108 - Pedro Quintela
Dos saberes-fazer ao design thinking: transformações recentes no campo do design
Pedro Quintela
Sociologo - FEUC
Resumo Alargado
Nas últimas décadas assistiu-se, um pouco por todo o mundo, a um fulgurante crescimento do design que se caracteriza, nomeadamente, por um significativo contributo para o aumento do PIB e das exportações; pelo aumento do número de profissionais; pela extensão da prática e ensino da disciplina; e ainda por uma diversificação e dilatação das sua áreas de especialidade (Bryson & Rusten, 2011; Julier, 2008; Julier & Moor, 2009). Hoje reconhece-se grande relevância ao design em termos políticos, económicos e sociais, originando um grande interesse por parte de organismos e instituições com diferentes perfis. Este processo específico está relacionado com processos mais vastos de transformação e reestruturação do capitalismo contemporâneo que, sobretudo a partir dos anos 90, tornaram o design num elemento-chave da economia pós-fordista, crescentemente culturalizada e eminentemente simbólica (Lash & Urry, 1994; Featherstone: 2007). Mais recentemente, no quadro da discussão alargada acerca da importância estratégica da economia criativa (AA.VV., 2005, 2006 e 2008; Ferreira, 2010) e das indústrias criativas (Caves, 2000), o design tem sido identificado como um dos elementos centrais do setor cultural e criativo, a par da arquitetura ou do software de jogos, por exemplo.
Historicamente, o design constitui uma área de charneira entre a arte e o sistema produtivo, onde se confrontam e compatibilizam formas de criatividade diversas (Dubuisson & Hennion, 1995; Julier & Moor, 2009), cujos resultados são, em princípio, direcionados para responder às necessidades do mercado. O processo de desenvolvimento histórico do design decorre de uma permanente tensão entre três dimensões-centrais: criação, técnica e mercado (Dubuisson & Hennion, 1995). Na sua génese, no início do século XX, o design, enquanto disciplina, opunha-se muito claramente às artes decorativas e às artes e ofícios tradicionais, inspirando-se nas vanguardas artísticas ligadas ao Movimento Moderno. A ligação à artes visuais é particularmente evidente no caso do design gráfico que foi, ao longo de todo o séculos XX, em especial durante as duas grandes guerras, abundantemente utilizado, por diferentes ideologias e em conjunturas e circunstâncias bastante diversas, quer como meio de propagação de ideias políticas, de mobilização cívica de ação pública, quer como veículo de publicidade, associado à divulgação de novos produtos que resultam de uma intensificação da atividade económica (Fragoso, 2012). O rápido e intenso desenvolvimento do design foi fortemente impulsionada pelo ímpeto industrial fordista da produção e consumo em larga escala, que adquiriu uma particular importância a partir dos anos 50 (Bony, 2006; Julier, 2004; Dormer, 1993). Ao longo das décadas seguintes assiste-se à consolidação e institucionalização da profissão de designer, com o alargamento da oferta de ensino especializado em design, nomeadamente em Inglaterra (McRobbie, 1998) e em França (Dubuisson & Hennion, 1995).
Desde meados dos anos 80, que o design – e, em particular, o design gráfico e de moda – se tornou bastante popular entre jovens urbanos, inspirando-se e apropriando-se em novos elementos ligados a alguns movimentos artísticos, na estética e ética contestatária e do-it-yourself associada a algumas expressões culturais urbanas (McRobbie, 1998). Esta tendência tem-se aprofundado, à medida que o design adquire um novo protagonismo na sociedade, fruto da massificação da sua presença e crescente relevância no quadro de economias que se tornam cada vez mais “design intensive” (Lash & Urry, 1994), difundindo amplamente uma “cultura do design” (Julier, 2008).
