104 - Inês Guedes
OS ESPAÇOS DA DESIGUALDADE NA CIDADE
Inês Correia Guedes
Centro de Estudos Sociais Universidade de Coimbra
Programa de Doutoramento em Cidades e Culturas Urbanas
Introdução
Conceber o espaço como produto e produtor da “realidade” social implica admitir que
este se apresente enquanto objecto de esclarecimento dos fenómenos sociais, como
forma estruturante das e estruturada nas práticas sociais. Isto deriva do facto de as
cidades se virem a assumir, ao longo da história, como pontos centrais e estratégicos de
desenvolvimento económico, político e social. Deriva também do facto de o número de
habitantes em áreas urbanas se vir intensificando, atingindo altos níveis de densidade
populacional.
O que é a cidade nos dias de hoje? Os espaços urbanos são passíveis de homogeneidade,
como parecem pretender as concepções e representações (hegemónicas?) actuais de
cidade? Ou antes serão eminentemente conflituais, como parecem demonstrar os
estudos urbanos contemporâneos? De que modo se inscrevem no espaço os diferentes
segmentos sociais urbanos? Estas são algumas das questões que têm surgido da análise
bibliográfica que a autora tem encetado acerca do tema da produção do espaço urbano.
Deste modo, o objectivo do presente trabalho é retratar em traços gerais o debate que
tem ocorrido nas últimas décadas quanto à fragmentação social dos territórios, através
de revisão bibliográfica.
Este ensaio estrutura-se, grosso modo, em quatro alíneas. A primeira pretende
contextualizar a emergência de um novo paradigma sociológico1, concretizando-a na
teoria de produção do espaço urbano de Lefebvre. A segunda apresenta as práticas de
planificação, ordenação e controle da cidade contemporâneas como prática de
“reactualização” das divisões sociais. A terceira discute alguns pontos do debate actual
acerca da relação entre desigualdade social e produção do espaço urbano. Por último,
apontam-se algumas possibilidades de práticas que vão em direcção contrária às
planeadas para o espaço gentrificado, por parte de actores excluídos desses lugares.
Desde já se adianta porém que o presente trabalho não é uma descrição exaustiva da
temática. Pretende-se apenas apontar e problematizar alguns conceitos de autores-chave
no debate da desigualdade socioespacial urbana.
Emergência de um novo paradigma sociológico – breve contextualização
1 Não se discutirá, contudo, se este novo paradigma é pós-moderno ou não, já que esta discussão, se
bem que actual, não se enquadra nos objectivos deste ensaio.
“Por la fuerza de los eventos, uno puede dar-se cuenta forzosamente de la
lógica de esta paradoja, y usarla así, como herramienta metodológica y
epistemológica que nos permita comprender la pluralidad, la complejidad, la
heterogenización de la vida social” (MAFFESOLI, 2004).
Se aceitarmos que as formas de compreender o mundo são processos sociais
localizáveis no tempo e espaço é inevitável procurar nas dinâmicas económicas, sociais,
políticas e institucionais pontos de partida para a compreensão da alteração de
paradigma e de conceitos sociológicos. O objectivo desta alínea é traçar levemente a
alteração de paradigma sociológico, retratando-o na concepção lefebvriana do espaço
urbano.
A falência do projecto moderno, movido em parte por mudanças económicas
(desenvolvimento do sistema capitalista neoliberal), pela reorganização à escala global
do sistema produtivo, pelos avanços tecnológicos e dos transportes, evidencia que “…
leituras binárias da realidade [se] tornaram… inaptas e sem poder explicativo, num
quadro de excesso de volatilidade dos significados das coisas e dos lugares…”
(FORTUNA, 2002).
Nesse contexto a análise da cidade – anteriormente baseada em pares de postos como
rural/urbano, ou na ecologia das formas urbanas – passa a ser feita através da análise e
descrição da experiência de uso do espaço. O espaço é abordado articulando múltiplos
pontos de vista vinculadas a condições históricas, económicas, políticas, sociais e
físicas. Desta forma, Silvano (2010) afirma que a sociedade toma forma no espaço e que
é por ele representada, num processo de interacção dialéctica permanente entre práticas
sociais, representações do espaço e espaços de representação. A relação entre estas três
dimensões não é unívoca nem estável, mas antes objecto de contingências simbólicas e
temporais. De acordo com Henri Lefebvre (1974 apud, SOUZA, 2009) a produção
social do espaço urbano concretiza-se em três momentos: a concepção, a percepção e a
vivência.
Campo de exercício e legitimação do podero espaço urbano é eminentemente conflitual.
Ao conter e estar contido nas relações sociais, permite a co-existência de uma
pluralidade de formas de conceber, representar e viver que podem a qualquer momento
enrar em tensão.
Na próxima alínea deste ensaio focam-se as concepções e formas de produção do
espaço dominantes nos dias de hoje, mais especificamente na gentrificação e seus
efeitos no tecido e práticas sociais.
Espaço planificado – práticas e estratégias de intervenção urbana contemporâneas
Enquanto ocasião e instrumento de controle e planificação da vida social, o espaço
urbano é produzido e reproduzido nos conflitos físicos e simbólicos que ocorrem entre
grupos com práticas e formas de uso do espaço diversas.
Dos anos 60 à actualidade vêm-se forjando, de acordo com a tese de Smith (2006), uma
lógica de alteração da paisagem física e simbólica das cidades que se estrutura politica e
economicamente à escala global, assumindo os contornos de um conflito classista. Esta
nova corrente de estruturação do espaço urbano converte-se em pouco mais que uma
estratégia de marketing numa época em que património e memória assumem o papel de
recurso simbólico de inserção do local no mercado global, por meio de alterações dos
seus significados e funções (FORTUNA, 1997). Este processo, gentrificação ou
enobrecimento2, é caracterizado por uma acentuação das características estéticofuncionais
do espaço, pelo forte apelo a conteúdos visuais e ênfase na
monumentalidade, assim como por uma reinterpretação dos usos do espaço orientados
por uma lógica de mercantilização do património e da cultura e a higienização da vida
social urbana (LEITE, 2010).
Este novo ethos produz e reproduz o espaço como um conjunto de produtos diversos a
serem consumidos diferencialmente pelos diversos grupos sociais. Deste modo, a
sociabilidade contemporânea seria determinada pela possibilidade de acesso a bens e
informações (CANCLINI, 1997).
Partindo do pressuposto de que o espaço físico e a vida social se imbricam, que
consequência tem esta promoção de espaço-mercadoria para a sociabilidade urbana?
Como se inscrevem os conflitos sociais no “novo” espaço urbano?
O espaço urbano, de qualquer modo, não é intervindo de forma uniforme. A
gentrificação vai definindo novas centralidades que promovem “paisagens de poder”
(ZUKIN, 2000). Nomeadamente pelo forte apelo à utilização destes espaços pelas
classes médias altas, à crescente funcionalização, privatização e elitização dos espaços.
A população destituída de poder económico (mas também simbólico, político e
eventualmente cultural) seria expulsa dos espaços urbanos de lazer, de trabalho, de
habitação e de consumo.
Se o acesso aos bens, serviços e informações é assimétrico, se a possibilidade de
consumo (do espaço-mercadoria) é desigual, se o espaço é apropriado por um número
2 Para uma discussão acerca da polissemia do conceito consultar Rubino (2009).
reduzido de pessoas, se é promovido o usufruto por grupos sociais dominantes em
detrimento das minorias e grupos socialmente vulneráveis, a gentrificação não promove,
como por vezes se quer fazer crer, a inserção social e a democratização do uso do
espaço. Como Leite (2010) afirma eloquentemente, “… o processo de gentrificação não
busca promover formas de inserção social, nem de democratização dos usos dos espaços
urbanos.” (idem: 253). É com esta afirmação que entramos no debate das desigualdades
socioespaciais em contexto urbano, após esta contextualização em traços gerais do
espaço enquanto objecto da disciplina Sociologia.
Inscrição das desigualdades sociais no espaço urbano
“… power and the lack of power inscribe themselves in the urban
landscape.” (SASSEN, 1996: 24).
Como já foi anteriormente afirmado, com esta alínea pretende-se discutir alguns
conceitos relevantes para o debate da estruturação das desigualdades sociais no espaço
urbano. Num contexto de proliferação da lógica neo-liberal e de uma acentuada divisão
internacional do trabalho, as formas espaciais, práticas e modos de vida urbana
espelham a crescente desigualdade social, como iremos argumentar nesta alínea. Desta
forma “riqueza” e “pobreza” inscrevem-se de forma diferenciada no espaço urbano, de
acordo com contingências espaciais, políticas e históricas de cada cidade. De residual,
cíclica e geograficamente difusa a pobreza tende a fixar-se em alguns espaços urbanos
de forma relativamente permanente, sendo representada (pela sociedade civil, media,
políticos e alguns académicos) como forma de retrocesso do desenvolvimento
económico e social (WACQUANT, 2005, 2011).
As populações destituídas de poder (económico, simbólico, político) são expulsas dos
espaços urbanos de lazer, de trabalho, de habitação e de consumo, como já foi discutido.
O efeito desta divisão é a fragmentação socioespacial segregacionista da cidade (LEITE,
2004), que ocorre pela sobreposição dos lugares e cria actores, práticas e espaços
marginais, não convencionais (ARANTES, 1999).
Este fenómeno de segregação dos pobres não é recente, mas o debate actual vem-se
construindo em torno dos conceitos de suburbanização, de segregação (étnica e
classista), de underclass, de polarização social e de dualidade urbana. Um dos pontos
em discussão, para além da utilidade analítica e aplicabilidade empírica destes
conceitos, é até que ponto esta segregação assume, na actualidade, uma nova
configuração (HAMNETT, 2001).
Perante a fraqueza analítica de modelos quantitativos e do modelo de Chicago a
investigação em torno da estruturação de padrões residenciais urbanos focaliza-se na
análise dos processos económicos e sociais subjacentes, combinados com estruturas
étnicas e de classe (idem). Inserido nesta corrente, Friedman (1986) sugere que, à
semelhança do processo de desterritorialização dos processos produtivos à escala
global, estaria a ocorrer uma polarização social à escala urbana. Sassen (1996), por sua
vez, afirma que a reorganização global das relações produtivas e de trabalho tem
implicações nas configurações espaciais urbanas. A sua tese argumenta a existência de
duas novas formas espaciais nas metrópoles do mundo ocidental, tomando como ponto
de análise Nova Iorque e Los Angeles: uma, a cidade global, representativa dos avanços
tecnológicos, da cultura cosmopolita, do crescimento do sector de serviços – o espaço
transnacional das finanças – e outra construída socialmente à volta do tema do
retrocesso económico e cultural – o espaço da classe trabalhadora de salários baixos e
das comunidades imigrantes.
Essa ideia de cidade dual e de polarização urbana de grupos sociais, tidas como formas
novas e modernas de segregação social encontrou algumas vozes críticas. A titulo de
exemplo, Le Galés (2003), que problematiza a generalização da ideia de paisagem de
poder dual às cidades europeias. Diz que o modelo de Sassen tem pouca capacidade
explicativa fora do contexto americano, afirmando que o processo de metropolização do
espaço amplia a possibilidade das cidades, pelo menos as europeias, se constituírem
como campo privilegiado de actuação política e económica. Esta possibilidade decorre
do facto das interacções entre a lógica neoliberal e as formas de regulação estatal do
mercado poderem interagir de múltiplas formas. Nesse sentido,
“The balance of power has unquestionably changed in favour of market
forces… but that is not the end of the history. Conflits at different scales
about regulating these forms of capitalism may yet modify market logics – or
reinforce them. Such forces must come to grips with political, social, and
cultural logics that do not inevitably allow themselves to be governed by
market forces.” (LE GALÉS, 2003: 171).
Daqui decorre que a segregação socioespacial, nomeadamente a residencial e produtiva,
pode assumir outras configurações que não a polarizada ou a dual. A análise da divisão
do espaço urbano deve portanto ser relativizada face às especificidades (urbanísticas,
históricas, económicas) de cada cidade.
Hamnett (2001) analisa a utilização do conceito de polarização por diversos autores. Da
sua análise aponta que, para além da ambiguidade e polissémica dos usos, do fraco
esforço para clarificar/operacionalizar o conceito, este veicula ideologias, simbolismos e
representações. Sugere ainda que o conceito seja substituído por outro com maior força
analítica, o conceito de segregação, quando utilizado com o intuito de significar
desigualdade e divisão social. Assim sendo, a ideia de cidade dual deve ser encarada
como hipótese, permitindo um diálogo entre validade teórica e empírica (idem).
Seguindo a sugestão do autor, do maior poder explicativo do conceito de segregação
socioespacial, a revisão bibliográfica leva-nos aos trabalhos de Wacquant e a sua tese de
espaços de estigmatização e marginalidade avançada, fenómenos que decorrem do
“… recente regime de clausura excludente e exílio socioespacial que surgiu
na cidade pós-fordista como resultado de mudanças instáveis nos setores
mais avançados das economias capitalistas e da desarticulação do Estado do
Bem-Estar social, ou seja, a sua relação com os segmentos da classe
trabalhadora e das categorias etnorraciais dominantes que habitam as regiões
mais inferiores do espaço físico e social.” (WACQUANT, 2005: 8)
Partindo da evidência de que diversos países atribuem um termo específico para se
referirem ao espaço ocupado por grupos sociais hierarquicamente inferiores, tido como
zona de exílio e congregação de problemas sociais, Wacquant discute a triangulação
entre classe, etnia e estado na formação do estigma territorial. O estigma associado ao
espaço é estendido aos seus residentes que passam a ser social e simbolicamente
desvalorizados. Este processo cognitivo de estigmatização e desmoralização dos
residentes – interno e externo (WACQUANT, 2011) – reflecte-se nas estratégias e
estruturas sociais do bairro e da sociedade civil. Os residentes do bairro assumem
posturas de diferenciação e distanciamento social entre si na tentativa de
simbolicamente se autopreservarem (idem). Contudo, estas práticas acabam por ter
impacto negativo na solidariedade local assim como nas acções da sociedade civil e do
Estado. Wacquant foca a análise na acção deste último, nomeadamente nas práticas
repressivas (do sistema penal em estado de hipertrofia) e nas práticas assistenciais (dos
sistemas de welfare e workfare em estado de atrofia). A tese que atravessa os seus
trabalhos é que a actuação do Estado provoca a aglomeração e aglutinação estável e
permanente da pobreza e problemas sociais, facilitando e estimulando práticas
marginais.
Contudo, há pelo menos quatro questões que emergem da análise dos trabalhos deste
autor: por um lado é de se problematizar até que ponto este regime de exílio é
efectivamente recente. Por outro, vale a pena questionar se o papel do Estado na
segregação e exclusão dos pobres e das minorias étnicas não estará a ser
hipervalorizado. Nesse sentido, por exemplo, Marques (2011), afirma que um sistema
penal hipertrófico pode coexistir com uma expansão do Estado de Providência (welfare)
e serviços de assistência aos pobres. Os dados que tem recolhido nas cidades do Rio de
Janeiro e São Paulo, no Brasil, apontam para essa possibilidade. A quarta questão
prende-se com o estatuto permanente de exílio e clausura das classes indesejáveis. O
próprio Wacquant (2011) considera que esta dimensão poderá ter sido hipervalorizada3.
É de problematizar ainda que outras possibilidades de acção se apresentam nestas
populações, já que na pesquisa de Wacquant apenas se analisam e teorizam as
estratégias de submissão à ordem dominante.
É para as possibilidades de acção dos actores sociais que nos viramos na próxima
alínea, considerando que gentrificação e estigmatização são duas faces da mesma
moeda (WACQUANT, 2011).
O retorno dos indesejáveis à cidade planeada
O ponto de discussão foca agora a dimensão agencial, ou seja, as estratégias dos actores
perante as práticas de gentrificação e a estigmatização social que ela provoca. Ordem e
“desordem”, poder e “despoder” não são pares de opostos. As fronteiras entre uns e
outros são porosas e permitem que acção e estrutura se articulem, sendo que os actores
sociais não são fantoches comandados pelas estruturas sociais (o capital, o Estado…).
Existe a possibilidade de não submissão, ou até mesmo de subversão, da ordem social
estabelecida. Essa possibilidade dá-se, na óptica de De Certeau (1994), pelas estratégias
tácticas, práticas que ocorrem no espaço de domínio do Outro.
Pois é em torno destas estratégias tácticas que gira a tese de Rogério Proença Leite.
Analisando os efeitos de fragmentação socioespacial da cidade decorrentes das
estratégias e práticas de reabilitação urbana enobrecedora (ou gentrificação, se
3 A este respeito afirma que essa hipervalorização pode ser decorrente de uma limitação metodológica:
as entrevistas realizadas na sua pesquisa de campo privilegiaram os residentes antigos, portanto aqueles
que tinham mobilidade espacial negativa. Por outro lado, afirma que estudos posteriores lhe permitiram
perceber que a mobilidade espacial das populações do cinturão vermelho é superior à da população
francesa nativa (65% contra 15%).
preferirmos)4, conceptualiza a forma como os actores expulsos actuam tacticamente
contra os usos planeados. Leite (2004) chama a estas práticas de contra-usos, um
fenómeno pós-revanchista de retroacção da gentrificação (LEITE & PEIXOTO, 2009),
em que os indesejáveis seriam tardiamente incluídos. Esta inclusão dar-se-ia, por um
lado, em razão da sua actuação táctica, mas também como efeito da falta de
investimento publico e privado nos espaços intervindos ou de fenómenos de moda
(idem). As práticas sociais “marginais” abrem portanto a possibilidade de subversão,
permitindo que o espaço público emerja como loci de conflito e tensão, portanto como
campo de actuação politizada (LEITE, 2004).
A questão que se me coloca face ao conceito de contra-usos é se de facto estes são
práticas politizadas. Não me parece que o facto de ocorrem em espaço público (no
sentido sociológico do termo) seja condição suficiente para considerar estas tácticas
com dimensão política. Questiono se não serão mais estratégias de sobrevivência do que
acções propriamente políticas.
Não se pretende neste espaço entrar neste debate se não “abrir” portas para uma reflexão
a ser encetada num momento posterior.
CONCLUSÕES
Face ao processo de globalização, os modelos de organização e gestão do território,
portanto de representar e conceber o espaço urbano, vão sendo progressivamente
alterados. As estratégias de formação de uma imagem competitiva da cidade, as
alterações dos usos e apropriações do espaço decorrentes dos modelos do novo
urbanismo, e o crescente poder políticos dos empresários, dos detentores do capital, e
dos profissionais das terceiras culturas concorreriam, argumentam diversos autores, para
que o espaço fosse apropriado por um número reduzido de pessoas. A cultura e a
própria cidade seriam, pelo novo urbanismo, espectacularizadas e mercantilizadas.
Paralelamente, a cidade, do mesmo modo que o mundo, seria alvo de uma crescente
fragmentação socioespacial – aos privilegiados e aos destituídos são “atribuídos” (de
forma abstracta ou planeada; efectivada via controle, repressão, submissão ou
assistencialismo) espaços de significação e vivência diferenciados.
4 A propósito, note-se que, segundo Smith (2002), reabilitação é apenas uma forma de encobrir a demonizada gentrificação. Apesar
de hoje em dia os políticos e urbanistas assumirem um discurso de incluir todos os cidadãos, isto não significa “…the end of the
revanchist city and the return of a kinder, gentler urbanism” (idem: 288)
A questão que emerge é de como corresponder às demandas e interesse do mercado
global e ao mesmo tempo promover a diversidade social, espacial e cultural urbana?
Como responder ao desafio da fragmentação socioespacial, que parece colocar em risco
a manutenção da diversidade inerente à urbanidade?
O espaço e as práticas sociais que nele ocorrem são moldados por diversos factores,
podendo assumir diversas formas, entre elas o reforço à cidadania ou enclaves de estilos
de vida e segregação socioespacial. As políticas, estratégias e práticas de reabilitação
urbana impõem-se como forma privilegiada de produção do espaço urbano, veiculando
interesse de corporações e governos (SMITH, 2006). Contudo os actores sociais
interagem com constrangimentos estruturais das cidades, com processos históricos,
económicos e políticos mais abrangentes, concorrendo para que os processos que
ocorrem no espaço urbano sejam maleáveis. Ou seja, perante a ordem imposta (que
como já discutimos provoca efeitos segregacionista e fragmenta o tecido socioespacial
das cidades) os diferentes actores podem agir por submissão, subversão, negociação,
entre outras, numa miríade de possibilidades. Relegar os indesejáveis para espaços
urbanos, ou diminuir as suas possibilidades de acesso a espaços enobrecidos não tem,
necessariamente, o efeito de conter ou amenizar as suas práticas. Pelo contrário, ao
congregarmos problemas sociais, ao tentá-los afastar da cidade que se quer reconquistar,
poderemos estar a criar possibilidades criativas de actuação táctica. Podemos estar
também a criar condições privilegiadas de actuação marginal.
Ao que parece as formas actuais de planear e intervir no espaço urbano abrem brechas
no tecido urbano, criam fossos socioespaciais, mas não eliminam nem ocultam
definitivamente as dinâmicas sociais que são vistas como retrocessos, marginais. A
desigualdade social impregna-se no espaço, deixando marcas indeléveis na paisagem
urbana, marcas estes que urge analisar e reflectir continuamente.
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