurídicas, construídas sobre os seus pressupostos, dissessem o que é de direito. Assim, adentrou-se na segunda etapa do estudo, onde foram selecionadas cinco teorias para estudo: a Teoria Normativista, de Hans Kelsen; a Teoria Decisionista, de Carl Schmitt; e a Teoria do Direito como uma Construção de Alta Complexidade Estruturada, desenvolvida por Niklas Luhmann; a Teoria do Direito a partir do Agir Comunicativo, elaborada por Jürgen Habermas e, por fim, a Teoria do Direito como Interpretação, pensada por Ronald Dworkin.
Com esses elementos já debatidos, na terceira e última etapa do trabalho é retomada a discussão sobre a Sociedade de Massa e sobre o Direito, de modo que, a partir da leitura cruzada entre esses fenômenos, apresenta-se uma reflexão sobre as possibilidades de o Direito vir a se realizar em vista da massificação
social.
Nesse exercício, procurou-se evidenciar a questão da faculdade humana de pensar, o que foi realizado com a demonstração das implicações que a inserção da dúvida cartesiana no campo do conhecimento trouxe para humanidade, em especial para explicitar como a atividade humana de fabricação ganhou espaço e fez com que somente os artefatos que o homem desenvolvesse passassem a ser considerados como válidos. Aliás, é justamente pelo pensamento construído por René Descartes que se verifica o abandono dos questionamentos acerca do que uma coisa é e por que essa coisa existe, para a inserção, como paradigma do conhecimento, a indagação sobre como uma coisa veio a existir, fato que, no campo do direito, equivale ao abando de um questionamento mais profundo acerca do que ele é da razão pela qual ele se realiza em sociedade.
A partir dessas considerações, procurou-se demonstrar que a relação entre Sociedade de Massa e Direito é mais profunda e delicada do que se pode comumente imaginar, haja vista que, em um mundo no qual a perspectiva da fabricação ocupa o lugar do questionamento e o da reflexão, a aposta em uma concepção de direito que dependa da interação entre os seres humanos e da atividade de pensar a lei – como querem as teorias apresentadas – é bastante arriscada.
De qualquer sorte, não se procurou, com isso, explicitar uma concepção absoluta do direito, tampouco demandar valores universais, imutáveis e/ou metafísicos como proposições jurídicas mas, antes, questionar a viabilidade de aplicação de cinco propostas jurídicas em uma Sociedade de Massa – cujos fundamentos e características não são contemplados por elas.
Precisamente, indagou-se – tendo em vista os elementos que atualmente caracterizam a Sociedade de Massa – cada uma das teorias apresentadas, onde foi possível visualizar, em todas elas, uma abertura ao decisionismo e a falta de relação com a sociedade massificada. Este fato, dentro da proposta do trabalho, demandou a reflexão acerca do estabelecimento da decisão como paradigma do direito, motivo pelo qual, após a leitura cruzada entre Direito e Sociedade de Massa, foi aprofundado o tema do direito no século XXI com a apresentação de considerações teóricas acerca do estado de exceção, a qual se realiza através de um direito que vige sem poder produzir efeitos, ou seja, que é pura decisão.
Com isso, apresenta-se reflexão acerca de toda a temática do trabalho, inclusive para demonstrar a necessidade de se encontrar um mecanismo que possa fazer a humanidade (re)pensar o direito.