203 - Criziany Machado Felix
Mediação Comunitária e Mediação Penal: Uma Análise das Práticas Restaurativas Implementadas em Jaboatão dos Guararapes/Pernambuco/Brasil
Criziany Machado Felix[1]
Criziany@ces.uc.pt
Doutoranda em Sociologia pela Universidade de Coimbra/PT no Programa “Direito Justiça e Cidadania no Século XXI” (Bolseira da Fundação para a Ciência e Tecnologia - SFRH/BD/45682/2008).
RESUMO ALARGADO
E há muitas iniciativas meritórias que infelizmente são pouco conhecidas, não só no estrangeiro, como também no próprio país.
No novo marco institucional brasileiro salientam-se a experiência de justiça itinerante, da justiça comunitária, dos meios alternativos de resolução de litígios, da mediação, da conciliação judicial e extrajudicial, da justiça restaurativa e, sobretudo, dos juizados especiais.
Boaventura de Sousa Santos(2007: 58)
O fragmento supra alude às complexas inovações que estão emergindo no seio da Justiça brasileira especialmente no que tange ao acesso ao Direito e à Justiça. Nele Boaventura de Sousa Santos chama-nos a atenção para experiências que não devem ser desperdiçadas. Com o escopo de conhecer algumas dessas iniciativas, analisando como foram estruturadas e conduzidas, selecionei como objeto de estudo (i) a Mediação Comunitária e (ii) a Mediação Penal existentes em Jaboatão dos Guararapes, Região Metropolitana de Recife, Pernambuco, Brasil. São duas experiências distintas, embora pautadas no mesmo paradigma restaurativo e idealizadas e implementadas pelo mesmo coordenador.
Na pesquisa de campo, realizada no mês de outubro de 2010, as metodologias utilizadas foram: (i) nove entrevistas semi-estruturadas; (ii) observação participante no cotidiano de práticas restaurativas, dentre as quais a intervenção em uma mesa redonda com os gestores dos projetos, os mediadores-comunitários e os professores-mediadores e o acompanhamento de um encontro restaurativo, (iii) conversas informais com as partes envolvidas em conflitos e (iv) análise documental.
A opção pela abordagem pautada no acesso ao Direito e à Justiça deve-se ao fato do idealizador e responsável pela implementação dos programas estudados haver destacado que seu objetivo é «contribuir para a mudança paradigmática na condução da problemática do acesso à Justiça» (Coordenador, 2010).
Considero que, numa perspectiva crítica, a expressão acesso à Justiça deverá comportar uma interpretação ampliada, englobando outros mecanismos de pacificação social, além do processo, tais como as formas de resolução alternativas de conflitos, dentre as quais encontram-se as práticas restaurativas, que buscam promover um paradigma de justiça consensual e menos adversarial.
Assim, discorro brevemente sobre a Justiça Restaurativa e sobre práticas restaurativas antes de descrever a mediação comunitária e a mediação penal.
A Justiça Restaurativa transforma o paradigma da intervenção penal, uma vez que não está apenas preocupada com a determinação de uma resposta adequada ao comportamento criminal, mas também com a reparação, seja ela material ou simbólica, dos danos causados pelo crime. Encoraja vítima e ofensor a resolverem o conflito por intermédio da discussão e da negociação, reservando para os agentes públicos o papel de facilitadores, dotados de um só instrumento de intervenção: a linguagem, o que os coloca no mesmo nível de poder das partes (uma vez que aqui o poder limita-se à comunicação). Mais do que reparação material, pode reparar as relações e a confiança afetadas pelo crime (Vasconcelos, 2008: 127).
As práticas restaurativas foram oficialmente implementadas pela primeira vez no Brasil em 2005, com o projeto denominado «Promovendo Práticas Restaurativas no Sistema de Justiça Brasileiro» construido com o apoio do Ministério da Justiça através da Secretaria da Reforma do Judiciário e do PNUD – Programa para o desenvolvimento das Nações Unidas, onde foram criados três projetos pilotos: nos Juizados Especiais Criminais do Núcleo Bandeirantes/DF; na Execução de Medidas Socio-Educativas, na Terceira Vara da Infância e Juventude de Porto Alegre/RS e na Vara da Infância e Juventude de São Caetano do Sul/SP.
Paralelamente, foram surgindo ao longo do país outras iniciativas. Sem haver legislação específica sobre o tema, o paradigma restaurativo constrói-se nos espaços normativos permitidos, seja nos Juizados Especiais Criminais, seja nas Varas da Infância e Juventude.
