A sociedade civil organizada e os tribunais: a mobilização do direito e da justiça em Lisboa, Luanda, Maputo e São Paulo |
O acesso ao direito e à justiça é, hoje, consensualmente considerado como um direito estruturante na ordem jurídica das sociedades contemporâneas. Subjaz-lhe a ideia de que, se não existir uma real igualdade de acesso ao sistema jurídico e judicial, não é possível falar num verdadeiro Estado democrático de direito. O aprofundamento da democracia nas sociedades contemporâneas relaciona-se estreitamente com a garantia dos direitos dos cidadãos sem quaisquer exclusões, sejam elas de natureza económica, cultural, social ou outra. Constitucionalmente consagrado na grande maioria dos países, o acesso ao direito e à justiça desempenha, portanto, um papel central, embora não se esgotando nele, como instrumento de defesa dos direitos e interesses legítimos. No contexto de recomposição e de afirmação de «velhas» e «novas» gerações de direitos, o processo de mobilização dos sistemas judiciais ganha uma maior centralidade e, com ela, as políticas e os instrumentos de acesso à justiça, com impacto nas estratégias de reforma jurídica. Com o objectivo de promover a garantia de direitos através da universalização do acesso, as políticas de reforma da justiça têm procurado integrar diferentes concepções do perfil do acesso à justiça, desde uma visão mais restrita – centrada na informação e na consulta jurídica em função de um problema individual e no recurso aos tribunais judiciais para obter a resolução de um litígio –, até uma ideia de justiça plural – que convoca, não só o acesso ao sistema judicial, como, ainda, a utilização de um leque vasto de formas de justiça alternativas ou complementares aos tribunais e de outros mecanismos de informação, divulgação e educação para os direitos. Se é certo que, nas estratégias de reforma, as interfaces oficiais de assistência jurídica, incluindo as dinamizadas pelas ordens de advogados, assumem um papel fundamental, estão longe de ser as únicas. As limitações de desempenho que têm revelado acentuam, cada vez mais, a importância das organizações e dos actores sociais como interfaces facilitadoras do acesso ao direito e à justiça. O objectivo deste projecto é desenvolver um estudo comparativo da mobilização do direito e da justiça através de organizações da sociedade civil em quatro cidades de língua oficial portuguesa: Lisboa, Luanda, Maputo e São Paulo. Um estudo desta natureza deve ter como eixo analítico uma comparação sistemática que permita captar diferentes experiências, compreendê-las nos seus contextos e aprofundar a interacção entre sistemas. A comparação entre as cidades propostas permite-nos conhecer realidades diversas (ordenamentos jurídicos e dinâmicas da sociedade civil), mas que têm a particularidade de partilharem um matriz jurídica e património histórico-cultural comum, o que potencia a sua interacção. Os diferentes graus de desenvolvimento dos países em que este estudo incidirá e o seu reflexo na criação e aplicação de direitos sugere distintos níveis de eficácia do catálogo de direitos, em especial de direitos sociais, expondo a (in)eficiência da acção dos poderes e instituições do Estado. A garantia de direitos e as mudanças do quadro legal passam, então, de forma significativa, a depender de pró-actividade na mobilização das instituições estatais, revelando o papel das organizações sociais a actuar nesse campo. Interessa-nos analisar como as organizações têm realizado este papel, testando ainda sua capacidade de influenciar a agenda de reformas. O objecto deste estudo são, assim, as organizações da sociedade civil que asseguram a promoção dos direitos e o acesso dos cidadãos à justiça, seja para a defesa de direitos individuais, seja dos direitos difusos ou colectivos, desenvolvendo diferentes interfaces com as instituições e, em particular, com o sistema judicial. A elaboração de uma cartografia completa destas organizações e a sua caracterização estrutural e funcional permitirá evidenciar, com maior consistência, virtualidades, processos de boas práticas e bloqueios, permitindo o diálogo entre experiências distintas, embora com proximidades várias, e, através dele, a possibilidade de fertilização e capacitação mútuas. O valor amplamente reconhecido dos estudos comparativos na análise das instituições/organizações resultará ainda mais profícuo quanto mais se conseguir categorizar as diferentes dinâmicas da sociedade civil organizada, de modo a poder reflectir-se sobre a sua contribuição na promoção e protecção de direitos e na introdução de mudanças no ordenamento jurídico. Os resultados e recomendações esperados constituirão contributos importantes para a definição de novas políticas em favor da democratização do direito e da administração da justiça. Neste processo, este estudo pretende, ainda, renovar o quadro actual da discussão teórica sobre o acesso ao direito e à justiça, contribuindo para um debate público que envolva variados actores: decisores políticos, operadores judiciários, organizações da sociedade civil e cidadãos em geral. |