101 - Fabiana Pavel
REABILITAÇÃO E IDENTIDADE. O BAIRRO ALTO EM DISCUSSÃO
“Cidades, património e reabilitação urbana”
Arq.ª Fabiana Pavel
A reabilitação dos núcleos históricos delineia-se hoje como um ramo do planeamento urbano, tanto pela sua importância em termos de sustentabilidade ambiental, de revitalização económica e de coesão social, quanto pelo seu caráter de defesa do património. A preservação e valorização do património construído contribuem para o reforço da identidade cultural, opondo-se à tendência homogeneizante da globalização.
Observa-se um interesse imobiliário crescente pelas áreas centrais, produzindo, em muitas cidades, processos de gentrification, resultantes da valorização fundiária de zonas históricas, conduzindo à substituição dos antigos residentes por grupos sociais de maiores recursos, geralmente associados à substituição do comércio tradicional, em um processo de perda de identidade. A manutenção da população:
[P]ode corresponder a uma visão tradicionalista (e irrealista) de congelamento no tempo e enclausuramento no espaço de uma população supostamente susceptível de subsistir mumificada como peça de museu. No entanto, a manutenção da população pode ser também entendida como manutenção duma população que se transforma, de acordo com as suas próprias dinâmicas de reprodução e mudança […]1
Não é possível considerar a manutenção da identidade do lugar como uma “sobrevivência folclórica anacrónica” já que a mesma é “factor - se não mesmo condição - de protagonismo social activo”.2
A reabilitação do património urbano tem merecido nas últimas décadas um debate crescente, sobrepondo-se ao paradigma da renovação urbana subjacente aos princípios do modernismo.
Um dos contributos do presente trabalho é compreender o processo de gentrification à luz do paradigma de reabilitação urbana integrada. Esta visa “promover uma intervenção urbana equilibrada e articulada, tendo em conta as dimensões ambientais, económicas, sociais e
1 COSTA, António Firmino da. Sociedade de Bairro. Dinâmicas Sociais da Identidade Cultural. Oeiras: Celta Editora, 1999. Pag. 472.
2 COSTA, 1999, op. cit. Pag 477.
culturais”3, contrapondo-se à tendência para a gentrification, desertificação e terciarização dos centros históricos.
O propósito deste trabalho è o estudo destes conceitos e o conhecimento das práticas e das políticas de reabilitação em um estudo de caso específico, o Bairro Alto em Lisboa.
O presente estudo insere-se em uma pesquisa em curso, destinada à defesa do Doutoramento em Arquitetura, que pretende analisar a génese histórica do Bairro Alto, procurando a sua identidade arquitetónica e social; indagar as políticas da Câmara para sustentar a teoria da necessidade de uma nova atitude de recuperação do bairro.
ESTUDO DE CASO
Na segunda metade do séc. XV, Lisboa tendia a alargar os seus limites na direção poente, onde se situava um conjunto de propriedades que ocupavam toda a superfície do atual Bairro Alto. Em 1492 é assinado um acordo de aforramento do terreno que, a partir de então, será chamado Vila Nova de Andrade. Com a chegada dos Jesuítas a S. Roque (1551), assistimos a uma nova fase de urbanização. O centro do Bairro é deslocado para a Igreja de S. Roque, toma a denominação de Bairro Alto de S. Roque. As famílias da aristocracia começam a desfrutar do novo bairro.
O Terramoto de 1755 não afetou profundamente o Bairro Alto. Ainda hoje grande parte dos edifícios mantém os primeiros e segundos andares anteriores a esta época. Porém as obras pombalinas na rua da Misericórdia, Camões e Século redefiniram os limites do bairro criando, através da sua monumentalidade, uma fronteira com a cidade.
Após o Terramoto, a maioria da aristocracia retirou-se para as suas quintas, abandonando os palacetes no Bairro, ou alugando-os a gente de poucos recursos. Durante o séc. XIX vários palácios em ruínas foram expropriados pela Câmara e demolidos.4
Embora remetido a uma condição popular, o crescimento da cidade faz com que o Bairro ganhe uma nova centralidade. O aparecimento do Teatro da Ópera traz a instalação de músicos e cantores, artistas e poetas. Nasce assim um clima artístico e de alguma marginalidade.
O Bairro Alto, empobrecido e com a sua estrutura fundiária pouco apelativa para a construção de novos edifícios, entra em uma fase de declínio. O parque construído envelhece, são
3 ISCTE. Políticas públicas de Revitalização Urbana Reflexão para a formulação estratégica e operacional das actuações a concretizar no QREN Relatório final 28 de outubroOutubro de 2005. Lisboa: ISCTE / CET Observatório do QCA III, 2005. Pag. 25.
