'Os Comprometidos': questionando o futuro do passado em Moçambique |
No decurso da sua curta história, o Estado moçambicano tem prosseguido uma política de construção da nação que consigna a adopção de uma história oficial baseada em memórias públicas (e intensamente publicitadas) sobre o seu passado colonial, tão distante como o recente (Meneses 2007). Este Estado procura eliminar ou tornar invisível a diversidade de memórias geradas pelo longo período de complexas interacções sociais entre colonizadores e colonizados no decurso do colonialismo português (Santos 2002; Santos & Meneses 2006). Este silenciamento nunca foi completamente conseguido, sobretudo nos últimos anos. Diferentes perspectivas de várias organizações e indivíduos permitiram a emergência de histórias alternativas junto da opinião pública, embora restritas e censuradas. O objectivo específico do projecto é examinar comparativamente as interrelações dinâmicas que decorrem entre, por um lado, a história oficial e as memórias publicitadas de líderes políticos influentes, e, por outro lado, as memórias de um grupos específicos cujas trajectórias política e social colidem drasticamente com as premissas subjacentes à história oficial e suas memórias. São os ‘comprometidos’, um conjunto considerável de pessoas acusadas de colaboração próxima com o sistema colonial aquando da independência de Moçambique (o número estimado ronda as 100.000 pessoas). A sua reabilitação posterior foi obtida à custa da rasura do seu passado da esfera pública; como sendo um passado destinado a permanecer numa memória privada e silenciada. A passagem do tempo foi quebrando este silêncio, que acabou por chegar ao público. O desenrolar do choque entre estes dois conjuntos de memórias e seus termos de referência são os objectivos centrais deste projecto. Após a independência, a Frelimo –principal força política do país– levou a cabo uma complexa estratégia política que visava lidar com a hibridez e ambivalência identitária, parte do intrincado legado colonial (Bhabha 1994). Visando acabar com todas as formas possíveis de continuidade com o passado colonial, os alvos desta política são os ‘comprometidos’, os que foram apanhados na ‘transição’. A política de memória de Frelimo baseava-se na ideia de ‘não vamos esquecer o tempo que passou’. O conceito-chave desta estratégia política visava a “transformação dos comprometidos, baseada numa assunção de culpa, no arrependimento, na punição e re-educação” (Coelho 2003: 191). No rescaldo deste processo político, no início dos anos 80, a maioria dos ‘comprometidos’ foi reconhecida como politicamente re-educada, sendo aceites como cidadãos plenos. A partir deste momento as memórias deste grupo caíram na obscuridade, ensombradas pela multiplicidade de eventos políticos que caracterizou o início dos anos 90 no país. Desde o Acordo de Paz de 1992 e da introdução de eleições multipartidárias, Moçambique é muitas vezes descrito como uma jornada de sucesso em direcção à paz e reconciliação. Contudo, os silêncios sobre a dinâmica das memórias passadas estão presentes nas práticas e estruturas contemporâneas. Hoje, o seu rescaldo, sob a forma de legados de violência, está presente nas memórias individuais e colectivas, lutando para compreender, resistir e modificar o legado da história oficial. Em termos metodológicos, o projecto decorrerá em dois eixos principais: 1) uma análise detalhada de dados arquivísticos e documentais recolhidos em bibliotecas e instituições de investigação (Portugal e Moçambique). Será dada uma atenção particular aos média moçambicanos (rádio, jornais) que cobrem o período, bem com a filmes que focam especificamente o objecto do projecto; 2) histórias de vida e entrevistas semi-estruturadas de vários actores sociais incluídos na ampla categoria dos ‘comprometidos’. Cada momento da recolha desta memória-narrativa será seguida de interpretação, inspirada numa hermenêutica colectiva. Em conjunto, a recolha histórico-antropológica de dados constitui o ponto de partida para o desenvolvimento de uma cartografia de memórias múltiplas. A equipa visa contribuir teoricamente para desenvolvimentos pós-coloniais em África pela adição de debates científicos sobre conflitos, memórias, violência e práticas políticas. Dar visibilidade a distintas recolecções do passado ajudará a reflectir agendas politicamente informadas para o desenvolvimento da cooperação para o desenvolvimento. A equipa integra 6 investigadores, incluindo 2 assistentes de investigação a contratar. A composição da equipa, multidisciplinar, reflecte as preocupações e orientação do projecto, com investigadores estudando a memória, a cultura e política. A PI trabalhou com Santos & Borges Coelho em projectos anteriores que incidiram sobre mecanismos dos processos de resolução de conflitos em Moçambique. Os resultados da investigação serão parcialmente apresentados no decurso de 2 eventos científicos (Maputo 2011, Coimbra 2012) que servirão igualmente de base para diversas publicações (artigos científicos e livros), contribuindo para fortalecer os laços científicos entre as instituições participantes no projecto. |