109 - Rogério Azevedo Gomes e Vicenzo Riso
Habitação unifamiliar, a incubadora do fazer moderno
Rogério Azevedo Gomes
Vicenzo Riso
Escola de Arquitectura da Universidade do Minho
RESUMO:
Este artigo integra matéria do projeto de investigação em curso no âmbito do trabalho de tese doutoral com o tema “O moderno português na sua expressão tectónica. Anatomia construtiva aplicada à habitação unifamiliar em Portugal 1948 – 1961” em desenvolvimento na Escola de Arquitetura da Universidade do Minho orientado por Vincezo Riso.
Ao considerar as novas técnicas de construção e os novos materiais (betão, ferro e vidro), contributos emergentes e essenciais para a arquitetura moderna, faz-se necessá-rio reconstruir o ponto de situação da indústria Portuguesa referenciada à década de 1950 como um agente incontornável para a arquitetura, uma vez que esta apela a novos materiais e a novos processos construtivos. O desenvolvimento industrial, tal como nou-tras áreas, chegou a Portugal de forma menos intensa e mais tarde por comparação a outros países da Europa, situando-nos também aí na periferia tecnológica. Este panora-ma enquadra a disponibilidade de materiais e as possibilidades construtivas ou tecnoló-gicas em desenvolvimento. No entanto, e para além de possíveis constrangimentos ou independentemente da real possibilidade da reprodutibilidade mecânica aplicada à edifi-cação, permanece a afirmação e convicção por parte dos arquitetos portugueses de pro-duzir e reivindicar uma arquitetura que adopte os princípios da Arquitectura do Movi-mento Moderno e com ela a utilização de novos materiais e estruturas.
Na arquitetura moderna portuguesa a habitação foi campo de debate. Porém, e mais especificamente, foi a habitação unifamiliar o objeto de experimentação e aplicação de uma estética moderna, novas formas de habitar, novos materiais, novas tecnologias construtivas e das preocupações sobre a estandartização dos elementos construtivos. Considerou-se, assim, o estudo da habitação unifamiliar como objeto de experimentação na década de 1950. Por conseguinte, faz-se necessário referenciar várias obras de arqui-tetos do moderno português, como testemunho de experimentação, e, assim, se construir um argumento lógico baseado nos diferentes autores/obras consultadas, de modo a obter-se uma visão dos elementos técnico-construtivos inovadores desenvolvidos à épo-ca. Deste modo, verifica-se a casa unifamiliar transformada num manifesto claro da modernidade focada na sua premissa tectónica.
Resumo Alargado:
A arquitetura moderna é, fundamentalmente, algo novo e diferente pelo facto de ser condicionada quer por novas exigências sociais quer pelos novos materiais de cons-trução: betão, ferro e vidro (Dorfles, 2000). Efetivamente, os novos materiais são de reconhecida importância para o moderno, tal como Cristino da Silva reconhece, mais tarde afirmando que a arquitetura moderna “apareceu apenas por isto por causa dos materiais (…) ao aparecer o betão armado surgiu a possibilidade de se lançarem gran-des vãos, sem ir para o arco”. E foi por isso que “as primeiras manifestações da arqui-tectura de betão armado foram exactamente as estruturas” (Rodolfo, 2002). Esta afir-mação verifica-se desde os anos de 1920, aquando o surgimento do primeiro ciclo do betão armado que coincide com o ciclo modernista apoiado já nas possibilidades estru-turais e plásticas do betão armado.
Desta forma, para considerar o caráter experimental e/ou prática construtiva da arqui-tetura moderna portuguesa, faz-se necessário afirmar os limites e o contexto em que essa prática se desenvolve, sendo necessário considerar que a importância do “contexto” de uma época se demonstra por referências a questões sócioculturais e à tecnologia avançada da mesma época.