Um dos traços-fortes da evolução recente do design é o seu sucessivo alargamento que evidencia a sua capacidade de adaptação e resposta às novas exigências do mercado. Tal despoletou novas práticas profissionais no campo do design e o envolvimento de designers em novas e redes contextos profissionais. Por um lado, o design tem incorporado, nos planos retórico e prático, um conjunto de novas “agendas” políticas, sociais e mediáticas tais como, por exemplo, a ecologia e a sustentabilidade ambiental, ou a gestão eficiente e inovadora de territórios, empresas e serviços públicos (Julier, 2004 e 2008; Julier & Moor, 2009). O design torna-se, por outro lado, cada vez mais multi/interdisciplinar, resultado do crescente interesse de outras áreas do conhecimento por esta atividade, à medida que se massifica, invadindo o espaço público e mediático (Bony, 2006; Julier, 2008). Finalmente, assiste-se a um alargamento e transformação da noção de design, cada vez mais “desmaterializado” e “destetizado”, à medida que os processos de trabalho oriundos do universo criativo do design, entendidos enquanto método de gestão de equipas de trabalho interdisciplinares e de fomento da inovação (caso do célebre design thinking, por exemplo), evidenciando as suas potencialidades na resolução “criativa” de problemas (Kimbell, 2011; Tonkinwise, 2008). O design passa, assim, a intervir em domínios que tradicionalmente não lhe estavam reservados, nomeadamente, ao nível da estratégia, gestão e planeamento, em que se procura justamente acentuar a natureza interdisciplinar do design e dos seus próprios processos de trabalho. À medida que se dá este alargamento e complexificação dos contextos de desenvolvimento das práticas profissionais dos designers, fruto das diferentes instâncias de mediação em que estes profissionais se vêem envolvidos, são requeridas novas capacidades de argumentação, negociação e gestão de interesses e prioridades; simultaneamente, reforça-se neste processo o poder simbólico e a capacidade de influência destes profissionais (Julier e Moor, 2009).
O modo como a atividade dos designers sempre se organizou, do ponto de vista laboral, profissional e empresarial, segundo princípios de economia flexível (McRobbie, 1998; Gill, 2002 e 2007; Vinodrai, 2006), à semelhança de outras profissões artísticas (Menger, 2005), antecipando um conjunto de modificações que, desde a década de 1970, se têm vindo a implementar no mercado de trabalho (Boltanski e Chiapello, 1999; Harvey, 1992; Beck, 2000, Antunes, 2008). Historicamente, o design caracteriza-se por uma forte tradição de trabalho flexível, predominando os freelancers, designers que trabalham autonomamente para diferentes empresas/ateliers, “ao projeto”, geralmente inseridos em equipas de trabalho alargadas, frequentemente de cariz multidisciplinar (Dormer, 1993). Estudos recentes evidenciam o modo como muitos designers incorporam estes padrões típicos das novas formas de trabalho pós-fordistas, salientando igualmente as penosas consequências da condição de freelancer (McRobbie, 1998, Gill, 2002 e 2007; Gill & Pratt, 2008).
Este não é, contudo, o discurso dominante. Pelo contrário, o design tem vindo a assumir-se, no plano retórico, como uma espécie de paradigma “virtuoso” da aplicação bem sucedida da “criatividade”, típica das artes e da cultura, e da “inovação”, típica das engenharias e das ciências aplicadas, apresentando soluções, de forma eficientes e pragmáticas, ajustadas às constantes necessidades de mercado, cada vez mais vorazes e exigentes. Simultaneamente, identificam-se neste setor características que são hoje reconhecidas como centrais para o bom desempenho profissional, tais como a flexibilidade, adaptabilidade, capacidade de trabalho em equipas multidisciplinares e em rede.
Nesta comunicação, pretende-se analisar e discutir qual é o hoje o estatuto do design e de que modo os processos de transformação em curso neste campo específico evidenciam, por um lado, um conjunto mais alargado de mudanças no campo das artes, cultura e “setor criativo”, ao mesmo tempo que, por outro lado, denotam um conjunto de significativas ambivalências, tensões e resistências no seus seio. Interessa-nos, em particular, explorar o modo como o design parece constituir hoje um domínio privilegiado para sondar quer as formas que o trabalho criativo assume contemporaneamente, quer uma certa retórica ideológica, crescentemente veiculada, em torno da figura do designer enquanto profissional criativo, empreendedor e inovador.
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