204 - Débora Piacesi
“Discurso do medo e ideologia punitiva na produção legislativa luso-brasileira de 2009: O caso da lei 12.012 de 2009"
Débora Piacesi.
Universidade de Coimbra.
1.Introdução.
Este artigo se apresenta como um recorte da parte empírica de minha tese de doutoramento que irá investigar uma década de produção legislativa na seara penal com o objetivo de analisar a influência do discurso do medo na referida produção legislativa penal comparada entre Brasil e Portugal.
O debate acerca da exacerbação do medo nos discursos sobre a realidade contemporânea, em especial, no que diz respeito ao crime e os efeitos que essa percepção opera nas interações sociais e democráticas já vem sendo travado por distintas teorias como as do Fascismo social (Santos, 2001), da Cultura do medo (Glassner, 2003), do Estado penal (Wacquant, 2001), da Cultura do controle (Garland, 2008) e do Pânico moral (Cohen, 2002).
A partir da revisão destas teorias, definimos o conceito operacional de discursos do medo como sendo os discursos históricos, políticos, midiáticos, culturais e sociais que exacerbam o medo e o colocam como protagonista dos fenômenos sociais, de forma a gerar alterações nas interações sociais e democráticas.
Assim, no caso em questão, busca-se perceber o discurso do medo do ponto de vista do discurso político para aprovação de leis penais. Nessa análise, o discurso termina por coincidir com a ideologia punitiva, que associa a criação de novos crimes e aumentos de pena com o combate à violência e à insegurança, em uma manobra que busca fazer política social através da política penal.
2.O corpus, os objetivos e a metodologia.
A despeito do debate teórico acerca dos discursos do medo, existe uma lacuna no que diz respeito a estudos empíricos testando as hipóteses apresentadas. Tendo em vista este fato e a forte ligação do tema com a questão da linguagem, a metodologia de análise utilizada aqui é a análise crítica do discurso, através do dissecamento de um corpus que envolve a análise da produção da lei 12.012 de 06 de agosto de 2009, que inseriu no Código Penal Brasileiro um crime contra a Administração da Justiça, o art.º 349-A, qual seja, “Ingressar, promover, intermediar, auxiliar ou facilitar a entrada de aparelho telefônico de comunicação móvel, de rádio ou similar, sem autorização legal, em estabelecimento prisional. Pena: detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano.”
Do ponto de vista descritivo-quantitativo, foram catalogados e analisados 04 (quatro) projetos de leis acompanhados das suas respectivas justificações e dos pareceres das comissões de análise, nos casos em que o projeto teve andamento na respectiva comissão.
Diante deste corpus buscar-se-á, por intermédio da metodologia da análise crítica do discurso e do uso de categorias analíticas como avaliação e presunção perceber o discurso do medo neste exemplo de produção legislativa brasileira (Fairclough, 2003).
Categorias analíticas são, portanto, formas e significados textuais associados a maneiras particulares de representar, de (inter)agir e de identificar-(se) em práticas sociais situadas. Por meio delas, podemos analisar textos buscando mapear conexões entre o discursivo e o não-discursivo, tendo em vista seus efeitos sociais. (Ramalho e Resende, 2011, p. 112)
3. O problema social com aspectos semióticos.
O problema social tangenciado pelo crime descrito no art.º 394-A do Código penal brasileiro liga o tema do discurso do medo com o tema da ideologia punitiva. A conduta criminalizada em questão gira em torno de facilitar a entrada de aparelho telefônico de comunicação móvel em estabelecimento prisional. Se o potencial danoso de tal conduta é inegável, a análise atenta dos textos para a aprovação da lei nos permitirá focar em mecanismos linguísticos como a presunção e a avaliação para mostrar como eles refletem a ideologia punitiva.
O discurso do medo quer muito mais do que punir, pretende maior vigilância (Wacquant, 2001); maior controle (Garland, 2008); seus fascismos operam em várias áreas (Santos, 2001). Entretanto, na seara da análise da produção legislativa penal, a análise crítica do discurso aponta para uma convergência entre discurso do medo e ideologia punitiva.