Durante a década de 1950 despontam mudanças estruturais da sociedade portuguesa, destacando-se a industrialização, o abandono do meio rural, a emigração, a abertura à Europa e, já no início de 1961, a guerra colonial. Em relação à industrialização do país, esta década é caracterizada pelo arranque da electrificação nacional e de uma moderna indústria que se tinha iniciado nos anos quarenta. A política económica tem como enquadramento os “Planos de Fomento”, os quais criam condições para o crescimento industrial assente em obras de infra-estrutura produtiva, transportes e comunicações (Rollo, 1994). Essas obras, correspondem ao desenvolvimento de barragens, estradas, portos, viadutos, aeroportos e silos, confirmam o denominado “segundo ciclo do betão” (Tostões, 2002).
Porém, os arquitetos da época apontam insuficiências à indústria portuguesa numa relação necessária para fazer arquitetura moderna. Esta posição é tomada nas comunica-ções do Primeiro Congresso Nacional de Arquitectura de 1948 onde Arménio Losa, em “Indústria, Construção e Arquitectura” e as “ Novas Fábricas,” defende a industrializa-ção para se conseguir a estandardização aliada da quantidade e baixos custos para a construção de habitações, as quais necessitam que se adote a normalização do maior número de elementos tipo. Para além de apelar à indústria para a execução e promoção de novos materiais, Arménio Losa denota a inadequação técnica da construção ao afir-mar que o “País continua mal preparado em tudo o que diz respeito à construção” con-siderando que “é insuficiente o apetrechamento dos construtores; raros são aqueles que utilizam as máquinas ou que utilizam as ferramentas adequadas”. Estes pontos são con-sensuais noutros arquitetos, tais como Lobão Vital, em “A casa, o homem e a arquitectu-ra”, que afirma que a solução para a carente falta de alojamento no país de então está também “dependente do desenvolvimento das indústrias de pré-fabricação, dos métodos de montagem e transporte”, salientando a necessidade de crescimento da “indústria ligada directa ou indirectamente à construção civil”.
No congresso, para além da necessidade de novos materiais, os arquitetos tam-bém defendem os princípios da Arquitectura do Movimento Moderno. Apesar destas questões, veêm-se formalizadas arrojadas estruturas que os engenheiros sabem conce-
ber, principalmente nas obras do designado “segundo ciclo do betão armado”, sobretu-do a partir da realização do Primeiro Congresso Nacional de Arquitectura de 1948 (Tos-tões, 2004).
Assim, consideramos que a arquitetura portuguesa, dentro dos seus limites, utili-za a reflexão construtiva como motor de pesquisa para fazer uma arquitetura moderna à luz dos conceitos de uma agenda internacional. Para se obter uma visão mais pormeno-rizada desta premissa, e assim fundamentar esta afirmação, fez-se um percurso de leitu-ra por diferentes autores que referenciavam a habitação unifamiliar da década de 1950. Deste modo, conseguimos apontar algumas referências, ainda que pontuais, a elementos construtivos de cariz experimental. Enunciamos aqui três exemplos que têm a pretensão de fazerem um apontamento dos possíveis elementos de pesquisa explorados pelos arquitetos modernos portugueses, aquando do desenvolvimento de projetos de habitação unifamiliar. No entanto, consideramos estes elementos pequenos apontamentos de um trabalho mais amplo que propomos fazer e aprofundar na tese de doutoramento em cur-so.
Passamos assim a enunciar os três exemplos:
1 - O arquiteto Viana de Lima projeta, em 1949, a Casa Aristides Ribeiro, no Porto, na qual formaliza a sintaxe Corbusiana ao sugerir uma casa assente em pilotis, uma estrutura métrica de pilares de betão armado, uma fachada livre com uma diversi-dade compositiva conformando um modelo de estética moderna. “A materialização arquitectónica encontra-se em consonância com os valores espaciais modernos como nos testemunham o uso de novos elementos arquitectónicos, sobretudo os painéis de correr a permitir ligar e separar com franqueza os vários espaços” dinamizando um jogo de espaços no projeto de “planta livre” (Tostões, 1997).
2 - A casa do Ameal no Porto, de 1950, do arquiteto Celestino de Castro é um exemplo da aplicação das técnicas de construção inovadoras, tais como, o “ sistema de aquecimento através de pavimentos radiantes”, a cobertura ajardinada com “o relvado original e pelo irrepreensível funcionamento do mesmo, quer em termos de perfeita estanquicidade, quer térmicos e acústicos” e as paredes interiores feitas em “painéis sandwich” substituindo as paredes tradicionais de alvenaria, apresentando também con-sideráveis ganhos em termos de conforto, quer térmicos, quer acústico” (Pinto, 2007; Tostões, 1997).