Diante da proliferação do movimento restaurativo em contextos diversos não é possível apresentar um conceito fechado de Justiça Restaurativa. Pode-se tão somente indicar suas diretrizes e elencar seus princípios basilares, deixando sua conceituação em aberto, em permanente (re)construção. Essa imprecisão conceitual é interessante para o próprio movimento na medida em que não o engessa, permitindo que o mesmo molde-se consoante a necessidade da comunidade na qual incidirá.
A primeira experiência que analiso tange ao programa de Mediação Comunitária no Núcleo da Muribeca, único que mantem-se atuante dentre os vinte e oito núcleos que integravam um programa mais abrangente denominado “Núcleos de Mediação Comunitária”, criado em 2005.
O Núcleo da Muribeca conta com seis mediadores-comunitários que trabalham voluntariamente, realizando mediações através de procedimentos totalmente desjudicializados. Seu intuito é gerir a situação conflitual numa perspectiva, não apenas de resolução do conflito, mas também de evitar que este torne-se um litígio de natureza penal, possuindo, portanto caráter preventivo.
Essa atuação propicia uma importante fonte de acesso ao direito e meio de resolução alternativa de litígios eficaz em muitas das situações conflituosas. Ademais há de se destacar o potencial emancipatório que se revelou presente na prática comunitária, na medida em que a comunidade articulou-se de forma não inicialmente prevista, sendo o único núcleo que permaneceu atuante.
A segunda experiência que discorro é a da Mediação Penal realizada no Juizado Especial Criminal de Jaboatão dos Guararapes, sediado em uma Faculdade de Direito, onde dois professores-mediadores atuam com o auxílio de uma professora-psicóloga. Aos alunos da faculdade é possibilitado o acompanhamento das atividades realizadas pelo Núcleo de Mediação, quando não houver contrariedade das partes.
Para uma adequada compreensão da Justiça Restaurativa no contexto jurídico-penal brasileiro farei uma breve abordagem sobre a Justiça Dialogal e sua introdução em nosso ordenamento, que se dá no âmbito da redemocratização, com a previsão constitucional da necessidade de criação de Juizados Especiais Criminais para crimes de menor potencial ofensivo e contravenções penais.
A legislação infraconstitucional, atendendo ao preceito constitucional, instituiu os Juizados Especiais Criminais Estaduais (Lei 9099/1995) e os Juizados Especiais Criminais Federais (Lei 10259/2001), ambos pautados nos princípios da oralidade, informalidade, economia processual, celeridade e simplicidade, buscando sempre que possível a reparação dos danos sofridos pela vítima e a aplicação de pena não privativa de liberdade, possibilitado o advento da Justiça Restaurativa.
Nesta experiência, considero que o acesso ao direito e à justiça, bem como a emancipação deu-se de uma forma mais branda, porquanto as mazelas da Justiça Penal refletiam-se nos casos encaminhados para a Justiça Restaurativa, na medida que a «porta de entrada» para os procedimentos eram os Juizados Especiais Criminais, que embora caracterizados por um alto teor de informalidade estão dentro do sistema tradicional de Justiça.
Por derradeiro e com o intuito de concluir discorro sobre a complexa teia de relações entre a comunidade e/ou a universidade nos mecanismos de controle social e o sistema de Justiça Penal, bem como o reflexo dessa interação no acesso ao Direito e à Justiça. O campo foi inquietante propiciando-nos (re)indagações sobre o tema, portanto o trabalho versa prioritariamente sobre nosso desassossego com o terreno investigado.
REFERÊNCIAS
Santos, B. de S. (2007). Para uma Revolução Democrática da Justiça. Coleção questões da nossa época (Vol. 134). São Paulo: Cortez Editora.
Vasconcelos, C. E. (2008). Mediação de Conflitos e Práticas Restaurativas. São Paulo: Método.
[1] Sou imensamente grata à Júlia Rocha e ao Carlos Eduardo Vasconcelos pela amabilidade com que me receberam em Jaboatão dos Guararapes, bem como a forma prestativa e profissional com que compartilharam suas experiências de práticas restaurativas comigo. Este ensaio consiste numa versão revista e atualizada de um paper apresentado ao Professor Doutor António Casimiro Ferreira em um dos seminários do curso de “Doutoramento em Direito Justiça e Cidadania no Século XXI”- 1º Edição.