Alguns dos dados materiais acerca dos cinco principais documentos foram lançados na tabela abaixo e permitem perceber que, neste caso, a maioria das propostas criminalizantes vem de partidos com orientação política de direita ou de centro. À exceção de uma proposta, as demais visavam criminalizar o preso que realizasse conduta relacionada a aparelho de comunicação móvel (e não apenas terceiro que entrasse no estabelecimento prisional). Os projetos B e D, no que diz respeito ao objeto do delito, chamam a atenção. O primeiro por incluir aparelho fixo num contexto onde a figura não teria cabimento; e o último por pretender criminalizar até partes dos seus componentes.
Isto posto, importa ressaltar que foi o parecer A que se tornou crime no ordenamento penal brasileiro, ao corrigir o erro que as três propostas posteriores insistiram em manter, qual seja, a previsão do delito em questão só pode se dar para terceiro que ingresse com o aparelho em estabelecimento prisional, visto que a conduta para o preso já tem previsão jurídica na lei de execução penal como falta grave.
Projeto/Parecer |
Partido |
Orientação Política |
A figura do criminoso. |
A figura da vítima. |
O objeto do delito. |
Projeto A |
PFL/DF |
Direita |
Inclui o preso |
Estado |
Aparelho de comunicação. |
Parecer A |
PT/SP |
Esquerda |
Não inclui o preso |
Estado |
Aparelho telefônico de comunicação móvel, de rádio ou similar |
Projeto B |
PP/RS |
Direita |
Inclui o preso |
Estado |
Aparelho telefônico de comunicação fixo ou móvel, de rádio ou similar |
Projeto C |
PMDB/PB |
Centro |
Inclui o preso |
Estado |
Aparelho telefônico de comunicação móvel, de rádio ou similar |
Projeto D |
PSC/RJ |
Centro Direita |
Inclui o preso |
Estado |
Aparelho telefônico de comunicação móvel, de rádio ou similar, acessórios ou parte de seus componentes |
3.1 Avaliação
A categoria da avaliação está relacionada com apreciações ou perspectivas do locutor, que podem ser explícitas ou não, que posicionam o mesmo sobre sua opinião em relação a aspectos do mundo, se são desejáveis ou não, bons ou ruins. (Fairclough, 2003). Podem ser materializados no texto como afirmações avaliativas, afirmações com modalidades deônticas, avaliações afetivas e presunções valorativas. (Ramalho e Resende, 2011)
A análise do conjunto das propostas legislativas que culminaram no art.º. 394. A permite extrair forte presença da categoria avaliação. No projeto A, o excerto seguinte:
As vítimas, aterrorizadas ante a escalada da criminalidade, acabam por ceder às ameaças dos criminosos, certas de que estão elas mesmas ou seus familiares na iminência de graves danos físicos, ou de morte.
Aqui, a maneira parcial e subjetiva de se posicionar diante do tema fica apresentada na escolha da descrição das vítimas como aterrorizadas e na qualificação da criminalidade como crescente, em uma escalada. Os danos potenciais são iminentes e graves e o temor de que são vítimas é de um dano certo.
No Projeto B:
Somente teremos real Segurança Pública quando nossas prisões deixarem de ser quartéis-generais do tráfico de drogas e do crime organizado.
De forma objetiva, está valorado que segurança pública de verdade, real, só com a criminalização pretendida, quando os estabelecimento prisionais deixarão de ser quartéis-generais do tráfico e do crime organizado. A maneira como a categoria da avaliação vem sendo utilizada na escrita dos projetos de lei não é implícita, é claramente voltada para o discurso que dá ao medo uma posição protagonista com a consequência de pugnar pela ideologia punitiva. Nenhuma outra solução possível é aventada para o problema do crime organizado ou da capacidade de comunicação dos presos de dentro do estabelecimento prisional. Nenhum efeito negativo da solução prisional é discutido.
Ponto importante a ser ressaltado aqui é que tendo em vista a natureza dos documentos analisados, isto é, a produção legislativa penal, as afirmações de aumento de criminalidade não vêm acompanhadas de estudos comprobatórios ou fonte externa que comprove o mesmo. Por ser tratar do resumo, partiremos para a presunção.