3 - Em 1953 é proposto a Carlos Lino Gaspar o arquiteto João Andresen para projetar a sua habitação unifamiliar no Alto do Lagoal, em Caxias. Andresen propõe ao cliente a leitura de alguns livros que norteavam, na época, o discurso internacional da arquitetura moderna. Assim se inicia, com esta atitude invulgar e esclarecedora perante o cliente, o projeto da casa entre desenhos e livros. Uma das referências que o projeto recebe é de Marcel Breuer, numa organização espacial conhecido como “casa binu-clear, em que o átrio de entrada ocupa uma posição fulcral na composição arquitectó-nica e na organização doméstica”. Outra das referências é Mies van der Rohe assumida pelos “sistemas modernos de paredes de vidro e a modulação geométrica”. Para além disso dá-se a “utilização de uma cortina têxtil e de uma lareira retráctil (Inver-no/Verão) como elementos de separação entre zona de estar e de jantar”. Esta habita-ção tem uma estrutura que conforma um traçado regular de pilares de 4,5 x 4,5 m, tal modulação permite desenvolver o conceito de planta livre e fachada livre (Ramos, 2009).
Desta forma, assistimos à capacidade e vontade dos arquitetos portugueses adap-tarem os ideais de uma estética modernista formulados na Europa à realidade do país. Adaptação que se fez necessária, pois ajustada ao descompasso entre os princípios de vanguarda moderna e as condições da produção da arquitetura moderna. Uma vez que o atraso industrial do país é também evidente, os edifícios são construídos de uma manei-ra quase artesanal simulando tecnologia de que não se dispõe. Perante este ambiente, pode estabelecer-se um dominador comum, que é fundado entre a construção e a expressão moderna dos edifícios, considerando que a arquitetura moderna surge deste cruzamento entre desenvolvimento técnico e conceitos artísticos. Por conseguinte, será importante saber dar ênfase à expressão tectónica definida por Frampton (1995) e à intencionalidade dos procedimentos e detalhes construtivos, colocando-se aqui o pro-blema e assim a hipótese de uma identidade Portuguesa. Deste modo, verifica-se a casa unifamiliar transformada num manifesto claro da modernidade focada na sua premissa tectónica.
BIBLIOGRAFIA:
DORFLES, G. (2000) A Arquitectura Moderna Edições 70 Colecção Arte & Comuni-cação
FRAMPTON, K. (1995). Studies in Tectonic Culture The Poetics of Construction in Nineteenth and Twentieth Century Architecture. The MIT Press.
LOSA, A. (1948) “Indústria, Construção e Arquitectura” in I Congresso Nacional de Arquitectura, promovido pelo Sindicato Nacional de Arquitectos com o Patrocínio do Governo, Maio/Junho 1948.
LOSA, A. (1948) “ Novas Fábricas” in I Congresso Nacional de Arquitectura, promo-vido pelo Sindicato Nacional de Arquitectos com o Patrocínio do Governo, Maio/Junho 1948.
PINTO, M. C. (2007). O moderno esquecido - A Casa do Ameal do arquitecto Celestino de Castro [1948]. A Obra nasce: revista de Arquitectura da Universidade Fernando Pessoa, nº5, 55-58.
RAMOS, R. J. G. e S. SILVA (2010). João Andresen a casa do pós-guerra e o debate arquitectónico nos anos de 1950, Colóquio Internacional Januário Godinho: Leituras do Movi-mento Moderno. Porto: Centro de Estudos Arnaldo Araújo, 2009. Porto: Faculdade de Arqui-tectura da Universidade do Porto.
RODOLFO, J. D. S. (2002). Luís Cristino da Silva e a arquitectura moderna em Portu-gal. Lisboa: Publicações Dom Quixote.
ROLLO, M. F. (1994) “A Industrialização e os seus impasses”, in MATTOSO, José (Dir.), História de Portugal, Sétimo Volume, Lisboa, Círculo de Leitores 450-451
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