4 CARITA, Helder. Bairro Alto Tipologias e Modos Arquitectónicos. Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa, 1990.
_________. Lisboa Manuelina e a formação de modelos urbanísticos da época moderna (1495-1521). Lisboa: Livros Horizonte, 1999.
efetuados restauros pontuais e são aumentados andares na maioria dos antigos edifícios do séc. XVI e séc. XVII.
Ao longo dos seus cerca de quinhentos anos de História, o Bairro Alto tem vindo a constituir um marco na cidade relativamente a um certo tipo de vivência e de figuração no imaginário coletivo. Desde os fadistas e as facadas, a prostituição e o clima de marginalidade, passando pelas tertúlias e a vida ligada aos jornais, pelas noites dos anos oitenta e noventa até chegar à atual vivência, o Bairro Alto tem sido marcado por um clima heterogéneo, resultante da coabitação de diferentes classes sociais, pela cumplicidade entre as vidas diurnas e noturnas e pela coexistência de diferentes valores.
Não é possível congelar o Bairro Alto no tempo e manter todas as suas pequenas vivências estáveis e iguais a si próprias, mas importa perceber como é que a sua identidade pode ser renovada embora mantendo-se o seu fio condutor. Surgem todavia sinais de mudança estrutural, já desde os anos 1990, com o desaparecimento gradual das atividades tradicionais e das ofertas culturais ligadas à fruição noturna, e o aparecimento dos condomínios de luxo.
Em 1976, no Comité de Ministros do Conselho da Europa, é definido pela primeira vez o conceito de reabilitação como instrumento que permita a integração de monumentos e edifícios antigos no espaço físico da vida contemporânea.
As primeiras operações de reabilitação urbana em Lisboa iniciam-se em 1986, com duas ações piloto em Alfama e Mouraria, na sequência da criação, em 1985, do Programa de Reabilitação Urbana (PRU). Em Alfama e na Mouraria são criados Gabinetes Técnicos Locais (G.T.L.) instalados nos bairros, com o objetivo de elaborar planos de intervenção e pressionar os serviços da Câmara. Em 1988 seguiu-se a criação do G.T.L. do Bairro Alto, cujos limites de intervenção foram fixados em uma área que abrange as freguesias da Encarnação, S. Paulo, Sta. Catarina e Mercês.
Paralelamente, nos últimos anos, existe no Bairro e na zona limítrofe uma tendência para a compra por parte de sociedades imobiliárias de edifícios devolutos. Estes edifícios encontram-se, na maioria dos casos, em grave estado de abandono, permitindo às sociedades imobiliárias operações de requalificação que não passam de meras reconstruções do interior, «reabilitando» apenas as fachadas. Estes empreendimentos destinam-se normalmente à construção de condomínios de luxo.
Caso paradigmático é o Convento dos Inglesinhos: o complexo foi adquirido pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (1982) que o vendeu (2001) à Amorim Imobiliária por uma quantia
não revelada. O Convento foi transformado em condomínio de luxo. Esta transformação do monumento tem vindo a criar numerosas polémicas, originando um protesto popular.
CONCLUSÕES
O Bairro Alto conseguiu manter, ao longo dos séculos, o seu caráter arquitetónico, ganhando uma identidade única, caracterizada por uma heterogeneidade social e por um caráter ao mesmo tempo de centralidade e de marginalidade. Porém, boa parte do parque edificado do Bairro Alto encontra-se hoje em degradação ou abandono, embora a CML se tenha empenhado em projetos de reabilitação urbana.
As forças dos agentes económicos (imobiliários e terciários) apontam para processos de gentrification e transformação do bairro em uma zona de lazer e condomínios fechados.
Embora não se tenham reconstruído detalhadamente, neste texto, as políticas e práticas de reabilitação urbana, pode-se dizer que neste momento histórico existe uma forte influência das intervenções privadas no bairro, e um aumento substancial do terciário. Estes dados apontam para uma intervenção insuficiente da CML e para a gentrification.
O estudo da tendência para a gentrification e terciarização, no caso concreto do Bairro Alto, pretende concorrer para a compreensão do fenómeno, mas também para a sua inversão.
Palavras-chave: Lisboa; Bairro Alto; História do Bairro Alto; Identidade; práticas e políticas de reabilitação; Gentrification; Especulação Imobiliária.