3.2 Presunção.
A presunção é a categoria que diz respeito à tendência de levar o leitor a tomar idéias como verdadeiras, posto que são dadas no texto como tal. A manobra linguística permite colocar problemas sociais e históricos como sendo acontecimentos naturais. (Ramalho e Resende, 2011)
Assim, sistemas de valores e presunções associadas aos mesmos podem ser vistos como pertencentes a um discurso particular. Um dos exemplos apresentados pelo autor é do discurso neoliberal que pressupõe que qualquer coisa que melhore a eficiência e a adaptabilidade é desejável. Porém, também podemos pensar no discurso do medo, que pressupõe o risco iminente, o alarme quanto à segurança e a necessidade de maior vigilância, controle e punição.
Tendo em mente o fato de que buscar a hegemonia é uma questão de procurar universalizar sentidos particulares na busca de conquistar e manter a dominação e de que isso é “trabalho ideológico”. Então, torna-se mais claro o potencial ideológico do texto ao assumir como inquestionável e inevitável determinada realidade, seja a factualidade da economia global, ou a necessidade da ideologia punitiva apontada pelo discurso do medo.
Sendo assim, temos que no projeto A, encontramos uma presunção existencial, desencadeada pelo pronome demonstrativo “essas”.
Essas são, enfim, as razões que nos levaram a apresentar o presente projeto de lei, com o objetivo de proteger a sociedade de criminosos que se valem das tecnologias modernas e das lacunas legais para cometerem crimes.
Ocorre que a grande razão aventada para a criminalização do delito é o fato de o delito não estar criminalizado e a conclusão do projeto pressupõe como motivo para a sua existência exatamente a mesma lacuna. Coloca-se um tipo de argumento em que deve ser crime porque é bom que seja crime, mas a razão para que seja crime não parece ser alcançada. Já no projeto C, encontramos:
Assim, diante desse contexto, o Estado tem de reagir, não pode ficar inerte.
Aqui temos a máxima da ideologia punitiva atrelada ao discurso do medo. Se tememos, temos que agir. Se tememos, temos que reagir. Presume-se aqui que é uma qualidade positiva a ser atribuída ao Estado a de agir e reagir e não ficar inerte. Porém, mais do que isto, presume-se que a única reação ao medo que deve ser esperada do Estado é a punição severa.
4.Conclusão
Este artigo buscou utilizar a metodologia da análise crítica do discurso (Fairclough, 2003; Ramalho e Resende, 2011) para realizar uma análise textual do discurso parlamentar produzido na fase pré-legislativa, por intermédio da análise de projetos legislativos que culminaram na produção da lei 12.012 de 2009, que acrescentou no Código Penal Brasileiro o art.º. 394-A.
A análise deste estudo de caso permitiu através da presença das categorias da avaliação e da presunção apontar para uma forte presença do discurso do medo e da ideologia punitiva nos projetos e indica a adequação do prosseguimento das análises para fortalecer a hipótese.
Bibliografia
COHEN, Stanley. (2002) Folk Devils and Moral Panics. Third edition. London and new York: Routledge
FAIRCLOUGH, Norman. (2003) Analysing Discourse. Textual analysis for social research. London and New York. Routledge.
GARLAND, David. (2008) A Cultura do Controle. Crime e ordem social na sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Revan.
GLASSNER, Barry (2003). Cultura do Medo. São Paulo: Francis, 2003.
RAMALHO, Viviane. RESENDE, Viviane de Melo. (2006) Análise de Discurso Crítica. São Paulo. Editora Contexto.
RAMALHO, Viviane. RESENDE, Viviane de Melo. (2011) Análise de Discurso (para a) Crítica: o texto como material de pesquisa. Campinas. Pontes editores.
SANTOS, Boaventura de Sousa.(2001) A Crítica da razão indolente. Contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez.
SOLOVOVA, Olga. (2004) A New Stereotype in the Making: “Imigrantes de Leste” in the press. in BARKER, Anthony David. (ed.) O Poder e a persistência dos estereótipos. Aveiro: Universidade de Aveiro, p. 205-216.
WACQUANT, Loic (2001). As prisões da miséria. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor.